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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

As duas facetas da grande mídia

11/02/2014 - A alteridade cínica da grande mídia
Venício A. de Lima - de Brasília - Jornal Correio do Brasil

A Rede Globo de Televisão recomendou a seus jornalistas, inclusive os que trabalham em suas 122 (cento e vinte e duas) emissoras afiliadas, “que a Copa e a seleção brasileira são uma paixão nacional, mas que irregularidades deverão ser denunciadas e ‘pautas positivas’ deverão ser evitadas, a não ser que ‘surjam naturalmente’."

"Reportagens que mostram como a Copa está beneficiando grupos de pessoas, como os comerciantes vizinhos a estádios, já não estão sendo produzidas para o Jornal Nacional” (ver aqui, e aqui a resposta da Globo).

No telejornal SBT Brasil, a âncora fez aberta apologia de “justiceiros” vingadores que espancaram, despiram e acorrentaram pelo pescoço um suspeito adolescente, de 15 anos, a um poste no Flamengo, no Rio de Janeiro (ver aqui).

A recomendação da Globo e a posição defendida no SBT – concessionárias do serviço público de radiodifusão – teriam alguma relação com o aumento da violência urbana?

Mídia e violência

Em artigo recente, neste Observatório [da Imprensa], comentei a “pauta negativa” do jornalismo regional em Brasília que chamei de “jornalismo do vale de lágrimas” (ver "O vale de lágrimas é aqui").

O que me traz de volta ao tema é, especificamente, a alteridade cínica do jornalismo do vale de lágrimas na cobertura da violência urbana.

Esse tipo de jornalismo “faz de conta” de que a mídia não tem qualquer responsabilidade em relação ao que ocorre na sociedade brasileira.

Ela seria apenas uma observadora privilegiada cumprindo o seu papel de tornar pública a violência e cobrar mais policiamento dos governos local e federal – como se a solução da violência fosse um problema apenas de mais ou menos policiamento.

Por várias vezes tratei dessa alteridade cínica neste Observatório [da Imprensa], sobretudo em função das evidências acumuladas ao longo de anos de pesquisa em vários países que relacionam a violência ao conteúdo da programação da mídia, sobretudo da televisão (ver “A violência urbana e os donos da mídia“, “A responsabilidade dos donos da grande mídia“, “As lições do caso Santo André“, “A liberdade de comunicação não é absoluta“, “A mídia e a banalização da violência“ e “A lógica implacável da mercadoria“).

Ainda na década de 1990, em palestra que fez na Universidade de Brasília, Jo Groebel [foto] – professor da Universidade de Utrecht, na Holanda, e representante da Sociedade Internacional de Pesquisa sobre Agressão nas Nações Unidas – não deixou dúvidas sobre a existência de uma relação entre a predominância da violência na programação da televisão e a tendência para a agressividade de jovens e adultos.

Baseado em mais de 20 anos de pesquisa ele afirmou que a televisão “faz com que as pessoas pensem que a violência é normal” e que “quanto mais desigual a estrutura da sociedade maior o impacto da violência mostrada na TV”.

Nos Estados Unidos, os “National Television Violence Studies”, financiados pela National Cable Television Association (NCTA), também realizados nos anos 1990 por um pool de grandes universidades – Califórnia, Carolina do Norte, Texas e Wisconsin –, confirmaram as conclusões de Groebel e geraram uma série de recomendações sobre o conteúdo da programação para a indústria de entretenimento.

Em 2008, foram divulgados os primeiros resultados de uma longa pesquisa realizada por professores da Rutgers University, nos EUA, que vincula violência na mídia e agressividade em jovens.

No estudo, foram entrevistados 820 adolescentes do estado de Michigan. Destes, 430 eram alunos do ensino médio de comunidades rurais, suburbanas e urbanas.

Outros 390 eram delinquentes juvenis detidos em instituições municipais e estaduais, distribuídos equilibradamente entre os sexos masculino e feminino. Pais ou guardiões de 720 deles também foram entrevistados, assim como os professores ou funcionários que lidavam com 717 dos jovens.

A pesquisa revelou que mesmo considerando outros fatores como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas emocionais, a “preferência por mídia violenta na infância e adolescência contribuiu significativamente para a previsão de violência e agressão em geral”. 

E conclui: “você é o que assiste”, quando se trata da população jovem.

Certamente outras pesquisas atualizam e confirmam esses resultados, além de incluir também o cinema e os videogames, estes últimos um fenômeno mais recente.

Será que a presença maciça da violência na programação de entretenimento da mídia eletrônica e da televisão brasileira (aberta e paga), em especial, não é um dos fatores que contribui para o aumento da violência urbana?


A mídia e a Constituição
Um dos artigos não regulamentados da Constituição de 1988, o 221, reza:

A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Será que praticando o jornalismo do vale de lágrimas, excluindo a pauta positiva e defendendo os “justiceiros” vingadores, a grande mídia brasileira está cumprindo a Constituição de 1988?

A quem cabe a fiscalização dos contratos de concessão desse serviço público?

Com a palavra o Ministério Público e o Ministério das Comunicações.

(*) Venício A. de Lima, é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado)

Fonte:
http://correiodobrasil.com.br/noticias/opiniao/a-alteridade-cinica-da-grande-midia/684148/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=b20140212

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Lei da Mídia: nada além da Constituição

04/01/2014 - Por Franklin Martins, na revista CartaCapital
- extraído do blog do Miro

No fim de outubro, a rainha Elizabeth II [foto], com respaldo dos principais partidos do governo e da oposição, assinou Carta Régia estabelecendo novos mecanismos de regulação para a imprensa na Grã-Bretanha.

Foram fixadas penalidades duríssimas para os órgãos que invadirem a privacidade dos cidadãos, atropelarem as leis e usarem de má-fé no tratamento das notícias.

O texto foi uma resposta à indignação da sociedade britânica diante dos desmandos de alguns jornais e revistas.

O Grupo Murdoch [Rupert Murdoch, foto] chegou a grampear ilegalmente telefones de súditos de Sua Majestade.

Também em outubro, a Suprema Corte da Argentina considerou constitucionais quatro artigos da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada em 2009.

A decisão julgou improcedente recurso do poderoso grupo midiático El Clarín, que se recusava a abrir mão de parte das mais de 240 licenças de tevê aberta e por cabo em seu poder, como manda a nova lei.

Os artigos em questão, segundo os juízes, longe de ferir a liberdade de imprensa, ajudarão a promover a desconcentração da mídia.

Cristina Kirchner, presidente da Argentina
No início de 2013, a União Europeia (UE) divulgou o relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia”, elaborado por um Grupo de Alto Nível da instituição, em que alertava:

“Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo que eles formem opiniões sem a influência indevida de um poder dominante”.

Rafael Correa, presidente do Equador
Em meados do ano, o Congresso do Equador aprovou por longa maioria a Lei Orgânica de Comunicação, que, entre outras coisas, determinou que o espectro eletromagnético usado pela radiodifusão seja dividido de forma equilibrada, abrindo espaço para a expressão de organizações da sociedade civil.

Pela nova lei, 34% das concessões de rádio e tevê devem ir para as comunidades, 33% para os meios privados e 33% para o setor público.

No momento, o debate ganha corpo no Uruguai, depois de o presidente Pepe Mujica [foto] enviar ao Parlamento projeto de lei que visa estimular a democratização dos meios.

Tudo indica que será aprovado.

O fato é que praticamente todas as sociedades democráticas do mundo contam com mecanismos de regulação dos meios de comunicação, especialmente daqueles que, como o rádio e a televisão, são objeto de concessões do Estado.

Em alguns países – é o caso dos Estados Unidos-, a regulação se dá principalmente pela via econômica, através da proibição da chamada propriedade cruzada.

Ou seja, nenhum grupo empresarial pode ser dono de televisão, rádio e jornal na mesma cidade ou estado.

Em outros países, como Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, a regulação também estabelece princípios a ser observados nas programações de rádios e tevês, como equilíbrio, imparcialidade, respeito à privacidade e à honra dos cidadãos e garantia de espaço para a cultura nacional e as produções locais.

O Brasil, infelizmente, está na contramão dessa tendência mundial.

Tem uma das mídias mais concentradas do planeta – e uma das legislações mais atrasadas também.

O Código Brasileiro das Telecomunicações, que finge reger a radiodifusão, é de 1962.

Ou seja, tem 51 anos de idade.

É de uma época em que não havia tevê em cores, transmissões por satélite e redes nacionais de televisão.

Não responde, é claro, às espetaculares transformações tecnológicas, econômicas, culturais e mercadológicas das últimas décadas.

Salta aos olhos a necessidade de avançar nessa área.

No entanto, todas as tentativas de abertura de um debate público, aberto e transparente sobre o tema têm sido sistematicamente interditadas pelos oligopólios que dominam a comunicação social no Brasil, sob o argumento falacioso de que regulação é sinônimo de atentado à liberdade de imprensa.

Dizem que regular é o mesmo que censurar.

Trata-se de uma afirmação sem qualquer base na realidade.

Por acaso existe censura nos EUA, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha, na Itália, em Portugal, na Espanha, na Argentina ou no Equador? Claro que não.

Mas todos esses países possuem leis reguladoras, ambientes regulatórios e agências reguladoras na área da comunicação social.

Sabem disso perfeitamente os oligopólios da comunicação social, a começar por aqueles que construíram gigantescos impérios midiáticos à sombra da ditadura.

Mesmo assim, satanizam o debate sobre o marco regulatório das comunicações eletrônicas. Têm suas razões.

Mas o que lhes tira o sono no caso não são as fictícias ameaças à liberdade de imprensa, e sim a perspectiva real de conviver com a pluralidade, a competição e a multiplicação dos meios.

Não querem perder privilégios e poder.

Felizmente, vivemos novos tempos, graças ao alargamento da democracia no País e ao surgimento de novas tecnologias, como a digitalização e a internet.

Essas mudanças têm colocado em xeque o próprio modelo tradicional de jornalismo.

Foi-se o tempo em que havia, de um lado, um pequeno núcleo ativo de produtores de informação e, de outro, uma massa passiva de consumidores de informação.

Hoje, mal uma notícia chega à internet, ela é avaliada.

Em três tempos, pode ser qualificada ou desqualificada, confirmada ou negada, aprofundada ou rejeitada por redes que reúnem centenas de milhares ou milhões de indivíduos.

A Era do Aquário, em que os comandos das redações, julgando-se no Olimpo, tudo podiam, tem sido gradativamente minada e substituída pela Era da Rede, que diluiu as fronteiras entre produtores e consumidores de informação.

Por isso mesmo, a cada dia que passa é mais difícil bloquear o debate sobre a necessidade da democratização dos meios de comunicação.

Se antes o tema estava restrito a especialistas, acadêmicos e organizações não governamentais, atualmente ela faz parte da agenda de boa parte da sociedade.

Nos últimos anos, multiplicaram-se as vozes que defendem a elaboração de um novo marco regulatório das comunicações eletrônicas.

Cresceu também o sentimento de que a existência de oligopólios tende a asfixiar a pluralidade e a qualidade da informação.

Sintoma disso foram as palavras de ordem que, espontaneamente, tomaram conta das manifestações de junho, sinalizando forte mal-estar com a atuação dos principais meios de comunicação no Brasil.

Espera-se que o governo tome a iniciativa de propor um novo marco regulatório, a ser debatido pela sociedade – e aperfeiçoado e aprovado pelo Congresso.

Lucraria o País se esse desafio fosse enfrentado num ambiente isento de manipulações e preconceitos.

Quanto menos retórica e mais espírito público, melhor.

O ideal é que o debate se dê em cima de um terreno comum, aceito, acatado e respeitado por todos os brasileiros: a Constituição da República Federativa do Brasil.

Ela define os princípios democráticos que devem reger a comunicação social.

O problema é que, 25 anos depois de sua promulgação, esses princípios ainda não foram transformados em lei.

Não saíram do papel. Não foram e não são cumpridos. Continuam engavetados.

Para afastar os fantasmas e desanuviar o ambiente, talvez valha a pena fechar um acordo preliminar na sociedade: o marco regulatório não conterá nenhum dispositivo que fira a Constituição, mas contemplará todos os dispositivos sobre comunicação social inscritos na Carta Magna, sem relegar ao abandono nenhum deles.

Ou seja, a Constituição não pode ser arranhada, tampouco pode ser desfigurada. Trata-se de cumpri-la. Na íntegra.

Os princípios que, segundo a Constituição, devem reger a comunicação social no Brasil são:

- liberdade de imprensa (art.220 da Constituição, parágrafos 1˚ e 2˚);

- respeito ao sigilo da fonte (artigo 5˚, inciso XIV);

- os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio (art.220, parágrafo 5˚);

- complementaridade nas concessões na radiodifusão entre o sistema público, estatal e privado (art.223, caput);

- respeito à intimidade, à privacidade, à imagem, à honra dos cidadãos (art.5˚, inciso X);

- direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material e moral à imagem (art.5˚, inciso V);

- preferência na radiodifusão às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (art.221, inciso I);

- promoção e defesa da cultura nacional e das culturas regionais (art.221, incisos II e III);

- estímulo à produção independente (art.221, inciso II);

- defesa da família, da criança. Defesa da sociedade contra produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (art.220, inciso I e II, e art.221, inciso IV);

- não ao racismo e à discriminação de um modo geral (art.5˚, inciso XLII e art. 3˚, inciso IV);

- proibição de concessões de TV a pessoas que gozem de imunidade parlamentar e foro especial, como parlamentares e juízes (art.54, inciso I).

O Brasil só terá a ganhar com a aplicação dos princípios constitucionais que preveem a ampliação da liberdade de expressão e a democratização dos meios de comunicação.

Eles tendem a estimular o florescimento de um ambiente livre, fecundo e plural, no qual a sociedade tenha acesso a mais vozes, a mais opiniões, a mais informação, a mais debate qualificado, a mais entretenimento, a mais produções culturais – a mais democracia, enfim.

Fonte:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2014/01/lei-da-midia-nada-alem-da-constituicao.html#more

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

Leia também:
- As derrotas da mídia na América Latina - Altamiro Borges
- Derrotas dos barões da mídia em 2013 - Altamiro Borges
- China vs. Brasil: alguma diferença? - Venício Lima

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O "controle" da mídia no Brasil


Sim. Existe ‘controle’ da mídia no Brasil


*Por Venício A. de Lima em 27/08/2013 na edição 761 - Observatório da Imprensa

     
Em debate sobre “A mídia e a corrupção”, realizado durante o seminário “Corrupção: diálogos interdisciplinares”, promovido pelo tradicional Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na quarta-feira (21/8), respondi a uma pergunta de futura advogada preocupada em saber se as normas e princípios da Constituição de 1988 permitiam o “controle” sobre a mídia no Brasil.

Respondi de imediato: não; claro que não. As normas e princípios da Constituição de 1988 impedem claramente que haja “controle” do Estado sobre a mídia. Não há possibilidade de volta à censura estatal nem de qualquer ameaça do Estado à liberdade de expressão ou à liberdade da imprensa.

Embutido na pergunta, tudo indica, estava o conhecido mantra da grande mídia brasileira e de seus eloquentes porta-vozes que identificam qualquer manifestação sobre regulação, independentemente de sua origem, como tentativa autoritária de “controlar” a mídia por intermédio do Estado ou, em outras palavras, volta à censura estatal, atentado à liberdade de expressão e à liberdade da imprensa (tratadas, aliás, como se fossem a mesma coisa).

Resposta errada

O debate continuou, outras perguntas foram feitas e me dei conta de que havia cometido um erro grave. Minha resposta assumia como verdadeiro o falso pressuposto contido no mantra da grande mídia de que somente o Estado pode “controlar” a mídia.

Solicitei, então, ao mediador do debate que, por favor, me permitisse corrigir uma resposta incorreta.

Sim. Apesar das normas e princípios da Constituição de 1988 é possível que exista “controle” sobre a mídia. Na verdade, esse “controle” vem sendo exercido diariamente. Todavia, não pelo Estado, mas pelos oligopólios privados de mídia.

São esses oligopólios que – contrariando as normas e princípios da Constituição em vigor – “controlam” a mídia e ameaçam a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa ao impedir o acesso das vozes da maioria da população brasileira ao espaço de debate público cuja mediação, apesar das TICs, monopolizam.

Constituição não regulamentada


Esse “controle” da mídia pelos oligopólios privados se sustenta de diferentes formas. Uma delas é o poderoso (e bem remunerado) lobby que nos últimos 25 anos tem pressionado continuamente deputados e senadores e impedido que normas e princípios da Constituição de 1988 relativas à comunicação social sejam regulamentados. Sem serem regulamentados, não são cumpridos.

É por isso que, apesar de a Constituição rezar que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (parágrafo 5º do artigo 220), apenas uns poucos grupos privados controlam os meios de comunicação diretamente ou indiretamente através de “redes” de afiliadas cuja “formação” não obedece a qualquer regulação.

É por isso que, apesar de a Constituição rezar que “os Deputados e Senadores não poderão firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes” (alínea ‘a’ do inciso I do artigo 54), muitos deles mantêm vínculos com empresas privadas concessionárias do serviço público de radiodifusão, numa viciosa circularidade que inviabiliza a aprovação de projetos que regulem as normas e princípios constitucionais sobre a comunicação social no Congresso Nacional.

É por isso que, apesar de a Constituição rezar que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão devem atender “aos princípios de preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (artigo 221), o que se escuta nas emissoras de rádio e se vê na televisão, salvo raras exceções, é exatamente o oposto.

É por isso que, apesar de a Constituição rezar que as outorgas e renovações de concessões, permissões e autorizações para o serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens devem “observar o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” (artigo 223), a imensa maioria das concessões, permissões e autorizações de radiodifusão no país continua a ser explorada por empresas privadas.

O paradoxo do Estado financiador do “controle” privado

No Brasil, os “critérios técnicos” adotados pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR) para distribuição dos recursos oficiais de publicidade se baseiam na diretriz “comercial” que considera “a audiência de cada veículo [como] o balizador de negociação e de distribuição de investimentos. A programação de recursos deve ser proporcional ao tamanho e ao perfil da audiência de cada veículo” (ver “Transparência e a desconcentração na publicidade do governo federal“).

Como já argumentei neste Observatório (ver “Publicidade oficial: Quais critérios adotar?“), o artigo 1º da Constituição de 1988 reza que um dos fundamentos da democracia brasileira é o pluralismo político (inciso V) e, logo em seguida, o artigo 5º garante que é livre a manifestação do pensamento (inciso IV). Essa garantia é confirmada no caput do artigo 220, que impede a existência de qualquer restrição à manifestação do pensamento, à expressão e à informação.

Por outro lado, o inciso I, do artigo 2º do Decreto nº 6.555/2008, que “dispõe sobre as ações de comunicação do Poder Executivo Federal”, determina que “no desenvolvimento e na execução das ações de comunicação (...), serão observadas as seguintes diretrizes, de acordo com as características de cada ação: afirmação dos valores e princípios da Constituição”.

Decorre, portanto, que a responsabilidade primeira da negociação e distribuição de qualquer investimento oficial – inclusive, por óbvio, aqueles de publicidade – deveria ser a proteção e garantia do pluralismo político e da liberdade de expressão.

Da mesma forma, considerando apenas que “a programação de recursos deve ser proporcional ao tamanho e ao perfil da audiência de cada veículo”, a Secom-PR descumpre também os princípios gerais da atividade econômica definidos no “Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira” da Constituição.

Na verdade, contrariam-se os incisos IV (livre concorrência), VII (redução das desigualdades regionais e sociais) e IX (tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte) do artigo 170, e o parágrafo 4º (repressão ao abuso de poder econômico, com vistas à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros) do artigo 173.

A Secom-PR – vale dizer, o Estado brasileiro –, paradoxalmente, tem sido um dos principais financiadores do “controle” que os oligopólios privados exercem sobre a mídia no Brasil.

Inversão da realidade


Ao difundir a noção de que o Estado brasileiro é o único agente capaz de exercer o “controle da mídia” e, ainda mais, ao empunhar como exclusivamente suas as bandeiras da liberdade de expressão e da liberdade da imprensa, os oligopólios privados de mídia constroem publicamente a imagem daqueles que pelejam para que mais vozes tenham acesso ao debate público como se fossem os inimigos da liberdade e pretendessem fazer exatamente o que, de fato, já é feito por eles, os oligopólios privados – isto é, o “controle” da mídia.

Com o desmesurado poder de que desfrutam, conseguem fazer prevalecer publicamente uma inversão do que de fato acontece (o processo de “inversão da realidade”, como se sabe, foi identificado, nomeado e explicado faz mais de 150 anos).

O debate na Faculdade de Direito da UFMG me ofereceu a oportunidade de argumentar, ainda uma vez mais, que, apesar das normas e princípios da Constituição de 1988, existe, sim, “controle” da mídia no Brasil. E ele tem sido exercido exatamente por aqueles que se apresentam como defensores exclusivos da liberdade de expressão e da liberdade: os oligopólios privados de mídia.

***

*Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros

terça-feira, 18 de junho de 2013

O renascimento indigena sob fogo cruzado



por Mario Osava, da IPS

Rio de Janeiro, Brasil, 17/6/2013 – Os tratores e as máquinas com as quais fazendeiros e outros grandes agricultores bloquearam estradas no dia 14, em mais de dez pontos de norte a sul do Brasil, destacaram o poder econômico do setor que se levantou contra a demarcação de terras indígenas. A presença de senadores e deputados nos protestos indica o crescente poder político dos ruralistas, que frequentemente impõem derrotas parlamentares ao governo que, nominalmente, desfruta de ampla maioria no Congresso.

A “paralisação nacional” de atividades, convocada pela Frente Parlamentar Agropecuária, mobilizou uns poucos milhares de pessoas em alguns lugares e centenas em outros, mas é apenas parte de uma ofensiva dos fazendeiros contra a criação de novos territórios indígenas ou a ampliação dos existentes. Modificar a Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas o “usufruto exclusivo” de terras que ocupavam tradicionalmente, em uma extensão suficiente para sua “reprodução física e cultural”, é o maior objetivo dos ruralistas, que em 2012 já conseguiram revisar o Código Florestal em benefício próprio e em detrimento do meio ambiente.

Outras medidas reclamadas, como participação dos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário e de centros de pesquisa agrícola no processo de demarcação, objetivam conter o reconhecimento de novas reservas indígenas. Compõem “um retrocesso completo”, segundo Marcos Terena, funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão governamental responsável pela política para o setor, e veterano líder de lutas pela afirmação e autonomia dos povos originários.

Para os ruralistas se trata de “uma disputa patrimonial”, desejam expandir o grande negócio agropecuário como sempre, tomando terras públicas, em áreas não ocupadas ou atribuídas à conservação e a povos tradicionais, afirmou Marcio Santilli, especialista do não governamental Instituto Socioambiental e ex-presidente da Funai. Por isso buscam definir como simples conflito agrário o caso de terras identificadas como indígenas que incluem áreas privadas, que são legalmente inadmissíveis e condenadas à evacuação.

Em numerosas ocasiões são posses ilegais, mas no Mato Grosso do Sul muitos fazendeiros têm títulos de propriedade válidos, reconhecidos por governos anteriores. Ali, grande quantidade dos conflitos se prolonga há décadas e se tornaram sangrentos. Esse Estado pecuário e grande produtor de soja concentrou 57% dos 560 assassinatos de indígenas ocorridos entre 2003 e 2012 no Brasil, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Nem todos os homicídios se devem a disputas pela terra, mas a matança reflete a absoluta assimetria no confronto entre ruralistas e indígenas.

As mortes violentas não impediram uma explosão demográfica inimaginável há três ou quatro décadas, quando a população indígena parecia ameaçada de extinção. Nos anos 1980, estimava-se que no Brasil só restassem pouco mais de 200 mil integrantes dos povos originários. Contudo, no censo de 2010, 896.917 pessoas se declararam indígenas, o triplo de 1991, quando essa categoria passou a ser incluída entre as opções étnicas para autoidentificação das pessoas entrevistadas pelos recenseadores.

Não foi apenas a natalidade que triplicou a população. O reconhecimento na Constituição de 1988 dos direitos das minorias étnicas estimulou um renascimento indígena, que fez recuperar a identidade, mesmo mos que vivem fora de suas aldeias originais. Dos autoidentificados como indígenas em 2010, 36% vivem em cidades. Há “aldeias urbanas” em várias delas, como Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.

A ressurreição alimenta avanços na educação indígena, às vezes com o resgate da língua originária, nas raízes culturais e na adoção de novas tecnologias. Em cerca de dez anos, “um fator novo” determinará o desenvolvimento dos povos indígenas e suas relações com a sociedade envolvente, pontuou Terena. “São os doutores indígenas”, que estão se formando nas universidades, “sem perder sua cultura própria”, especialmente no sul do Brasil, destacou.

Este ciclo representou uma virada na história brasileira de etnocídio desde a chegada dos colonizadores em 1500, quando, se estima, cinco milhões de indígenas habitavam o atual território nacional. Agora, no entanto, enfrentam novas ameaças. Além dos ruralistas, que buscam fechar as instituições que alimentaram o renascimento indígena, grandes projetos de infraestrutura na Amazônia tendem a alterar as condições tradicionais em que vivem vários povos originários.

A construção de dezenas de hidrelétricas, planejadas para os rios da bacia amazônica nos próximos anos, está intensificando as lutas entre indígenas, construtoras e governo. Às repetidas invasões indígenas na hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, um grande afluente do Amazonas, no Estado do Pará, corresponde um recrudescimento da repressão policial. Esse clima de exasperação culminou com a morte de Oziel Gabriel no dia 30 de maio, aparentemente causada por um disparo da polícia no município de Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul.

A tragédia aconteceu durante uma operação policial, ordenada pela justiça, para retirar centenas de indígenas que haviam ocupado uma fazenda, identificada como parte do território tradicional dos terenas há 13 anos. Contraditórias decisões judiciais e dificuldades para indenizar o proprietário vão dilatando o processo. A correlação de forças e a prioridade que o governo dá ao desenvolvimento econômico são totalmente adversas para os indígenas.

Entretanto, eles contam com a Constituição, convênios internacionais e uma opinião pública internacional que defende a diversidade humana. Com a consciência e os valores hoje consolidados, “a sociedade brasileira não permitiria retrocessos nos direitos reconhecidos na Constituição”, declarou Paulo Maldos, secretário nacional de Articulação Social do governo federal, cuja função já o levou a perigosas negociações com grupos indígenas rebelados.

A repercussão negativa desestimula atos antiaborígines. Cada indígena assassinado, como Gabriel, se converte em um mártir que realça a resistência de seus povos. Por isso é possível que essa morte neutralize, ou pelo menos modere por algum tempo, a ofensiva ruralista contra territórios ancestrais. Segundo a Funai, há no país mais de 450 territórios indígenas em processo de demarcação, que somam mais de cem mil hectares, enquanto outra centena de territórios está em fase de identificação.

Fonte:Envolverde/IPS

 http://envolverde.com.br/ambiente/o-renascimento-indigena-brasileiro-sob-fogo-cruzado/

quinta-feira, 13 de junho de 2013

A privatização da gestão pública


Tanto a privatização das empresas estatais como a privatização no sentido de concessão, contratualização, terceirização e parcerias necessitam do comando firme do Estado de Direito Democrático, sem o qual todos esses caminhos tornam-se verdadeiras barbáries.
  
Por Francisco Fonseca   Carta Maior
   
Muito se tem discutido, nas últimas três décadas, tanto internacionalmente como no Brasil, sobre o papel da iniciativa privada na Administração Pública e nas Políticas Públicas: desde a utilização de ferramentas e métodos empresariais na gestão pública às parcerias, terceirizações, concessões e contratos de gestão, entre outras práticas, em que o empresariado presta serviços e administra setores do Estado por meio de concessão. Ao lado dessas formas, a privatização em sentido estrito, isto é, a venda de empresas públicas ao setor privado, tem igualmente ocupado a agenda de debates.

Tema eivado de postulações programáticas (ideológicas), no sentido de afirmação ou do protagonismo estatal ou do setor privado (mercantil) e, desde os anos 1990, do assim chamado “setor público não estatal”, genérica e vagamente chamado de “terceiro setor”, há vários aspectos confusos neste debate, verdadeiro embate.

Notadamente desde a hegemonia neoliberal, “rolo compressor” propalado por think tanks, governos, mídia e comunidade empresarial, essa confusão tem aumentado substantivamente, uma vez que qualquer voz dissonante fora tida como anacrônica e extemporânea. Figuras como Von Mises, Von Hayek e Milton Friedman (e Roberto Campos, Gustavo Franco, entre tantos outros no Brasil), e governos como os de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, com apoio maciço da grande mídia – mundial e, no caso brasileiro, dos grandes conglomerados de comunicação – obstruíram qualquer discussão acerca do papel do Estado e do mercado. Sua ideologia obtusa – o neoliberalismo – não apenas obstou o debate como impactou profundamente as sociedades ao aumentar exponencialmente a desigualdade social em nome da “meritocracia”, tomada como crença ideológica. Essa “ideologia do mérito” supostamente implicaria a supremacia imanente do indivíduo sobre as classes sociais e a sociedade, e do mercado sobre o Estado.

A utilização de ferramentas de gestão de um setor por outro (do privado ao público e deste ao privado) é antiga, embora ocultada quando o assunto é a importância do Estado à iniciativa privada, caso, por exemplo, do planejamento e mesmo do papel estatal como protetor do capital privado em inúmeras guerras travadas ao longo da história. Mais importante, sem o Estado o capitalismo sequer existiria, como nos mostrou a clássica obra de Karl Palanyi (“A Grande Transformação: as origens de nossa época”, várias edições). Além do mais, as cíclicas crises capitalistas – como as de 1929 e 2008 – só tiveram resolução em razão do papel ativo do Estado em salvar empresas e o próprio sistema capitalista como um todo: momento em que cessam as críticas neoliberais ao “protagonismo” estatal. Aliás, a ação estatal tem sido, notadamente desde a crise de 2008, voltada às empresas e aos bancos, e não ao cidadão comum, como demonstra o volume de recursos empregados ao salvamento de setores empresarias em detrimento dos chamados “colchões sociais” capazes de proteger os mais vulneráveis, isto é, aquilo que o movimento social Occupy Wall Street sintetizou como “we are 99%”.

Pois bem, desde a chamada New Public Management a Administração Pública vem sendo coagida pelos adeptos poderosos da hegemonia neoliberal a aplicar métodos e técnicas gerenciais advindos do setor privado e sobretudo a conceder, contratualizar e terceirizar serviços e responsabilidades a empresários e a agentes tidos como “privados sem fins lucrativos” (ou “públicos não estatais”). Estas denominações são não apenas questionáveis conceitualmente como estão no mesmo contexto do que genericamente se chama de “sociedade civil” e de “bem comum”, dentre tantas outras caracterizadas pela polissemia e pelo baixo poder explicativo caso não se os defina conceitualmente, mas de uso corrente, notadamente midiático.

Mas deve-se notar igualmente o papel da privatização, em sentido estrito, assim como o protagonismo do setor privado no fornecimento de serviços, caso clássico do Sistema Único de Saúde e de inúmeras parcerias “público/privadas”. A privatização foi tomada como uma espécie de “panaceia milagrosa” capaz de nos salvar de todo o mal causado pela “doença do estatismo”, mote neoliberal asseverado como cantilena por Roberto Campos e diversos outros ideólogos do privatismo, devidamente divulgada pela velha mídia conservadora. Analisei esses processos de como a grande imprensa brasileira adotou esta agenda na história recente em dois livros: “O Consenso Forjado” e “Liberalismo Autoritário”.

Quanto à terceirização do serviço público e sobretudo da gestão pública, note-se que tem atingido limiares impressionantes no Brasil, a ponto de diversos setores estratégicos do Estado (notadamente no nível municipal) terem sido repassados a consultorias privadas. Aliás, consultorias têm vicejado – e obtido retorno financeiro – devido à fragilização do Estado que, muito mais do que contar com parcerias privadas, tem transferido, reitere-se, a gestão de setores estratégicos a grupos empresariais.

Deve-se notar, nesse debate, dois aspectos cruciais: a) a utilização de instrumentos privados pelo setor público (e vice-versa) não apenas é antigo como plenamente possível, como dissemos, mas desde que determinados requisitos estejam presentes. Dentre outros, ressalte-se a não delegação, em qualquer hipótese, dos chamados setores estratégicos dos governos (planejamento e gestão dos pilares constitucionais do Estado). Embora o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”, editado na gestão Bresser Pereira quando titular do então Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), no primeiro governo FHC, deixasse claro quais seriam as funções exclusivas e não exclusivas do Estado, isso não impediu – ou talvez tenha “aberto a porteira” – para a privatização do Estado em sentido lato. Toda sorte de concessão e transferência tem sido adotada desde então, fragilizando ainda mais o poder público quanto ao cumprimento de suas funções constitucionais e à prestação de serviços de fato públicos, o que implica ceifar o poder do Estado como agente capaz de governar e contrariar interesses constituídos, notadamente os grandes interesses, pois voltados à apropriação privada do espaço e dos recursos públicos; b) a instituição das denominadas Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) tem como resultado, embora com exceções, a transformação de políticas públicas em apêndices dos grupos privados que, embora tidos como “sem fins lucrativos”, trazem a lógica do setor privado: valores; parâmetros de gestão; atuação voltada a grupos muito específicos, sem noção e articulação do todo; dependência, por vezes, de financiamento privado, no caso das Oscip; entre outros aspectos. Tal concessão aos agentes privados torna a gestão pública sem direção e sem capacidade de orientar e fiscalizar os agentes concessionários, contrariando o caráter monocêntrico do Estado.

O caso da prefeitura de São Paulo nas gestões José Serra e Gilberto Kassab é sintomático desse processo de privatização – que responde pelo nome de concessão, terceirização e contratualização, neste caso via OS e Oscip –, uma vez que vários setores, notadamente o (estratégico) da Saúde pulverizou-se de tal forma que o poder público municipal se tornou mero “espectador” da gestão dos serviços médicos públicos. Em outras palavras, na principal cidade do país, em diversas dimensões, o poder público foi esvaziado e fragilizado pelo amplo processo de privatização, em sentido lato, da gestão pública, devido à crença neoliberal acerca da falaciosa “eficiência” do setor privado, uma vez que tomada como imanente – e devidamente apoiada pelo BID, Bird e outros agentes de financiamento internacionais –, ao lado da própria privatização da vida política brasileira, entendida aqui como o domínio dos interesses privados sobre o público.

Cidades como São Paulo, entre inúmeras outras Brasil afora, sintetizam os efeitos perversos daquilo que – para determinados segmentos sociais – foi uma tentativa de “modernizar” e “arejar” os serviços públicos, saindo da “camisa-de-força” das regras que regem o Serviço Público: quanto aos funcionários, às contratações, às licitações, ao orçamento etc. Tal “modernidade” – termo sempre fugidio e problemático por ser utilizado com sentidos e significados distintos – tem, contudo, liquidado o sentido “público” de Estado, por mais que haja dificuldade teórica e empírica em definir o sentido do que é “público” na sociedade capitalista, como nos alerta Norberto Bobbio no livro “O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo”. Isso não significa que o Estado tenha necessariamente de agir sozinho, assim como suas ações só serão efetivas se houver transparência, participação e sobretudo “capacidade de governar”: aquilo que Carlos Matus chamou, em seu conhecido método “Planejamento Estratégico Situacional”, de “triângulo de governo”.

Os processos de concessão de serviços públicos a agentes privados, por meios diversos e com finalidades distintas, poderiam ser utilizados desde que moderadamente, isto é, sem descaracterizar a ação do Estado e seu papel estratégico, e sobretudo mantendo-se suas capacidades de direcionamento e fiscalização perante os agentes concessionários. Concretamente, isto quer dizer um conjunto de poderes do Estado: a) voltado ao direcionamento político/administrativo (ressalte-se) no que tange à implementação de políticas públicas, o que implica a coordenação dos agentes concessionários que, sem isso, agem de forma autônoma justamente pela inexistência de diretrizes estatais e pela tibieza política do poder público; b) de natureza técnica e política, com o objetivo de enfrentar os poderes constituídos, especialmente os que tendem a se apropriar privadamente dos recursos públicos; c) voltado à fiscalização dos agentes privados, o que implica impor-lhes punições severas caso transgridam as regras estabelecidas. Para tanto, aparatos técnicos estatais qualificados, regras claras e transparentes e efetividade nas ações do Estado são pressupostos para a atuação do poder público; e d) por meio da abertura à sociedade daquilo que se denomina “controle social”: conceito bastante propalado mas pouco institucionalizado.

No caso da prefeitura de São Paulo na gestão Serra/Kassab, e muito do que se sabe a respeito de diversas gestões Brasil afora, houve a privatização no sentido de conceder, terceirizar e contratualizar sem as capacidades acima delineadas. Dessa forma, houve a privatização do Estado no sentido mais destrutivo deste termo, sem que houvesse diretrizes e fiscalização burocrático/institucional efetivos (sem contar o desmonte da descentralização nas subprefeituras). Nesse sentido, é significativa a recente declaração do candidato do PSDB à presidência da República, o senador “mineiro/carioca” Aécio Neves (o governador “gerencialista”): de ser o PSDB o “partido das privatizações”!

Se à gestão pública – e ao pensamento político e administrativo – não cabe oposição programática pura e simples quanto à utilização de ferramentas e parcerias com o setor privado, é sabido, pela observação da história recente, que tal utilização não pode ser vista como panaceia, assim como ao Estado cabe o papel de governar, priorizando os próprios instrumentos da gestão pública: seus funcionários e suas ferramentas – que podem e devem ser incentivados e inovados – tendo em vista os objetivos do poder público.

A “moderna” gestão pública significa a existência regular de concursos públicos, carreiras públicas (estrutura de cargos e salários atrativos), treinamento e qualificação constante do corpo burocrático, ampliação dos percentuais de funcionários públicos em cargos estratégicos, transparência, abertura de canais de participação popular e controle social, e sobretudo a compreensão de que a gestão pública tem pressupostos, características e objetivos distintos da administração privada. Antes de abrir-se a terceiros, deve-se qualificar o poder público para que seja eficaz, eficiente e efetivo. Ainda assim, por mais que se possa, reitere-se, utilizar ferramentas da gestão privada na gestão pública – como é o caso, por exemplo, do programa Gespública do Governo Federal –, a grande inovação desta (a gestão pública), que se faz e refaz continuamente, é criar seus próprios mecanismos capazes de induzir comportamentos (em diversas dimensões), diminuir desigualdades, ofertar políticas públicas de qualidade, entre tantos outros objetivos advindos da Constituição Federal de 1988 e das demandas democráticas de movimentos sociais e do pensamento progressista.

Tanto a privatização das empresas estatais (venda de ativos públicos ao capital) como a privatização no sentido de concessão, contratualização, terceirização e parcerias, entre outras formas, necessitam do comando firme e forte do Estado de Direito Democrático, sem o qual todas as formas de privatização tornam-se verdadeiras barbáries!

Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

Fonte: ://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6127

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Antropólogos brasileiros divulgam Manifesto sobre demarcação de terras indígenas

"Nada, nem mesmo a ideologia empresarial, pode ser sobreposta à Constituição Federal do país ou justificar sua brutal violação. Seu fim primordial é garantir fundamentalmente o bem-estar de sua população como um todo, o que inclui todos os segmentos diferenciados do país e as gerações vindouras. Mais do que notícias alarmantes e discursos que visam o bem privado, cobramos todos os setores envolvidos, incluindo os meios de comunicação brasileiros, que tornem acessíveis à população, antes de mais nada, as luzes da Constituição Federal do nosso país", afirma Manifesto coletivo divulgado por antropólogos brasileiros, publicado pela Agência Repórter Brasil, 27-05-2013.

Eis o manifesto.

De maneira flagrantemente parcial, a mídia brasileira tem criminalizado a regularização fundiária de terras habitadas por populações indígenas no país. Para resumir os alarmantes argumentos, a ideia mais comum veiculada é a de que esses processos são artifícios fraudulentos, que transformariam “terras produtivas” e de “gente que trabalha”, em “reservas indígenas”. Para bom entendedor, meia palavra basta, como é de domínio popular.

O que se anuncia é que terras “produtivas” serão tornadas “improdutivas” e, paralelamente a isso, “gente que trabalha” será como que “substituída” por “gente que não trabalha”, isto é, “índios” – como se os índios não trabalhassem ou produzissem. Esta metamorfose perversa é atribuída, em muitos casos, a um suposto concerto criminoso de forças nacionais e internacionais que atuariam em proveito próprio, tendo pouca ou nenhuma relação com os legítimos ocupantes das terras.

Não é de hoje que este tipo de conjunção suspeita de ideias aparece na opinião pública ou mesmo em documentos e outras manifestações formais relacionados a trâmites legais ou matérias igualmente cruciais à existência das populações indígenas. Estas mesmas ideias vêm se repetindo cronicamente no tempo até os nossos dias, ao longo das muitas ondas desenvolvimentistas de colonização que marcam a história do nosso país desde os tempos da coroa portuguesa.

E sim. É sempre preciso trazer à luz o fato de que este arcabouço ideológico cauciona, insidiosamente, ações e disposições tanto do Estado brasileiro quanto de agentes privados na direção do extermínio, submissão e esbulho daqueles povos.

Lamentavelmente, estamos muito longe de poder acalentar a esperança de lançar este fatídico ideário, repleto de trágicos fatos que clamam por erradicação, às trevas da memória nacional. Em tempos de rápida repercussão dos discursos através de mídias eletrônicas, há mesmo a impressão de que este ideário estaria se multiplicando em incontáveis desdobramentos e manifestações. De conversas informais em redes sociais a artigos de jornais, é em documentos como Relatórios de Impacto Ambiental de grandes empreendimentos econômicos ou em célebres contestações jurídicas aos processos de regularização fundiária que ele aparece de forma mais perniciosa. Trata-se, no entanto, bem mais de uma imensa cortina de fumaça comunicacional providencialmente interposta entre a população e seus os direitos mais fundamentais, distorcendo e obscurecendo o funcionamento dos principais instrumentos constitucionais de resguardo desses direitos.

Como agravante central desta coleção de equívocos e distorções, está a gravíssima acusação ética de que os antropólogos estariam supostamente fraudando o estudo antropológico de identificação e delimitação, conforme ele é juridicamente definido e regulamentado. É legítimo que o leitor se pergunte sobre o que é exatamente isso. Não há qualquer registro na imprensa que, afinal, lance verdadeira luz sobre o que é e como se faz, enfim, a regularização de uma Terra Indígena no Brasil. O que é, por que e como acontece, quem realmente faz, tudo isso permanece nas trevas e ignorado pelo grande público ou mesmo por especialistas de outras áreas. Tudo converge em uma situação que tem como resultado o total desconhecimento deste instrumento técnico-jurídico e sua função primordial neste tipo de regularização, representando um terreno fértil para as especulações mais estapafúrdias.

Respostas adequadas a tais perguntas permanecem ausentes de manchetes rápidas, notícias ou editoriais dedicados a tratar - e quase sempre deslegitimar - o assunto. No entanto, estas respostas estariam bem mais próximas a todos se a Constituição Federal, como expressão e instrumento primordial de democracia e cidadania, não viesse sendo completamente ignorada, senão sistematicamente desfigurada, por meios de comunicação e outras frentes que atingem o grande público. Se alguns o fazem quase involuntariamente, por mero desinteresse ou desinformação, há os que o fazem deliberadamente, interessados que estão em dar continuidade aos crimes efetivos raramente apurados, à exploração e à desigualdade, contra os quais a carta magna se propõe a ser valioso instrumento de representação coletiva.

Constituição Federal: A demarcação de toda e qualquer terra indígena, como também todas as suas fases e ações, é devidamente fundamentada e regida pela Constituição Federal, pela Lei nº. 6001 de 1973, o chamado “Estatuto do Índio”, e pelo Decreto 1775 de 1996. Ela é um longo e sério processo que envolve etapas diferenciadas, uma equipe multidisciplinar de profissionais e instâncias diversas. Os antropólogos são aqueles legalmente responsáveis por compilar e analisar os detalhados estudos de um grupo interdisciplinar e que inclui também funcionários de órgãos federais, estaduais e até municipais.

O grande equívoco: A gente lê ou ouve com frequência que os antropólogos são contratados para dizer se uma terra é indígena ou não é, ou mesmo se um grupo de pessoas é ou não indígena. Isto demonstra que, mais uma vez, há muitas “trevas” e completo desconhecimento não apenas sobre a natureza desse estudo como do processo de regularização fundiária como um todo. É importante esclarecer que o trabalho do antropólogo na demarcação de uma terra indígena não é, de forma alguma, pericial ou resultará em umlaudo, como normalmente se tem veiculado e mesmo como constam de alguns processos jurídicos. Há uma obscurecedora e talvez proposital confusão nos discursos veiculados pelos meios de comunicação entre os conceitos de laudo e de relatório de identificação e delimitação.

Fala-se muito sobre a necessidade jurídico-legal do Estado em definir e fixar sujeitos de direito e a incompatibilidade disto com o atributo dinâmico, fugidio, mas também prioritariamente endógeno da identidade étnica. Entretanto, é importante notar que, mesmo deste ponto de vista, as próprias disposições constitucionais são por si mesmas profundamente antropológicas, no sentido em que estabelecem que ninguém, além do próprio grupo, é capaz de responder a estas questões postas pelo Estado. E ele o faz dentro determinado espaço, indissociável à singularidade de sua existência enquanto grupo, como dita a Constituição Federal, em seu artigo 231, caput e Parágrafo 1º, nos termos de um território cultural,conforme já foi definido pela procuradora Deborah Duprat. A medida diferencial da territorialidade e identidade de um grupo indígena está, portanto, embutida no próprio texto constitucional.

Mas os processos de regularização fundiária não tratam fundamentalmente disso, ao contrário do que se poderia supor a partir das informações acessíveis ao público. Absolutamente. Quando estes processos acontecem, isto é expressão direta dos direitos daquele povo sobre o espaço que ocupa ou, em muitos casos, do espaço do qual ele foi sistematicamente impedido de ocupar de forma plena, tendo sido na maior parte das vezes pilhado e usurpado. Quando se chega a este estado avançado de reivindicação formal daquilo que de direito já o pertence, o processo de regularização fundiária é formalmente inaugurado através de uma portaria da Fundação Nacional do Índio, publicada no Diário Oficial da União. Neste sentido, e nos termos do Artigo 1° do Decreto 1775 de 1996, o órgão administrativamente responsável pela formalização da iniciativa e orientação da regularização, rigorosamente submetidas aos termos constitucionais, é a FUNAI. O órgão, mais do que responsável pela assistência ao índio é, neste caso, um representante do Estado brasileiro e de suas diretrizes fundamentais, zelando pela adequada aplicação da Constituição, em todas as etapas da regularização.

Da Portaria publicada, e conforme as disposições constitucionais, constam a natureza do estudo, o nome e a instituição de cada componente do grupo interdisciplinar, o município, a etnia e as Terras Indígenas que serão estudadas em tal ou qual período.

Este grupo produzirá diferentes estudos integrados e coordenados por um antropólogo, a partir daquela publicação, denominado de antropólogo-coordenador, conforme também determina a Constituição Federal. É facultativa a presença de outros antropólogos, que serão caracterizados como “colaboradores”, de modo que não há qualquer exigência constitucional neste sentido, embora seja prática complementar da FUNAI em muitos casos.

Deste estudo resultará, conforme as prerrogativas constitucionais, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de uma determinada Terra Indígena. Este é um trabalho extenso e complexo (i.e., circunstanciado), elaborado pelo antropólogo-coordenador a partir dos subsídios produzidos pelo Grupo Técnico em conjunto e com a participação do grupo indígena em questão, conforme as prerrogativas constitucionais. Também são fundamentais os estudos de campo realizados por ele, como aqueles de gabinete, o que inclui uma conscienciosa revisão crítica de fontes históricas e documentais, tanto quanto de informações antropológicas apuradas diretamente ou em trabalhos disponíveis sobre o grupo em questão. Uma vez tecnicamente aprovado, o Relatório terá seu resumo publicado no Diário Oficial da União e também dos estados envolvidos. Conforme as disposições legais no Decreto 1775/96, as partes que por ventura se vejam afetadas poderão apresenta r sua contestação ao órgão indigenista. O documento original será também colocado à disposição daqueles que pretenderem contestá-lo.

Considerando que o ocupante que possua títulos ou qualquer outra forma de comprovação documental de sua ocupação poderá, prontamente, apresentá-los ao órgão federal, lhes são disponibilizados para fazê-lo, desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação do citado resumo no Diário Oficial da União. Isto, em teoria, comprovará que tais ocupações foram feitas de boa-fé.E, uma vez constatada a boa-fé das ocupações, as determinações constitucionais serão aplicadas, tais quais a indenização por suas benfeitorias e, para os pequenos agricultores, a prioridade no reassentamento em outros locais, se este for seu desejo.

À Luz da Constituição: Nada há de criminoso ou secreto neste processo. Ele transcorre no mesmo espaço de circunspecção e cautela requerido por trâmites científicos, ainda mais quando se lida com matérias delicadas, como fraudes com vistas a expropriações territoriais, semi-escravidão, esbulho de recursos e gentes. Em muitos casos, a rigorosa pesquisa documental demonstra o vício de grande parte de títulos definitivos incidentes sobre Terras Indígenas, quando analisados em sua genealogia primária. Mas isto é não mais do que um agravante, porque a orientação primeira de todo trabalho de delimitação é a correta aplicação da Constituição Federal e, como dissemos, dos direitos imprescritíveis dos índios às terras que diferencialmente ocupam, segundo a compreensão do texto constitucional. Ou seja, tratam-se não apenas de “lotes” de terra, mas de espaços complexos, compostos por atributos materiais e imateriais; compreendendo as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, de acordo com o Parágrafo 1° do Artigo 231 da Constituição Federal.

Sobretudo, um Relatório Circunstanciado demonstra, através de documentos e estudos científicos, os nexos fundamentais entre um povo indígena e a terra que ocupa, entre suas estratégias tradicionais de subsistência e, mais que isso, de “existência”, e o ambiente que o circunda, entre sua história e a concepção de espaço que adota. Um espaço que é, neste sentido, insubstituível por outro qualquer, ainda que, por ventura, de igual metragem. Tal é a ordem singular entre um povo indígena e seu “território”, conforme a definição constitucional.

Não há fraude ou invenção nesse processo sério e detalhadamente disciplinado pela Constituição Federal. E tampouco haveria espaço para isso, se consideramos a multiplicidade de profissionais das mais variadas áreas e instituições envolvidos. Trata-se, portanto, de um instrumento valoroso de cidadania, expressão jurídica de direitos e conquistas sociais que tanto tardaram a acontecer no nosso país. Um país que, lembramos, é também de “índios”, conforme sua natureza pluriétnica, devidamente reconhecida pela Constituição cidadã de 1988.

Vulnerabilidade: As populações indígenas representam 0,4 % da população do país, segundo os dados apurados pelo IBGE, em 2010. Cerca de 60% da população indígena está localizada dentro dos domínios da Amazônia Legal. Estas populações apresentam uma rica multiplicidade étnico-linguística e cultural, consistindo em cerca de 220 povos, falantes de cerca de 180 línguas diferentes. São línguas, cosmologias e modos de vida, compondo diferencialmente um patrimônio humano milenar de imensa complexidade e riqueza, normalmente desconhecido do público em geral.

Lamentavelmente, o conjunto formado por esta rica diversidade humana constitui o segmento mais vulnerável da população brasileira. Os grupos indígenas sustentam índices de desigualdade de desfavorável magnitude quando comparados aos segmentos mais desfavorecidos da população. Neste âmbito, são surpreendentes os altos índices nacionais de mortalidade de crianças indígenas, especialmente se consideramos que esta situação se mantém em regiões como a Sudeste e Sul do país, paradoxalmente, aquelas que formalmente apresentam o maior índice de desenvolvimento socioeconômico. É na garantia de um território para seu usufruto exclusivo, livre de práticas contumazes de expropriação e aliciamento, que está uma das chaves mais importantes para uma possível reversão dessa situação.

Da Perversa Metamorfose: Não é possível, por força retórica de uma lógica entortada, querer transformar esbulho, turbação e, sobretudo, expropriação pregressa ou atual em uma espécie de tradicionalidade aplicada às avessas em relação ao uso que lhe empresta a Constituição, como o pretendem os seculares métodos de grilagem vigentes nesse país, com ou sem conivência de agentes governamentais. E eis que neste ponto se desvenda a verdadeira metamorfose perversa que assola as “terras produtivas” da “gente que trabalha”, ponto de partida de nossas reflexões: os interesses privados de um pequeno grupo de latifundiários rurais e supostos benefícios econômicos, que não revertem diretamente ao bem-estar da população brasileira, ganham, subrepticiamente, ares de permanência, imprescindibilidade e imemorialidade. E este é tratado como o único caminho possível e indiscutível para a nação.

A Constituição Federal garantiu aos habitantes originários desta terra, tardiamente chamada Brasil, seus direitos também originários. Isto por razões de ordem histórica e antropológica, mas também em nome do devido resguardo da cidadania de todos os seus habitantes. O reparo de um genocídio continuado e reconhecido, como também a garantia de uma nação plural. Por isso não há o menor cabimento na suposta ideia de que o Estado não deve mais demarcar as terras indígenas, calcada de forma totalmente arbitrária e ditatorial sobre se ter chegado ao “fim” desse processo pura e simplesmente, sem que seus erros (inumeráveis) do passado tenham de ser corrigidos.

É importante também trazer à luz para o público em geral, que não há necessidade de demarcação formal para que o direito originário dos povos indígenas sobre seu território seja efetivamente respeitado, conforme as disposições do Art. 25 da lei 6.001 de 1973, conhecida como o “Estatuto do Índio”. As atribuições de um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação são, justamente,reconhecer e delimitar, e não propriamente estabelecer os direitos às suas terras. Estas são, nas palavras da lei, inalienáveis, indisponíveise imprescritíveis, conforme o Parágrafo 4° do Art. 231 da atual Constituição Federal. Ou seja, não podem ser transferidas para outrem, usufruídas por ninguém além do próprio grupo e nem passíveis de serem extintas, por qualquer decisão, Decreto ou Portaria. Por esta mesma razão, qualquer ocupação ou empreendimento que tenha lugar nestes mesmos espaços é, por determinação constitucional, nulo e extint o, de pleno direito, conforme os parágrafos 4° e 6°, do artigo 231 da nossa atual Constituição. O mesmo se aplica a atos deexploração de recursos de solo, rios e lagos, que têm efeito jurídico nulo e sobre os quais os índios têm direito de usufruto exclusivo.

Portanto, nem “índios” e nem uma “terra” ou um “espaço” indígenas, são inaugurados a partir de um processo formal de regularização. Ao contrário, sua existência antecede a este processo, que dela decorre. Quando, finalmente, uma Portaria no Diário Oficial da União determina a constituição de um Grupo Técnico que produzirá um determinado Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação e que trata de aspectos múltiplos e interdisciplinares da relação entre um povo e o que ele entende como seu espaço, isto acontece porque a demanda de regularização é já, de fato e direito, legítima.

Neste sentido, os processos de regularização fundiária indígena têm sofrido uma desfiguração muito semelhante àquela que vem reconhecidamente acontecendo aos processos de licenciamento ambiental no país. Assim, ações e decisões de políticas públicas que primam pela cidadania e reconhecimento de direitos sociais duramente conquistados ao longo do tempo, aqueles que vigem sobre a “vida” e sobre as “pessoas”, vão sendo, ao mesmo tempo, soterrados por uma idéia empresarial da nação, que toma o desenvolvimento econômico de forma unilateral e completamente apartada do desenvolvimento humano. Abafando a existência ou a razão daquelas “vozes” de direito, são normalmente evocados ganhos e perdas econômicos, de “produtividade” e outros indicadores que, como sabemos, podem estar em completo desacordo com a realidade da vida das pessoas nas cidades e no campo.

E, no entanto, a prática nos tem mostrado que, mesmo quando reconhecidos os incontestáveis efeitos negativos de determinados empreendimentos, como por exemplo, os hidrelétricos, eles têm sido, sempre, executados. Diante de outras possíveis matrizes energéticas (ou de reaproveitamentos de sistemas preexistentes), e mesmo não cumpridas suas condições jurídicas de estabelecimento e funcionamento, como a consulta pública às populações atingidas, previstas tanto na legislação vigente quanto em pactos internacionais assinados pelo Estado brasileiro, a ênfase recai sobre as vantagens formalmente econômicas de tal ou qual projeto, antes do que sobre seu impacto, muitas vezes devastador, na vida das pessoas.

Trevas ou Luzes? Nada, nem mesmo a ideologia empresarial, pode ser sobreposta à Constituição Federal do país ou justificar sua brutal violação. Seu fim primordial é garantir fundamentalmente o bem-estar de sua população como um todo, o que inclui todos os segmentos diferenciados do país e as gerações vindouras. Mais do que notícias alarmantes e discursos que visam o bem privado, cobramos todos os setores envolvidos, incluindo os meios de comunicação brasileiros, que tornem acessíveis à população, antes de mais nada, as luzes da Constituição Federal do nosso país.

De que tratam e para quem servem os tais caminhos unilaterais de “progresso” e “desenvolvimento” de uma nação, se eles não são acompanhados, passo a passo, por seu desenvolvimento humano e do respeito à sua Constituição?

Neste reduto, o que há são apenas trevas.

Adriana Romano Athila, antropóloga, Santa Catarina
Adriana Strappazzon, antropóloga, Santa Catarina
Ana Beatriz de Miranda Vasconcelos e Almeida, enfermeira, Mato Grosso
Ana Claudia Cruz da Silva, antropóloga, Rio de Janeiro
Ana Maria R. Gomes, antropóloga, Minas Gerais
Ana Maria Ramalho Ortigão Farias, médica, Rio de Janeiro
Ana Paula Lima Rodgers, antropóloga, Rio de Janeiro
André Demarchi, antropólogo, Tocantins
Andreia Fanzeres, jornalista, Mato Grosso
Angela Sacchi, antropóloga, Distrito Federal
Antonio Carlos Mendonça Viana, estudante de antropologia, Rio de Janeiro
Antonio Carlos de Souza Lima, antropólogo, Rio de Janeiro
Antonio Hilario Aguilera Urquiza, antropólogo, Mato Grosso do Sul
Bárbara Maisonnave Arisi, antropóloga, Paraná
Bárbara Villa Verde Revelles Pereira, jornalista, Paraná
Beatriz Carretta Corrêa da Silva, linguista, Distrito Federal
Betty Mindlin, antro póloga, São Paulo
Bruno Emílio Fadel Daschieri, antropólogo, Rio de Janeiro
Bruno Simionato Castro, engenheiro florestal, Mato Grosso
Cândido Eugênio Domingues de Souza, Historiador, Bahia
Carlos Eduardo Rebello de Mendonça, sociólogo, Rio de Janeiro
Carmen Junqueira, antropóloga, São Paulo
Carmen Rial, antropóloga, Santa Catarina
Carolina Souza Pedreira, antropóloga, Distrito Federal
Cassio Brancaleone, sociólogo, Rio Grande do Sul
Cecilia Malvezzi, médica, São Paulo.
Celia Leticia Gouvêa Collet, antropóloga, Acre
Cinthia Creatini da Rocha, antropóloga, Santa Catarina
Clarissa Rocha de Melo, antropóloga, Santa Catarina
Daniel Bitter, antropólogo, Rio de Janeiro
Daniel Garibotti, produtor de documentários, Espanha
Daniel de Oliveira Santos, farmacêutico, Mato Grosso
David Rodgers, antropólogo, Rio de Janeiro
Denise Cavalcante Gomes, arqueóloga, Rio de Janeiro
Die go Giuseppe Pelizzari, indigenista, Paraná
Diego Madi Dias, antropólogo, Rio de Janeiro
Diogo de Oliveira, antropólogo, Santa Catarina
Edison Rodrigues de Souza, antropólogo, Bahia
Edviges Ioris, antropóloga, Santa Catarina
Eduardo Pires Rosse, antropólogo, França
Eliana de Barros Monteiro, antropóloga, Pernambuco
Eliana E. Diehl, Farmacêutica (Saúde Indígena), Santa Catarina
Emanuel Oliveira Braga, antropólogo, Paraíba
Emilia Juliana Ferreira, antropóloga, Distrito Federal
Esther Jean Langdon, antropóloga, Santa Catarina
Eunice Dias de Paula, pedagoga e linguista, Mato Grosso
Fabiane Vinente dos Santos, antropóloga, Amazonas
Fábio Christian de Carvalho, administrador, Mato Grosso
Fanny Longa Romero, antropóloga, Rio Grande do Sul
Felipe Agostini Cerqueira, antropólogo, Rio de Janeiro
Felipe Bruno Martins Fernandes, antropólogo, Santa Catarina
Fernanda Ratto, psicóloga, Rio de Janeiro
Flávio Wiik, antropólogo, Paraná
Flora Monteiro Lucas, antropóloga, Rio de Janeiro
Georgia da Silva, antropóloga, Distrito Federal
Gilberto Azanha, antropólogo, Distrito Federal
Giovana Acácia Tempesta, antropóloga, Distrito Federal
Hein van der Voort, Linguista, Pará
Helena Tenderini, antropóloga, Pernambuco
Hélio Barbin Junior, médico e antropólogo, Santa Catarina
Heloisa Barbati, estudante de Antropologia, Itália
Henry Luydy Abraham Fernandes, antropólogo, Bahia.
Henyo Trindade Barretto Filho, antropólogo, Distrito Federal
Jacira Bulhões, antropóloga, Mato Grosso.
Jackson Fernando Rêgo Matos, Engenheiro Florestal, Pará
Jeremy Paul Jean Loup Deturche, antropólogo, Santa Catarina
João Batista de Almeida Costa, antropólogo, Minas Gerais
José Andrade, antropólogo, Pará
João Daniel Dorneles Ramos, sociólogo, Rio Grande do Sul
José Ronaldo Mendon ça Fassheber, antropólogo, Paraná
Juracilda Veiga, antropóloga, São Paulo
Jurema Machado de Andrade Souza, antropóloga, Bahia
Juliana de Almeida, antropóloga, Amazonas
Katia Maria Ratto, médica, Rio de Janeiro
Larissa Menendez, antropóloga, Mato Grosso
Laura Graziela F. F. Gomes, antropóloga, Rio de Janeiro
Lea Tomass, antropóloga, Distrito Federal
Léia de Jesus Silva, linguista, Goiás
Leonardo Pires Rosse, etnomusicólogo, Minas Gerais
Leonardo Santos Leitão, sociólogo, Santa Catarina
Lisiane Koller Lecznieski, antropóloga, Santa Catarina
Lucia Helena Rangel, antropóloga, São Paulo
Lucia Hussak van Velthem, antropóloga, Distrito Federal
Luciana Gonçalves de Carvalho, antropóloga, Pará
Lucila de Jesus Mello Gonçalves, psicanalista, São Paulo
Maria Audirene Cordeiro, linguista, Amazonas
Maria Christina Barra, antropóloga, Minas Gerais
Mariana Corrêa dos Santos, cientista social, Rio de Janeiro
Mariana Cristina Galante Nogueira, servidora pública federal, São Paulo
Maria Dorothea Post Darella, antropóloga, Santa Catarina
Maria Lúcia Haygert, antropóloga, Santa Catarina
Maria Rosário Carvalho, antropóloga, Bahia
Marina Monteiro, antropóloga, Santa Catarina
Marina Pereira Novo, antropóloga, São Paulo
Márcia Leila de Castro Pereira, antropóloga, Distrito Federal
Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque, antropólogo, Rio de Janeiro
Marcos de Almeida Matos, antropólogo, Acre
Marcus Vinícius Carvalho Garcia, antropólogo, Distrito Federal
Maria Fernanda Salvadori Pereira, antropóloga, Santa Catarina
Marlene Lúcia Siebert Sapelli, Educadora, Paraná.
Marta Caravantes, jornalista, Espanha
Martinho Tota Filho Rocha de Araújo, antropólogo, Rio de Janeiro
Matteo Raschietti, filósofo, São Paulo
Maurício Soares Leite, nutricionista (saúde indíg ena), Santa Catarina
Mauro Silveira de Castro, farmacêutico, Rio Grande do Sul
Miguel Aparicio, antropólogo, Amazonas
Mirella Alves de Brito, antropóloga, Santa Catarina
Nádia Heusi Silveira, antropóloga, Santa Catarina
Odair Giraldin, antropólogo, Tocantins
Paulo Humberto Porto Borges, Educador, Paraná
Peter M.I.B. Beysen, antropólogo, Rio de Janeiro.
Philippe Hanna, antropólogo, Holanda
Raquel Mombelli, antropóloga, Santa Catarina
Renan Reis de Souza, antropólogo, Rio de Janeiro
Ricardo Ventura Santos, antropólogo, Rio de Janeiro
Rinaldo Sérgio Vieira Arruda, antropólogo, São Paulo
Robson Rodrigues, arqueólogo, São Paulo
Rodrigo Marcelino, biólogo, Mato Grosso
Rodrigo Toniol, antropólogo, Rio Grande do Sul
Roberto Salviani, antropólogo, Rio de Janeiro
Robin M. Wright, antropólogo, São Paulo.
Rosângela Pereira de Tugny, etnomusicóloga, Minas Gerais
Senilde Alcantara Guanaes, antropóloga, Paraná
Sergio Baptista da Silva, antropólogo, Rio Grande do Sul
Silvana Jesus do Nascimento, antropóloga, Mato Grosso do Sul
Silvana Sobreira de Matos Patriota, antropóloga, Pernambuco
Sônia Weidner Maluf, antropóloga, Santa Catarina
Soren Hvalkof, antropólogo, Dinamarca
Suzana Castanheiro Uliano, antropóloga, Santa Catarina
Tatiana Dassi, antropóloga, Santa Catarina
Thiago Mota Cardoso, antropólogo, Santa Catarina
Tiago Moreira dos Santos, antropólogo, São Paulo
Waleska Aureliano, antropóloga, Rio de Janeiro
Wellington de Jesus Bomfim, antropólogo, Sergipe
Vanessa Alvarenga Caldeira, antropóloga, São Paulo
Vaneska Taciana Vitti, antropóloga, São Paulo
Victor Amaral Costa, antropólogo, São Paulo
Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos/ São Paulo
Comitê Metropolitano Xingu Vivo

Fonte:  Agência Repórter Brasil