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sábado, 15 de setembro de 2012

Terror em Benghazi

 14/09/2012 - O dilema de informar - Por Magda Almeida
- edição 711 do Observatório da Imprensa

Os últimos episódios envolvendo os Estados Unidos e seus inimigos, mais uma vez, colocam a mídia no centro dos acontecimentos.

A foto que mostra o embaixador americano na Líbia sendo arrastado, já morto, para fora do consulado, chocou a América, dividiu opiniões mundo afora e levou as principais emissoras de televisão americanas a justificar-se perante a opinião pública – que preferia não ter visto o que viu.

Não é difícil imaginar o impacto dessas imagens no emocional de uma nação que, desde 11 de setembro de 2001, não sabe mais o que é dormir em paz.

No dia seguinte ao ataque em Benghazi (12/9), a jornalista Margaret Sullivan, ombudsman (public editor) do New York Times, escreveu um artigo respondendo às centenas de e-mails que chegavam ao jornal, protestando contra a decisão editorial de levar para a primeira página a dramática foto do diplomata, feita por um fotógrafo da agência France Presse e a única publicada, numa galeria de outras tantas ainda mais chocantes que foram deslocadas para o banco de dados.

Margaret referiu-se, principalmente, à reação de um leitora que parecia estar falando em nome de toda a nação, ainda não recuperada do tiroteio que duas semanas antes havia matado duas pessoas e ferido nove, em frente ao Empire State Building, em Nova York. As imagens de uma das vítimas sangrando até morrer numa das calçadas mais famosas do planeta provocou uma onda de protestos e debates que mobilizaram diferentes setores sociais e culturais da sociedade. E, mais uma vez, esta mesma sociedade vê-se diante de fotos e fatos que mexem com seus nervos e mentes. It’s too much...”, queixou-se a raivosa leitora, para quem a descrição dos fatos já seria o suficiente para bem informar o público. Que o Times tivesse mais cuidado da próxima vez, se quisesse manter seus fieis leitores. Outras cartas se seguiram, no mesmo tom.

Primeira vítima
A decisão de publicar a foto do embaixador foi, com toda certeza, resultado de um consenso editorial. E Margaret lembrou isso, ao mesmo tempo em que perguntava aos seus leitores por que não reagiam com o mesmo rigor e sensibilidade diante de milhares de outras imagens do Times, e de toda mídia americana, mostrando os milhares de corpos mutilados pelas ações terroristas no Iraque e na Síria, só para citar alguns países com espaço permanente na mídia internacional.

O editor Ian Fischer, que fechou a primeira página de terça-feira (11/9), foi mais veemente:

Cobrimos centenas de guerras ao longo da nossa existência, mostramos a sua crueza em todos os seus sórdidos detalhes, exibimos para o mundo inteiro as fotos exclusivas de Kadafi sendo morto e martirizado. Ninguém reclamou. Posso entender que a foto de um diplomata americano naquela situação tenha um impacto mais forte, mas não se pode brigar com a informação e com os fatos, como eles se apresentam”.

Quem está certo, pergunta Margaret em seu artigo: o leitor que hoje protesta ou os editores compromissados com a informação e com a verdade?

Se a gente aceita a ideia que a vida de cada ser humano tem o mesmo valor e a mesma dignidade, por que nos chocamos com a foto do nosso embaixador e não mostramos a mesma sensibilidade quando se trata de cidadãos de outros países, igualmente vítimas do mesmo terror?, pergunta ela.

Quarta-feira (12) à noite foi a vez do âncora de um dos principais programas da CNN, também acossada por centenas de mensagens protestando contra as imagens do embaixador morto, reservar uma parte do seu horário para defender a empresa e justificar a sua linha editorial em relação aos últimos episódios no consulado americano em Benghazi. Foi dito que a CNN entende a posição de seus telespectadores, conhece suas motivações, procura ater-se ao essencial em momentos assim, mas não pode transformar a verdade na primeira vítima dessa infame realidade.

Festa e foguetes
Vendo e ouvindo tudo isso recuei anos atrás, quando me vi escrevendo cartas a O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo protestando contra a foto publicada em importante revista semanal, mostrando um já terminal Mario Covas urinando nas calças. Seu constrangimento diante da própria fragilidade física me emocionou, assim como me tirou do sério aquela foto que mal disfarçava uma intenção subliminar.

Covas estava com câncer de próstata, que tem na incontinência urinária uma de suas muitas sequelas. Não estava prevenido e não conseguiu segurar os efeitos de sua doença. Fiquei indignada, me perguntando que jornalismo era aquele, o que haveria de intencional por trás daquela decisão editorial. A revista não publicou minha indignação (que não foi a única), mas O Globo, JB e Estadão deram-lhes bastante destaque.

Agora, refletindo sobre esses últimos acontecimentos internacionais e o papel da imprensa sobre eles, fiz um passeio mental e emocional por situações semelhantes, aqui e lá fora, e as diferentes reações dos leitores. Que consequências teriam esses fatos para todos aqueles que, como nós, travam essa luta quase inglória por um jornalismo sério, justo e ético. O que é certo e o que está errado nesse processo?

Recuei para a mesma Líbia de poucos meses atrás. Ver, em tempo real, um Muamar Kadafi sendo linchado em praça pública não foi das coisas mais agradáveis de se ver e de se relembrar, mesmo sendo quem era. Mas a verdadeira Justiça não passa por aí. Entretanto, pouquíssimos foram aqueles que escreveram para seus jornais protestando contra aquelas chocantes imagens, como bem lembrou o editor do Times. Vi, isso sim, regozijo e foguetório, até na Times Square.

Jornalismo limpo
Não sei como aqui nos comportaríamos se nossa imprensa publicasse as imagens de um ilustre cidadão brasileiro em situação semelhante à do embaixador americano. Faríamos uma sádica fila nas bancas de jornais para ver e rever a cena? Escreveríamos para os jornais exigindo mais comedimento no uso das imagens? Ou simplesmente acharíamos que a vida é assim mesmo, enquanto uns nascem, outros morrem?

Não tenho respostas para essas perguntas. Mas faço aqui algumas provocações, tanto melhor se elas levarem às necessárias reflexões. Alguém se lembra de ter visto, em vídeo ou em fotos, a imagem de uma Jacqueline Kennedy dizimada fisicamente pelo câncer? Ou o pulmão do ex-presidente Ronald Reagan explodindo pelas balas que o atingiram num atentado em Nova York? Ou o corpo destroçado da princesa Diane, em meio às ferragens de seu carro, só para citar alguns poucos exemplos?

Ainda assim, ninguém deixou de ser bem informado sobre todas as circunstâncias que antecederam e precederam esses acontecimentos. Por que a mídia aceitou aqueles limites?

Lembram das rotineiras cenas dos caixões desembarcando em aeroportos militares americanos com os corpos (ou o que sobrou deles) dos militares mortos na Guerra do Vietnã, sempre transmitidas ao vivo pelas principais emissoras de TV americanas? Comoviam o público americano. Era tão intenso o impacto que isso acabou forçando um amplo debate nacional sobre sua legitimidade. Venceu a opinião pública e essas imagens nunca mais foram divulgadas. Puseram um fim àquela cobertura.

Mas, chocantes ou não, ninguém hoje duvida o quanto contribuíram para o fim daquela guerra.

Qual é o limite da informação, afinal?

Devemos permiti-lo ou vale tudo para vender mais? Dizem que uma grande parcela da população brasileira gosta não só de samba, chope e mulher, mas também de sangue, muito sangue. O sucesso dos jornais ditos populares não parece desmentir essa versão.

Trabalhei 19 anos em um deles e testemunhei as lutas internas de alguns editores para qualificar a informação que saía dos esgotos da cidade, diminuindo a sangreira, ocultando a porção diabólica do ser humano, buscando um jornalismo mais limpo.

As vendas caíram a níveis preocupantes. Era preciso atender as expectativas do público, dar o que exigiam: cenas “mais reais”.

Eis um belo e proveitoso debate.

[Magda Almeida é jornalista]

Fonte:

quinta-feira, 8 de março de 2012

John Perkins: “Portugal está a ser assassinado, como muitos países do terceiro mundo já o foram"

Entrevista concedida por John Perkins a Sara Sanz Pinto, publicada em 3 Mar 2012
no site Informação online - Portugal

Chamou-se a si próprio assassino económico no livro “Confessions of an Economic Hit Man”, que se tornou bestseller do “New York Times”

Em tempos consultor na empresa Chas. T. Main, John Perkins andou dez anos a fazer o que não devia, convencendo países do terceiro mundo a embarcar em projectos megalómanos, financiados com empréstimos gigantescos de bancos do primeiro mundo. Um dia, estava nas Caraíbas, percebeu que estava farto de negócios sujos e mudou de vida. Regressou a Boston e, para compensar os estragos que tinha feito, decidiu usar os seus conhecimentos para revelar ao mundo o jogo que se joga nos bastidores financeiros.

Como se passa de assassino económico a activista?
Em primeiro lugar é preciso passar-se por uma forte mudança de consciência e entender o papel que se andou a desempenhar. Levei algum tempo a compreender tudo isto. Fui um assassino económico durante dez anos e durante esse período achava que estava a agir bem. Foi o que me ensinaram e o que ainda ensinam nas faculdades de Gestão: planear grandes empréstimos para os países em desenvolvimento para estimular as suas economias. Mas o que vi foi que os projectos que estávamos a desenvolver, centrais hidroeléctricas, parques industriais, e outras coisas idênticas, estavam apenas a ajudar um grupo muito restrito de pessoas ricas nesses países, bem como as nossas próprias empresas, que estavam a ser pagas para os coordenar. Não estávamos a ajudar a maioria das pessoas desses países porque não tinham dinheiro para ter acesso à energia eléctrica, nem podiam trabalhar em parques industriais, porque estes não contratavam muitas pessoas. Ao mesmo tempo, essas pessoas estavam a tornar-se escravos, porque o seu país estava cada mais afundado em dívidas.

E a economia, em vez de investir na educação, na saúde ou noutras áreas sociais, tinha de pagar a dívida. E a dívida nunca chega a ser paga na totalidade. No fim, o assassino económico regressa ao país e diz-lhes “Uma vez que não conseguem pagar o que nos devem, os vossos recursos, petróleo, ou o que quer que tenham, vão ser vendidos a um preço muito baixo às nossas empresas, sem quaisquer restrições sociais ou ambientais”. Ou então, “Vamos construir uma base militar na vossa terra”. E à medida que me fui apercebendo disto a minha consciência começou a mudar. Assim que tomei a decisão de que tinha de largar este emprego tudo foi mais fácil. E para diminuir o meu sentimento de culpa senti que precisava de me tornar um activista para transformar este mundo num local melhor, mais justo e sustentável através do conhecimento que adquiri. Nessa altura a minha mulher e eu tivemos um bebé. A minha filha nasceu em 1982 e costumava pensar como seria o mundo quando ela fosse adulta, caso continuássemos neste caminho. Hoje já tenho um neto de quatro anos, que é uma grande inspiração para mim e me permite compreender a necessidade de viver num sítio pacífico e sustentável.

Houve algum momento em particular em que tenha dito para si mesmo “não posso fazer mais isto”?
Sim, houve. Fui de férias num pequeno veleiro e estive nas Ilhas Virgens e nas Caraíbas. Numa dessas noites atraquei o barco e subi às ruínas de uma antiga plantação de cana-de-açúcar. O sítio era lindo, estava completamente sozinho, rodeado de buganvílias, a olhar para um maravilhoso pôr do Sol sobre as Caraíbas e sentia-me muito feliz. Mas de repente cheguei à conclusão que esta antiga plantação tinha sido construída sobre os ossos de milhares de escravos. E depois pensei como todo o hemisfério onde vivo foi erguido sobre os ossos de milhões de escravos. E tive também de admitir para mim mesmo que também eu era um esclavagista, porque o mundo que estava a construir, como assassino económico, consistia, basicamente, em escravizar pessoas em todo o mundo. E foi nesse preciso momento que me decidi a nunca mais voltar a fazê-lo. Regressei à sede da empresa onde trabalhava em Boston e demiti-me.

E qual foi a reacção deles?
De início ninguém acreditou em mim. Mas quando se aperceberam de que estava determinado tentaram demover-me. Fizeram-me propostas muito interessantes. Mas fui-me embora à mesma e deixei por completo de me envolver naquele tipo de negócios.

Diz que os assassinos económicos são profissionais altamente bem pagos que enganam os países subdesenvolvidos, recorrendo a armas como subornos, relatórios falsificados, extorsões, sexo e assassinatos. Pode explicar às pessoas que não leram o seu livro como tudo isto funciona?
Basicamente, aquilo que fazíamos era escolher um país, por exemplo a Indonésia, que na década de 70 achávamos que tinha muito petróleo do bom. Não tínhamos a certeza, mas pensávamos que sim. E também sabíamos que estávamos a perder a guerra no Vietname e acreditávamos no efeito dominó, ou seja, se o Vietname caísse nas mãos dos comunistas, a Indonésia e outros países iriam a seguir. Também sabíamos que a Indonésia tinha a maior população muçulmana do mundo e que estava prestes a aliar-se à União Soviética, e por isso queríamos trazer o país para o nosso lado.

Fui à Indonésia no meu primeiro serviço e convenci o governo do país a pedir um enorme empréstimo ao Banco Mundial e a outros bancos, para construir o seu sistema eléctrico, centrais de energia e de transmissão e distribuição. Projectos gigantescos de produção de energia que de forma alguma ajudaram as pessoas pobres, porque estas não tinham dinheiro para pagar a electricidade, mas favoreceram muito os donos das empresas e os bancos e trouxeram a Indonésia para o nosso lado. Ao mesmo tempo, deixaram o país profundamente endividado, com uma dívida que, para ser refinanciada pelo Fundo Monetário Internacional, obrigou o governo a deixar as nossas empresas comprarem as empresas de serviços básicos de utilidade pública, as empresas de electricidade e de água, construir bases militares no seu território, entre outras coisas. Também acordámos algumas condicionantes, que garantiam que a Indonésia se mantinha do nosso lado, em vez de se virar para a União Soviética ou para outro país que hoje em dia seria provavelmente a China.

Trabalhou de muito perto com o Banco Mundial?
Muito, muito perto. Muito do dinheiro que tínhamos vinha do Banco Mundial ou de uma coligação de bancos que era, geralmente, liderada pelo Banco Mundial.

Sugere no seu livro que os líderes do Equador e do Panamá foram assassinados pelos Estados Unidos. No entanto, existem vários historiadores que defendem que isso não é verdade. O que acha que aconteceu com Jaime Roldós e Omar Torrijos?
Não existem provas sólidas quer do que aconteceu no Equador, com Roldós, quer do que se passou no Panamá, com Torrijos. Porém, existem muitas provas circunstanciais. Por exemplo, Roldós foi o primeiro a morrer, num desastre de avião em Maio de 1981, e a área do acidente foi vedada, ninguém podia ir ao local onde o avião se despenhou, excepto militares norte-americanos ou membros do governo local por eles designados. Nem a polícia podia lá entrar. Algumas testemunhas-chave do desastre morreram em acidentes estranhos antes de serem chamadas a depor. Um dos motores do avião foi enviado para a Suíça e os exames mostram que parou de funcionar quando estava ainda no ar e não ao chocar contra a montanha. Isto é, existem provas circunstanciais tremendas em torno desta morte, e além disso todos estavam à espera que Jaime Roldós fosse derrubado ou assassinado porque não estava a jogar o nosso jogo. Logo depois de o seu avião se ter despenhado, Omar Torrijos juntou a família toda e disse: “O meu amigo Jaime foi assassinado e eu vou ser o próximo, mas não se preocupem, alcancei os objectivos que queria alcançar, negociei com sucesso os tratados do canal com Jimmy Carter e esse canal pertence agora ao povo do Panamá, tal como deve ser. Por isso, depois de eu ser assassinado, devem sentir-se bem por tudo aquilo que conquistei.”

A verdade é que os EUA, a CIA e pessoas como o Henry Kissinger admitiram que o nosso país tinha derrubado Salvador Allende, no Chile; Jacobo Arbenz, na Guatemala; Mohammed Mossadegh, no Irão; participámos no afastamento de Patrice Lumumba, no Congo; de Ngô Dinh Diem, no Vietname. Existem inúmeros documentos sobre a história dos EUA que provam que fizemos estas coisas e continuamos a fazê-las. Sabe-se que estivemos profundamente envolvidos, em 2009, no derrube no presidente Manuel Zelaya, nas Honduras, e na tentativa de afastar Rafael Correa, no Equador, também há não muito tempo. Os EUA admitiram muitas destas coisas e pensar que eles não estiveram envolvidos nos homicídios de Roldós e Torrijos... Estes dois homens foram assassinados quase da mesma forma, num espaço de três meses. Ambos tinham posições contrárias aos EUA e às suas empresas e estavam a assumir posições fortes para defender os seus povos – é pouco razoável pensar o contrário.

Algumas pessoas acusam-no de ser um teórico da conspiração. O que tem a dizer sobre isso?
Bem, não sou, de modo nenhum, um teórico da conspiração. Não acredito que exista uma pessoa ou um grupo de pessoas sentadas no topo a tomar todas as decisões. Mas torno muito claro no meu último livro, “Hoodwinked” (2009), e também em “Confessions of an Economic Hit Man” (2004) – editado em Portugal pela Pergaminho em 2007 com o título “Confissões de Um Mercenário Económico: a Face Oculta do Imperialismo Americano” –, que as multinacionais são movidas por um único objectivo que é maximizar os lucros, independentemente das consequências sociais e ambientais. Estes últimos são novos objectivos que não eram ensinados quando estudei Gestão, no final dos anos 60. Ensinaram-me que havia apenas este objectivo entre muitos outros, por exemplo tratar bem os funcionários, dar-lhes uma boa assistência na saúde e na reforma, ter boas relações com os clientes e os fornecedores, e também ser um bom cidadão, pagar impostos e fazer mais que isso, ajudar a construir escolas e bibliotecas.

Tudo se agravou nos anos 70, quando Milton Friedman, da escola de economia de Chicago, veio dizer que a única responsabilidade no mundo dos negócios era maximizar os lucros, independentemente dos custos sociais e ambientais. E Ronald Reagan, Margaret Thatcher e muitos outros líderes mundiais convenceram-se disso desde então. Todas estas empresas são orientadas segundo este objectivo e quando alguma coisa o ameaça, seja um acordo de comércio multilateral seja outra coisa qualquer, juntam--se para garantir que o mesmo é protegido. Isto não é uma conspiração, uma conspiração é ilegal, isto que fazem não é. No entanto, é extremamente prejudicial para a economia mundial.

Também escreveu que o objectivo último dos EUA é construir um império global. Como vê a recente estratégia norte-americana contra a China e o Irão?
Actualmente, podemos dizer que o novo império não é tanto americano como formado por multinacionais. Penso que a ditadura das grandes empresas e dos seus líderes forma hoje a versão moderna desse império. Repito, isto não é uma conspiração, mas todos eles são movidos por esse objectivo de que falámos anteriormente.

Mas vários especialistas defendem que estamos num cenário de terceira guerra mundial, com a China, a Rússia e o Irão de um lado e os EUA, a União Europeia (UE) e Israel do outro. E que toda a conversa de Washington em torno do programa nuclear iraniano não passa de uma grande mentira.
Não acredito que todo este conflito seja motivado por armas nucleares. Na verdade, vários estudos recentes, alguns deles das mais respeitadas agências de informações norte-americanas, mostram que não existem armas nucleares no Irão. E acredito que tudo isto não se deve apenas aos recursos iranianos mas também à ameaça de Teerão de vender petróleo no mercado internacional numa moeda que não o dólar, uma ameaça também feita por Muammar Kadhafi, na Líbia, e Saddam Hussein, no Iraque. Os norte-americanos não gostam que ameacem o dólar e não gostam que ameacem o seu sistema bancário, algo que todos esses líderes fizeram – o líder do Irão, o líder do Iraque, o líder da Líbia. Derrubaram dois deles e o terceiro ainda lá está. Penso que é disto que se trata.

Não tenho dúvidas de que a Rússia está a gostar de ver a agitação entre a UE e o Irão, porque Moscovo tem muito petróleo e, se os fornecedores iranianos deixarem de vender, o preço do petróleo vai subir, o que será uma grande ajuda para a Rússia. É difícil acreditar que qualquer destes países queira mesmo entrar numa terceira guerra mundial. No fundo, o que querem é estar constantemente a confundir as pessoas, parecendo que querem entrar em conflito e ajudar a alimentar as máquinas de guerra, porque isso ajuda uma série de grandes empresas.

Como durante a Guerra Fria?
Sim, como durante a Guerra Fria, porque isso é bom para os negócios. No fundo, estes países estão todos a servir os interesses das grandes empresas. Há algumas centenas de anos, a geopolítica era maioritariamente liderada por organizações religiosas; depois os governos assumiram esse poder. Agora chegámos à fase em que a geopolítica é conduzida em primeiro lugar pelas grandes multinacionais. E elas controlam mesmo os governos de todos os países importantes, incluindo a Rússia, a China e os EUA. A economia da China nunca poderia ter crescido da forma que cresceu se não tivesse estabelecido fortes parcerias com grandes multinacionais.

E todos estes países são muito dependentes destas empresas, dos presidentes destas empresas, que gostam de baralhar as pessoas, porque constroem muitos mísseis e todo o tipo de armas de guerra. É uma economia gigante. A economia norte-americana está mais baseada nas forças armadas que noutra coisa qualquer. Representa a maior fatia do nosso orçamento oficial e uma parte maior ainda do nosso orçamento não oficial. Por isso tanto a guerra como a ameaça de guerra são muito boas para as grandes multinacionais. Mas não acredito que haja alguém que nos queira ver de facto entrar em guerra, dada a natureza das armas. Penso que todas as pessoas sabem que seria extremamente destrutivo.

Como avalia o trabalho de Barack Obama enquanto presidente dos EUA?
Penso que se esforçou muito por agir bem, mas está numa posição extremamente vulnerável. Assim que alguém entra na Casa Branca, sejam quais forem as suas ideias políticas, os seus motivos ou a sua consciência, sabe que é muito vulnerável e que o presidente dos EUA, ou de outro país importante, pode ser facilmente afastado. Nalgumas partes do mundo, como a Líbia ou o Irão, talvez só com balas o seu poder possa ser derrubado, mas em países como os EUA um líder pode ser afastado por um rumor ou uma acusação.

O presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, ver a sua carreira destruída por uma empregada de quarto de um hotel, que o acusou de violação, foi um aviso muito forte a Obama e a outros líderes mundiais. Não estou a defender Strauss-Kahn – não faço a mínima ideia de qual é a verdade por trás do que aconteceu, mas o que sei é que bastou uma acusação de uma empregada de quarto para destruir a sua carreira, não só como director do FMI mas também como potencial presidente francês. Bill Clinton também foi afastado por um escândalo sexual, mas no tempo de John Kennedy estas coisas não derrubavam presidentes. Só as balas. Porém, descobrimos com Bill Clinton que um escândalo sexual – e não é preciso ser uma coisa muito excitante, porque aparentemente ele nem sequer teve sexo com a Monica Lewinsky, fizeram uma coisa qualquer com um charuto que já não me lembro – foi o suficiente para o descredibilizar. Por isso Obama está numa posição muito vulnerável e tem de jogar o jogo e fazer o melhor que pode dentro dessas limitações. Caso contrário, será destruído.

No fim do ano passado escreveu um artigo onde afirmava que a Grécia estava a ser atacada por assassinos económicos. Acha que Portugal está na mesma situação?
Sim, absolutamente, tal como aconteceu com a Islândia, a Irlanda, a Itália ou a Grécia. Estas técnicas já se revelaram eficazes no terceiro mundo, em países da América Latina, de África e zonas da Ásia, e agora estão a ser usadas com êxito contra países como Portugal. E também estão a ser usadas fortemente nos EUA contra os cidadãos e é por isso que temos o movimento Occupy. Mas a boa notícia é que as pessoas em todo o mundo estão a começar a compreender como tudo isto funciona. Estamos a ficar mais conscientes. As pessoas na Grécia reagiram, na Rússia manifestam-se contra Putin, os latino-americanos mudaram o seu subcontinente na última década ao escolher presidentes que lutam contra a ditadura das grandes empresas. Dez países, todos eles liderados por ditadores brutais durante grande parte da minha vida, têm agora líderes democraticamente eleitos com uma forte atitude contra a exploração.

John Perkins com Llyn Roberts e Jane Goodall

Por isso encorajo as pessoas de Portugal a lutar pela sua paz, a participar no seu futuro e a compreender que estão a ser enganadas. O vosso país está a ser saqueado por barões ladrões, tal como os EUA e grande parte do mundo foi roubado. E nós, as pessoas de todo o mundo, temos de nos revoltar contra os seus interesses. E esta revolução não exige violência armada, como as revoluções anteriores, porque não estamos a lutar contra os governos mas contra as empresas. E precisamos de entender que são muito dependentes de nós, são vulneráveis, e apenas existem e prosperam porque nós lhes compramos os seus produtos e serviços. Assim, quando nos manifestamos contra elas, quando as boicotamos, quando nos recusamos a comprar os seus produtos e enviamos emails a exigir-lhes que mudem e se tornem mais responsáveis em termos sociais e ambientais, isso tem um enorme impacto. E podemos mudar o mundo com estas atitudes e de uma forma relativamente pacífica.

Mas as próprias empresas deviam ver que a ditadura das multinacionais é um beco sem saída.
Bem, penso que está absolutamente certa. Há alguns meses estive a falar numa conferência para 4 mil CEO da indústria das telecomunicações em Istambul e vou regressar lá, dentro de um mês, para uma outra conferência de CEO e CFO de grandes empresas comerciais, e digo-lhes a mesma coisa. Falo muitas vezes com directores-executivos de empresas e sou muitas vezes chamado a dar palestras em universidades sobre Gestão ou para empresários e também lhes digo o mesmo. Aquilo que fizemos com esta economia mundial foi um fracasso. Não há dúvida. Um exemplo disso: 5% da população mundial vive nos EUA e, no entanto, consumimos cerca de 30% dos recursos mundiais, enquanto metade do mundo morre à fome ou está perto disso. Isto é um fracasso. Não é um modelo que possa ser replicado em Portugal, ou na China ou em qualquer lado. Seriam precisos mais cinco planetas sem pessoas para o podermos copiar. Estes países podem até querer reproduzi-lo, mas não conseguiriam.

Por isso é um modelo falhado e você tem razão, porque vai acabar por se desmoronar. Por isso o desafio é como mudamos isto e como apelar às grandes empresas para fazerem estas mudanças. Obrigando-as e convencendo-as a ser mais sustentáveis em termos sociais e ambientais. Porque estas empresas somos basicamente nós, a maioria de nós trabalha para elas e todos compramos os seus produtos e serviços. Temos um enorme poder sobre elas. Por definição, uma espécie que não é sustentável extingue-se. Vivemos num sistema falhado e temos de criar um novo. O problema é que a maior parte dos executivos só pensa a curto prazo, não estão preocupados com o tipo de planeta que os seus filhos e os seus netos vão herdar.

Podemos afirmar que esta crise mundial foi provocada por assassinos económicos e rotular os líderes da troika como serial killers?
Penso que é justo dizer que os assassinos económicos são os homens de mão, nós, os soldados, e os presidentes das grandes multinacionais e de organizações como o Banco Mundial, o FMI ou Wall Street, os generais.

Ainda há dias o “Financial Times” divulgou que os gestores financeiros de Wall Street andavam a tomar testosterona para se tornarem ainda mais competitivos. Isto faz parte do beco sem saída de que estás a falar?
A sério?! Ainda não tinha ouvido isso, mas não me surpreende nada. No entanto, aquilo que precisamos hoje em dia é de um lado feminino, temos de caminhar na direcção oposta e livrar-nos dessa testosterona. Precisamos de mais líderes mulheres, mulheres reais – não homens vestidos com roupas de mulher, por assim dizer – para trazerem com elas os valores de receptividade e do apoio e encorajarem os homens a cultivar isso neles próprios. Nós, homens, temos de estar muito mais ligados ao nosso lado feminino.

Se fôssemos apresentar esta crise económica à polícia, quem seriam os criminosos a acusar?
Pense em qualquer grande multinacional e à frente dessa multinacional estará alguém responsável pela ditadura empresarial, seja a Goldman Sachs, em Wall Street, seja a Shell, a Monsanto ou a Nike. Todos os líderes dessas empresas estão profundamente envolvidos em tudo isto e, da mesma forma, estão os líderes do FMI, do Banco Mundial e de outras grandes instituições bancárias. Detesto estar a dar nomes, estas pessoas estão sempre a mudar de emprego, por isso prefiro apontar os cargos. Eles estão sempre em rotação, por exemplo, o nosso antigo presidente, George W. Bush, veio da indústria petrolífera. A sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, também veio da indústria petrolífera. Já Obama tem a sua política financeira concebida por Wall Street, maioritariamente pela Goldman Sachs. Mudaram-se da empresa para a actual administração norte-americana. A sua política de agricultura é feita por pessoas da Monsanto e de outras grandes empresas do sector. E a parte triste é que assim que o seu tempo expirar em Washington voltam para essas empresas. Vivemos num sistema incrivelmente corrupto. Aquilo a que chamamos política das portas giratórias é só uma outra designação de corrupção extrema.

quinta-feira, 1 de março de 2012

EUA contra Manning & Assange


29/02/2012-Michael Ratner* (entrevista transcrita por The Real News Network, TRNN)
“United States vs. Manning & Assange” - Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Rede castorphoto

*Michael Ratner é presidente emérito do Centro pelos Direitos Constitucionais (CDC) em New York e presidente do Centro Europeu pelos Direitos Constitucionais e Humanos em Berlim. Atualmente, trabalha como conselheiro para questões de lei nos EUA, contratado por Wikileaks e Julian Assange. Ratner e o CDC foram os primeiros a denunciar a ilegalidade da detenção de suspeitos na prisão de Guantánamo e continuam a trabalhar pelo fechamento daquela prisão. Foi professor da Faculdade de Direito de Yale e da Faculdade de Direito de Columbia, e presidente da Associação Nacional de Advogados. É autor de vários livros, dentre os quais Hell No: Your Right to Dissent in the Twenty-First Century America [Proibido! O direito de discordar, nos EUA do século 21] e Who Killed Che? How the CIA Got Away With Murder [Quem matou Che? Como a CIA escapou de responder por aquele crime].

As opiniões de Ratner nesta entrevista são opiniões pessoais, e não envolvem as organizações das quais participa.

Vídeo URL: http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=ctKqJ-WJs64 (http://youtu.be/ctKqJ-WJs64)


PAUL JAY, editor sênior, TRNN: Você é um dos advogados de Julian Assange e WikiLeaks e acompanhou a sessão da corte militar que está julgando Bradley Manning. O que aconteceu lá?

RATNER: Bem, como você e seus ouvintes, melhor, seus telespectadores, certamente sabem, Bradley Manning é acusado de ser a fonte de grande parte do material que WikiLeaks publicou: o vídeo “Assassinato Colateral”, em que se assiste aos assassinatos cometidos no Iraque, os tiros partidos de um helicóptero; e as centenas de milhares de documentos de guerra sobre o Afeganistão e também sobre o Iraque; e um quarto de milhão dos chamados “telegramas diplomáticos". E é acusado de ter feito tudo isso aos 22 anos, servindo ao exército. Está agora com 24 anos. Foi tratado com extrema, extrema violência, foi torturado durante longo tempo. E agora está sendo mandado para uma corte marcial – em que militares julgam militares. Pesam contra ele 22 acusações, inclusive, e a mais grave de todas, de ter cooperado com o inimigo, crime punível com pena de morte. Quanto a isso, os procuradores disseram – falaram, pelo menos, sobre isso, o governo disse – que não pedirão a pena capital; disseram que querem julgá-lo e condená-lo à prisão perpétua. Na sessão mais recente desse processo, Manning foi levado ante o juiz, para que se declarasse culpado ou não culpado, ou pedisse uma prorrogação. Assisti a essa sessão. Foi rápida, cerca de uma hora, em Fort Meade, perto de Baltimore, a uma hora, mais ou menos, talvez 40 minutos de distância, do centro da cidade. É uma base militar imensa. Ninguém entra. Meu carro foi revistado. Exigem que você exiba seguro do carro, vários documentos. Se se passa por essa inspeção, entra-se numa fila.

Não se pode levar nenhum tipo de objeto para dentro da sala do tribunal, só papel e lápis. Não se pode usar nenhum tipo de telefone, transmissor, computador, nada. E lá fiquei, naquela sala limpa como quarto de hospital. É difícil descrever aquele tipo de limpeza, de assepsia: revestimento de tipo industrial, barato, no piso; teto de compensado, com pequenos furos; e lugares para apenas 20 pessoas. Havia dez presentes, a maioria, da imprensa. Bradley Manning entrou. É baixo, menos de 1,60m, magro, em uniforme de soldado, ao lado de seu advogado civil (que já foi advogado militar). Sentou-se junto à mesa. E continuava uma sensação estranha, naquela corte antisséptica.

Ali estava aquele homem, acusado de ter revelado quantidades massivas de crimes de guerra cometidos, segundo se sabe, pelos EUA. Mas quem ali estava era Manning, ali, naquele Fort Meade. Sentado ali, o que eu sentia é que ali deveriam estar sentadas as vítimas do que os EUA fizeram no Iraque e no Afeganistão. Mas bem claramente não estavam ali. Ali se viam os militares da acusação, com mais medalhas e condecorações do que eu jamais vira numa mesma sala. E o acusado, claro. Acusado de crimes muito, muito sérios.

O juiz é novo, recentemente indicado, e Bradley Manning foi chamado para responder perguntas. A única coisa que se ouviu dele naquela sala foi “sim, meritíssimo”; e “não, meritíssimo”. O advogado falou por ele; pediu uma prorrogação. E marcaram a data para a próxima audiência, que será em março.

Quanto à data do julgamento – os militares querem que o julgamento aconteça em agosto. O que significa que, se for julgado em agosto – e não creio que o julgamento seja marcado para agosto – Bradley Manning terá permanecido preso, até lá, mais de 800 dias. Durante esse tempo, foi submetido a tratamento que muitos de nós entendemos que seja tortura: foi mantido completamente nu, numa cela solitária, durante nove meses, até que, afinal, muita gente pôs-se a protestar pelo mundo, e ele foi transferido para a prisão de Fort Leavenworth, no estado do Kansas.

Quanto às 22 acusações, como já disse, são pesadíssimas. Na última audiência, seu advogado, David Coombs, disse que Manning está sendo acusado de tantos crimes exclusivamente porque as autoridades norte-americanas acreditam que ele tenha repassado os documentos a WikiLeaks e supõem que ele conheça algum segredo sobre WikiLeaks e Julian Assange; então, querem que Manning conte tudo o que supõem que Manning saiba; não apenas que confesse que passou os arquivos a Assange, mas que diga algo que realmente implique Julian Assange e WikiLeaks.

JAY: A ideia geral é que, se houve um vazamento, Manning é responsável; mas ele pode ter apenas passado adiante, digamos, o material que reuniu. Mas se Assange o instruiu antes, se disse a ele o que fazer ou como fazer, nesse caso seria possível acusar Assange de envolvimento nos mesmos crimes de que acusam Manning. É isso?

RATNER: Você está lembrando um aspecto muito importante. É exatamente isso. Quero dizer: eu não diria exatamente nessas palavras, mas a questão é, sim, exatamente essa. Os juízes militares querem provar – ou, pelo menos, é o que o estado está tentando provar – que Julian Assange participou da conspiração ou que, no mínimo, convenceu e ajudou Bradley Manning a pôr as mãos naqueles documentos. Querem construir um cenário em que Manning e Assange teriam trabalhado juntos desde o começo; Assange não recebeu, apenas, de Bradley Manning documentos que Assange nem sabia que existissem.

Eu não usaria exatamente essas palavras, porque tenho outra hipótese sobre o caso. Considere o seguinte. O repórter James Risen, do New York Times, o jornalista que descobriu as gravações ilegais de telefonemas de cidadãos, que Bush autorizara, recebeu “de dentro”, os documentos que provavam as gravações ilegais; recebeu-as de alguém da Agência Nacional de Segurança, ou de alguma outra agência do governo norte-americano. Não se comentou, mas presumo – não sei desses detalhes – que os documentos não foram simplesmente deixados sobre a mesa de James Risen no New York Times nem lhe foram entregues, de repente, pelo correio. Presumo, não sei, estou presumindo, que houve contatos anteriores entre o jornalista e a “fonte”. Talvez vários contatos.
O que quero dizer é que, em certo momento, os contatos entre jornalista e fonte podem, sim, começar chegar muito perto de conspiração contra o estado, o governo, o presidente. Mas se digo à minha fonte: “encontre-me na esquina de Hollywood e Vine; há um restaurante ali; entre e deixe os documentos sobre o balcão”... Ora. Isso não converte nenhum jornalista em conspirador. Se o jornalista disser à fonte “deixe o envelope embaixo de uma pedra do jardim”... Nada disso, por si só, converte o jornalista em conspirador ou em “formador de quadrilha” [1].

Os EUA estão procurando qualquer vestígio de pêlo em ovo, nesse caso, porque os juízes e advogados que estão trabalhando para acusar Manning já sabem que têm um problema. Se não conseguirem envolver Julian Assange e WikiLeaks num caso de conspiração, no qual alguém consiga provar que Assange instruiu e ajudou Bradley Manning, os juízes nada têm para construir uma acusação formal contra Assange. Qual seria a diferença entre Julian Assange e o jornalista; ou entre WikiLeaks e o jornal The New York Times? Todos os dias abrimos o jornal e lemos páginas e páginas de material sigiloso vazado para a imprensa. Mas os EUA têm agora de tentar – como você disse, precisam manter preso Bradley Manning pelo maior tempo possível, na esperança de que, seja como for, conseguirem implicar Julian Assange nos crimes de que acusam Bradley Manning.

JAY: Entendido. E sobre...

RATNER: Foi exatamente o que disse o próprio advogado de Bradley Manning. Por isso é que Manning está sendo tratado de modo tão violento. Sim, ele baixou todos aqueles documentos. E o governo quer puni-lo pelo que fez, quando ainda era soldado. Mas o que o governo realmente quer – os peixes grandes que o governo dos EUA quer enredar nesse caso são WikiLeaks e Julian Assange.

JAY: A imprensa tem discutido a estratégia da defesa, e parece, pelo que se diz, que, em primeiro lugar, Manning estava em estado mental, psicológico, tão precário, que, em primeiro lugar, ele jamais poderia ter tido acesso a tantos segredos. Ninguém parece interessado em afirmar que, se um soldado encontra provas de que se cometeram crimes de guerra, é dever dele expor o que sabe; que esse seria seu direito e, até, seu dever. A defesa não parece interessada em explorar esse caminho. Estão dizendo apenas que há algum problema, alguma, digamos, fragilidade psicológica, em Bradley, e que ele deve ser absolvido por causa disso.

RATNER: Veja... Ao final da audiência da semana passada, eu estava lá com, digamos, outras dez pessoas, entre as quais um homem que esteve preso com o Padre Berrigan [2], nos anos 1970s. – Imagine só. O homem estava lá, em Baltimore, semana passada! – De fato, acho que foi dos primeiros feridos naquelas manifestações populares dos anos 1970s. Foi preso e depois, acabou por ser posto em liberdade. O homem é do tipo que resiste, você sabe, dos que nunca desistem, um daqueles indestrutíveis militantes pacifistas da resistência contra a guerra. E estava lá, no julgamento de Manning. Ao final da audiência, aquele homem – e isso é importante, a favor do que você lembrou – gritou: “E não é dever de todos os soldados denunciar crimes de guerra?!”

Acho que a questão é exatamente essa. É obrigação dos soldados revelar crimes de guerra que vejam acontecer. E isso, em minha opinião, é exatamente o que Bradley Manning fez. Por isso, todos os que como eu creem que os EUA cometeram inúmeros crimes de guerra, pelos quais tentam não ser responsabilizados, vemos com tanta simpatia a causa de Manning. Assumindo-se que Manning tenha feito o que é acusado de ter feito, ele desempenhou papel muito importante ao trazer todos aqueles crimes ao conhecimento do povo dos EUA.

Mas, sim, como você disse, a defesa parece trabalhar numa via diferente dessa. A defesa de Manning, pelo menos na audiência que chamam de “audiência do artigo 32”, uma audiência preliminar, para estabelecer se há provas suficientes para acusar e julgar alguém, a defesa, como estava dizendo, optou por uma espécie de defesa psicológica.

A defesa de Manning, de fato, optou por uma defesa ‘em dois tempos’: começaram por argumentar que, afinal de contas, havia 3,5 milhões de pessoas, todas com o mesmo nível de acesso a documentos secretos que Bradley Manning também tinha; essas 3,5 milhões de pessoas foram autorizadas a ver aqueles documentos pelos serviços militares e de segurança dos EUA. Assim sendo, o que o governo esperava? Que ninguém, daquelas 3,5 milhões de pessoas, jamais revelasse coisa alguma?

JAY: Só para explicar aos que nos ouvem: Bradley Manning tinha o mesmo tipo/nível de acesso a documentos secretos que outros 3,5 milhões de militares e agentes de segurança. A loucura inicial, portanto, parece ser que tantos documentos hoje apresentados como tão sensíveis, tenham sido expostos a essa verdadeira multidão. Ok. Prossiga.

RATNER: Exatamente. O que quero dizer é que, de fato, aqueles documentos eram de nível “secreto” ou inferior. Nada havia, nos documentos divulgados, que fosse “top secret”. Nos telegramas diplomáticos não há um só documento classificado como “top secret”. Há o vídeo “Assassinato Colateral”, importante; mas foi classificado como “secreto”, não é “top secret”. Por isso, 3,5 milhões de pessoas tinham acesso àqueles documentos. Ainda que Manning e outros não tivessem qualquer motivo para fazer o que Manning está sendo acusado de ter feito, se tinham acesso àqueles documentos, esse acesso lhes foi autorizado por militares ou agentes de segurança de patente superior à de um cabo. Com o que se vê que todo o sistema de segurança é fragilíssimo. Assim sendo, a responsabilidade pelos vazamentos é dos serviços militares e de inteligência dos EUA, que não fizeram o que existem para fazer.

De qualquer modo, pouco me preocupa a fragilidade do sistema de segurança. O que me interessa é que, sim, estavam acontecendo crimes por lá; e os crimes vieram à tona, talvez, exatamente, porque os eventos daquela guerra não estavam protegidos por sistemas de segurança eficazes.

Por tudo isso, a defesa de Manning começou por aí: se aqueles documentos eram sigilosos e importantíssimos... por que não estavam protegidos adequadamente? Só depois de fixar esse primeiro argumento é que a defesa de Bradley Manning entrou no campo das dificuldades psicológicas do próprio Bradley.

Bradley é gay, o que não seria problema em si. Mas, pelo que se sabe, foi severamente abusado pelos colegas, desde o primeiro dia de serviço militar, por ser gay, por ter baixa estatura, todos conhecemos esse tipo de violência: Bradley Manning não tinha os atributos que os preconceitos associam ao “soldado modelo”. Sabe-se que o comando no qual Manning estava alistado recebeu várias reclamações, dos chefes imediatos de Manning, que protestaram contra Manning ser mandado para o Iraque. Fato é que Manning foi mandado para o Iraque e, lá, foi posto na sala de computadores onde trabalhou. Sabe-se também que Manning escreveu e-mails sobre o assunto, e que pesquisou vários sites em que se discutem questões de gênero; que enfrentava problemas de identidade sexual; que considerou a possibilidade de inscrever-se para uma cirurgia de mudança de sexo. Algumas vezes, ao que se sabe, foi encontrado no chão, em posição fetal. E há outras informações desse tipo, no processo.

O que interessa observar é que a defesa de Manning não construiu uma defesa política; não disse, até agora, que o soldado tem o direito, se não a obrigação (que, de fato, o soldado tem) de denunciar publicamente crimes de guerra dos quais tenha conhecimento. Se o soldado leva os crimes ao conhecimento dos superiores imediatos, e não vê tomarem-se providências, é preciso, então, denunciar os mesmos crimes, por outras vias. Mas os advogados de Manning não adotaram essa via política de defesa.
Minha opinião é que a defesa está convencida de que o caminho que escolheu é o melhor para Bradley Manning. Eles estão preparando o campo para, no caso de Manning ser condenado, haver fatores que possibilitem requerer reduções da pena. Pessoalmente, essa é a minha opinião até agora.

JAY: É possível que a defesa tenha razão. Afinal, é difícil imaginar que uma corte militar de justiça aceite que soldados revelem segredos, em todos os casos em que os soldados suponham que tenha havido crime de guerra.

RATNER: Por um lado, é claro, foi uma decisão dos advogados que estão defendendo Bradley Manning. Claro que, sim, como você disse, se tivessem optado por defesa mais fortemente política, o mais provável é que fossem detonados naquela corte militar. Mas, se adotassem uma via mais política, conseguiriam mobilizaria mais facilmente a opinião pública mundial. Talvez até, num determinado momento, sob forte pressão popular, o governo fosse forçado a conceder alguma espécie de indulto, ou perdão; talvez o governo ficasse em posição de não poder continuar a julgar Manning como criminoso, se as pessoas o vissem como herói. Concordo que, aqui, já entramos no terreno da pura especulação. Eu talvez, como advogado, preferisse a linha mais política. Mas o advogado de Manning é experiente e está conduzindo as coisas como lhe parece melhor para Manning.
Mas eu sou advogado de WikiLeaks e Julian Assange, e todo esse julgamento me interessa diretamente, porque interessa aos meus clientes, por algumas razões muito importantes. Primeiro, como já disse e como o advogado de Manning também disse, o governo está tentando forçar Bradley Manning a testemunhar contra Julian Assange. Manning foi torturado para que dissesse qualquer coisa que incriminasse Assange. Está sendo julgado com a fúria condenatória que se vê naqueles juízes, também, para forçá-lo a dizer qualquer coisa que incrimine Assange. Vai ser julgado em corte militar marcial, exclusivamente como mais um meio para tentar forçá-lo a dizer qualquer coisa que incrimine Assange. Por tudo isso, o julgamento de Manning é muito importante para nós.

E o julgamento de Manning também é importante para nós, porque os EUA estão muito fortemente empenhados em indiciar Julian Assange. Há um Grande Júri, uma corte federal instalada, pronta e à espera, em Alexandria, Virginia. Está constituída e suspensa há um ano. Não tenho tido notícias recentes, mas está aberta e em andamento lá uma investigação sobre WikiLeaks. Além disso, todos entendemos que o objetivo dos EUA é conseguir extraditar Julian Assange, seja da Grã-Bretanha, se Assange permanecer lá; seja da Suécia, se Assange tiver de voltar à Suécia na sequência de um processo ainda não encerrado, em que Assange foi acusado de abuso sexual e estupro. O objetivo dos EUA é conseguir extraditar Assange, seja da GB ou da Suécia, para julgá-lo nos EUA.

JAY: Há alguma razão pela qual seja mais provável extraditá-lo da Suécia para os EUA, do que da GB para os EUA?

RATNER: Deixe-me só concluir meu argumento, antes de falar sobre isso, que é muito, muito importante.

O segundo aspecto do julgamento de Bradley Manning interessa e tem muito a ver com Julian Assange é que, na tentativa para extraditar Julian Assange, um aspecto que a Corte Europeia considerará é como Assange será tratado nos EUA. Será tratado como combatente inimigo? É possível. É pouco provável, mas é possível. Será posto em cela solitária e torturado, como Bradley Manning, deixado nu, sem poder ver ninguém? Isso com certeza é muito, muito provável, como todos sabemos. E será acusado de crimes para os quais a Lei Antiespionagem [orig. Espionage Act] prevê pena de morte? Tudo isso será discutido na Corte Europeia que decidirá sobre a extradição de Assange. Por isso, quando se analisa o modo como Bradley Manning está sendo tratado nos EUA, uma das defesas possíveis para Julian Assange – e, quanto a isso, não faz diferença de onde ele seja extraditado – será mostrar como os prisioneiros são tratados nos EUA.

Agora, sobre o que você perguntou, se será mais fácil extraditá-lo da Suécia, que da Grã-Bretanha, acho que – é minha opinião, pessoal – sim, será mais fácil extraditá-lo da Suécia. Acho que uma das razões de eu pensar assim é ver que, sim, os EUA preferem tentar extraditá-lo da Suécia. O que sei é que na Grã-Bretanha (e conheço bem os advogados ingleses de Assange) a extradição não é fácil. Não é fácil arrancar prisioneiros de Londres. Há advogados britânicos especialistas nesse tipo de defesa. Há o caso de um hacker que, muito jovem, invadiu os computadores do Pentágono. Os EUA tentam extraditá-lo há oito anos E não estou dizendo que demore tanto. Não sei. Mas Assange tem muitos apoiadores na Grã-Bretanha. Entendo que, para os EUA, será extremamente difícil, se chegarmos a isso, extraditar Assange da Grã-Bretanha. A Suécia é país menor. Apesar da boa imagem da Suécia nos EUA, o governo é muito mais cooperativo, com os norte-americanos, do que muita gente pensa. Muitos pensam como eu: que será muito mais fácil para os EUA tirarem Assange da Suécia, que da Grã-Bretanha.

E assim chegamos ao caso de Julian Assange. Interessante, que esperávamos que aparecesse, muito rapidamente, dado que estamos no contexto da União Europeia, um pedido de extradição que incluísse os dois países, Suécia e Grã-Bretanha. O sistema europeu é como ir de Maryland a New York, você sabe, é interestatal; o sistema judiciário europeu é praticamente interestatal. E supúnhamos que não seria difícil que os EUA obtivessem a extradição. Mas os advogados ingleses lutaram muito, e o caso acaba de chegar à Corte Suprema na Grã-Bretanha, à qual só chegam casos (como à Suprema Corte dos EUA) que a Suprema Corte queira julgar; a Suprema Corte não é obrigada a julgar. A defesa foi apresentada a sete juízes (acho que eram sete, talvez tenham sido cinco, não estou certo). E foi defesa muito forte, um argumento muito vigoroso. Ali, os advogados ingleses que defendem Assange decidiram começar por discutir as imperfeições do sistema sueco, uma discussão extremamente técnica. Um Procurador sueco expediu o mandado de prisão, de extradição, contra Assange, pedindo que a Grã-Bretanha o extraditasse. Nos termos da lei sueca, só juiz poderia expedir mandado de prisão, de extradição. Obviamente, autoridades judiciais são neutras. O Procurador insiste em que seu pedido deve prevalecer. O que se discute, então, é o seguinte: na Suécia, um Procurador é autoridade judicial? Não tenho dúvidas de que a corte britânica levará extremamente a sério essa discussão. E tenho esperanças de que Julian não será mandado para a Suécia. Seja como for, você sabe, é mandado de prisão, de extradição, válido para toda a Europa. Assim sendo, ainda não sabemos.

JAY: OK. Por favor, rapidamente: qual é a base legal, ou precedente, se houver, para que Manning argumente, em sua defesa, que um soldado que descubra provas de que se cometeram crimes de guerra tenha algum tipo de obrigação de tornar público o que sabe?

RATNER: Veja... É precedente antigo. De fato, pode-se rastrear a origem desse precedente até os julgamentos de Nuremberg. Há o precedente legal, nos termos da Convenção de Genebra, e também nos termos de nossas leis, nos EUA, de que não se podem nem cometer nem tolerar crimes de guerra. Se você descobre indício ou informação sobre crimes de guerra, você tem o dever legal de dar divulgação ao que sabe. Quanto aos EUA, em sentido geral, o soldado tem o dever de informar o superior imediato na cadeia de comando. Claro que, nos EUA, informar os superiores na cadeia de comando é, na essência, inútil. Conheço vários casos de estupro entre militares, de mulheres que denunciaram ter sofrido estupro, aos superiores militares. E a situação das vítimas só piorou, foram perseguidas, há casos de mulheres vítimas de estupro que tiveram de deixar a carreira militar. Imagine no caso de crimes de guerra. É gritar contra uma muralha. Não há saída.

Por tudo isso, não tenho dúvidas de que houvesse qualquer alternativa para Bradley Manning, além de fazer o que fez. E, você sabe... Sabe-se pouco, quase só o que foi noticiado, mas, segundo o que todos lemos, é fácil concluir que o problema, de fato, foi aquele vídeo, que mostra a morte de dois jornalistas da Reuters assassinados no Iraque, de um helicóptero norte-americano, e as crianças feridas. E é um vídeo. Manning viu aquilo. E concluiu que tinha de divulgar.

Além disso, se se examina o que foi vazado, e por que aqueles documentos eram considerados secretos... A maioria daqueles documentos só são considerados secretos porque os EUA querem esconder seus próprios crimes, os procedimentos, as questões em que seus embaixadores envolvem-se, nos países onde atuam. E isso é especialmente verdade em relação ao vídeo de guerra “Colateral”.


====  FIM DA ENTREVISTA  ====


Notas dos tradutores
[1] No Brasil, para ampliar o exemplo, a jornalista Renata LoPrete, da Folha de S.Paulo escreveu que foi procurada por telefone, num sábado pelo (hoje ex) deputado Roberto Jefferson, que lhe disse que tinha “revelações estarrecedoras”. O deputado não tinha documento algum a exibir, nem a jornalista (?) investigou coisa alguma antes de noticiar, logo no domingo seguinte, um “escândalo” completamente inventado: hoje já se sabe que o tal “mensalão” que a jornalista e o (hoje ex) deputado Roberto Jefferson: (a) inventaram; (b) batizaram e (c) noticiaram como se fosse fato, e tudo isso sem exibir qualquer prova até hoje, jamais existiu. Nem por isso a jornalista LoPrete e o (hoje ex) deputado Roberto Jefferson foram acusados de conspirar contra governo democraticamente eleito, amparados, ambos, no direito à “liberdade de expressão” que também assegura direitos a qualquer jornalista caluniador de caluniar sem medo e sem vergonha, sequer quando o jornalista e seu patrão nada investigam, publicam qualquer coisa que lhes interesse publicar e, eventualmente, bem podem estar agindo como quadrilha. De diferente, claro, na comparação – a favor de Manning e Assange e contra a jornalista LoPrete e o ex-deputado Roberto Jefferson – que Manning e Assange deram a conhecer ao mundo crimes cometidos e as correspondentes provas suficientes.

[2] Padre Philip Berrigan, padre católico e ativista dos movimentos antiguerra nos anos 1970s.