22/05/2013 - por Matheus Machado (*) em seu blog BHAZ
- BH de A a Z
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Conta uma anedota da política norte-americana que o ex-presidente Franklin Delano Roosevelt certa vez recebeu o sindicalista e ativista negro A. Philip Randolph, ouviu a todas as suas demandas e, por fim, respondeu: “eu concordo com tudo que você disse. Agora, obrigue-me a fazê-lo.”
O resultado do encontro teria sido uma longa campanha por direitos civis, que culminaria com a organização de uma marcha que, segundo os organizadores, colocaria cem mil negros nas ruas de Washington em 1941.
A ameaça de uma marcha massiva de negros na capital criou o clima político que permitiu a Roosevelt lançar a Executive Order 8802, que proibia a discriminação racial e religiosa nos trabalhos da indústria de defesa nacional dos EUA.
Com a Executive Order 8802 Roosevelt conseguia cancelar a marcha, tranquilizando os conservadores defensores do apartheid norte-americano, e garantir a primeira grande vitória para o incipiente movimento pelos direitos civis.
A anedota pode não ser verdade (aqui um bom artigo sobre isso, há inclusive grandes chances de ser parte da construção folclórica de Roosevelt – uma espécie de Hugo Chávez norte-americano, eleito quatro vezes consecutivas e artífice do New Deal.
Mas, ainda assim, ela diz muito sobre uma concepção de política que parece ter sido esquecida no Brasil. Entre outras coisas, a anedota encerra uma conversa de gabinete entre um ativista e um presidente colocando a disputa política em seu lugar: na praça pública.
Não que a disputa política tenha sido esquecida.
Desde que o PT chegou à presidência escuto de meus amigos governistas que é “um governo em disputa”. A tese era que a política de coalizão abrigaria forças muito diversas e que cabia disputar internamente e tomar cuidado com as críticas para não enfraquecê-lo.
O resultado prático foi que a crítica e aguerrida militância petista acabou se abstendo das manifestações de rua e se dedicando cada vez mais a simplesmente justificar o governo.
Mesmo agora, depois de dez anos no poder e com aprovação popular em torno de 70%, ainda vejo petistas mais preocupados em justificar publicamente os descalabros do que em criticar o abandono de causas históricas do Partido dos Trabalhadores, como a Previdência, os Direitos Humanos ou as bandeiras dos povos da floresta.
Enquanto isso os militantes das outras forças da esfera federal, como a bancada fundamentalista, fincavam os pés, iam para as ruas e lançavam grandes campanhas para empurrar para a direita o centro do governo. A impressão que dá é que se o governo federal estava realmente em disputa, os antigos militantes petistas perderam por W.O.
Não é um uma situação isolada.
Já é possível ver o fenômeno entre os ativistas da Rede Sustentabilidade, proto-partido criado em torno de Marina Silva.
Preocupados que estão em construir o partido, o grupo se apressa em justificar, nas redes sociais, cada nova “manota” de Marina.
Na semana passada Marina Silva respondeu a uma pergunta sobre o casamento gay diferenciando “Estado Ateu” de “Estado Laico” e afirmando que o pastor Marco Feliciano “está sendo criticado por ser evangélico e não por suas posições políticas equivocadas” (veja o original em vídeo aqui).
O argumento de Marina é distracionista, cria uma vítima inexistente para evitar lidar com a situação de opressão real, e é idêntico ao que Feliciano usava meses atrás (em março comentei isso aqui).
É claro que também é exagerada a afirmação de que ela teria “defendido” o pastor, mas isso não pode ser usado para minimizar o fato.
Não existe nem nunca existiu no Brasil um projeto de “Estado Ateu”, isso é um factóide levantado a cada vez que alguém tenta tirar crucifixos de repartições públicas, doutrinação de escolas ou moral religiosa de nossas leis.
Não existe no Brasil um ateísmo militante à lá Dawkins, e por aqui os ataques contra práticas religiosas de que tenho notícia são feitos por outros religiosos, e não por turbas de ateus fundamentalistas.
Ainda não entendi porque Marina quis citar o pastor Feliciano em sua resposta sobre o casamento gay, mas pelo menos poderia ter usado o tempo para deixar claras as suas diferenças do pastor.
Poderia ter usado o tempo para dizer que não achava os africanos amaldiçoados, ou que nem todo evangélico acha que os homossexuais são criminosos, mas ao invés disso usou para minimizar a vasta campanha contra o pastor Marco Feliciano ecoando o argumento do próprio: a campanha seria perseguição religiosa. De uma só vez ela desqualificou um movimento nacional contra a permanência de Marco Feliciano na CDHM e ainda repetiu o argumento do próprio.
Os ativistas da Rede Sustentabilidade se apressaram em explicar Marina Silva de todas as formas, alguns chegando ao ponto de acusar os detratores de perseguirem também a pré-candidata.
Isso me preocupa principalmente porque vários dos melhores ativistas por um Estado verdadeiramente laico que conheço são simpáticos à Rede, e a possibilidade de vê-los silenciar em prol de um projeto nebuloso de poder é aterradora.
Em um momento em que os Direitos Humanos no país tem sido atacados cotidianamente, e que até o que as pessoas fazem em ambiente privado e de comum acordo é motivo de expulsão de universidade pública, precisamos de defesas claras dos nossos direitos.
Parece, afinal, que a melhor forma de silenciar ativistas barulhentos é convencê-los de que a disputa política não é feita nas ruas, mas internamente, dentro do partido, nos gabinetes.
O primeiro passo, claro, deve ser convencê-los de aderir ao fetiche da delegação política (aqui um texto clássico e curtinho do Bourdieu sobre o assunto).
Depois de incorporados à forma partidária de organização, parece que todas as críticas precisam ser sussurradas, e não abertamente rasgadas como anteriormente.
A liderança, num passe de mágica, passa a ser símbolo e representante do grupo na mesma proporção em que o grupo se silencia, aceitando a representação.
Acontece que muitas vezes o que se faz é passar um cheque em branco: depois de entregue não há muito o que fazer.
Não tenho nenhum interesse em participar de um partido político, mas entendo quem decide atuar politicamente por essa forma.
Porém é preciso lembrar que, ao contrário do que dizem os manuais partidários, a disputa política é feita aqui fora, em público, nas ruas, e se a Rede quiser realmente construir uma opção democrática deveria ter isso em mente.
Os ativistas negros que organizavam a marcha a Washington em 1941 claramente preferiam Roosevelt às suas contrapartes do Partido Republicano, mas nem por isso silenciaram frente ao que consideravam injusto.
Alguns deles passaram os próximos anos falando que a Executive Order 8802 não era suficiente.
Se os ativistas da Rede quiserem realmente defender o Estado laico, é bom que aprendam com o exemplo de Randolph a obrigar suas lideranças a fazê-lo.
(*) Matheus Machado é formado em História, especialista em Gestão Educacional e fake amador (@coalacroata).
Fonte:
http://www.bhaz.com.br/uma-anedota-para-os-ativistas-da-rede/
Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.