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quarta-feira, 4 de março de 2015

Secaram São Paulo e podem secar o Brasil

Por Zilda Ferreira*

Imaginem o Brasil, o mais rico do planeta em água, com sede. O País, conforme novas descobertas, tem água para saciar a sede da população mundial. Possui as duas maiores bacias hidrográficas; Amazônica e do Prata, além de ter  os dois maiores aquíferos; Alter do Chão e Guarani. Mas não tem uma legislação que proteja os rios aéreos, e as águas subterrâneas são de domínios dos Estados, conforme a Lei das Águas de 1997. Para agravar não há políticas públicas para gerir esses recursos em benefício do Estado e da população. Parece até que o Ministério do Meio Ambiente e Agência Nacional de Águas (ANA) aderiram a política das empresas do mercado da água de privar para privatizar (Leia A obscura ameaça de privatização das águas, "Água não se nega a Ninguém parte 5/5" e "Brasil o país mais rico em água do planeta").

A destruição do Bioma Cerrados que congrega o Planalto Central, onde nascem quase todos os grandes rios brasileiros, atualmente contaminados e destruídos pelo agronegócio, principalmente suas nascentes e matas ciliares, sem dúvida é também responsável  por essa iminente catástrofe. São Paulo foi a primeira vítima, mesmo ficando  em cima do aquífero Guarani e na Bacia do Prata. O agronegócio e a produção de biocombustíveis nesse Estado consomem aproximadamente 80% de água e suas industrias mais de 20%. Além disso, São Paulo foi primeiro Estado da Federação a incentivar  a privatização da água em seus municípios, através de concessões, e não investiu na rede de abastecimento - apesar do consumo doméstico ser prioritário por lei - o acesso foi negado com a falta de água, contrariando a Resolução da ONU 64/292 que determina Água como Direito Humano ("Veneza Paulista privatiza rio e oferece alívio à crise hídrica. Para poucos"). Não deixe de ler: Novo secretário de Recursos Hídricos reacende ameaça de privatização da Sabesp

MINERADORAS PODEM SECAR O BRASIL

Agora, os Brasileiros devem temer que esse problema se espalhe pelo país porque as mineradoras, principalmente as multinacionais, podem secar a Amazônia, o cofre hídrico do continente. Há denúncias de que  uma mineradora Anglo-Americana está poluindo as nascentes do Rio Amazonas, no Peru. Em Alter do Chão, distrito de Santarém, PA, à beira do Rio Tapajós, dois engenheiros argumentavam com uma jornalista que  o maior problema da poluição e do desequilíbrio ambiental da Amazônia são as mineradoras e não desmatamento (Leia "Aquífero Alter do Chão pode ser entregue a pesquisadores estrangeiros" e "Um inferno siderúrgico na Amazônia").

Durante um simpósio em Tucuruí/PA, um engenheiro Florestal assegurava que a ALCOA -empresa líder mundial na produção de alumínio - consumia mais energia que toda a população de São Luis, além da grande quantidade de água e de envenenar os rios. Em seguida, um outro palestrante usou uma metáfora para explicar a importância  de não poluir as águas: "Os rios são como veias de um corpo e as barragens como um grande coágulo, se as mineradoras não envenenassem esse sangue da terra e não sugassem tanta água, a natureza regeneraria. Mas, elas não permitem" (Leia: "Um povo cercado por um anel de ferro"  e "Água: as mineradoras têm (muita) sede").


OS CONVERTIDOS DA MÍDIA

Alheios às causas que geram a crise hídrica os convertidos da mídia infernizam vizinhos, convocam reuniões de condôminos para discutir a crise da água. O clima desses encontros é tenso. Normalmente, pedem novas regras de consumo de água, denunciam vizinhos, e querem instalações urgentes de medidores individuais em prédios antigos. Numa dessas reuniões, na Tijuca, um bairro de classe média do Rio de Janeiro, uma moradora resolveu indagar se alguém sabia  que o agronegócio consumia mais de 70%, as indústrias mais de 20% e que consumo doméstico não chegava 8%, lembrando que a água tratava é cara. Todos desconheciam essa informação, mesmo uma bióloga ambientalista e uma jornalista que trabalhava para uma ONGs de Educação Ambiental. (Leia "Água: mídia alternativa e EBC se redem ao ecomercado").

Enquanto esse discurso da mídia  tem azedado relações entre vizinhos e gerado até brigas sérias, parece que o mercado está satisfeito. Recentemente um empreendimento imobiliário - detalhes no link -  fazia grande  propaganda de um oásis, preparado através da mudança   do curso de um rio, especialmente aos paulistas que quisessem fugir do drama da falta de água para viver num clima de abundância hídrica, com águas cristalinas. Um verdadeiro sonho para quem pudesse pagar (Leia "Veneza Paulista privatiza rio e oferece alívio à crise hídrica. Para poucos").

Entretanto, com as empresas a mídia é benevolente e tem evitado atritos, não divulga quem consome mais água e nem o nome de uma empresa de bebidas que desviou o curso de um rio para beneficiar sua fábrica. Pouca gente sabe que a Sadia é a empresa que mais consome água do Aquífero Guarani e também uma das maiores poluidoras da cidade de Toledo, no Paraná. É bom lembrar que só para produzir um quilo de frango são necessários dois mil litros de água. Ninguém divulga também que os irmãos Marinhos nos anos 90 compraram terras exatamente em cima do Aquífero Guarani, embora essa denúncia tenha sido feita por professores de universidades paulistas, na ocasião (Leia: "Água destinada a empresas pela Sabesp aumenta 92 vezes em 10 anos").

Esses fatos e a Resolução da ONU 64/292 que determina Água como Direito Humano são escondidos para que a população não proteste contra o processo de privatização desse bem comum e essencial à vida (Leia: "A luta pelo direito à água na Rio+20" e "Agora, água para todos").

O PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO

Atualmente há dois grupos que defendem subliminarmente a privatização da água e se revezam no comando da política hídrica brasileira: os tecnicistas, com inovações tecnológicas descontaminantes, debitando na conta do cidadão o problema de escassez da água; e os conservacionista da natureza, com discurso  da sustentabilidade, que encobre o limite da capitalização da natureza e da cultura. A capacidade de perversão e sedução desse discurso e tão alienante que modifica hábitos do povo para economizar água até para escovar os dentes.

É difícil separar esses dois grupos, porque os interesses deles são mais ou menos os mesmos. Por exemplo, o grupo que atualmente dirige a SABESP e a política hídrica do Estado de São Paulo é formado por técnicos altamente especializados, ex- dirigentes da Agência Nacional de Águas (ANA) - considerados tecnicistas - mentores da  atual política hídrica brasileira, implantada no governo FHC, dentro dos princípios neoliberais científicos e tecnológicos de dominação do homem e da natureza.

É importante lembrar que a atual ministra do Meio ambienta, Isabela Teixeira, tem formação acadêmica na COPPE/UFRJ - instituição dominada na área hídrica pela Suez Lyonnaise des Eaux, segunda maior empresa do mercado mundial da Água e GDF Suez também francesa, considerado o segundo grupo de energia do mundo. Isabela é uma tecnocrata, discípula desses grupos e talvez por isso tenha endossado políticas do Conselho Mundial da Água, que congrega as maiores empresas do mercado da Água, defensoras da privatização - Ficou claro no VI Fórum Mundial da Água em Marselha, em 2012 (Leia "Olho na governança Global da Água" e "Privatização da água: o 'fracasso' melhor financiado").

SUSTENTABILIDADE?

E quem sonhava com o discurso de sustentabilidade da ex-ministra Marina Silva, já percebeu que a realidade é uma catástrofe ainda maior. Os conservacionistas com o disfarce do discurso da sustentabilidade, que encobre o limite da capitalização da natureza, têm como estratégia de poder o hiper-realismo da globalização no ocultamento dos mecanismo de repressão, a fim de dilapidar recursos ambientais e ficarem impunes. Defendem até a federalização do mundo, e assim, a  governança dos ativos ambientais brasileiros seria entregue às nações hegemônicas.(Para entender o que esconde o marketing ambiental dos conservacionistas leia "A disputa pela Terra em Copenhague" e "O agronegócio e o ecomercado ameaçam a vida"). 

Não há esperança a vista. Imaginem a que ponto chegamos, o Financial Times divulgou que uma das causas para o impeachment de Dilma seria a falta de Água. O voracidade do mercado e a mídia perderam a noção, mas parece que contam com o apoio da Ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, que jamais foi criticada pelo Globo e pela mídia em geral. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Quênia descobre um inacessível excesso de água

por Miriam Gathigah, da IPS


kenia Quênia descobre um inacessível excesso de água
O condado de Turkana é a região mais árida do Quênia. Segundo especialistas, a descoberta de 200 mil metros cúbicos de água na região deve beneficiar diretamente a comunidade do lugar, majoritariamente nômade. Foto: GNR8R/CC by 2.0

Nairóbi, Quênia, 19/9/2013 – Zakayo Ekeno passou décadas pastoreando gado nas áridas terras do condado queniano de Turkana, como seu pai fizera antes. Nada nesses solos liquidados pela seca lhes indicava a riqueza que escondiam. “Muitas vezes me perguntei se poderia sair algo bom desta terra de má sorte”, contou Ekeno. Turkana é o mais árido e pobre dos 47 condados do Quênia. Em 2011, quase 9,5 milhões de pessoas dessa comunidade, principalmente nômade, foram afetadas por uma severa falta de chuvas.
Assim, poucos poderiam ter sonhado que debaixo dessa terra rachada e chamuscada pelo Sol havia água suficiente para abastecer durante 70 anos um país de 41,6 milhões de habitantes como este. No dia 11 deste mês, o governo do Quênia e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) anunciaram a descoberta de reservas de aproximadamente 200 mil metros cúbicos de água doce na bacia do Lotikipi, em Turkana.
“Todos os anos perdemos gado por falta de água e pastagens. Também vivemos com medo de que outros roubem nossos animais para substituir os que perderam. Eu mesmo já fiquei ferido nesses assaltos. A água é a solução para este conflito”, pontuou Ekeno. Até agora a Organização das Nações Unidas (ONU) considera o Quênia como um país com escassez hídrica crônica, e estatísticas da Unesco mostram que 17 milhões de pessoas não têm água potável. O Quênia consome cerca de três bilhões de metros cúbicos por ano.
Embora a descoberta tenha sido recebida com emoção, especialistas em água e meio ambiente, como a cientista Judith Gicharu, alertaram que o governo queniano tem pouca capacidade e marcos legais para manejar esta sustentabilidade hídrica. “Temos a Lei da Água de 2002 e a Lei de Manejo e Coordenação Ambiental de 1999. Entretanto, elas não fornecem um contexto apropriado para a administração da água subterrânea”, indicou à IPS.
Existem disposições em marcos mais amplos, mas não abordam especificamente o uso da terra e a administração das camadas freáticas, explicou Gicharu. As decisões sobre a água subterrânea “não costumam se basear em normas sólidas. E, mesmo havendo regulamentações, raramente são cumpridas. A implantação de qualquer disposição fica comprometida pela superposição de responsabilidades de diferentes órgãos do governo que se ocupam da água e do meio ambiente”, detallhou.
No Quênia, todos os recursos hídricos pertencem ao Estado, e as entidades governamentais devem aprovar e dar permissões para o uso da água. Contudo, segundo o informe intitulado Quênia: Estudo de Caso Sobre a Governança da Água Subterrânea, publicado em 2011 pelo Banco Mundial, “não existe consciência estratégica sobre a necessidade de proteger estes recursos”.
Ikal Angelei, da organização ambientalista comunitária Amigos do Lago Turkana, alertou que, na falta de um forte contexto legislativo que possa estabelecer “a forma de explorar os recursos, quem se beneficia deles e como, é possível que esta riqueza natural não melhore significativamente a sorte do país”. A ativista acrescentou que, “tão logo foi descoberto o aquífero, e a população de Turkana já está ausente do diálogo sobre a água. O governo já fala em abastecer todo o país com a ‘nova’ água, mas, quanto dela será destinado aos habitantes do lugar?”
Esta é a segunda maior descoberta de recursos naturais em Turkana. Em março de 2012 a empresa de exploração petroleira Tullow Oil anunciou a descoberta de milhões de barris de óleo na bacia do Lokichar. “Não podemos seguir o mesmo caminho que tomou a questão do petróleo. Desde que foi descoberto em Turkana, os investidores só se interessaram em saber quando começará a ser explorado. Dos benefícios para a comunidade não falam”, destacou Angelei.
Para o economista Arthur Kimani, “o governo tem de ajudar a comunidade a entender que, além de beber a água, este recurso também pode gerar dinheiro, por exemplo, se usado para cultivar espécies comerciais”. Uma fonte do Ministério do Meio Ambiente, Água e Recursos Naturais declarou que essas críticas “não poderiam estar mais longe da verdade. De fato, a população de Turkana obterá água nas próximas duas semanas. Também nos comprometemos com o setor privado para concretizar associações que resultem economicamente viáveis para a comunidade”.
Kimani insiste em que o papel do governo é crucial para administrar o fornecimento de água subterrânea. É necessário que haja participação pública para acordar como acontecerá”, ressaltou. “Muitas empresas trabalham com uma camarilha de gente bem conectada para apresentar um sistema opaco de declaração de resultados do que foi explorado e da renda obtida”, afirmou.
“Os esquemas de renda compartilhada deveriam ser adotados de maneira aberta, para que o setor estatal tenha oportunidade de participar e se desestimule os funcionários que buscam benefícios pessoais à custa do público, sobretudo da comunidade que vive perto dos recursos naturais”, enfatizou Kimani. Por sua vez, Samuel Kimeu, diretor-executivo do escritório da Transparência Internacional no Quênia, disse à IPS que é necessário existir clareza em toda a cadeia de extração. Do contrário, “os termos das licenças irão contra o interesse público, que fica privado de seus possíveis ganhos”, ressaltou. 
Fonte: site Envolverde/IPS 
http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/quenia-descobre-inacessivel-excesso-agua/

Nota da editora do Blog:  A Resolução da ONU 64/292 de julho de 2010 determina que é  direito humano Água e Saneamento. Durante a Rio+20, as nções ricas e industrializadas, principalmente Inglaterra, EUA e União Européira tentaram derrubar essa Resolução, que ainda não é cumprida.
Leia também:http:http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/07/a-luta-pelo-direito-agua-na-rio20.html
http://brasileducom.blogspot.com.br/2010/08/agora-agua-para-todos.html

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Tem água pra ver, mas não pra beber



por Coletivo Nigéria*, para a Agência Pública


Nos arredores do maior açude do Ceará, moradores de assentamentos, cidadezinhas e vilas sofrem com a seca enquanto a água passa diante dos seus olhos para abastecer o agronegócio, a indústria, e a capital, Fortaleza.

Leva-se uma hora para chegar da nova à velha Jaguaribara em um barco de alumínio com um motor de popa de 25 HP. A extensão do Castanhão, o maior açude cearense, impressiona, mas o nível d’água baixou tanto nos últimos dois anos que a antiga sede do município, inundada há uma década pela própria barragem, emergiu. A seca reduziu à metade a capacidade de 6,7 bilhões de metros cúbicos do Castanhão, que perde 22 mil litros de água por segundo, quase metade deles conduzidos pelo Eixão das Águas, o canal de transposição, à região metropolitana de Fortaleza. O sistema Castanhão-Eixão das Água responde por 37% da capacidade de armazenamento de água do Ceará.

A reaparição da antiga Jaguaribara, que jazia sob a obra de engenharia hidráulica que prometia reduzir drasticamente os efeitos da seca no Vale do Jaguaribe, tem um quê de fantasmagórica no período mais árido que o Ceará enfrenta nos últimos 50 anos. Dos 184 municípios do entorno do rio Jaguaribe, represado pela barragem, 175 estão em situação de emergência. A nova Jaguaribara, a cidade planejada que substituiu a que foi submersa pelo açude, está sendo abastecida por carros-pipa e seus moradores chegam a pagar R$ 8 o quilo do feijão, enquanto os pequenos agricultores às margens do Eixão, o canal que abastece Fortaleza, precisam repartir a água com os animais e vêem suas lavouras perdidas.

A mais de 200 quilômetros dali, porém, o Castanhão, via Eixão das Águas, garante a água na capital cearense e, em breve, vai suprir também a demanda hídrica do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o maior projeto de infraestrutura para o desenvolvimento econômico do Ceará, localizado na região metropolitana da capital. Resta apenas concluir o quinto trecho do Eixão das Águas – que então terá 255 km de extensão – o que está previsto para setembro.

A água do Castanhão vai completar seu trajeto do sudeste do Estado, onde está o açude, ao litoral cearense. O objetivo é final é o complexo industrial conjugado ao porto, que vem registrando crescimentos anuais entre 20% e 30%, composto por uma siderúrgica da Vale, uma refinaria da Petrobrás e duas usinas termelétricas da empresa MPX, do grupo de Eike Batista – que já opera com uma das usinas e vai colocar a outra em funcionamentonos próximos meses. As duas usinas térmicas, planejadas para gerar 1.085 MW, vão consumir até 800 litros de água por segundo. A demanda total de água prevista para o complexo é de 5 mil l/s de “água bruta” – o termo técnico para a água doce não tratada.

Dez anos de promessas não cumpridas

Em um cenário em que 71 dos 143 reservatórios monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) estão com níveis abaixo de 30%, o Castanhão, inaugurado em 2003, cumpre missão de seguir abastecendo Fortaleza, que concentra mais da metade da população do Estado, e de parte considerável do agronegócio no Estado, como a produção de frutas para exportação no perímetro irrigado da Chapada do Apodi, com altas taxas de crescimento. Mas, como mostra a situação dos moradores de Nova Jaguaribara, ainda não trouxe benefícios à população local, nem mesmo aos que perderam suas casas para a obra.

Dos 22 mil litros por segundo de vazão do Castanhão, 10 mil seguem pelo Eixão das Águas e 12 mil são despejados no leito do Rio Jaguaribe – o maior rio cearense, com cerca de 600 km de extensão, margeado por empreendimentos do agronegócio. Esse volume de água explica por que, ao contrário de Recife, por exemplo, nem a seca prolongada trouxe ameaça de racionamento à capital cearense, destaca o coordenador geral do Complexo do Castanhão, José Ulisses de Sousa, engenheiro do Departamento de Obras Contra as Secas (Dnocs).

Por outro lado, nem todos os 18 assentamentos planejados para receber as famílias desalojadas pela barragem foram concluídos. A maior parte dessas famílias era arrendatária de terras alheias e não recebeu indenização pelas casas perdidas. Na ponta final do Eixão das Águas, a obra atingiu os índios Anacé, que tiveram uma lagoa aterrada, riachos represados e perderam suas terras para grandes indústrias e para a infraestrutura do governo.

Houve esperança no início. Os primeiros assentamentos a serem construídos, como o Curupati Peixes, desenvolveram com sucesso a psicultura em Jaguaribara, e hoje o Castanhão é pontilhado por gaiolas para a criação de peixes em cativeiro, principalmente tilápias. Segundo, o engenheiro Ulisses, “é o maior parque psicultor do País”. Outros assentamentos foram destinados à pecuária leiteira, como o Mandacaru, em que cada família recebeu três hectares de terra para o cultivo do pasto. Mas as “matrizes” – as vacas leiteiras – que deveriam chegar de Minas Gerais, como prometido à época da inundação, uma década depois ainda não chegaram.

“Concordo que é um pouco tarde”, concede Ulisses. “É a questão da burocracia do sistema do governo brasileiro. Nós temos vários órgãos fiscalizadores, temos uma Lei de Licitações engessada, que proíbe a gente de correr. Não tem como. A gente fica engessado. Tem que esperar licitação, Procuradoria dar parecer, ai demora mesmo. Agora que é tarde, é”, reconhece o engenheiro. “Existe um débito do governo com essas comunidades, mas em nenhum momento parou-se de trabalhar em cima de alcançar o objetivo do projeto inicial do Castanhão”, afirma.

Ulisses também reconhece que é um “absurdo” que as comunidades às margens do Castanhão tenham que ser abastecidas através de carros-pipa. Dos 820 caminhões da Operação Carro-pipa no Ceará – coordenada pelo Exército e pela Defesa Civil e responsável por atender a 134 municípios do estado –, dois deles abastecem exclusivamente Jaguaribara, incluindo casas da sede do município.

“Essas coisas pretas são do pipa mesmo”

O dono e motorista de um destes caminhões é Fabiano Souza, de 33 anos, que encontramos despejando 8 mil litros de água na cisterna do agricultor Francisco Ferreira Sobrinho, o seu Zé Vital, a cerca de 300 metros de uma das margens do açude. A água é captada a alguns quilômetros dali, na estação de tratamento da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), e não tem muito boa cara dentro da cisterna de seu Zé Vital.

“Essas coisas pretas assim são do pipa mesmo, ferrugem talvez. Não tem problema não porque a gente bota no filtro e bota na geladeira. A gente bebe dela aqui e nunca ninguém adoeceu, não”, confia seu Zé Vital.

No centro comercial de Jaguaribara a revolta com a falta d’água na vizinhança do açude transborda na fala de Dona Jacinta Sousa, 48 anos. Para reforçar a dificuldade por que passa o município ela pega uma maletinha de ferramentas repleta de pequenos blocos de anotações, que registram os muitos débitos não saldados em seu comércio. “Eu tenho raiva quando pego nela!”, diz, fechando a valise e jogando-a mais uma vez para debaixo de seu birô.

Em Jaguaribara, quase todas as mercadorias vêm de fora. Segundo os entrevistados, o peixe, criado nos projetos de psicultura, é a única opção de renda da cidade – além das aposentadorias, das bolsas governamentais e dos empregos na Prefeitura. Praticamente todas as frutas e verduras do comércio vêm de Fortaleza ou da Chapada do Apodi, com preços inflacionados pela seca. Ou seja, além do prejuízo na lavoura, os pequenos agricultores precisam pagar até duas vezes mais para comer.

As chuvas de abril, maio e junho, que amenizaram os impactos da estiagem, não significaram o fim da seca – especialmente porque o segundo semestre é naturalmente o período de estio no semiárido brasileiro. Também não alteraram consideravelmente os níveis dos açudes, apenas dois deles estão com mais de 90% de seus níveis máximos: Curral Velho e Gavião, ambos alimentados pelo Castanhão. O primeiro, localizado no município de Morada Nova, é o marco entre os trechos I e II do Eixão das Águas; o segundo, na região metropolitana de Fortaleza, fica na intersecção entre os trechos IV e V, de onde parte tanto a água da capital quanto a tubulação de 55 km que leva ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).

No percurso entre um e outro reservatório, porém, populações das margens do canal sofrem com a escassez de água – como os moradores do Assentamento Amazonas e da comunidade Piauí de Dentro, localizados na fronteira entre os municípios de Morada Nova e Russas.


No Assentamento Amazonas, que cobre uma faixa de terra de 3.700 hectares, cortada pelo Eixão, o ano passado e os primeiros três meses deste foram improdutivos, com água suficiente apenas para a sobrevivência. Além do abastecimento do carro-pipa, que enche as cisternas de uma a duas vezes por semana, uma outorga da Cogerh autorizou retirar 15 mil litros de água por dia do canal. Mas, embora o assentamento exista há 15 anos, não há adutora instalada para abastecer as mais de 50 famílias. Eles têm que pagar um trator para transportar a água, por 25 a 30 reais a carrada (mil litros. Conforme o tamanho do rebanho e da família, isso significa desembolsar até R$ 150 por semana, retirados das bolsas governamentais e aposentadorias.

Os assentados Irmão Nem, presidente da associação dos assentados, e Antônio Porfírio, o Tonhão, que ocupava esse cargo quando foram feitas as negociações para que o canal cortasse a terra do assentamento, afirmam que até hoje as promessas da época da construção do Eixão das Águas não foram cumpridas.

“Na época, eles indenizaram essa parte aqui [a faixa de terra por onde hoje passa o canal]. Mas quando foi pra passar o pique, veio uma equipe do governo e prometeu que deixava áreas irrigadas aqui pra nós. No caso, ele prometeu 50 hectares, pelo menos meio hectare de irrigação pra cada um. Sendo 46 de irrigação e 4 hectares de tanque de peixe. Mas infelizmente já se passou o tempo e até hoje ninguém encontrou isso aí”, conta Irmão Nem.

Na Fazenda Melancias tem água

A poucos quilômetros dali, porém, uma adutora abastece a Fazenda Melancias, propriedade da Agropecuária Esperança que pertence a um dos maiores grupos econômicos do Ceará – o Grupo Edson Queiroz, dono de emissoras de televisão e rádio, jornal, universidade, fábricas de eletrodomésticos, distribuidoras de água mineral e gás butano etc. Dois grandes canos captam água do Eixão para irrigar a pastagem, que alimenta o rebanho de ovinos e caprinos. Entre 2003 e 2011, a empresa foi flagrada três vezes pelo Ministério Público do Trabalho pelo uso de trabalho escravo em outras de suas fazendas no Maranhão e no Piauí.

Na lista de outorgas para o Eixão, sete estão em nome da Agropecuária Esperança, totalizando uma vazão de 2.318 litros por segundo. Questionado sobre o assunto, o diretor de Planejamento da Cogerh, João Lúcio, afirmou que a vazão para a fazenda foi reduzida para priorizar o abastecimento da grande Fortaleza na estiagem, e negou a existência de privilégios no acesso à água.

“Se houver disponibilidade, essa água vai atender o pequeno e vai atender o grande. Não desconhecemos a questão política, porque a gente sabe que a sociedade tem suas correlações de forças, mas nós temos nossa visão aqui na Cogerh. Se tiver água, nós vamos atender os pequenos e vamos atender o grande”, insistiu.

De fato, a lista com 240 outorgas ao longo do canal é formada principalmente por pequenos usuários, que consomem volumes entre 0,4 e 10 l/s. Contudo, não é possível precisar quantos destes estão na mesma situação do Assentamento Amazonas, que possui a outorga, mas não a adutora. A instalação da adutora é de responsabilidade de quem solicita a outorga e os trabalhadores rurais não tem como bancar esse custo, o que prejudica toda a atividade econômica nas pequenas propriedades.

Mesmo quando já investimento do Estado para as adutoras, outros problemas podem inviabilizar o abastecimento das comunidades. A Secretária de Recursos Hídricos – órgão ao qual está subordinada a Cogerh – investiu R$ 6,5 milhões em 23 sistemas de abastecimento que atendem a 32 comunidades localizadas a uma distância de até 2 km das margens dos trechos I, II e III do Eixão. Segundo a secretaria, foram construídas infraestrutura de captação, adução, reservação e chafariz para estas comunidades e outros 12 sistemas estão em fase de licitação. No entanto, ressalva feita pela própria assessoria do órgão, seis dos sistemas já instalados estão parados por falta de infraestrutura suficiente de energia elétrica, de responsabilidade da Companhia Energética do Ceará.

Da varanda se vê, mas não chega na casa

Apesar de não ter sido citada pela secretaria, este parece ser o caso da comunidade de Piauí de Dentro – vizinhas ao Assentamento Amazonas –, em que as 60 famílias continuam sem acesso à água do Eixão. A agricultora Maria Glécia, de 31 anos, conta que a adutora instalada pelo programa da SRH com recursos do Fundo de Combate à Pobreza funcionou durante uma hora e meia. Há mais de um ano está parada, assim como estão sem uso a caixa d’água e o chafariz construídos para distribuir a água.

“Agora tá até bom, tá chovendo um pouquinho… Mas foi ruim, viu? 2012 a gente vendo os bichos morrer… E a gente também. Tinha dia que não tinha água. A gente sabia que tinha aqui, mas como tirar?”, pergunta.

Glécia mora com a família a menos de 40 metros do canal. A varanda dá vista para o cânion de 30 metros de profundidade formado depois que o topo de serra foi dinamitado para a passagem da água, por gravidade, do Castanhão ao litoral. Mas, como não é possível manualmente puxar a água através do cânion, ela precisa percorrer 3 km até encontrar um trecho do Eixão ao nível do terreno. O motor que deveria bombear a água queimou logo após ser ligado. Nem o eletricista enviado pelo governo, nem as inúmeras visitas semanais que seu pai, líder comunitário, fez à sede do município de Russas, deram jeito na situação.

Glécia, o marido Josemberg, o irmão Wagner e o cunhado Gertúlio não sabem dizer quantas cabeças de gado perderam pela falta de água ou mesmo por caírem dentro do canal ao escorregarem no desfiladeiro, que não possui qualquer proteção. Outras tantas foram furtadas depois que o trânsito de pessoas aumentou na área com a abertura da estrada que margeia o canal. Por isso, ninguém cria mais gado solto ali.

As obras do Eixão trouxeram outros impactos graves à comunidade. As pedras e sedimentos gerados pela obra, assim como a engenharia utilizada para o desvio do curso da água, acabaram por aterrar parte de uma lagoa e de um açude da comunidade, hoje água salobra. O cânion separou de um lado a vila de casas e do outro os lotes de terras dos moradores, o que transformaria um percurso original de poucos metros num jornada de 3 km cada trecho, não fosse a resistência. Foi preciso a comunidade se mobilizar e passar três dias inteiros deitada sobre dinamites até conseguir a garantia do governo de que seria construída uma ponte no local.

Para a indústria, água subsidiada

A lista de outorgas de uso de água para o CIPP já soma uma demanda de 3.860 l/s, incluindo empreendimentos que ainda serão instalados, como a Companhia Siderúrgica do Ceará. A CSP, um investimento da Vale em parceria com as multinacionais sul-coreanas Dongkuk e Posco, lidera a lista com uma demanda de 1,5 mil l/s, quando entrar em operação em 2017. Mas, no momento, a Cogerh já fornece uma vazão de 55 l/s para a fase de terraplanagem. A demanda da CSP inclui o consumo de água a termelétrica que será construída para fornecer energia à siderúrgica.

As duas usinas termelétricas da MPX possuem duas outorgas no valor total de 800 l/s, volume que deverá ser usado na totalidade quando a segunda unidade entrar em operação, no segundo semestre. Não é tão grande se comparado ao utilizado pela agricultura irrigada, que representa cerca de 60% da demanda do estado, mas está entre os maiores da indústria. Além disso, ao contrário do que ocorre em projetos semelhantes da MPX no Chile e no Maranhão, as térmicas do Pecém não dessalinizam a água do mar, que fica a poucos quilômetros da usina.

No vídeo institucional das térmicas do Pecém, a empresa chega a se gabar da “abundância” de água: “Além do carvão mineral, outra matéria é necessária para a geração de energia: a água. Nessa região, ela é encontrada em abundância devido à proximidade com o reservatório da Cogerh.”

O reservatório ao qual o vídeo se refere é o Açude Sítio Novos, com capacidade para 50 mil m³, ou seja, um açude de pequeno porte. Não por acaso, afora o Eixão das Águas, cinco outras cinco barragens de mesmo tamanho serão construídas para abastecer o pólo industrial – como mostra o documento “Cenário Atual do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (versão preliminar)”, produzido pelo Pacto pelo Pecém, uma articulação de várias instituições em torno do projeto do CIPP, capitaneada pelo Conselho de Altos Estudos da Assembleia Legislativa do Ceará, fortemente engajada na concretização do CIPP.

Alguns deputados estaduais chegaram a formar uma caravana para percorrer o Estado com o objetivo de pressionar a Petrobrás para iniciar a construção da Refinaria Premium II – que compõe com a siderúrgica da Vale os empreendimentos-âncora do complexo –, e as matérias de interesse do CIPP são tratadas com deferência na assembléia. Em junho de 2011, por exemplo, os deputados estaduais aprovaram um desconto de 50% no preço da água consumida pelas térmicas da MPX, o que foi contestado por parte da opinião pública cearense.

Os subsídios, uma tradição da política econômica do Nordeste desde pelo menos os primórdios da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) na década de 1960, são defendidos até hoje pelo secretário estadual de Recursos Hídricos, César Pinheiro: “Pra você trazer empresas pro Nordeste, você tem que fazer um incentivo. Então pra térmica nós demos um desconto de 50%, mas nós fizemos uma coisa que não é discutida. A térmica fica parada durante um período do ano e nesse período ela paga água. Quer use ou não, nós estamos cobrando dela e é um valor significativo. Então não é 50%, porque quando ela não tá usando, nós estamos cobrando. Isso dá um balanço para que nós não tenhamos prejuízo”, diz Pinheiro.

A lei que instituiu o desconto estabelece que a empresa deve consumir no mínimo 7.200.000 m³ por ano, o que representa aproximadamente 228 l/s. Se o número for confrontado com os 800 l/s previstos na outorga, portanto, em três meses e meio as térmicas atingem a cota mínima determinada. A reportagem da Pública entrou em contato com a assessoria da MPX para uma entrevista sobre as tecnologias de reuso de água e redução da emissão de gases poluentes das duas térmicas do Pecém. Mas foi informada de que a empresa não poderia se pronunciar por estar no “período de silêncio”, uma determinação da Comissão de Valores Mobiliários que tenta impedir que empresas envolvidas no momento em transações influencie o mercado.

Os vizinhos das termelétricas

“É muito distinto você ter uma população que veio ter um contato com o automóvel em 1971, veio ter uma televisão colorida em 90, 94, pra de repente estar no ano 2000 e já ter filhos pilotando retroescavadeiras, trator de esteira, ganhando muito dinheiro”, diz Kleber Nogueira, 31 anos, professor da Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé, um dos oito indígenas que conversou com a Pública na escola, localizada na comunidade de Matões, hoje na área do CIPP (Complexo Industrial e Portuário de Pecém).

Ainda é difícil para eles engolir o projeto industrial que os expulsou de suas terras e os jogou na área de influência do complexo. Além da vizinhança com as termelétricas da MPX, os indígenas sofreram ainda mais com a transformação dos municípios litorâneos de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, que até pouco tempo viviam da pesca e da agricultura familiar

“Ninguém perguntou pra nós… É isso que me faz raiva, é isso que me faz ficar chateada, me deixa com vontade de gritar, estraçalhar mesmo… Não tem como a gente falar de impactos, nesse momento, pro choro não vir aqui, porque em menos de um mês a gente perdeu quatro pessoas na comunidade, por conta dessa porcaria dessa Estruturante (via rodoviária) que passou aí e que não é sinalizada. Uma menina morreu num acidente de carro, antes de ontem uma criança de menos de anos também foi atropelada”, desabafa Andrea Coelho, moradora da Comunidade do Bolso, outro povoado Anacé.

Entre os impactos causados pela atividade econômica acelerada está a drenagem de pequenos riachos e nascentes da comunidade para a instalação das indústrias, e o aterramento da Lagoa do Murici – um dos vários mananciais de água da região, com um lençol freático bastante próximo à superfície, como aponta o estudo “O povo indígena Anacé e seu território tradicionalmente ocupado”, encomendado pelo Ministério Público Federal. Produzido pelo professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da UFC, e outros dois analistas periciais em Antropologia, o parecer demostrou que várias comunidades da área decretada como de interesse público foram ignoradas pelo Estudo de Impacto Ambiental do CIPP.

“Quem tá lá fora não sabe o que está acontecendo aqui na ponta do Eixão, não sabe que a água que sai de lá vem trazendo na tubulação essa enxurrada de coisas. Você pensa que mudou só uma forma de vida, uma coisa bem simples, mas não. O impacto é bem maior. Porque esse Eixão das Águas vem pra alimentar a sede de um complexo industrial”, diz Kléber.

Hoje, boa parte dos Anacé está de mudança para a nova área que conseguiram conquistar a leste do Complexo, para onde os ventos não podem levar a fumaça e a fuligem do carvão mineral das térmicas. Mas os índios que assinaram os primeiros acordos de desapropriação tiveram sorte pior: moram hoje debaixo do “sovaco da MPX”, como eles próprios dizem.

* O Coletivo Nigéria é formado pelos jornalistas Bruno Xavier, Pedro Rocha, Roger Pires e Yargo Gurjão e sediado em Fortaleza (CE). Há mais de dois anos trabalha com produções audiovisuais e assessoria de comunicação de movimentos sociais. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.

** Publicado originalmente no site Agência Pública.http://www.apublica.org/2013/07/tem-agua-pra-ver-mas-nao-pra-beber-seca-no-nordeste/

Nota da Editora do Blog: Veja as fotos e vídeo na matéria original.
 Estamos  republicando este excelente trabalho do Coltivo Nigéria, feito com apoio Agência Pública. a fim de  denuciar  o descumprimento da resolução da ONU 64/292 de 28 de julho de 2010, que determina ´como direito Humano  Água e Saneamento. O Brasil é signatário dessa Resolução  e portanto, creio que cabe  à ANA-Agência Nacional de Águas- fiscalizar o cumprimento... 

(Leia também:)http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/04/o-problema-da-seca-no-nordeste-nao-e.html

http://brasileducom.blogspot.com.br/2010/08/agora-agua-para-todos.html

quinta-feira, 13 de junho de 2013

A privatização da gestão pública


Tanto a privatização das empresas estatais como a privatização no sentido de concessão, contratualização, terceirização e parcerias necessitam do comando firme do Estado de Direito Democrático, sem o qual todos esses caminhos tornam-se verdadeiras barbáries.
  
Por Francisco Fonseca   Carta Maior
   
Muito se tem discutido, nas últimas três décadas, tanto internacionalmente como no Brasil, sobre o papel da iniciativa privada na Administração Pública e nas Políticas Públicas: desde a utilização de ferramentas e métodos empresariais na gestão pública às parcerias, terceirizações, concessões e contratos de gestão, entre outras práticas, em que o empresariado presta serviços e administra setores do Estado por meio de concessão. Ao lado dessas formas, a privatização em sentido estrito, isto é, a venda de empresas públicas ao setor privado, tem igualmente ocupado a agenda de debates.

Tema eivado de postulações programáticas (ideológicas), no sentido de afirmação ou do protagonismo estatal ou do setor privado (mercantil) e, desde os anos 1990, do assim chamado “setor público não estatal”, genérica e vagamente chamado de “terceiro setor”, há vários aspectos confusos neste debate, verdadeiro embate.

Notadamente desde a hegemonia neoliberal, “rolo compressor” propalado por think tanks, governos, mídia e comunidade empresarial, essa confusão tem aumentado substantivamente, uma vez que qualquer voz dissonante fora tida como anacrônica e extemporânea. Figuras como Von Mises, Von Hayek e Milton Friedman (e Roberto Campos, Gustavo Franco, entre tantos outros no Brasil), e governos como os de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, com apoio maciço da grande mídia – mundial e, no caso brasileiro, dos grandes conglomerados de comunicação – obstruíram qualquer discussão acerca do papel do Estado e do mercado. Sua ideologia obtusa – o neoliberalismo – não apenas obstou o debate como impactou profundamente as sociedades ao aumentar exponencialmente a desigualdade social em nome da “meritocracia”, tomada como crença ideológica. Essa “ideologia do mérito” supostamente implicaria a supremacia imanente do indivíduo sobre as classes sociais e a sociedade, e do mercado sobre o Estado.

A utilização de ferramentas de gestão de um setor por outro (do privado ao público e deste ao privado) é antiga, embora ocultada quando o assunto é a importância do Estado à iniciativa privada, caso, por exemplo, do planejamento e mesmo do papel estatal como protetor do capital privado em inúmeras guerras travadas ao longo da história. Mais importante, sem o Estado o capitalismo sequer existiria, como nos mostrou a clássica obra de Karl Palanyi (“A Grande Transformação: as origens de nossa época”, várias edições). Além do mais, as cíclicas crises capitalistas – como as de 1929 e 2008 – só tiveram resolução em razão do papel ativo do Estado em salvar empresas e o próprio sistema capitalista como um todo: momento em que cessam as críticas neoliberais ao “protagonismo” estatal. Aliás, a ação estatal tem sido, notadamente desde a crise de 2008, voltada às empresas e aos bancos, e não ao cidadão comum, como demonstra o volume de recursos empregados ao salvamento de setores empresarias em detrimento dos chamados “colchões sociais” capazes de proteger os mais vulneráveis, isto é, aquilo que o movimento social Occupy Wall Street sintetizou como “we are 99%”.

Pois bem, desde a chamada New Public Management a Administração Pública vem sendo coagida pelos adeptos poderosos da hegemonia neoliberal a aplicar métodos e técnicas gerenciais advindos do setor privado e sobretudo a conceder, contratualizar e terceirizar serviços e responsabilidades a empresários e a agentes tidos como “privados sem fins lucrativos” (ou “públicos não estatais”). Estas denominações são não apenas questionáveis conceitualmente como estão no mesmo contexto do que genericamente se chama de “sociedade civil” e de “bem comum”, dentre tantas outras caracterizadas pela polissemia e pelo baixo poder explicativo caso não se os defina conceitualmente, mas de uso corrente, notadamente midiático.

Mas deve-se notar igualmente o papel da privatização, em sentido estrito, assim como o protagonismo do setor privado no fornecimento de serviços, caso clássico do Sistema Único de Saúde e de inúmeras parcerias “público/privadas”. A privatização foi tomada como uma espécie de “panaceia milagrosa” capaz de nos salvar de todo o mal causado pela “doença do estatismo”, mote neoliberal asseverado como cantilena por Roberto Campos e diversos outros ideólogos do privatismo, devidamente divulgada pela velha mídia conservadora. Analisei esses processos de como a grande imprensa brasileira adotou esta agenda na história recente em dois livros: “O Consenso Forjado” e “Liberalismo Autoritário”.

Quanto à terceirização do serviço público e sobretudo da gestão pública, note-se que tem atingido limiares impressionantes no Brasil, a ponto de diversos setores estratégicos do Estado (notadamente no nível municipal) terem sido repassados a consultorias privadas. Aliás, consultorias têm vicejado – e obtido retorno financeiro – devido à fragilização do Estado que, muito mais do que contar com parcerias privadas, tem transferido, reitere-se, a gestão de setores estratégicos a grupos empresariais.

Deve-se notar, nesse debate, dois aspectos cruciais: a) a utilização de instrumentos privados pelo setor público (e vice-versa) não apenas é antigo como plenamente possível, como dissemos, mas desde que determinados requisitos estejam presentes. Dentre outros, ressalte-se a não delegação, em qualquer hipótese, dos chamados setores estratégicos dos governos (planejamento e gestão dos pilares constitucionais do Estado). Embora o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”, editado na gestão Bresser Pereira quando titular do então Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), no primeiro governo FHC, deixasse claro quais seriam as funções exclusivas e não exclusivas do Estado, isso não impediu – ou talvez tenha “aberto a porteira” – para a privatização do Estado em sentido lato. Toda sorte de concessão e transferência tem sido adotada desde então, fragilizando ainda mais o poder público quanto ao cumprimento de suas funções constitucionais e à prestação de serviços de fato públicos, o que implica ceifar o poder do Estado como agente capaz de governar e contrariar interesses constituídos, notadamente os grandes interesses, pois voltados à apropriação privada do espaço e dos recursos públicos; b) a instituição das denominadas Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) tem como resultado, embora com exceções, a transformação de políticas públicas em apêndices dos grupos privados que, embora tidos como “sem fins lucrativos”, trazem a lógica do setor privado: valores; parâmetros de gestão; atuação voltada a grupos muito específicos, sem noção e articulação do todo; dependência, por vezes, de financiamento privado, no caso das Oscip; entre outros aspectos. Tal concessão aos agentes privados torna a gestão pública sem direção e sem capacidade de orientar e fiscalizar os agentes concessionários, contrariando o caráter monocêntrico do Estado.

O caso da prefeitura de São Paulo nas gestões José Serra e Gilberto Kassab é sintomático desse processo de privatização – que responde pelo nome de concessão, terceirização e contratualização, neste caso via OS e Oscip –, uma vez que vários setores, notadamente o (estratégico) da Saúde pulverizou-se de tal forma que o poder público municipal se tornou mero “espectador” da gestão dos serviços médicos públicos. Em outras palavras, na principal cidade do país, em diversas dimensões, o poder público foi esvaziado e fragilizado pelo amplo processo de privatização, em sentido lato, da gestão pública, devido à crença neoliberal acerca da falaciosa “eficiência” do setor privado, uma vez que tomada como imanente – e devidamente apoiada pelo BID, Bird e outros agentes de financiamento internacionais –, ao lado da própria privatização da vida política brasileira, entendida aqui como o domínio dos interesses privados sobre o público.

Cidades como São Paulo, entre inúmeras outras Brasil afora, sintetizam os efeitos perversos daquilo que – para determinados segmentos sociais – foi uma tentativa de “modernizar” e “arejar” os serviços públicos, saindo da “camisa-de-força” das regras que regem o Serviço Público: quanto aos funcionários, às contratações, às licitações, ao orçamento etc. Tal “modernidade” – termo sempre fugidio e problemático por ser utilizado com sentidos e significados distintos – tem, contudo, liquidado o sentido “público” de Estado, por mais que haja dificuldade teórica e empírica em definir o sentido do que é “público” na sociedade capitalista, como nos alerta Norberto Bobbio no livro “O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo”. Isso não significa que o Estado tenha necessariamente de agir sozinho, assim como suas ações só serão efetivas se houver transparência, participação e sobretudo “capacidade de governar”: aquilo que Carlos Matus chamou, em seu conhecido método “Planejamento Estratégico Situacional”, de “triângulo de governo”.

Os processos de concessão de serviços públicos a agentes privados, por meios diversos e com finalidades distintas, poderiam ser utilizados desde que moderadamente, isto é, sem descaracterizar a ação do Estado e seu papel estratégico, e sobretudo mantendo-se suas capacidades de direcionamento e fiscalização perante os agentes concessionários. Concretamente, isto quer dizer um conjunto de poderes do Estado: a) voltado ao direcionamento político/administrativo (ressalte-se) no que tange à implementação de políticas públicas, o que implica a coordenação dos agentes concessionários que, sem isso, agem de forma autônoma justamente pela inexistência de diretrizes estatais e pela tibieza política do poder público; b) de natureza técnica e política, com o objetivo de enfrentar os poderes constituídos, especialmente os que tendem a se apropriar privadamente dos recursos públicos; c) voltado à fiscalização dos agentes privados, o que implica impor-lhes punições severas caso transgridam as regras estabelecidas. Para tanto, aparatos técnicos estatais qualificados, regras claras e transparentes e efetividade nas ações do Estado são pressupostos para a atuação do poder público; e d) por meio da abertura à sociedade daquilo que se denomina “controle social”: conceito bastante propalado mas pouco institucionalizado.

No caso da prefeitura de São Paulo na gestão Serra/Kassab, e muito do que se sabe a respeito de diversas gestões Brasil afora, houve a privatização no sentido de conceder, terceirizar e contratualizar sem as capacidades acima delineadas. Dessa forma, houve a privatização do Estado no sentido mais destrutivo deste termo, sem que houvesse diretrizes e fiscalização burocrático/institucional efetivos (sem contar o desmonte da descentralização nas subprefeituras). Nesse sentido, é significativa a recente declaração do candidato do PSDB à presidência da República, o senador “mineiro/carioca” Aécio Neves (o governador “gerencialista”): de ser o PSDB o “partido das privatizações”!

Se à gestão pública – e ao pensamento político e administrativo – não cabe oposição programática pura e simples quanto à utilização de ferramentas e parcerias com o setor privado, é sabido, pela observação da história recente, que tal utilização não pode ser vista como panaceia, assim como ao Estado cabe o papel de governar, priorizando os próprios instrumentos da gestão pública: seus funcionários e suas ferramentas – que podem e devem ser incentivados e inovados – tendo em vista os objetivos do poder público.

A “moderna” gestão pública significa a existência regular de concursos públicos, carreiras públicas (estrutura de cargos e salários atrativos), treinamento e qualificação constante do corpo burocrático, ampliação dos percentuais de funcionários públicos em cargos estratégicos, transparência, abertura de canais de participação popular e controle social, e sobretudo a compreensão de que a gestão pública tem pressupostos, características e objetivos distintos da administração privada. Antes de abrir-se a terceiros, deve-se qualificar o poder público para que seja eficaz, eficiente e efetivo. Ainda assim, por mais que se possa, reitere-se, utilizar ferramentas da gestão privada na gestão pública – como é o caso, por exemplo, do programa Gespública do Governo Federal –, a grande inovação desta (a gestão pública), que se faz e refaz continuamente, é criar seus próprios mecanismos capazes de induzir comportamentos (em diversas dimensões), diminuir desigualdades, ofertar políticas públicas de qualidade, entre tantos outros objetivos advindos da Constituição Federal de 1988 e das demandas democráticas de movimentos sociais e do pensamento progressista.

Tanto a privatização das empresas estatais (venda de ativos públicos ao capital) como a privatização no sentido de concessão, contratualização, terceirização e parcerias, entre outras formas, necessitam do comando firme e forte do Estado de Direito Democrático, sem o qual todas as formas de privatização tornam-se verdadeiras barbáries!

Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

Fonte: ://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6127

quinta-feira, 9 de maio de 2013

As Guerras da Água - de um livro de Elsa Bruzzone

08/05/2013 - Do livro de Elsa Bruzzone, "Las Guerras del Agua"
- Resenha e tradução de Christina Iuppen para o blog

Agradecimento
Gostaríamos de fazê-lo à socióloga Monica  Bruckmann, doutora em Ciência Política e professora da UFRJ que nos cedeu o livro Las guerras del agua, de Elsa Bruzzone (ao lado) - o que nos permitiu realizar esta resenha -, livro esse que ainda não foi traduzido no Brasil e tampouco pode ser encontrado no original espanhol nas livrarias do Rio de Janeiro.

"Bebo água, logo existo, então voto"
(Inscrição numa parede da cidade de Cochabamba, Bolívia)

“Proteger-se-á a Natureza da destruição que causam as guerras e outros atos de hostilidade. Evitar-se-ão as ações militares prejudiciais à Natureza”. (...)


”Os princípios enunciados na presente Carta se incorporarão segundo cabível dentro do Direito e da prática de cada Estado, e serão adotados a nível internacional”.
(Carta Mundial da Natureza)

A questão da água se coloca indissoluvelmente vinculada à sobrevivência das espécies.

Das citações de Elsa Bruzzone destacamos fragmentos da carta que o Chefe indígena Seattle (imagem abaixo) enviou ao Presidente norte-americano Franklin Pierce em 1855, em resposta a sua proposta de compra das terras da tribo Suwamish no noroeste dos Estados Unidos:

*     “Sabereis que cada partícula dessa terra é sagrada para meu povo. 

Cada folha resplandecente, cada praia arenosa, cada neblina no bosque escuro, cada claro e cada inseto com seu zumbido são sagrados na memória e na experiência de meu povo.

A seiva que flui nas árvores carrega a memória dos homens de ‘pele vermelha’ “ (...)

*     “Sabemos que o homem branco não compreende nossa maneira de ser (...)

Trata sua mãe, a Terra, e seu irmão, o Céu, como se fossem coisas que se podem comprar, saquear e vender, como se fossem contas de vidro.

Seu apetite insaciável devorará a Terra e deixará atrás de si somente o deserto”.

Ao longo das intensas 203 páginas de Las guerras del água, a professora Elsa Bruzzone (acima) traça de maneira ímpar uma radiografia dessa questão em todas as regiões do planeta, denuncia as privatizações, e ainda apresenta, historia, documenta, analisa e defende as incontáveis leis, acordos, tratados, projetos, protocolos e convenções estabelecidos por governos e organismos internacionais para regulamentar o uso dos recursos hídricos.

Desde os primórdios da história humana registram-se guerras pelo controle da água.

Em cinqüenta anos, de 1953 até 2003, vivemos 1831 conflitos por água: 1228 foram resolvidos por acordos e tratados, mas 37 chegaram à violência e, desses, 21 não escaparam à guerra.

Bruzzone esquadrinha um panorama global altamente preocupante.

Na Europa, 41 milhões de pessoas carecem de acesso à água potável, enquanto 85 milhões não têm acesso ao saneamento básico.

A água está contaminada nesse continente, assim como nos Estados Unidos, na Ásia, nas Américas, graças ao uso de agrotóxicos, às mudanças climáticas e à exploração predatória inerente ao capitalismo.

O Mar de Aral, cuja bacia é compartilhada por 80% da população da Ásia Central, vem secando, graças à contaminação produzida pelos elementos químicos da lavagem do algodão  e pelo desvio das águas dos rios que o alimentavam.

No Oriente Médio, Israel bombeia para si 85% do caudal aquífero montanhoso no território palestino, depois de haver invadido o Líbano, em 2006, para apoderar-se das águas do Rio Libani.

A Turquia enfrenta a Síria e o Iraque por seu projeto de construir represas e centrais hidrelétricas nas nascentes dos rios Tigre e Eufrates.

Na Austrália, ao utilizarem-se 80% dos cursos de água disponíveis, perderam-se as planícies de inundação e umidade, as terras e os cursos superficiais se salinizaram e contaminaram pelos agrotóxicos da agricultura de exportação.

Na África, 75% da população dependem dos recursos hídricos subterrâneos, que representam apenas 15% dos recursos renováveis. Mali, Senegal e Mauritânia vivem tensões pelas águas do Rio Senegal.

Na América Central abundam os rios, os aquíferos e a biodiversidade; mas a maioria dos centro-americanos não tem água potável, embora proliferem aí as bases norte-americanas.

O mundo amazônico é criteriosamente desvendado e historiado em capítulo especial e o Aquífero Guarani (ao lado) também se estende por todo um outro capítulo.

Igual atenção e detalhamento a autora dedica ao panorama de problemas, leis e acordos argentinos.

*     “Os povos que esperam sua vida ou seu futuro de uma abstração legal ou da vontade dos demais são de antemão povos sacrificados”. (Manuel Ugarte)

Se são inumeráveis os problemas, tampouco têm faltado movimentos positivos: formam-se comissões para dirimir ou arbitrar conflitos por acesso aos recursos hídricos; formalizam-se projetos conjuntos de exploração e aproveitamento de aquíferos.

A própria ONU estabelece resoluções a respeito; em 2010 declarou a água como direito humano:

"A água não é uma mercadoria. Aceder a ela é um direito humano fundamental, ligado à saúde e à vida. É um bem social, inalienável, que deve ser objeto de políticas de serviço público.

O Estado deve garantir prioritariamente o acesso de toda a população ao recurso hídrico; uma vez cumprida essa meta, deve assegurar a água necessária para a agricultura, a agropecuária e por último para a indústria.

A água, em suma, é patrimônio dos povos e países onde o recurso se encontra".

Mais do que tudo, nesse livro-referência imperdível Elsa Bruzzone (ao lado) convida a conhecer e agir.

A água potável é um bem finito, e o capitalismo exerce sobre este bem sua busca desenfreada por lucro irresponsável.

Da consciência da importância de estabelecer e seguir políticas estratégicas de governo e de militância para esta questão dependerá, portanto, o futuro da humanidade e do planeta como o conhecemos.

*     “Quando um império proclama a paz, traz a guerra; quando exalta a solidariedade, esconde um ataque; quando proclama adesão, trama entrega; e quando oferece amizade, distribui hipocrisia”. (Gustavo Cirigliano)

Este artigo vem a propósito das declarações de Peter Brabeck-Letmathe (ao lado), ninguém mais do que o presidente mundial da megacorporação Nestlé, feitas em 21 de abril passado, onde defende que as águas do mundo devem ser privatizadas.

"Unas palabras las suyas que provocan cierto estupor, máxime si se tiene en cuenta que Nestlé es el líder mundial en la venta de agua embotellada", escreveu o repórter.

Por certo ele puxa a brasa para sua sardinha, temperada com as conhecidas ambições capitalistas de transformar o que é natural em mercadoria.

Isso vale tanto para as disputas que, no sistema capitalista, a posse das terras despertariam e que a lucidez do Chefe indígena Seattle (ao lado) anteviu, como agora, passados quase dois séculos, para o domínio das águas, da biodiversidade e, no futuro, provavelmente, para o do ar que se respira.

O texto completo de tal absurdo por ele sugerido - e que encontra adeptos entre a maioria dos executivos de megacorporações (Coca-Cola, Vivendi, PepsiCo, Bechtel, Suez, etc), todas elas, de alguma forma interessadas em ter sob suas mãos um ativo ambiental dessa magnitude, como a água, bem como das lideranças políticas de nações hegemônicas, como o Canadá, o Reino Unido e, sem dúvidas, os EUA em conjunto com a União Europeia, encontra-se divulgado em espanhol no link «El agua no es un derecho; debería tener un valor de mercado y ser privatizada», numa reportagem de Jose Perea, para o site Abadia Digital.

Louve-se, contudo, o apelo-denúncia da ONU pedindo aos países que não retrocedam e respeitem a Resolução da entidade relativa ao Direito Humano à Água, por ela consagrado. Tal chamamento foi feito antes da Rio+20, ocorrido em 2012, e seu texto original encontra-se aqui.

Nesse elenco de iniciativas alvissareiras não podemos deixar de registrar a reportagem que Marcela Valente fez para o InterPress Service e que o site Envolverde publicou sob o título: "O Renascimento da Bacia do Prata". Em 21/11/2011 o reproduzimos.

Seguindo o mesmo diapasão, dois outros trabalhos, por sua inestimável pertinência ao tema, merecem destaque aqui:

"A Luta pelo Direito à Água na Rio+20", da jornalista Zilda Ferreira, publicado em julho/2012, portanto, logo após esse evento, e o conjunto de cinco textos do geógrafo Carlos Walter Gonçalves, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF, com destaque para sua "Parte 5 - A Guerra da Água".

Boas leituras!

Não deixe de ler:
- A carta do chefe indígena Seattle - texto completo
A água: recurso estratégico do século XXI - entrevista de Elsa Bruzzone, para Marcelo Montoya

quarta-feira, 8 de maio de 2013

A água: recurso estratégico do século XXI

"Informe

A publicação desta entrevista com a Professora Elsa Bruzzone, (foto) uma argentina especialista na questão dos recursos hídricos, provocou grande interesse. Nós próprios, do Educom, procuramos a professora para ler sua obra Las guerras del agua - América del Sur en la mira de las grandes potencias, ainda não traduzida para o Português, cuja resenha publicaremos amanhã.

Ao longo da entrevista, e do livro, em especial, a autora joga luz sobre a importância de termos e mantermos governos progressistas e soberanos nesta - e em qualquer outra - região do planeta, no sentido de barrar as pretensões privatistas e predatórias do capitalismo.

Refere também aqui, de alguma forma, o que significou a 'explosão' da base de Alcântara, no Maranhão, que provocou a morte de dezenas de trabalhadores brasileiros. E finalmente varre todas as dúvidas quanto a nossa responsabilidade capital de defender a água como um bem coletivo e um direito humano inalienável".
(Christina Iuppen, do blog Educom)

*************

29/07/2012 – Bitácora Dinámica entrevista Elsa Bruzzone
- Por Marcelo Montoya, Para Revista P.
- Tradução de Christina Iuppen para o blog Educom - maio de 2013

Somente 2,5% da água no planeta é doce, e este percentual já foi afetado em cerca de 20% graças às mudanças de clima”, assinala Elsa Bruzzone, especialista em geopolítica, estratégia e defesa, que assessora ad-honorem o Congresso Nacional Argentino.

Ela afirma em seu livro Las guerras del agua: América del Sur en la mira de las grandes potencias que a escassez e a importância da água – imprescindível para a subsistência, diferentemente do petróleo – a convertem no recurso estratégico do século XXI, e destaca que “desde 1953 até 2003 o mundo assistiu a 1831 conflitos por esse recurso: 37 tiveram caráter violento e 21 foram realmente guerras”.

MM: Qual é a situação da Argentina frente à problemática de escassez desse bem no mundo?
EB: Temos água mais do que suficiente, mas se encontra distribuída de forma desigual, dada a grande diversidade de climas, relevos e padrões de drenagem.

A Bacia do Prata, no noroeste do país, representa uma provisão muito abundante de água, pela presença de seus rios. Debaixo deles encontra-se o Aquífero Guarani (compartilhado com Brasil, Paraguai e Uruguai), que é o quarto maior reservatório no mundo em volume e o primeiro em capacidade de recarga. Em troca, nas zonas de Centro e Cuyo há escassez, assim como no planalto patagônico.

MM: Por que a ONU reconheceu pela primeira vez em 2010 (resolução 64/292) a água como um direito humano?
EB: Até finais da década de 1980 tinha-se como certo que a água era um direito humano. Nos anos 90, as corporações transnacionais, em mãos dos países centrais e dos organismos econômicos financeiros internacionais começam a assumir que a água não é um bem comum, senão uma mercadoria sujeita às leis de oferta e procura do mercado, à qual se tem acesso se se tem dinheiro.

Frente a esta ofensiva, a resistência por parte de milhões de seres humanos teve como resultado a Observação Geral nº 15 do ano de 2002 das Nações Unidas, onde se reconhece que a água deve ser objeto de políticas de serviço público e se determina que o Estado é quem deve garantir a prestação desse serviço.

Em 2010 aprovou-se essa resolução (64/292) que reconhece a água e o saneamento como direitos humanos ligados à saúde e à vida.

MM: A Amazônia é a maior reserva de biodiversidade e riqueza genética do mundo e além disto possui 20% da água doce do planeta. Você já detalhou em seu livro como, ao longo da História (desde princípios do século XIX) os Estados Unidos tentam apoderar-se desse território. Continuam com essa intenção?
EB: Sim, os EUA têm tentado estabelecer presença militar na zona e obrigado o Brasil a instrumentar sua estratégia na região.

Dentro de 5 anos completar-se-ão 200 anos da primeira reivindicação de soberania feita pelos EUA para a Amazônia, quando, através de distintos planos tentou instaurar uma base em São Pedro de Alcântara, perto (sic) de Manaus e em pleno coração desta reserva de biodiversidade.

No ano de 2003 o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não renovou a concessão e os EUA tiveram que se retirar, não sem antes provocar a explosão da base, que causou a morte de 23 técnicos e operários brasileiros, além da destruição de um protótipo de lançador de satélite, propriedade do país sul-americano.

MM: Até que ponto representa um risco para a soberania de um país que uma área de seu território, rica em recursos naturais como a água, seja declarada Patrimônio da Humanidade?

EB: Patrimônio da Humanidade nasceu com muito boas intenções na década de 1970, para preservar zonas naturais que tem a ver com ambiente sadio, bem-estar e desenvolvimento humano. Mas, com o correr dos anos, essas boas intenções se desvirtuaram.

Na prática, no caso de zonas com recursos naturais, significa renúncia à soberania. Isto é aproveitado pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, as corporações transnacionais e os países centrais para intervir com plena liberdade.

MM: Em fins de março deste ano surgiu uma notícia que mencionava a presença do Comando Sul do Exército dos EEUU na província do Chaco, sobre o Aquífero Guarani. Centro de ajuda humanitária ou base de controle e monitoramento?
EB: Disfarçam-se de centro de operações de emergência, mas no fundo são bases de controle e monitoramento. Encontram-se geralmente nas proximidades dos aeroportos internacionais para que, chegado o momento, permitam a aterrissagem de aviões militares de grande porte.

Nos últimos anos, os EUA têm exercido pressão sobre os governos argentinos para a instalação de uma base militar como existem em outras partes do continente. Já o haviam tentado em San Ignacio, sudoeste da província de Misiones. Esta zona representa uma área estratégica por ser um ponto importante de recarga do Aquífero Guarani.

Como não o conseguiram, tentaram então penetrar por meio do governador Jorge Capitanich na província do Chaco. De acordo com informações das autoridades de Defesa e da Chancelaria, isto não surtiu efeito.

MM: Na Argentina se sabe dos recursos hídricos superficiais, mas se desconhece a magnitude e quantidade dos aquíferos. Que dificuldades apresenta o estudo das águas subterrâneas?
EB: Na Argentina contamos com profissionais capacitados, as tecnologias existem e os recursos técnicos podem ser conseguidos; portanto, o que falta de fato é a decisão e vontade política de levar diante os estudos e as explorações.

Os informes GEO, elaborados pelo Ministério de Saúde e Ambiente nos anos de 2003 e 2006 dão conta de que há décadas se realizam no país explorações de reservatórios subterrâneos. De repente, assistimos no país descobrimentos que não são feitos pelo Estado nacional ou provincial, mas por particulares.

O último foi da mineradora canadense Pan American Silver, que pretende explorar a jazida Navidad sobre terras de comunidade assentadas em pleno planalto chubutense. Trata-se de um reservatório localizado por baixo da mina que se estende muito além da jazida.

De acordo com os estudos realizados, possui águas de excelentíssima qualidade e permitiria abastecer uma população de até 3 milhões de pessoas. Isto fala do desenvolvimento que se poderia realizar na região a partir da água, sem necessidade de ter uma exploração de minérios a céu aberto da magnitude de Navidad.

MM: Hoje não existe no país uma lei nacional que declare a água potável de superfície e subterrânea patrimônio natural e recurso estratégico da nação e das províncias.
EB: Isto deve ser uma falta de vontade e decisão política. Tanto a conjuntura como a resolução dos problemas de curto prazo faz com que esses assuntos fiquem por tratar. Se bem que haja vários projetos no Congresso, as urgências parecem ser outras.

MM: A que se deveria apontar?
EB: A cobrir a falta de gestão integrada de planificação, exploração e desenvolvimento dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos do país.

Deve-se desenvolver uma verdadeira política hídrica que traga soluções para as secas, as inundações e a falta de acesso à água.

Temos um Conselho Hídrico Federal que não está funcionando como deveria. À falta de uma visão global, tomam-se somente resoluções parciais.

Além disto, é preocupante que não se faça uso do Aquífero Guarani para solucionar os problemas da população. O Brasil o faz desde 1930, e não somente como provisão de água como também para o desenvolvimento agrícola, agropecuário e industrial, em uma gestão integrada com os recursos superficiais. Falta-nos essa visão.

MM: Em 22 de abril de 1997 subscreveu-se a Ata de Paysandú, pela qual os governos da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai se comprometiam a criar mecanismos de coordenação para a investigação, utilização e preservação do Aquífero Guarani, no marco de uma gestão sustentável e equitativa. Por que esse projeto foi entregue ao Banco Mundial e quais foram as conseqüências dessa decisão?
EB: Quando as universidades dos quatro países informaram aos seus respectivos governos que necessitavam de 6 milhões de dólares para levar adiante o estudo completo do aqüífero, a resposta foi que não havia dinheiro para isso.

Foi quando entrou o Banco Mundial e se encarregou do projeto, alegando que as universidades se haviam equivocado e que o projeto ascendia a 26.760.000 dólares.

Foi uma dura batalha para as organizações sociais brasileiras, paraguaias, uruguaias e argentinas. O Banco Mundial quis declarar o Aquífero Guarani como Patrimônio da Humanidade, com tudo o que isso significa.

Como suas águas são ricas em minerais, tentou que as explorações caíssem sob os códigos de mineração de nossos países para poder comercializar a água.

O Banco Mundial fez todo o possível para ficar, mas dada a crise econômica e financeira internacional de fins de 2008, acrescida da resistência popular, decidiu retirar-se em 30 de janeiro de 2009, levando um DNA completo do aquífero e deixando-nos somente informação parcial.

MM: Qual a sua opinião sobre as ações levadas a cabo pelo empresário estadunidense Douglas Tompkins (foto) nos estuários do Iberá, em Corrientes?
EB: Sobre os estuários do Iberá existiu um projeto do Banco Mundial que tomou Tompkins e sua fundação como testas-de-ferro, pelo que receberia 7 milhões de dólares para comprar a totalidade dos estuários (1.290.000 hectares). Mas  esse plano não avançou.

Tompkins fez coisas terríveis na província: há denúncias de queima de colheitas, roubo de gado, corrida de cercas, sequestros e até se fala de morte em mãos de seus guardas pretorianos.

Pelas minhas investigações, Tompkins é testa-de-ferro do Banco Mundial e está ligado ao Departamento de Estado dos Estados Unidos.

MM: De que trata o projeto de canalização e navegação do Rio Bermejo y Pilcomayo e quais seriam os benefícios de sua implementação?
EB: Domingo Sarmiento já falava sobre os benefícios da canalização e navegação do Río Bermejo y Pilcomayo em 1869. O projeto permitiria radicar indústrias, além de retirar a produção do norte e noroeste do país através dos rios, um transporte muito mais econômico que o rodoviário, e que não contamina.

O Bermejo é um rio de montanha que nasce na Bolívia e, por ser torrencial, costuma produzir inundações realmente catastróficas.

A construção de represas no território boliviano (para o que há vontade do governo local) representaria uma solução para essa problemática, e ainda permitiria gerar hidroeletricidade.

A  proposta é fazer um braço que atravesse Salta, chegando até Santa Fé, e outro que vá para o lado de Formosa. O rio seria canalizado em pequenos lagos não-profundos e seria tornado navegável.

Os canais permitiriam recuperar 11 milhões de hectares para produzir alimento, já que as terras são verdadeiramente abundantes e só necessitam de água.

É um plano de grande escala e de longo prazo, mas valeria a pena, já que poderia abastecer até 92 milhões de pessoas.

Fonte:
http://marcelomontoya.wordpress.com/2012/07/29/entrevista-3/

Nota:
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