por Vladimir Safatle*
Para decifrar o desencanto trazido pela crise de 2008 e o esgotamento dos modelos políticos e sociais, é preciso levar em conta os novos desafios da crítica.
Uma importante discussão no interior da filosofia social diz respeito ao modelo de crítica que a contemporaneidade exige. A partir de qual perspectiva deve estruturar-se uma crítica que queira dar conta dos impasses de nossas formas de vida sob o auspício do capitalismo avançado? Em nosso momento histórico, em que procuramos aproveitar o desencanto trazido pela crise econômica de 2008 a fim de mostrar como tal crise é, também, um esgotamento de modelos políticos e sociais, vale a pena ter em vista os novos desafios da crítica. Para tanto, gostaria de lembrar aqui de dois modelos que trazem, entre si, relações importantes, embora se trate de tipos diferentes de crítica.
O primeiro é conhecido pelo nome de “crítica da economia política” e foi, durante muito tempo, a base para pensarmos as figuras da crítica da ideologia e da falsa consciência no capitalismo. Para tal modelo, o capitalismo seria inseparável de um regime de sofrimento social conhecido por “reificação” e que indicaria a coisificação irrefreável das relações intersubjetivas e de si mesmo.
Lembremos aqui da famosa injunção de Marx sobre como as relações entre sujeitos se transforma, no capitalismo, em relação entre coisas. Pois a maneira com que as relações intersubjetivas mediadas pelo trabalho desaparecem nas coisas trabalhadas daria a base para o pior de todos os sofrimentos sociais: o sofrimento de ser tratado e de tratar-se como coisa. Ou seja, como algo, neste contexto, quantificável, mensurável e calculável. Alguns sociólogos, como Josef Gabel, sugeriram que tal modalidade de sofrimento poderia descrever, no seu extremo, uma patologia psíquica ligada a comportamentos psicóticos.
Tal crítica partia da possibilidade de quebrar tal tendência afirmando que a consciência deveria ser capaz de compreender as relações econômicas que definem as dinâmicas da vida social. Haveria uma totalidade acessível à reflexão que se desvelaria a partir do momento em que apreendemos como o movimento de circulação do Capital e de generalização da forma-mercadoria define a racionalidade de todo processo social. Criticar é desvelar a totalidade que a consciência é incapaz de ver, mas que determina sua conduta sem que ela saiba.
No entanto, há um segundo modelo de crítica que poderíamos chamar de “crítica da economia libidinal”. Ele procura partir da ideia de que o capitalismo não é apenas um sistema de trocas econômicas, mas um modo de produção e administração dos afetos. Não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo. Há uma maneira de desejar própria do capitalismo, de sua velocidade, seu ritmo, seu espaço.
Assim, se quisermos compreender de onde vem a força de adesão do capitalismo, devemos nos perguntar sobre como ele mobiliza afetos, como ele nos descostuma de certos modos de afecção e como privilegia outros. Não nos perguntaremos apenas sobre como somos alienados de nosso próprio trabalho, mas também como somos alienados de nossos próprios desejos.
Mas quem pode falar sobre um desejo não alienado? Longe de partir de uma pergunta como esta, partiremos de algo menos normativo. Nós simplesmente analisaremos as figuras do sofrimento contemporâneo (como a depressão, o narcisismo, a personalidade borderline, a perversão, o fetichismo, a anomia) e procuraremos nelas não apenas a história individual dos sujeitos que sofrem, mas a história de uma sociedade inconsciente de si mesma.
Nesse caso, o sofrimento psíquico será a porta de entrada para um modelo alternativo de crítica social. Ele não procurará fundar a crítica na possibilidade redentora de uma consciência capaz de apreender a totalidade da vida social e agir a partir de tal perspectiva privilegiada. Na verdade, ele se voltará para os afetos produzidos pelo capitalismo, para a maneira com que ele faz circular o medo, como ele traz uma excitação que ao mesmo tempo é interditada, um prazer que é estragado no momento mesmo de sua enunciação, vinculando afetos sociais e sofrimento psíquico. Nesta dimensão afetiva, talvez encontremos uma crítica que saberá que a primeira condição para a transformação social é modificar a maneira com que desejamos.
* Vladimir Safatle é professor da Faculdade de Filosofia da USP, é autor do livro “A esquerda que não teme dizer seu nome”.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.