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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

STF garante direitos indígenas

24/10/2013 - STF garante direitos constitucionais indígenas
- por Felipe Milanez (*)
- em seu blog, no site da Carta Capital

Decisão sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol não vincula condicionantes a outros casos de disputas territoriais.

Luis Roberto Barroso, relator do processo, profere seu voto enquanto é observado por indígenas

No julgamento dos embargos da Petição (PET) 3388, na quarta-feira, 24, em Brasília, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu os direitos constitucionais dos povos indígenas restringindo a aplicação da decisão, que contém 19 "condicionantes", apenas para o caso ao que se refere o julgamento: a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Os ministros foram precisos em afirmar: a decisão não tem efeito vinculante, não se estendendo a outros litígios que envolvam terras indígenas.

Qualquer extensão da decisão deste caso para um outro caso é mera "argumentação", segundo disse o relator, ministro Roberto Barroso [foto].

De forma clara, assim ele definiu a decisão do acórdão que estava em sede de embargos: "decisão atípica e não é um bom padrão a ser seguido".

As condicionantes teriam sido escritas para garantir a aplicação daquela decisão de 2009 na área, para ser efetiva, com a retirada dos invasores e a proteção do direito territorial dos povos indígenas. Por isso, de forma "atípica", a Corte definiu certas condições para o caso.

Portanto, segundo Barroso: "Uma outra demarcação pode levar em conta outras circunstâncias. A solução não pode ser a mesma para demarcações de áreas com outras características. As condicionantes estabelecidas para Raposa Serra do Sol valem apenas para este caso."

As "19 condicionantes" haviam sido oferecidas, na época, pelo falecido juiz Menezes Direito [foto], e criaram conflitos desde que o acórdão que protegeu a demarcação da Raposa Serra do Sol foi publicado.

Ruralistas, assim como o advogado da União, Luis Inácio Adams [foto abaixo], representando os interesses do governo federal, passaram a fazer uma interpretação extensiva desse argumento, tentando impedir novas demarcações e autorizar empreendimentos sem consulta aos índios.

Na visão dessas partes, não caberia demarcar nenhuma terra onde os índios não estivessem em 1988, não poderia haver nenhuma "ampliação", e os indígenas não teriam direito de serem consultados sobre projetos de "interesse nacional" (um termo complicado de ser definido) que recaiam sobre seus territórios tradicionais.

Portanto, Adams editou uma Portaria, a 303, e os ruralistas usaram os argumentos em mandados de segurança, como se a decisão da Raposa Serra do Sol funcionasse como uma súmula vinculante.

O alvo de Menezes Direito, cuja opinião serviu ao lobby ruralista, não era especificamente a terra indígena em Roraima mas, longe de lá, as terras guaranis no Mato Grosso do Sul e no sul do País, e os projetos desenvolvimentistas do governo federal.

Mesmo os casos de demarcações nos quais houvesse nulidade absoluta do processo não poderiam ser revistos.

A tentativa de Menezes Direito de produzir uma legislação por meio de uma decisão jurídica foi rechaçada pelos ministros do STF.

A decisão do STF sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas, explicou o ministro Barroso.

E, se não vincula o judiciário, também não deve vincular o Executivo na administração pública. Nesse sentido, a Portaria 303 da AGU, assinada por Adams em 2012 e que estava suspensa, perdeu sua justificativa maior.

A portaria era um dos principais alvos do movimento indígena, pois reescrevia as 19 condicionantes de Menezes Direito para os casos gerais.

Produzia, assim, uma interpretação da Constituição Federal que inovaria a ordem legislativa, o que perpassa os poderes dos advogados da União. Em meio a protestos, a medida foi suspensa.

STF e o acirramento dos conflitos
As argumentações sobre a aplicação da lei e o funcionamento do sistema jurídico podem sempre ser múltiplas e contraditórias.

É o que tem ocorrido nas decisões da Corte Suprema: decisões de Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa geralmente são antagônicas às de Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello no que tange os direitos indígenas.

Quando cai no colo de um ou de outro um processo, cada um decide do jeito que quer.

Lewandowski [foto] já havia decidido pela não aplicação
das condicionantes, enquanto Gilmar Mendes encontrou nelas um subterfúgio para suspender a demarcação da Terra Indígena Arroio-Korá, dos Kaiowá e Guarani, no Mato Grosso do Sul. 

Infelizmente, o STF, que deveria ser uma instituição pacificadora e garantidora do Direito, é um dos grandes responsáveis pelo acirramento de conflitos no campo no País e pela concentração fundiária.

A Corte, órgão máximo do Judiciário, é apontada pelo governo como responsável por travar as demarcações.

Apesar do julgamento ter sido favorável aos povos indígenas, os adversários dos índios passaram a contar na imprensa uma versão diferente, de que quem perdeu teria ganhado. Algo como: não ganhou, mas levou.

É uma retórica confusa, mas que ficou patente na declaração de Adams logo após o julgamento:

"[A decisão] reforça a portaria da AGU. O que a portaria é, é uma orientação técnica do advogado-geral à área jurídica dizendo que, na interpretação da norma constitucional, na aplicação da norma constitucional, nós temos que observar as condicionantes."

Acontece que a decisão do STF é justamente o contrário do argumento utilizado pelo advogado. Uma eventual tentativa de publicar a Portaria não será resguardada pelo STF, a priori, mas apenas opinião externada pelo órgão advocatício, e que deverá enfrentar opiniões contrárias e manifestações.

Em aberto
O STF deixou em aberto grandes questões, no entanto, que estão em debate no Brasil.

Tendo sido refutada a restrição das demarcações, resta o problema da "consulta prévia" aos povos indígenas, direito adquirido com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Para Raul do Valle, advogado do Instituto Socioambiental, o problema é o seguinte

"A decisão de 2009 é extremamente ambígua, dizendo que a instalação de bases militares, bem como suas intervenções, não precisam de consulta prévia para ocorrerem, no que o ministro 
Barroso concordou.

Mas ela estende essa mesma regra à "expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas, de cunho estratégico", sendo que a definição de "estratégico" caberia ao Conselho de Defesa Nacional.

Claramente uma extrapolação e uma afronta ao estado de Direito, na medida em que permite que decisões totalmente discricionárias possam impedir o exercício de um direito 
fundamental.

Se esse conselho decidir que é estratégico ao país vender soja para China com o menor preço possível estaria o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) autorizado a cortar uma pequena terra Kaingang no Paraná ao meio, sem consulta, porque seu desvio encareceria a saca exportada por Paranaguá em alguns centavos?"

Para Valle [foto acima], porém, é importante frisar que o voto de Barroso foi claramente pela negativa dessa hipótese, "dizendo que nem tudo pode ser considerado 'estratégico'".

Até o lado espiritual dos povos indígenas foi debatido pelos ministros em suas togas.

Há igrejas na Raposa Serra do Sol, protestantes e católicas, e a dúvida era se elas deveriam serem expulsas após a demarcação.

Sobre esse ponto, Barroso reafirmou o princípio constitucional da liberdade religiosa, facultando aos indígenas o poder da escolha se querem ou não a permanência das igrejas, templos, etc. No entanto, fez questão de frisar a "proteção aos locais de culto".

Nesse sentido, o trabalho das agências missionárias fundamentalistas, que praticam o proselitismo, segue sendo proibido nas terras indígenas, conforme portaria da Funai que expulsou missões internacionais que tentam evangelizar povos e traduzir a bíblia.

Essas atividades continuam sendo consideradas contrárias a lei. Isso não significa que os povos indígenas não possam praticar diferentes religiões que as suas tradicionais.

Mas invadir terras indígenas para converter os povos que lá habitam permanece sendo considerado uma afronta à proteção aos locais de culto.

As almas indígenas, conforme publiquei aqui no blog, em seus locais de culto que são os territórios tradicionais, devem continuar protegidas pelo Estado da sanha fundamentalista.

No julgamento, após terem sido tomadas as decisões centrais, os ministros que aparentemente teriam opinião diversa passaram a oferecer um debate raso, permeado de preconceito e discriminação aos povos indígenas.

[Gilmar] Mendes, [à direita, com Marco Aurélio Mello] que possui fazendas no Mato Grosso, chegou a citar uma reportagem preconceituosa da revista Veja, [VEJA - Edição 2091 - 17 de dezembro de 2008] como é a tônica da publicação, contrária aos índios da Raposa Serra do Sol.

Mendes inclusive deixou transparecer uma expressão de raiva no momento em que pronunciou "tribos de índios vivendo nos lixões" [ao lado].

Ao que Marco Aurélio de Mello deu seguimento ao bate-papo, como uma conversa de compadres na varanda do curral, revirando fantasmas da Ditadura e criticando os índios "aculturados" (um conceito que carrega significados discriminatórios).

Eles haviam aproveitado o gancho de Teori Zavascki [foto].

Segundo o advogado Raul Valle, Zavascki "queria, por alguma razão, dizer que os efeitos dos julgados se
estendiam a outros casos, mas não teve coragem".

Após uma grande confusão na sua argumentação, Zavascki resumiu tudo dizendo que o futuro é imprevisível e que tudo pode mudar um dia. Sob esse alerta, o relator Barroso completou: pode cair um meteorito aqui amanhã.

A onda anti-indígena em curso no Brasil hoje não acabou com a decisão do STF.

Especialmente pelos argumentos que aparentemente tornariam a decisão ambígua.

O bate papo dos ministros deu indicativos de que o STF empurrou para o Legislativo e o Executivo a pressão contrária aos índios.

E o Executivo tenta argumentar que vai se "inspirar" na decisão para agir de acordo com seus interesses e editar, novamente, normas que restringem direitos.

No entanto, por mais que se mire os índios como adversários de seus interesses, no caso do governo e ruralistas, em um aspecto o STF foi claro, sem nenhuma ambiguidade: vai ser preciso respeitar a Constituição Federal de 1988.

Caso ela seja mudada, tudo muda. Mas, hoje, o que vale é a Constituição e o sistema jurídico de hierarquia das normas e a separação dos poderes.

A Casa Grande, representada pelos grandes detentores de terras que não admitem interferências em seus negócios, vai ter de aceitar. 

Assim como o governo, submetido a um controle constitucional. Essa é a regra do jogo do "contrato social" que constitui o Brasil.

Conforme alerta o Conselho Indigenista Missionário, os desafios 
enfrentados pelos povos indígenas não foram resolvidos:

"O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ressalta, todavia, que o encerramento do julgamento e a publicação do acórdão da Petição 3388 não servirão para cessar as problemáticas no tocante a questão das terras tradicionais dos povos indígenas.

É de se presumir que as forças político econômicas anti-indígenas continuem o ataque violento que vem desferindo contra os povos e seus direitos constitucionalmente estabelecidos."

Caso caia um meteorito em Brasília, cuja possibilidade alertou o ministro Barroso, muita coisa pode acontecer.

No entanto, mesmo assim, as 19 condicionantes formuladas por Menezes Direito não serão aplicadas fora do caso da Raposa Serra do Sol.

(*) Felipe Milanez, pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Felipe Milanez escreve sobre meio ambiente, conflitos sociais e questões indígenas. É também pesquisador visitante na Universidade de Manchester e integra o European Network of Political Ecology (Entitle). 

Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/raposa-serra-do-sol-stf-garante-direitos-constitucionais-indigenas-6541.html

terça-feira, 18 de junho de 2013

O renascimento indigena sob fogo cruzado



por Mario Osava, da IPS

Rio de Janeiro, Brasil, 17/6/2013 – Os tratores e as máquinas com as quais fazendeiros e outros grandes agricultores bloquearam estradas no dia 14, em mais de dez pontos de norte a sul do Brasil, destacaram o poder econômico do setor que se levantou contra a demarcação de terras indígenas. A presença de senadores e deputados nos protestos indica o crescente poder político dos ruralistas, que frequentemente impõem derrotas parlamentares ao governo que, nominalmente, desfruta de ampla maioria no Congresso.

A “paralisação nacional” de atividades, convocada pela Frente Parlamentar Agropecuária, mobilizou uns poucos milhares de pessoas em alguns lugares e centenas em outros, mas é apenas parte de uma ofensiva dos fazendeiros contra a criação de novos territórios indígenas ou a ampliação dos existentes. Modificar a Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas o “usufruto exclusivo” de terras que ocupavam tradicionalmente, em uma extensão suficiente para sua “reprodução física e cultural”, é o maior objetivo dos ruralistas, que em 2012 já conseguiram revisar o Código Florestal em benefício próprio e em detrimento do meio ambiente.

Outras medidas reclamadas, como participação dos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário e de centros de pesquisa agrícola no processo de demarcação, objetivam conter o reconhecimento de novas reservas indígenas. Compõem “um retrocesso completo”, segundo Marcos Terena, funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão governamental responsável pela política para o setor, e veterano líder de lutas pela afirmação e autonomia dos povos originários.

Para os ruralistas se trata de “uma disputa patrimonial”, desejam expandir o grande negócio agropecuário como sempre, tomando terras públicas, em áreas não ocupadas ou atribuídas à conservação e a povos tradicionais, afirmou Marcio Santilli, especialista do não governamental Instituto Socioambiental e ex-presidente da Funai. Por isso buscam definir como simples conflito agrário o caso de terras identificadas como indígenas que incluem áreas privadas, que são legalmente inadmissíveis e condenadas à evacuação.

Em numerosas ocasiões são posses ilegais, mas no Mato Grosso do Sul muitos fazendeiros têm títulos de propriedade válidos, reconhecidos por governos anteriores. Ali, grande quantidade dos conflitos se prolonga há décadas e se tornaram sangrentos. Esse Estado pecuário e grande produtor de soja concentrou 57% dos 560 assassinatos de indígenas ocorridos entre 2003 e 2012 no Brasil, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Nem todos os homicídios se devem a disputas pela terra, mas a matança reflete a absoluta assimetria no confronto entre ruralistas e indígenas.

As mortes violentas não impediram uma explosão demográfica inimaginável há três ou quatro décadas, quando a população indígena parecia ameaçada de extinção. Nos anos 1980, estimava-se que no Brasil só restassem pouco mais de 200 mil integrantes dos povos originários. Contudo, no censo de 2010, 896.917 pessoas se declararam indígenas, o triplo de 1991, quando essa categoria passou a ser incluída entre as opções étnicas para autoidentificação das pessoas entrevistadas pelos recenseadores.

Não foi apenas a natalidade que triplicou a população. O reconhecimento na Constituição de 1988 dos direitos das minorias étnicas estimulou um renascimento indígena, que fez recuperar a identidade, mesmo mos que vivem fora de suas aldeias originais. Dos autoidentificados como indígenas em 2010, 36% vivem em cidades. Há “aldeias urbanas” em várias delas, como Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.

A ressurreição alimenta avanços na educação indígena, às vezes com o resgate da língua originária, nas raízes culturais e na adoção de novas tecnologias. Em cerca de dez anos, “um fator novo” determinará o desenvolvimento dos povos indígenas e suas relações com a sociedade envolvente, pontuou Terena. “São os doutores indígenas”, que estão se formando nas universidades, “sem perder sua cultura própria”, especialmente no sul do Brasil, destacou.

Este ciclo representou uma virada na história brasileira de etnocídio desde a chegada dos colonizadores em 1500, quando, se estima, cinco milhões de indígenas habitavam o atual território nacional. Agora, no entanto, enfrentam novas ameaças. Além dos ruralistas, que buscam fechar as instituições que alimentaram o renascimento indígena, grandes projetos de infraestrutura na Amazônia tendem a alterar as condições tradicionais em que vivem vários povos originários.

A construção de dezenas de hidrelétricas, planejadas para os rios da bacia amazônica nos próximos anos, está intensificando as lutas entre indígenas, construtoras e governo. Às repetidas invasões indígenas na hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, um grande afluente do Amazonas, no Estado do Pará, corresponde um recrudescimento da repressão policial. Esse clima de exasperação culminou com a morte de Oziel Gabriel no dia 30 de maio, aparentemente causada por um disparo da polícia no município de Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul.

A tragédia aconteceu durante uma operação policial, ordenada pela justiça, para retirar centenas de indígenas que haviam ocupado uma fazenda, identificada como parte do território tradicional dos terenas há 13 anos. Contraditórias decisões judiciais e dificuldades para indenizar o proprietário vão dilatando o processo. A correlação de forças e a prioridade que o governo dá ao desenvolvimento econômico são totalmente adversas para os indígenas.

Entretanto, eles contam com a Constituição, convênios internacionais e uma opinião pública internacional que defende a diversidade humana. Com a consciência e os valores hoje consolidados, “a sociedade brasileira não permitiria retrocessos nos direitos reconhecidos na Constituição”, declarou Paulo Maldos, secretário nacional de Articulação Social do governo federal, cuja função já o levou a perigosas negociações com grupos indígenas rebelados.

A repercussão negativa desestimula atos antiaborígines. Cada indígena assassinado, como Gabriel, se converte em um mártir que realça a resistência de seus povos. Por isso é possível que essa morte neutralize, ou pelo menos modere por algum tempo, a ofensiva ruralista contra territórios ancestrais. Segundo a Funai, há no país mais de 450 territórios indígenas em processo de demarcação, que somam mais de cem mil hectares, enquanto outra centena de territórios está em fase de identificação.

Fonte:Envolverde/IPS

 http://envolverde.com.br/ambiente/o-renascimento-indigena-brasileiro-sob-fogo-cruzado/

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

RJ: líder do MST assassinado em Campos com mais de 10 tiros na cabeça

'É questão de honra Cambahyba virar assentamento', dizia Cícero Guedes, executado na última sexta em Campos dos Goytacazes



Vivian Virissimo, no Brasil de Fato*

O trabalhador rural assentado Cícero Guedes [acima] não conseguia conter as lágrimas quando recordava da mística que homenageou militantes incinerados nos fornos da Usina Cambahyba pela ditadura civil-militar brasileira nos anos 1970 e 1980. Era angustiante para ele imaginar que naquele lugar pelo menos dez militantes torturados e mortos no DOI e na Casa da Morte haviam sido incinerados por lutarem por justiça social. Décadas depois, no mesmo lugar, a liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Cícero Guedes, tomba pelo sonho de ampliar a reforma agrária no país.

“A mística foi muito forte, ninguém merece ser queimado. Muita gente faz atrocidade neste mundo e não é queimado. É questão de honra para o movimento esse latifúndio virar assentamento. A gente se emociona porque somos seres humanos e sabemos e sentimos na pele o companheiro que luta por justiça social”, disse, à época, Cícero, sobre o ato promovido em agosto do ano passado pelo MST e pela Articulação Estadual Memória, Verdade e Justiça na usina.

Coordenador do acampamento Luiz Maranhão, localizado no parque industrial da Usina Cambahyba, Cícero, de 49 anos, foi assassinado com mais de dez tiros na cabeça por pistoleiros na madrugada de sexta, dia 25, em Campos dos Goytacazes. Ele participou de uma reunião na noite anterior no acampamento e foi baleado em uma emboscada quando retornava de bicicleta para sua casa no assentamento Zumbi dos Palmares. Cícero fazia parte da Coordenação Estadual do MST no Rio de Janeiro.

“Pedimos e reivindicamos que investiguem e punam os responsáveis, que garantam a segurança para os familiares de Cícero que moram na região, além da imediata desapropriação da Cambahyba. Este é mais um crime do latifúndio de Campos dos Goytacazes, que envolve diretamente as questões da Cambahyba”, declarou Marina dos Santos, da coordenação estadual do MST.

“A gente está considerando um crime semelhante ao que aconteceu com Sebastião Lan, que foi assassinado nos anos 80 pelo latifúndio Campos Novos, na região de Cabo Frio (litoral do estado do Rio de Janeiro). Ele era presidente do sindicato dos trabalhadores rurais. Da mesma forma que Cícero, Sebastião era referência para o movimento e fazia o trabalho de organização dos trabalhadores”, acrescentou Marina.

A Polícia Civil emitiu um comunicado afirmando que está empenhada na investigação da morte da liderança. O órgão também informou que medidas cautelares estão sendo adotadas para esclarecer a autoria e a motivação do crime.

 

'Desafio é pra ser cumprido'
Cícero acompanhava todas as áreas que estavam na luta pela terra na região de Campos. Ele atuava nos diversos assentamentos e era responsável pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal.

Na ocupação de Cambahyba, ele planejou todo o processo de organização das famílias. Referência na produção agroecológica, Cícero também era organizador e entusiasta das Feiras da Reforma Agrária do MST que acontecem no Largo da Carioca, no centro do Rio, com a venda de verduras e frutas livres de agrotóxicos.

“Realizar mais feiras é um desafio e desafio é pra ser cumprido. Tudo pra nós é desafio, estamos acostumados com essa situação. Esse negócio de veneno é uma babaquice desses filhos da puta. O capitalismo é cruel e devasta tudo. Não tem esse negócio de remédio, é veneno mesmo e veneno mata”, dizia Cícero.

O alagoano Cícero vivia desde 2002 no Sítio Brava Gente no assentamento Zumbi dos Palmares. De Alagoas, trazia lembranças de uma vida sofrida, onde trabalhava em condições desumanas e até passava necessidade. Foi nos canaviais de Campos dos Goytacazes que Cícero, junto com a esposa Maria Luciene, iniciou suas atividades na cidade. Depois, como operário da construção civil, participou das obras da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). O sonho de ter sua própria terra para plantar se concretizou com a mobilização popular da primeira ocupação de terras na região, em 1996, da Usina São João, que deu origem ao maior assentamento do estado, o Zumbi dos Palmares.

Mesmo assentado, com seu lote garantido, Cícero nunca perdeu de vista a necessidade de fortalecer o movimento e ampliar a reforma agrário no Brasil. Ele coordenava o acampamento Cambahyba que pressionava o governo federal a destinar para fins de reforma agrária as terras da usina que são consideradas improdutivas pelo Incra há 14 anos. Em dezembro, o Incra sinalizou que retomaria o processo de desapropriação para fins de reforma agrária, mais ainda não há nada concreto.

A usina Cambahyba é um complexo de sete fazendas que totaliza 3.500 hectares. A área pertencia ao já falecido Heli Ribeiro Gomes, ex-vice governador biônico do Rio de Janeiro (1967-1971), ligado à Tradição Família e Propriedade (TFP) e agora é controlada por seus herdeiros. De extrema-direita, Heli permitiu que a usina funcionasse como braço operacional das execuções, uma alternativa para eliminar os vestígios dos mortos pelo regime. Segundo o ex-delegado Claudio Guerra, no livro Memórias de uma Guerra Suja, a usina recebeu até benefícios dos militares pelos serviços prestados com acesso fácil a financiamentos.
*foto: MST

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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Ruralistas x Pedrinho



por Roberto Malvezzi (Gogó)*

Enquanto  isso,os ruralistas querem modificar o Código Florestal para derrubar mais florestas, avançar sobre as encostas, margens de rios, solos frágeis e demais áreas de risco.
110 300x159 Ruralistas x PedrinhoDilsóm saiu na sua roça e contou 407 mudas de aroeira nascendo no meio da caatinga. Voltou para casa, fez uma proteção para cada nova árvore e as cercou com cuidado para que as cabras e ovelhas não as comessem.
Pedrinho de Lalinha tomou a decisão de refazer toda uma área que derrubou, antes coberta por angicos. Foi em público, diante da comunidade e já começou seu trabalho para se justificar diante de seus irmãos e diante das sugestões da Campanha da Fraternidade desse ano.
Ambos são agricultores da caatinga, Município de Campo Alegre de Lourdes, sertão da Bahia. Precisam da caatinga em pé para alimentar seus bodes com sua forrageira natural, para cultivar suas caixas de abelha, para evitar a desertificação, para amenizar o calor, para facilitar as chuvas, tantos outros serviços prestados pela caatinga que eles conhecem e imaginam.
Não esperaram pelo tratado de Kyoto, por crédito carbono, nem por qualquer outra compensação econômica. São criativos, responsáveis, querem agir como cristãos, respeitando a natureza a partir da porta de suas casas e roças. Sabem que a caatinga em pé é uma benção, não um obstáculo.
Na Romaria da Terra e das Águas, em Bom Jesus da Lapa, na plenarinha de revitalização do São Francisco, um agricultor de Seabra, Chapada Diamantina, disse que tomou a iniciativa de recompor toda a mata ciliar de um riacho que corta sua propriedade. “É só cercar e deixar a mata crescer”, disse ele.
Ali também a companheirada da Cáritas de Januária contou sua experiência de revitalização de Rio dos Cochos. Uma série de iniciativas mais organizadas e mais coletivas, como barraginhas, contenção de margens, matas ciliares, atividades educativas, etc., vão devolvendo vida a um rio pequeno, afluente do São Francisco, mas decisivo para várias comunidades que dele dependem.
Enquanto isso, os ruralistas querem modificar o Código Florestal para derrubar mais florestas, avançar sobre as encostas, margens de rios, solos frágeis e demais áreas de risco. Qual desses grupos humanos você acha mais evoluído?

* Roberto Malvezzi (Gogó) é assessor da Comissão Pastoral da Terra.
** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.