Um exemplo a ser seguido
Por Maria Lúcia Martins
A Escola José Martins da Costa monitora, desde 1999, a qualidade da água em 10 pontos em seu entorno, no Distrito Rural de São Pedro da Serra, Nova Friburgo. A iniciativa conquistou o primeiro lugar na categoria Ecologia, do Salão Estadual do Estudante no Rio de Janeiro, em 2006.
Segundo o professor de Biologia Laércio Azevedo, o Projeto de Monitoramento da Microbacia do Rio São Pedro segue o Plano Político e Pedagógico da escola, situada em zona rural e de interesse turístico, o que faz do meio ambiente um tema ainda mais importante para a vida local. O projeto, que tem caráter multidisciplinar e é feito pelos alunos da 8ª série junto com os professores, tem como principais objetivos: Contribuir para o efetivo desenvolvimento integral dos alunos; Produzir conhecimento sobre a realidade local; Promover a participação da comunidade escolar nas lutas comunitárias pela preservação ambiental e pela melhora da qualidade da vida na região dos 5º e 7º distritos (São Pedro da Serra e Lumiar).
A apresentação do Projeto explica que “a comunidade escolar chegou à conclusão de que é muito importante tomar consciência da qualidade da água, que hoje em dia está ficando escassa e se torna cada vez mais um problema global, levando muitos países à guerra pelo seu controle”.
O município de Nova Friburgo, de acordo com os dados do Projeto, tem o seu território cortado por inúmeros rios, entre eles se destacam: rio Grande; rio Cônego; rio Santo Antônio; rio Bengalas; e o rio Macaé. O rio Macaé nasce em Lumiar e atravessa esse distrito, tendo como afluentes os rios: Bonito, Flores e Boa Esperança — o córrego São Pedro é um afluente do Rio Boa Esperança —, banha terras de outros municípios e vai desaguar no oceano Atlântico. Suas águas abastecem uma população de cerca de 140.000 habitantes.
A Associação de Apoio à Escola do CEJMC – Centro Educacional José Martins da Costa participa do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Macaé, desde 2002, ocupando um assento do setor sociedade civil.
Como funciona o Projeto
Todos os anos a equipe de professores, Laércio e os professores de Matemática e Geografia fazem o levantamento de dados, a tabulação destes, o estudo aprofundado da questão do ambiente, com foco local, e a coleta, feita uma vez por ano. A água coletada segue para análise externa, já que a Escola ainda não conseguiu montar um laboratório para este fim, por falta de recursos financeiros. Os alunos costumavam recolher dinheiro para custear a análise da água junto à comunidade, recorrendo inclusive a rifas. Em um ou outro ano, a análise foi feita por apoiadores, como o Instituto Politécnico e a companhia de água local, em 2006.
A prática do Projeto envolve os alunos do último ano do Segundo Grau, que se encarregam de passar a sua experiência junto com os professores para a turma que está se formando no Ensino Fundamental. Apesar do interesse demonstrado pelos alunos, o Projeto vem enfrentando dificuldades conjunturais para a sua execução completa, pois a coleta e a análise são fundamentais ao processo e faltam os meios para tanto. Parte significativa dos jovens alunos ajudam suas famílias nas tarefas diárias, e alguns dos mais velhos trabalham durante o dia, sobrando pouco tempo para o empenho em arrecadar os recursos necessários à análise da água. Há 22 anos lecionando em São Pedro da Serra, Laércio fala da importância da participação dos professores de outras matérias e do processo de conscientização ambiental que o Projeto gera. A Escola tem convênios com a UERJ-Universidade Estadual do Rio de Janeiro, nos campos de Nova Friburgo e de São Gonçalo, para o Programa Jovens Talentos.
Resultados da análise
Os resultados são tabulados e a análise é apresentada também em gráficos e pequenos textos, acompanhados do mapa dos pontos de coleta e da tabela de dados. "Os alunos aprendem os conceitos de potabilidade e balneabilidade e como medir estes fatores.
Para que a água seja potável, o nível de coliformes fecais e totais não deve passar de 0 (zero), mas se passar que seja o mínimo possível, para que a água seja balneável", diz o texto do Projeto.
O ponto 1 é o da torneira da Escola, que em 2006 foi o único que manteve a condição de água potável. No ponto 10, local de encontro entre o rio Boa Esperança e o rio São Pedro, segundo a análise do Projeto, entre 2005 e 2006 ocorreu uma grande diminuição de coliformes totais, mas um significativo aumento de coliformes fecais, não sendo a água potável (potabilidade) nem própria para banho (balneabilidade).Os outros pontos de coleta são: Poço do Bininho; Nascente da Bocaina dos Mafort; Cemitério; Ponte do Higino; Bocaina dos Blaudt; Nascente da Pedra Eller; Córrego da Tapera; Ponte estrada Manuel Knupp.
A conclusão apresentada em 2006 foi a seguinte: “Ao elaborarmos essas comparações, observamos que praticamente todos os rios e nascentes da região estão contaminados. Esse trabalho procura mostrar à sociedade a necessidade de nos conscientizarmos do mal que estamos causando aos nossos rios. Devemos mudar nossos comportamentos, parar de jogar os esgotos diretamente nos rios, e construir fossas nos imóveis. Além disso, precisamos urgentemente pressionar as autoridades competentes para que instalem um serviço de coleta e tratamento de esgoto em nossa região e uma eficiente fiscalização do meio ambiente”.
Construir a cidadania a partir do exercício do direito de todos a expressão, comunicação e informação
sexta-feira, 26 de março de 2010
quinta-feira, 25 de março de 2010
Água, um direito a ser preservado
Série Água (final)
Por Maria Lúcia Martins
Princípios da democracia da água
1- A água é um presente da natureza
Recebemos água livremente da natureza. Devemos à natureza a utilização dessa dádiva de acordo com as nossas necessidades de sobrevivência, mantê-la limpa e em quantidade adequada. Desvios que criam regiões áridas ou inundadas violam os princípios da democracia ecológica.
2- A água é essencial à vida
A água é a fonte da vida para todas as espécies. Todas as espécies e ecossistemas têm direitos a sua cota de água no planeta.
3- A vida está interconectada pela água
A água conecta todos os seres e todas as partes do planeta por meio do ciclo da água. Todos temos o dever de assegurar que nossas ações não causem dano a outras espécies e a outras pessoas.
4- A água tem de ser gratuita para as necessidades vitais
Já que a natureza nos dá água sem custo algum, comprá-la e vendê-la para obter lucro viola o nosso direito inerente a essa dádiva da natureza e priva os pobres dos seus direitos humanos.
5- A água é um recurso limitado e pode acabar
A água é algo limitado e passível de esgotamento, se utilizada de maneira não sustentável. O uso não sustentável inclui extrair mais água dos ecossistemas do que a natureza pode recarregar (não-sustentabilidade ecológica) e consumir mais do que a cota legítima de cada um, dado os direitos dos outros a uma cota justa (não-sustentabilidade social).
6- A água tem de ser conservada
Todos têm o dever de conservar a água e utilizá-la de modo sustentável, dentro dos limites justos e ecológicos.
7- A água é um bem comum
A água não é uma invenção humana. Não pode ser aprisionada e não tem limites. É, por sua própria natureza, um bem comum. Não pode ser possuída como propriedade privada e vendida como uma mercadoria.
8- Ninguém tem o direito de destruir
Ninguém tem o direito de utilizar os sistemas de água de forma excessiva, abusar deles, desperdiçá-los ou poluí-los. Licenças de poluição comercializáveis violam o princípio da utilização justa e sustentável.
9- A água não pode ser substituída
A água é intrinsecamente diferente de outras riquezas naturais e produtos. Ela não pode ser tratada como uma mercadoria.
* Série Água termina aqui. Amanhã (26/3), publicaremos um texto sobre o monitoramento da água em escola estadual.
Por Maria Lúcia Martins
Princípios da democracia da água
1- A água é um presente da natureza
Recebemos água livremente da natureza. Devemos à natureza a utilização dessa dádiva de acordo com as nossas necessidades de sobrevivência, mantê-la limpa e em quantidade adequada. Desvios que criam regiões áridas ou inundadas violam os princípios da democracia ecológica.
2- A água é essencial à vida
A água é a fonte da vida para todas as espécies. Todas as espécies e ecossistemas têm direitos a sua cota de água no planeta.
3- A vida está interconectada pela água
A água conecta todos os seres e todas as partes do planeta por meio do ciclo da água. Todos temos o dever de assegurar que nossas ações não causem dano a outras espécies e a outras pessoas.
4- A água tem de ser gratuita para as necessidades vitais
Já que a natureza nos dá água sem custo algum, comprá-la e vendê-la para obter lucro viola o nosso direito inerente a essa dádiva da natureza e priva os pobres dos seus direitos humanos.
5- A água é um recurso limitado e pode acabar
A água é algo limitado e passível de esgotamento, se utilizada de maneira não sustentável. O uso não sustentável inclui extrair mais água dos ecossistemas do que a natureza pode recarregar (não-sustentabilidade ecológica) e consumir mais do que a cota legítima de cada um, dado os direitos dos outros a uma cota justa (não-sustentabilidade social).
6- A água tem de ser conservada
Todos têm o dever de conservar a água e utilizá-la de modo sustentável, dentro dos limites justos e ecológicos.
7- A água é um bem comum
A água não é uma invenção humana. Não pode ser aprisionada e não tem limites. É, por sua própria natureza, um bem comum. Não pode ser possuída como propriedade privada e vendida como uma mercadoria.
8- Ninguém tem o direito de destruir
Ninguém tem o direito de utilizar os sistemas de água de forma excessiva, abusar deles, desperdiçá-los ou poluí-los. Licenças de poluição comercializáveis violam o princípio da utilização justa e sustentável.
9- A água não pode ser substituída
A água é intrinsecamente diferente de outras riquezas naturais e produtos. Ela não pode ser tratada como uma mercadoria.
* Série Água termina aqui. Amanhã (26/3), publicaremos um texto sobre o monitoramento da água em escola estadual.
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quarta-feira, 24 de março de 2010
Água, um direito a ser preservado
Série Água (parte 3)
Por Maria Lúcia Martins
Público e privado
Vandana Shiva nos relata que antes da chegada dos britânicos ao sul da Índia, comunidades geriam sistemas de água coletivamente por meio de um sistema chamado kudimaramath (auto-reparo). Antes do advento da legislação corporativa por parte da East Índia Company, no século 18, um camponês pagava a um fundo público trezentas mil unidades de grão que ganhasse e duzentas e cinquenta dessas unidades ficavam no povoado para a manutenção das provisões comuns e dos trabalhos públicos. Em 1830, os pagamentos dos camponeses elevaram-se a 650 unidades, das quais quinhentas e quarenta iam direto para a East India Company. Como resultado, houve aumento do pagamento e da perda de receita de manutenção os camponeses e as provisões comuns foram destruídas.
Cerca de trezentos mil reservatórios de água construídos durante séculos na Índia pré-britânica foram destruídos, afetando a produtividade agrícola e a renda dos agricultores.
A East India Company foi expulsa pelo primeiro movimento de pela independência em 1857. Em 1858, os britânicos aprovaram a Lei do Trabalho Compulsório de Madras, popularmente conhecida como a Lei Kudimaramath, determinando que os camponeses fornecessem mão-de-obra para a manutenção dos sistemas de água e irrigação. Pelo fato de o kudimaramath ser baseado na autogestão e não na coerção, a lei fracassou em mobilizar a participação da comunidade na reconstrução de provisões comuns.
Comunidades autogeridas não foram apenas uma realidade histórica, elas são um fato contemporâneo. Interferência estatal e privatização não as destruíram inteiramente. Em levantamento de nivel nacional, que cobriu distritos nas regiões tropicais secas em sete estados, N.S. Jodha chegou à conclusão de que as necessidades de combustível e forragem mais básicas dos pobres de toda a Índia continuam a ser supridas a partir de recursos vindos de propriedades públicas.
Podemos ver as semelhanças da experiência da Índia com o Brasil, onde o aumento de tarifas continua ao longo do processo de privatização de nossa água, e os preços crescentes excluem os pobres. Também tivemos e ainda temos no país, em pontos do interior, a autogestão dos recursos hídricos por comunidades. Mas, gradativamente, a autogestão foi substituída pelas companhias públicas e, hoje, por empresas privadas em boa parte vinculadas a grandes corporações transnacionais.
Situação no Brasil
A participação das empresas privadas vem crescendo cada vez mais dentro setor de saneamento básico brasileiro, que envolve tratamento de água e esgoto, e atualmente depende, essencialmente, das companhias públicas, municipais e estaduais. Algumas empresas que atuam no país são vinculadas à grandes corporações, mas esta vinculação nem sempre está explicita nos sites destas empresas.
Os dados da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, feita pelo IBGE revelam que o percentual de domicílios ligados à rede de esgoto permanece subindo: de 51,1% (2007) para 52,5% (2008). No entanto, a proporção de domicílios ligados à rede de esgoto cai na região Norte. Em 2008, o Brasil tinha 30,2 milhões domicílios ligados à rede de esgoto, uma participação 1,4 ponto percentual maior que em 2007. O Norte, mesmo tendo a menor parcela (9,5%) de domicílios com esse serviço, teve redução de 0,5 ponto percentual, não mantendo o crescimento ocorrido entre 2006 e 2007. Nessa região cresceu 5,5 pontos percentuais a proporção de domicílios com fossa séptica (mais 308 mil). O Norte ainda possuía 1,6 milhão de domicílios sem rede coletora ou fossa séptica. O percentual de domicílios atendidos por rede geral de abastecimento de água (83,9%) também manteve-se em crescimento: mais 0,7 ponto percentual ou 1,9 milhão de unidades em relação a 2007. No Nordeste, o acréscimo foi de 2,3 pontos percentuais, ou mais 770 mil domicílios. Após alta de 0,6 ponto percentual em relação a 2007, 87,9% (50,6 milhões) dos domicílios passaram a contar com coleta de lixo. Houve altas em todas as regiões.
Os serviços de saneamento básico estão concentrados em regiões mais populosas e de maior atividade econômica. No país, os 10% de trabalhadores mais bem remunerados detêm 42,7% dos rendimentos, percentual que segue indicando a forte desigualdade da distribuição dos rendimentos, apesar de ligeiramente inferior ao de 2007 (43,3%). Em suma, poucos podem pagar pela água, e os preços praticados após a privatização, em várias partes do mundo, se elevam. No Brasil não tem sido diferente.
Em 2006, um projeto pioneiro surgiu na área de conservação da água, fundamental para uma mudança no tratamento da questão ambiental no meio rural. O piloto do projeto chamado de Produtores de Água foi desenvolvido nas bacias do rio Piracicaba, Capivari e Jundiaí, em áreas integrantes do Sistema Cantareira, prioritárias para a produção de água. Implementado por subbacias o Produtor de Água prevê apoio técnico e financeiro à execução de ações de conservação de água e solo, como a construção de terraços e bacias de infiltração, a readequação de estradas vicinais, a recuperação e proteção de nascentes, o reflorestamento de áreas de proteção permanente e reserva legal, o saneamento ambiental, etc. Prevê também o pagamento de incentivos (compensação financeira e outros) aos produtores rurais que, comprovadamente, contribuírem para a proteção e a recuperação de mananciais, gerando benefícios para a bacia e sua população. A concessão dos incentivos ocorre somente após a implantação parcial ou total das ações e práticas conservacionistas, previamente contratadas. E os valores a serem pagos aos produtores são calculados em fuçnão dos resultados: abatimento da erosão e da sedimentação, redução da poluição difusa e aumento da infiltração de água no solo. O produtor rural participa ativamente do processo, assumindo os papéis de fiscal, executor e mantenedor das ações. O Estado do Rio de Janeiro já adotou o projeto de Produtores de Água.
Guerras por água
E seu livro Guerras por água, privatização, poluição e lucro, Vandana Shiva deixa claro que nem as leis internacionais sobre águas, nem as leis nacionais respondem adequadamente aos desafios políticos e ecológicos colocados pelos conflitos por água. Nenhum documento legal na legislação atual menciona a mais fundamental lei relacionada à água – a lei natural do ciclo da água.
Shiva descreve as Quatro teorias dos direitos à água: A teoria da soberania territorial; A teoria do fluxo da água; A teoria da divisão equitativa; e A teoria do interesse da comunidade, que guiaram as práticas de distribuição desse recurso em todo o mundo.
A teoria da soberania territorial de 1896, também conhecida como doutrina Harmon, sustenta que os estados ribeirinhos têm direitos exclusivos ou soberanos sobre as águas que fluem em seu território. Os países podem utilizar essas águas como bem entenderem, a despeito de infringirem direitos de outros estados ribeirinhos. Essa doutrina foi importante na disputa entre EUA e México sobre o rio Grande. A doutrina Harmon nunca conquistou aceitação completa porque viola o conceito de justiça. Mesmo países que se beneficiaram da regra concederam direitos aos usuários ribeirinhos inferiores.
A teoria do fluxo natural da água, também conhecida como teoria da integridade territorial, afirma que já que um rio é parte do território do estado, todo proprietário ribeirinho inferior tem direito ao fluxo natural desse rio, sem ser tolhidos pelos proprietários ribeirinhos superiores. O proprietário ribeirinho superior
deve permitir que a água flua no seu curso natural para o proprietário ribeirinho inferior no seu canal comum com utilização razoável da parte do proprietário ribeirinho superior. Este princípio deriva das leis britânicas de propriedade privada e aplicava-se à água num estado unitário.
As teorias de uso equitativo e interesse comunitário têm grande semelhança. O uso equitativo sustenta que os rios internacionais deveriam ser utilizados por estados diferentes em base justa. Nos anos recentes, a teoria da utilização equitativa ganhou aceitação internacional. As Regras de Helsinque sobre o Uso das Águas dos Rios Internacionais, adotadas em 1966, reconheceram que os estados têm direito a uma parte razoável e equitativa no uso benefício das águas de uma bacia de drenagem internacional. Estas regras derrubaram aquelas do oeste norte-americano e estabeleceram que uma utilização existente possa ter que dar lugar a uma nova utilização para uma distribuição equitativa.
Apesar de popular, a teoria da distribuição equitativa esbarra no conceito de "distribuição equitativa". O critério equitativo, utilizado para resolver conflitos interestatais, não se presta a uma articulação precisa; dividir um rio não é tarefa das mais fáceis. O princípio subjacente do rateio equitativo é a equidade, não a igualdade. utilidade equitativa é definida como o máximo de benefício provido a todos os estados ribeirinhos, levando em consideração suas diferentes necessidades econômicas
A necessidade atual é combinar ecologia com equidade e sustentabilidade com justiça.
A existência de princípios internacionais, como as Regras de Hesinque e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Referente ao Uso dos Cursos d Água internacionais para Fins outros que a Navegação, não garante, necessariamente, a justiça. Cada bacia é tão distinta que uma abordagem monolítica do uso da água seria inviável.
A questão dos direitos de alocação da água não se dá apenas como uma questão de equilíbrio entre a soberania territorial e os direitos ribeirinhos; projetos de água também têm um forte impacto ecológico, e os custos são distribuídos de maneira desigual entre estados e entre grupos sociais. Apesar do fluxo natural não ser um critério absoluto, a conservação deve ser um critério para determinar o uso sustentável. A perspectiva ecológica também ajuda a corrigir a visão de que a água conservada é água desperdiçada. As ligações ecológicas entre a água da superfície e os lençóis freáticos e entre a água doce e a vida nos oceanos não foram observadas nem no gerenciamento das fontes, nem nos arcabouços legais.
"As guerras por água são guerras paradigmáticas – conflitos sobre como percebemos e experimentamos a água – e guerras tradicionais, travadas com revólveres e granadas. Estes choques entre culturas da água estão ocorrendo em todas as sociedades. A cultura da mercantilização está em guerra com diversas culturas de compartilhamento, de receber e dar água gratuitamente", define Vandana Shiva. Guerras paradigmáticas, explica, porque ocorrem em todas as sociedades de leste a oeste, de norte a sul. Neste sentido, guerras por água são guerras globais, com culturas e ecossistemas diferentes, compartilhando a ética universal da água como uma necessidade ecológica, em oposição a uma cultura corporativa de privatização, ganância e o cerco das águas públicas. Num dos lados dessas disputas estão milhões de espécies e bilhões de pessoas que buscam água suficiente para sua manutenção. Do outro lado, está um punhado de corporações globais, dominadas pela Suez Lyonnaise des Eaux, Vivendi Environment (Veloia) e Betchel, a OMC, o FMI e os governos do G7. Muitos conflitos políticos por recursos naturais, no entanto, são escondidos ou sufocados. Aqueles que controlam o poder preferem mascarar as guerras por água como conflitos étnicos e religiosos. Tais deturpações de guerras por água desviam a energia política necessária para soluções justas e sustentáveis sobre a partilha da água. Algo similar aconteceu com os conflitos por terra e água entre palestinos e israelenses.
Vandana Shiva argumenta que "a ecologia do terror nos mostra o caminho para a paz. A paz está em alimentarmos a democracia econômica e ecológica e em nutrirmos a diversidade. Democracia não é apenas um ritual eleitoral, mas o poder para as pessoas moldarem seu destino, determinarem como seus recursos naturais são possuídos e utilizados, como sua sede é saciada, como sua comida é produzida e distribuída e que sistemas de saúde e educação elas têm.
Criar a paz, ela assinala, exige que resolvamos as guerras por água, guerras por comida, guerras por biodiversidade e guerras pela atmosfera. Como Gandhi
disse uma vez: "A Terra tem o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a ganância de alguns poucos".
* Série Água continua amanhã (25/3) com o seguinte tema: Princípios da democracia da água.
Por Maria Lúcia Martins
Público e privado
Vandana Shiva nos relata que antes da chegada dos britânicos ao sul da Índia, comunidades geriam sistemas de água coletivamente por meio de um sistema chamado kudimaramath (auto-reparo). Antes do advento da legislação corporativa por parte da East Índia Company, no século 18, um camponês pagava a um fundo público trezentas mil unidades de grão que ganhasse e duzentas e cinquenta dessas unidades ficavam no povoado para a manutenção das provisões comuns e dos trabalhos públicos. Em 1830, os pagamentos dos camponeses elevaram-se a 650 unidades, das quais quinhentas e quarenta iam direto para a East India Company. Como resultado, houve aumento do pagamento e da perda de receita de manutenção os camponeses e as provisões comuns foram destruídas.
Cerca de trezentos mil reservatórios de água construídos durante séculos na Índia pré-britânica foram destruídos, afetando a produtividade agrícola e a renda dos agricultores.
A East India Company foi expulsa pelo primeiro movimento de pela independência em 1857. Em 1858, os britânicos aprovaram a Lei do Trabalho Compulsório de Madras, popularmente conhecida como a Lei Kudimaramath, determinando que os camponeses fornecessem mão-de-obra para a manutenção dos sistemas de água e irrigação. Pelo fato de o kudimaramath ser baseado na autogestão e não na coerção, a lei fracassou em mobilizar a participação da comunidade na reconstrução de provisões comuns.
Comunidades autogeridas não foram apenas uma realidade histórica, elas são um fato contemporâneo. Interferência estatal e privatização não as destruíram inteiramente. Em levantamento de nivel nacional, que cobriu distritos nas regiões tropicais secas em sete estados, N.S. Jodha chegou à conclusão de que as necessidades de combustível e forragem mais básicas dos pobres de toda a Índia continuam a ser supridas a partir de recursos vindos de propriedades públicas.
Podemos ver as semelhanças da experiência da Índia com o Brasil, onde o aumento de tarifas continua ao longo do processo de privatização de nossa água, e os preços crescentes excluem os pobres. Também tivemos e ainda temos no país, em pontos do interior, a autogestão dos recursos hídricos por comunidades. Mas, gradativamente, a autogestão foi substituída pelas companhias públicas e, hoje, por empresas privadas em boa parte vinculadas a grandes corporações transnacionais.
Situação no Brasil
A participação das empresas privadas vem crescendo cada vez mais dentro setor de saneamento básico brasileiro, que envolve tratamento de água e esgoto, e atualmente depende, essencialmente, das companhias públicas, municipais e estaduais. Algumas empresas que atuam no país são vinculadas à grandes corporações, mas esta vinculação nem sempre está explicita nos sites destas empresas.
Os dados da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, feita pelo IBGE revelam que o percentual de domicílios ligados à rede de esgoto permanece subindo: de 51,1% (2007) para 52,5% (2008). No entanto, a proporção de domicílios ligados à rede de esgoto cai na região Norte. Em 2008, o Brasil tinha 30,2 milhões domicílios ligados à rede de esgoto, uma participação 1,4 ponto percentual maior que em 2007. O Norte, mesmo tendo a menor parcela (9,5%) de domicílios com esse serviço, teve redução de 0,5 ponto percentual, não mantendo o crescimento ocorrido entre 2006 e 2007. Nessa região cresceu 5,5 pontos percentuais a proporção de domicílios com fossa séptica (mais 308 mil). O Norte ainda possuía 1,6 milhão de domicílios sem rede coletora ou fossa séptica. O percentual de domicílios atendidos por rede geral de abastecimento de água (83,9%) também manteve-se em crescimento: mais 0,7 ponto percentual ou 1,9 milhão de unidades em relação a 2007. No Nordeste, o acréscimo foi de 2,3 pontos percentuais, ou mais 770 mil domicílios. Após alta de 0,6 ponto percentual em relação a 2007, 87,9% (50,6 milhões) dos domicílios passaram a contar com coleta de lixo. Houve altas em todas as regiões.
Os serviços de saneamento básico estão concentrados em regiões mais populosas e de maior atividade econômica. No país, os 10% de trabalhadores mais bem remunerados detêm 42,7% dos rendimentos, percentual que segue indicando a forte desigualdade da distribuição dos rendimentos, apesar de ligeiramente inferior ao de 2007 (43,3%). Em suma, poucos podem pagar pela água, e os preços praticados após a privatização, em várias partes do mundo, se elevam. No Brasil não tem sido diferente.
Em 2006, um projeto pioneiro surgiu na área de conservação da água, fundamental para uma mudança no tratamento da questão ambiental no meio rural. O piloto do projeto chamado de Produtores de Água foi desenvolvido nas bacias do rio Piracicaba, Capivari e Jundiaí, em áreas integrantes do Sistema Cantareira, prioritárias para a produção de água. Implementado por subbacias o Produtor de Água prevê apoio técnico e financeiro à execução de ações de conservação de água e solo, como a construção de terraços e bacias de infiltração, a readequação de estradas vicinais, a recuperação e proteção de nascentes, o reflorestamento de áreas de proteção permanente e reserva legal, o saneamento ambiental, etc. Prevê também o pagamento de incentivos (compensação financeira e outros) aos produtores rurais que, comprovadamente, contribuírem para a proteção e a recuperação de mananciais, gerando benefícios para a bacia e sua população. A concessão dos incentivos ocorre somente após a implantação parcial ou total das ações e práticas conservacionistas, previamente contratadas. E os valores a serem pagos aos produtores são calculados em fuçnão dos resultados: abatimento da erosão e da sedimentação, redução da poluição difusa e aumento da infiltração de água no solo. O produtor rural participa ativamente do processo, assumindo os papéis de fiscal, executor e mantenedor das ações. O Estado do Rio de Janeiro já adotou o projeto de Produtores de Água.
Guerras por água
E seu livro Guerras por água, privatização, poluição e lucro, Vandana Shiva deixa claro que nem as leis internacionais sobre águas, nem as leis nacionais respondem adequadamente aos desafios políticos e ecológicos colocados pelos conflitos por água. Nenhum documento legal na legislação atual menciona a mais fundamental lei relacionada à água – a lei natural do ciclo da água.
Shiva descreve as Quatro teorias dos direitos à água: A teoria da soberania territorial; A teoria do fluxo da água; A teoria da divisão equitativa; e A teoria do interesse da comunidade, que guiaram as práticas de distribuição desse recurso em todo o mundo.
A teoria da soberania territorial de 1896, também conhecida como doutrina Harmon, sustenta que os estados ribeirinhos têm direitos exclusivos ou soberanos sobre as águas que fluem em seu território. Os países podem utilizar essas águas como bem entenderem, a despeito de infringirem direitos de outros estados ribeirinhos. Essa doutrina foi importante na disputa entre EUA e México sobre o rio Grande. A doutrina Harmon nunca conquistou aceitação completa porque viola o conceito de justiça. Mesmo países que se beneficiaram da regra concederam direitos aos usuários ribeirinhos inferiores.
A teoria do fluxo natural da água, também conhecida como teoria da integridade territorial, afirma que já que um rio é parte do território do estado, todo proprietário ribeirinho inferior tem direito ao fluxo natural desse rio, sem ser tolhidos pelos proprietários ribeirinhos superiores. O proprietário ribeirinho superior
deve permitir que a água flua no seu curso natural para o proprietário ribeirinho inferior no seu canal comum com utilização razoável da parte do proprietário ribeirinho superior. Este princípio deriva das leis britânicas de propriedade privada e aplicava-se à água num estado unitário.
As teorias de uso equitativo e interesse comunitário têm grande semelhança. O uso equitativo sustenta que os rios internacionais deveriam ser utilizados por estados diferentes em base justa. Nos anos recentes, a teoria da utilização equitativa ganhou aceitação internacional. As Regras de Helsinque sobre o Uso das Águas dos Rios Internacionais, adotadas em 1966, reconheceram que os estados têm direito a uma parte razoável e equitativa no uso benefício das águas de uma bacia de drenagem internacional. Estas regras derrubaram aquelas do oeste norte-americano e estabeleceram que uma utilização existente possa ter que dar lugar a uma nova utilização para uma distribuição equitativa.
Apesar de popular, a teoria da distribuição equitativa esbarra no conceito de "distribuição equitativa". O critério equitativo, utilizado para resolver conflitos interestatais, não se presta a uma articulação precisa; dividir um rio não é tarefa das mais fáceis. O princípio subjacente do rateio equitativo é a equidade, não a igualdade. utilidade equitativa é definida como o máximo de benefício provido a todos os estados ribeirinhos, levando em consideração suas diferentes necessidades econômicas
A necessidade atual é combinar ecologia com equidade e sustentabilidade com justiça.
A existência de princípios internacionais, como as Regras de Hesinque e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Referente ao Uso dos Cursos d Água internacionais para Fins outros que a Navegação, não garante, necessariamente, a justiça. Cada bacia é tão distinta que uma abordagem monolítica do uso da água seria inviável.
A questão dos direitos de alocação da água não se dá apenas como uma questão de equilíbrio entre a soberania territorial e os direitos ribeirinhos; projetos de água também têm um forte impacto ecológico, e os custos são distribuídos de maneira desigual entre estados e entre grupos sociais. Apesar do fluxo natural não ser um critério absoluto, a conservação deve ser um critério para determinar o uso sustentável. A perspectiva ecológica também ajuda a corrigir a visão de que a água conservada é água desperdiçada. As ligações ecológicas entre a água da superfície e os lençóis freáticos e entre a água doce e a vida nos oceanos não foram observadas nem no gerenciamento das fontes, nem nos arcabouços legais.
"As guerras por água são guerras paradigmáticas – conflitos sobre como percebemos e experimentamos a água – e guerras tradicionais, travadas com revólveres e granadas. Estes choques entre culturas da água estão ocorrendo em todas as sociedades. A cultura da mercantilização está em guerra com diversas culturas de compartilhamento, de receber e dar água gratuitamente", define Vandana Shiva. Guerras paradigmáticas, explica, porque ocorrem em todas as sociedades de leste a oeste, de norte a sul. Neste sentido, guerras por água são guerras globais, com culturas e ecossistemas diferentes, compartilhando a ética universal da água como uma necessidade ecológica, em oposição a uma cultura corporativa de privatização, ganância e o cerco das águas públicas. Num dos lados dessas disputas estão milhões de espécies e bilhões de pessoas que buscam água suficiente para sua manutenção. Do outro lado, está um punhado de corporações globais, dominadas pela Suez Lyonnaise des Eaux, Vivendi Environment (Veloia) e Betchel, a OMC, o FMI e os governos do G7. Muitos conflitos políticos por recursos naturais, no entanto, são escondidos ou sufocados. Aqueles que controlam o poder preferem mascarar as guerras por água como conflitos étnicos e religiosos. Tais deturpações de guerras por água desviam a energia política necessária para soluções justas e sustentáveis sobre a partilha da água. Algo similar aconteceu com os conflitos por terra e água entre palestinos e israelenses.
Vandana Shiva argumenta que "a ecologia do terror nos mostra o caminho para a paz. A paz está em alimentarmos a democracia econômica e ecológica e em nutrirmos a diversidade. Democracia não é apenas um ritual eleitoral, mas o poder para as pessoas moldarem seu destino, determinarem como seus recursos naturais são possuídos e utilizados, como sua sede é saciada, como sua comida é produzida e distribuída e que sistemas de saúde e educação elas têm.
Criar a paz, ela assinala, exige que resolvamos as guerras por água, guerras por comida, guerras por biodiversidade e guerras pela atmosfera. Como Gandhi
disse uma vez: "A Terra tem o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a ganância de alguns poucos".
* Série Água continua amanhã (25/3) com o seguinte tema: Princípios da democracia da água.
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terça-feira, 23 de março de 2010
Água, um direito a ser preservado
Série Água (parte 2)
Por Maria Lúcia Martins
Economia caubói
Vandana Shiva classifica como "economia caubói" o que aconteceu nos campos de mineração do oeste norte-americano. A noção caubói da propriedade privada e a lei da apropriação - Qui prior est in tempore, potior est in jure (Aquele que é o primeiro no tempo, é o primeiro no direito) - surgiu ali, estabeleceu direitos à propriedade absolutos, incluindo o direito a vender e comercializar água. E ela segue: "O sentimento caubói de que ‘poder é direito’ permitiu que os economicamente poderosos investissem em meios de apropriação de água de capital intensivo, a despeito das necessidades dos outros e dos limites dos sistemas de água. Essa fronteira lógica conferiu ao primeiro apropriador um direito exclusivo à água. A versão contemporânea da economia caubói, compara Shiva, é a investida para privatizar as fontes públicas de água. "Apresentando-se como um mercado anônimo, os ricos e poderosos usam o Estado para se apropriarem de água da natureza e das pessoas por meio da doutrina da apropriação prévia. Grupos de interesse privado ignoram sistematicamente a opção de controle comunitário sobre a água".
O tratado sobre a propriedade de John Locke legitimou efetivamente o roubo das terras comunitárias feudais do século 17. "Sempre que ele [o homem] tira um objeto do estado em que a natureza colocou e mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, torna-o assim sua propriedade". A liberdade individual era dependente da liberdade de possuir, através do trabalho, a terra, as florestas, os rios. O tratado sobre a propriedade de Locke continua a instruir teorias e práticas que corroem provisões comuns e destroem a Terra. Shiva assinala que, em termos contemporâneos, a privatização da água está baseada no artigo Tragedy of the Commons, de Garret Hardin, publicado pela primeira vez em 1968. "Hardin supõe que as terras comunitárias eram socialmente incontroladas, sistemas de acesso restrito sem qualquer conceito de posse. E Hardin vê a ausência de propriedade privada como uma receita para a ilegalidade", diz ela.
Direito à água potável e conservação
Além do Estado e do mercado, encontra-se o poder de participação da comunidade. É neste poder que se apóiam os inúmeros movimentos pelo direito à água.
Vandana Shiva afirma que "um arcabouço legal coerente para uma política justa e sustentável de uso da água poderá surgir apenas quando houver um diálogo entre o movimento contra as represas, o movimento contra os riscos ecológicos da irrigação intensiva e o movimento pelos direitos à água. A chave para ligar esses movimentos é a perspectiva ecológica, que conecta a água a suas várias funções nas bacias dos rios. Um paradigma ecológico permite uma auditoria dos projetos de água, expõe os custos escondidos de tais projetos e propõe uma alternativa para a alocação de recursos".
"O comércio de licenças de poluição viola a democracia ecológica e o direito das pessoas à água limpa por vários motivos", afirma Shiva. "Ele muda o papel dos governos de protetores dos direitos das pessoas à água para advogados dos direitos dos poluidores. Governos adotam papéis regulatórios que são anti-humanos e pró-indústrias poluidoras. Empresas tentaram reintroduzir o direto a poluir através de esforços por baixo do pano, como direitos de comercialização de produção ou licenças de comercialização de emissões de poluentes (TDPs). TDPs excluem não-poluidores e cidadãos comuns de um papel democrático ativo no controle da poluição, já que o comércio da poluição está restrito às indústrias poluidoras.
Shiva analisa que conforme as novas tecnologias substituem os sistemas de autoadministração, as estruturas de controle democráticas do povo se deterioram
e seu papel na conservação diminui. Para manter suas atividades, poluidores criaram mercados "da poluição", pagam para poluir, quando poderiam mitigar a poluição de suas atividades e mesmo evitá-la.
Sistemas de água tradicionais baseados em gestão local eram um seguro contra a escassez de água em regiões propensas à seca e instituições locais de gestão de água incluíam associações de agricultores, funcionários de irrigação local, técnicos da irrigação local, as associações de água dos povoados e o sistema de trabalho comunitário, mantido por contribuições de cada família.
Manipulação da água
Segundo Shiva, diz-se que um país enfrenta uma crise de água grave quando a água disponível é menor que mil metros cúbicos por habitante por ano. Abaixo desse ponto, a saúde e o desenvolvimento econômico de uma nação são dificultados consideravelmente. Quando a disponibilidade anual de água por habitante cai abaixo de quinhentos metros cúbicos/ano, compromete-se cruelmente a sobrevivência da população. Desde 1970, o suprimento da água global per capita diminuiu em 33% . O declínio não resulta apenas do aumento populacional, mas é agravado também pelo uso excessivo de água. Durante o último século, a taxa de retirada de água excedeu a do crescimento populacional pelo fator de 2,5.
Infelizmente, ela comenta, a globalização está revertendo os resultados das vitórias democráticas e ecológicas dos anos 1980. Falando da Índia, ela revela que a mineração está se alastrando em áreas mais vulneráveis, incluindo o Rajasthan. A tecnologia tribal não destruiu os rios e montanhas como a indústria de mineração destrói e as atividades de mineração da Balco não estão baseadas nas necessidades do povo indiano - são totalmente dirigidas pela demanda dos países industrializados cujas plantas fabris de alumínio estão fechando por razões ambientais.
Sobre a Revolução Verde, a ativista aponta os custos os custos sociais ecológicos que foram amplamente ignorados. Por sua ênfase em sementes de alta produtividade, explica Vandana, esse modelo agrícola removeu variedades locais de colheitas resistentes à seca e as substituíram por plantações que necessitam de água em abundância. A Revolução Verde, com seu uso intensivo de água, levou à extração de água em áreas onde este recurso é escasso. Antes da Revolução Verde, a água do solo era acessada por meio de tecnologias de irrigação protetoras e nativas. No entanto, essas tecnologias, que dependiam da energia humana ou animal renovável foram classificados como "ineficientes" e substituídos por motores movidos a óleo e bombas elétricas que extraíam água numa velocidade maior do que os ciclos da natureza podiam reabastecer os lençóis freáticos.
Projetos de desenvolvimento na árida África subsaariana foram fundamentais para a fome dos as 1970 e 1980. Acreditava-se que a escavação de poços fosse o melhor mecanismo para as regiões pastoris em desenvolvimento. A prática pastoril de mudar o gado para locais diferentes foi destruída com a introdução dos poços movidos a energia elétrica. O novos poços forneciam mais água do que os pastores precisavam e encorajava seu estabelecimento em uma localidade, aumentando a pressão pastoril sobre a terra. Com efeito, pastores que se estabeleceram nessas localidades pioraram o problema da desertificação; esta mudança no comportamento dos criadores ignorou tradições centenárias que asseguravam a sobrevivência sob condições de baixa disponibilidade de água.
Projetos de água gigantes, na maioria dos casos, beneficiam os poderosos e despojam os fracos.Até mesmo quando tais projetos são financiados com recursos públicos, seus beneficiários são principalmente construtoras, indústrias e grandes agricultores. Enquanto a privatização é em geral colocada sob a perspectiva do desaparecimento do Estado, o que vemos de fato é a intervenção crescente do Estado na política de Águas, subvertendo o controle comunitário das reservas desse recurso. Políticas impostas pelo Banco Mundial e por regras de liberalização do comércio desenvolvidas pela OMC-Organização Mundial do Comércio estão criando uma vasta cultura de estados corporações por todo o mundo.
* Série Água continua amanhã (24/3) com os seguintes temas: Público e privado; Situação no Brasil; e Guerras por água.
Por Maria Lúcia Martins
Economia caubói
Vandana Shiva classifica como "economia caubói" o que aconteceu nos campos de mineração do oeste norte-americano. A noção caubói da propriedade privada e a lei da apropriação - Qui prior est in tempore, potior est in jure (Aquele que é o primeiro no tempo, é o primeiro no direito) - surgiu ali, estabeleceu direitos à propriedade absolutos, incluindo o direito a vender e comercializar água. E ela segue: "O sentimento caubói de que ‘poder é direito’ permitiu que os economicamente poderosos investissem em meios de apropriação de água de capital intensivo, a despeito das necessidades dos outros e dos limites dos sistemas de água. Essa fronteira lógica conferiu ao primeiro apropriador um direito exclusivo à água. A versão contemporânea da economia caubói, compara Shiva, é a investida para privatizar as fontes públicas de água. "Apresentando-se como um mercado anônimo, os ricos e poderosos usam o Estado para se apropriarem de água da natureza e das pessoas por meio da doutrina da apropriação prévia. Grupos de interesse privado ignoram sistematicamente a opção de controle comunitário sobre a água".
O tratado sobre a propriedade de John Locke legitimou efetivamente o roubo das terras comunitárias feudais do século 17. "Sempre que ele [o homem] tira um objeto do estado em que a natureza colocou e mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, torna-o assim sua propriedade". A liberdade individual era dependente da liberdade de possuir, através do trabalho, a terra, as florestas, os rios. O tratado sobre a propriedade de Locke continua a instruir teorias e práticas que corroem provisões comuns e destroem a Terra. Shiva assinala que, em termos contemporâneos, a privatização da água está baseada no artigo Tragedy of the Commons, de Garret Hardin, publicado pela primeira vez em 1968. "Hardin supõe que as terras comunitárias eram socialmente incontroladas, sistemas de acesso restrito sem qualquer conceito de posse. E Hardin vê a ausência de propriedade privada como uma receita para a ilegalidade", diz ela.
Direito à água potável e conservação
Além do Estado e do mercado, encontra-se o poder de participação da comunidade. É neste poder que se apóiam os inúmeros movimentos pelo direito à água.
Vandana Shiva afirma que "um arcabouço legal coerente para uma política justa e sustentável de uso da água poderá surgir apenas quando houver um diálogo entre o movimento contra as represas, o movimento contra os riscos ecológicos da irrigação intensiva e o movimento pelos direitos à água. A chave para ligar esses movimentos é a perspectiva ecológica, que conecta a água a suas várias funções nas bacias dos rios. Um paradigma ecológico permite uma auditoria dos projetos de água, expõe os custos escondidos de tais projetos e propõe uma alternativa para a alocação de recursos".
"O comércio de licenças de poluição viola a democracia ecológica e o direito das pessoas à água limpa por vários motivos", afirma Shiva. "Ele muda o papel dos governos de protetores dos direitos das pessoas à água para advogados dos direitos dos poluidores. Governos adotam papéis regulatórios que são anti-humanos e pró-indústrias poluidoras. Empresas tentaram reintroduzir o direto a poluir através de esforços por baixo do pano, como direitos de comercialização de produção ou licenças de comercialização de emissões de poluentes (TDPs). TDPs excluem não-poluidores e cidadãos comuns de um papel democrático ativo no controle da poluição, já que o comércio da poluição está restrito às indústrias poluidoras.
Shiva analisa que conforme as novas tecnologias substituem os sistemas de autoadministração, as estruturas de controle democráticas do povo se deterioram
e seu papel na conservação diminui. Para manter suas atividades, poluidores criaram mercados "da poluição", pagam para poluir, quando poderiam mitigar a poluição de suas atividades e mesmo evitá-la.
Sistemas de água tradicionais baseados em gestão local eram um seguro contra a escassez de água em regiões propensas à seca e instituições locais de gestão de água incluíam associações de agricultores, funcionários de irrigação local, técnicos da irrigação local, as associações de água dos povoados e o sistema de trabalho comunitário, mantido por contribuições de cada família.
Manipulação da água
Segundo Shiva, diz-se que um país enfrenta uma crise de água grave quando a água disponível é menor que mil metros cúbicos por habitante por ano. Abaixo desse ponto, a saúde e o desenvolvimento econômico de uma nação são dificultados consideravelmente. Quando a disponibilidade anual de água por habitante cai abaixo de quinhentos metros cúbicos/ano, compromete-se cruelmente a sobrevivência da população. Desde 1970, o suprimento da água global per capita diminuiu em 33% . O declínio não resulta apenas do aumento populacional, mas é agravado também pelo uso excessivo de água. Durante o último século, a taxa de retirada de água excedeu a do crescimento populacional pelo fator de 2,5.
Infelizmente, ela comenta, a globalização está revertendo os resultados das vitórias democráticas e ecológicas dos anos 1980. Falando da Índia, ela revela que a mineração está se alastrando em áreas mais vulneráveis, incluindo o Rajasthan. A tecnologia tribal não destruiu os rios e montanhas como a indústria de mineração destrói e as atividades de mineração da Balco não estão baseadas nas necessidades do povo indiano - são totalmente dirigidas pela demanda dos países industrializados cujas plantas fabris de alumínio estão fechando por razões ambientais.
Sobre a Revolução Verde, a ativista aponta os custos os custos sociais ecológicos que foram amplamente ignorados. Por sua ênfase em sementes de alta produtividade, explica Vandana, esse modelo agrícola removeu variedades locais de colheitas resistentes à seca e as substituíram por plantações que necessitam de água em abundância. A Revolução Verde, com seu uso intensivo de água, levou à extração de água em áreas onde este recurso é escasso. Antes da Revolução Verde, a água do solo era acessada por meio de tecnologias de irrigação protetoras e nativas. No entanto, essas tecnologias, que dependiam da energia humana ou animal renovável foram classificados como "ineficientes" e substituídos por motores movidos a óleo e bombas elétricas que extraíam água numa velocidade maior do que os ciclos da natureza podiam reabastecer os lençóis freáticos.
Projetos de desenvolvimento na árida África subsaariana foram fundamentais para a fome dos as 1970 e 1980. Acreditava-se que a escavação de poços fosse o melhor mecanismo para as regiões pastoris em desenvolvimento. A prática pastoril de mudar o gado para locais diferentes foi destruída com a introdução dos poços movidos a energia elétrica. O novos poços forneciam mais água do que os pastores precisavam e encorajava seu estabelecimento em uma localidade, aumentando a pressão pastoril sobre a terra. Com efeito, pastores que se estabeleceram nessas localidades pioraram o problema da desertificação; esta mudança no comportamento dos criadores ignorou tradições centenárias que asseguravam a sobrevivência sob condições de baixa disponibilidade de água.
Projetos de água gigantes, na maioria dos casos, beneficiam os poderosos e despojam os fracos.Até mesmo quando tais projetos são financiados com recursos públicos, seus beneficiários são principalmente construtoras, indústrias e grandes agricultores. Enquanto a privatização é em geral colocada sob a perspectiva do desaparecimento do Estado, o que vemos de fato é a intervenção crescente do Estado na política de Águas, subvertendo o controle comunitário das reservas desse recurso. Políticas impostas pelo Banco Mundial e por regras de liberalização do comércio desenvolvidas pela OMC-Organização Mundial do Comércio estão criando uma vasta cultura de estados corporações por todo o mundo.
* Série Água continua amanhã (24/3) com os seguintes temas: Público e privado; Situação no Brasil; e Guerras por água.
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segunda-feira, 22 de março de 2010
Água, um direito a ser preservado
"Ao longo da história e por todo mundo, os direitos da água foram moldados tanto pelos limites dos ecossistemas como pela necessidade das pessoas. A água tem sido tratada tradicionalmente como um direito natural –um direito que nasce da natureza humana – das condições históricas, das necessidades básicas ou de noções de justiça. Os direito à água como os direitos naturais não se originam com o Estado; eles surgem de um dado contexto ecológico da existência humana. Assim como os direitos naturais, os direitos á água são direitos usufrutários; a água pode ser usada, mas não possuída. As pessoas têm direito à vida e aos recursos que a sustentam, como a água." Vandana Shiva
* Por Maria Lúcia Martins
Este texto faz parte de uma série que a equipe do blog publica nesta semana da água,que começa hoje, Dia Internacional da Água
Em março de 2000, as corporações que lucram com a água doce do Planeta Terra conseguiram que a água fosse definida como uma mercadoria no segundo Fórum Mundial de Água, em Haia. Representantes de governos, em reunião paralela, não fizeram absolutamente nada para atacar com eficácia a declaração. Em vez disso, os governos ajudaram a pavimentar o caminho para as corporações privadas lucrarem com a venda da água. Desde então, algumas corporações transnacionais, apoiadas pelo Banco Mundial e pelo FMI-Fundo Monetário Internacional estão ofensivamente assumindo a administração dos serviços públicos de água.
No mês de julho do ano seguinte, para fazer frente à ofensiva das grandes corporações, 800 delegados, de 35 países, reunidos na Cúpula da Água para Pessoas e Natureza firmaram o "Tratado para Compartilhar e Proteger a Água, o Bem Comum do Planeta". O Tratado declara que “a água doce não será privatizada, comercializada ou explorada para propósitos comerciais e deve ser imediatamente isenta de todo acordo bilateral e internacional e de acordos de investimentos existentes e futuros”. Esta disposição se contrapõe à conduta dos acordos, e as corporações vêm avançando sobre os mananciais e sobre os setores onde a água é matéria industrial como o de energia, bem como sobre os meios de comunicação, para que as notícias sobre estes fatos sejam editadas conforme os interesses dos grandes grupos econômicos. Inúmeros movimentos, em todo o mundo, se organizam para lutar pela conservação da água e por manter a água como um direito.
As estimativas são de que por volta de 2025, a menos que haja uma mudança de comportamento, entre ½ a 2/3 da humanidade estará vivendo com severa escassez de água doce.
Globalização e escassez
Na maior parte das comunidades nativas, o controle e os direitos coletivos sobre a água foram a chave para a conservação e o recolhimento desse recurso. Ao criar regras e limites para o uso da água, o controle coletivo garantiu sustentabilidade e equidade. Com o advento da globalização, entretanto, controle comunitário da água está sendo corroído e a exploração privada está tomando o controle. Na Índia, como conta Vandana Shiva, sistemas tradicionais de renovação da água estão, agora, em decadência. Num estudo com 152 povoados que utilizam sistemas de recolhimento de água tradicionais, 79 estavam secos ou poluídos. Na região de Mankund, os mil poços artesianos introduzidos secaram as fontes tradicionais de água."A água está disponível apenas se as fontes de água são renovadas e usadas dentro dos limites da sua capacidade de renovação. Quando a filosofia do desenvolvimento corrói o controle comunitário e, em vez disso, promove tecnologias que violam o ciclo da água, a escassez é inevitável", alerta ela.
Nos anos 1970 e 1980, o Banco Mundial e outras agências de fomento concentraram-se em tecnologias desastrosas de abastecimento de água. Desde a década de 1990, essas agências têm insistido agressivamente na privatização e na distribuição de água baseada em critérios de mercado, os quais já prometem ter resultados igualmente catastróficos.
Vandana acrescenta que "pressuposições reducionistas sobre o desenvolvimento da água defendem que, quando se trata de utilizar recursos naturais, a natureza é deficiente e as tradições das pessoas são ineficientes. No entanto, zonas ecológicas diferentes têm sido a base de culturas e economias variadas. As zonas áridas diferentes têm sido usadas para pastoreio de forma sustentável e as zonas semi-áridas têm sido usadas para a lavoura seca com irrigação suplementar".
Democracia ecológica e direitos à água
Todos concordam que o mundo está enfrentando uma crise séria de água, constata Shiva e adverte: "há, no entanto, dois paradigmas conflitantes para explicar a crise da água: o paradigma do mercado e o paradigma ecológico. O paradigma de mercado enxerga a escassez de água como uma crise que resulta da ausência de comércio de água. Se a água pudesse ser transportada e distribuída livremente por meio de mercados livres, é o que sustenta esse paradigma, ela seria transferida para regiões de escassez e preços mais elevados levariam à conservação desse recurso. Pressuposições de mercado são cegas aos limites ecológicos impostos pelo ciclo da água e aos limites econômicos impostos pela pobreza. A superexploração da água e a ruptura de seu ciclo criam uma escassez absoluta que os mercados não podem substituir com outras mercadorias. A pressuposição da substituição é, de fato, central na lógica da comoditização".
Shiva destaca que "mais do que qualquer outro recurso, a água precisa permanecer como um bem comum e necessita do gerenciamento comunitário. Com efeito, na maioria das sociedades, a propriedade privada da água foi proibida. Textos antigos, como o Código Justiniano, mostram que a água e os recursos naturais são bens públicos: "Pela lei da natureza essas coisas são comuns à humanidade - o ar, a água corrente, o mar e consequentemente o litoral [Código Justiniano 2,1.1].”
Os direitos comunitários são necessários tanto para a ecologia quanto para a democracia. Controle burocrático por parte de agências externas e distantes e controle de mercado por conta de interesses comerciais e por corporações desestimulam a conservação. Comunidades locais não conservam a água se as agências externas - burocráticas ou comerciais - são as únicas beneficiárias de seus esforços e recursos.
Shiva é categórica: "preços mais altos sob condições de livre mercado não levarão à conservação". Por causa das enormes desigualdades econômicas, há uma grande possibilidade de que os economicamente poderosos desperdiçarão água, enquanto os pobres pagarão o preço por esse desperdício. Diretos comunitários são um imperativo democrático - eles mantêm os estados e interesses comerciais responsáveis pelo que acontece e defendem os direitos das pessoas à água, sob a forma da democracia descentralizada, considera a ativista.
A conservação não interessa aos grandes exploradores, pois pode manter e prover recursos hídricos locais e mesmo regionais que dispensam grandes obras e/ou grandes projetos de tratamento. Para as corporações, quanto maior a escassez, maior a oportunidade de novos negócios e também maior o preço da água, na torneira ou na garrafa.
* Por Maria Lúcia Martins
Este texto faz parte de uma série que a equipe do blog publica nesta semana da água,que começa hoje, Dia Internacional da Água
Em março de 2000, as corporações que lucram com a água doce do Planeta Terra conseguiram que a água fosse definida como uma mercadoria no segundo Fórum Mundial de Água, em Haia. Representantes de governos, em reunião paralela, não fizeram absolutamente nada para atacar com eficácia a declaração. Em vez disso, os governos ajudaram a pavimentar o caminho para as corporações privadas lucrarem com a venda da água. Desde então, algumas corporações transnacionais, apoiadas pelo Banco Mundial e pelo FMI-Fundo Monetário Internacional estão ofensivamente assumindo a administração dos serviços públicos de água.
No mês de julho do ano seguinte, para fazer frente à ofensiva das grandes corporações, 800 delegados, de 35 países, reunidos na Cúpula da Água para Pessoas e Natureza firmaram o "Tratado para Compartilhar e Proteger a Água, o Bem Comum do Planeta". O Tratado declara que “a água doce não será privatizada, comercializada ou explorada para propósitos comerciais e deve ser imediatamente isenta de todo acordo bilateral e internacional e de acordos de investimentos existentes e futuros”. Esta disposição se contrapõe à conduta dos acordos, e as corporações vêm avançando sobre os mananciais e sobre os setores onde a água é matéria industrial como o de energia, bem como sobre os meios de comunicação, para que as notícias sobre estes fatos sejam editadas conforme os interesses dos grandes grupos econômicos. Inúmeros movimentos, em todo o mundo, se organizam para lutar pela conservação da água e por manter a água como um direito.
As estimativas são de que por volta de 2025, a menos que haja uma mudança de comportamento, entre ½ a 2/3 da humanidade estará vivendo com severa escassez de água doce.
Globalização e escassez
Na maior parte das comunidades nativas, o controle e os direitos coletivos sobre a água foram a chave para a conservação e o recolhimento desse recurso. Ao criar regras e limites para o uso da água, o controle coletivo garantiu sustentabilidade e equidade. Com o advento da globalização, entretanto, controle comunitário da água está sendo corroído e a exploração privada está tomando o controle. Na Índia, como conta Vandana Shiva, sistemas tradicionais de renovação da água estão, agora, em decadência. Num estudo com 152 povoados que utilizam sistemas de recolhimento de água tradicionais, 79 estavam secos ou poluídos. Na região de Mankund, os mil poços artesianos introduzidos secaram as fontes tradicionais de água."A água está disponível apenas se as fontes de água são renovadas e usadas dentro dos limites da sua capacidade de renovação. Quando a filosofia do desenvolvimento corrói o controle comunitário e, em vez disso, promove tecnologias que violam o ciclo da água, a escassez é inevitável", alerta ela.
Nos anos 1970 e 1980, o Banco Mundial e outras agências de fomento concentraram-se em tecnologias desastrosas de abastecimento de água. Desde a década de 1990, essas agências têm insistido agressivamente na privatização e na distribuição de água baseada em critérios de mercado, os quais já prometem ter resultados igualmente catastróficos.
Vandana acrescenta que "pressuposições reducionistas sobre o desenvolvimento da água defendem que, quando se trata de utilizar recursos naturais, a natureza é deficiente e as tradições das pessoas são ineficientes. No entanto, zonas ecológicas diferentes têm sido a base de culturas e economias variadas. As zonas áridas diferentes têm sido usadas para pastoreio de forma sustentável e as zonas semi-áridas têm sido usadas para a lavoura seca com irrigação suplementar".
Democracia ecológica e direitos à água
Todos concordam que o mundo está enfrentando uma crise séria de água, constata Shiva e adverte: "há, no entanto, dois paradigmas conflitantes para explicar a crise da água: o paradigma do mercado e o paradigma ecológico. O paradigma de mercado enxerga a escassez de água como uma crise que resulta da ausência de comércio de água. Se a água pudesse ser transportada e distribuída livremente por meio de mercados livres, é o que sustenta esse paradigma, ela seria transferida para regiões de escassez e preços mais elevados levariam à conservação desse recurso. Pressuposições de mercado são cegas aos limites ecológicos impostos pelo ciclo da água e aos limites econômicos impostos pela pobreza. A superexploração da água e a ruptura de seu ciclo criam uma escassez absoluta que os mercados não podem substituir com outras mercadorias. A pressuposição da substituição é, de fato, central na lógica da comoditização".
Shiva destaca que "mais do que qualquer outro recurso, a água precisa permanecer como um bem comum e necessita do gerenciamento comunitário. Com efeito, na maioria das sociedades, a propriedade privada da água foi proibida. Textos antigos, como o Código Justiniano, mostram que a água e os recursos naturais são bens públicos: "Pela lei da natureza essas coisas são comuns à humanidade - o ar, a água corrente, o mar e consequentemente o litoral [Código Justiniano 2,1.1].”
Os direitos comunitários são necessários tanto para a ecologia quanto para a democracia. Controle burocrático por parte de agências externas e distantes e controle de mercado por conta de interesses comerciais e por corporações desestimulam a conservação. Comunidades locais não conservam a água se as agências externas - burocráticas ou comerciais - são as únicas beneficiárias de seus esforços e recursos.
Shiva é categórica: "preços mais altos sob condições de livre mercado não levarão à conservação". Por causa das enormes desigualdades econômicas, há uma grande possibilidade de que os economicamente poderosos desperdiçarão água, enquanto os pobres pagarão o preço por esse desperdício. Diretos comunitários são um imperativo democrático - eles mantêm os estados e interesses comerciais responsáveis pelo que acontece e defendem os direitos das pessoas à água, sob a forma da democracia descentralizada, considera a ativista.
A conservação não interessa aos grandes exploradores, pois pode manter e prover recursos hídricos locais e mesmo regionais que dispensam grandes obras e/ou grandes projetos de tratamento. Para as corporações, quanto maior a escassez, maior a oportunidade de novos negócios e também maior o preço da água, na torneira ou na garrafa.
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domingo, 21 de março de 2010
O Brasil é o maior ''exportador'' de água virtual do mundo. Entrevista especial com John Anthony Allan
Por Graziela Wolfart
“A forma como usamos a terra e os recursos hídricos no passado negligenciava os impactos ambientais impostos pela agricultura intensiva. Esses custos não se refletem nos preços das commodities alimentícias vendidas e compradas internacionalmente, e nem mesmo nos preços dos alimentos no mercado interno. O Brasil não deveria correr para satisfazer a demanda global por sua água, colocando commodities no mercado mundial a preços que impossibilitem que o ambiente das terras e dos recursos hídricos do Brasil seja usado de modo sustentável”. Essas são as palavras do cientista britânico John Anthony Allan, escritas por ele na entrevista que aceitou conceder, por e-mail. Conhecido no mundo inteiro por ter criado o conceito de água virtual, explicado a seguir, Tony Allan identifica que as grandes economias de água podem ser feitas no setor agrícola, onde os volumes de água usados são vastos. “Os agricultores tomam conta de toda a água verde. Junto com os engenheiros, eles tomam conta de toda a água azul usada na agricultura irrigada. Junto, isto representa 80% da água usada no mundo inteiro. Os agricultores detêm a chave para a segurança da água – especialmente no Brasil”, alerta.
John Anthony Allan é professor no King’s College de Londres e na Escola de Estudos Orientais e Africanos. Pioneiro em conceitos chave para a compreensão e a divulgação das questões referentes à problemática da água e à sua conexão com a agricultura, as mudanças climáticas, a economia e a política, Tony Allan foi laureado com o “Prêmio da Água de Estocolmo 2008” (2008 Stockholm Water Prize).
Confira a entrevista.
O senhor pode explicar o conceito de “água virtual”? Como fazer o cálculo de quanto cada produto consume de água?
John Anthony Allan - Os alimentos e outras commodities necessitam de água para serem produzidos. As commodities alimentícias possuem um teor de água particularmente grande. Por exemplo, as seguintes quantidades de água são necessárias para produzir 1 quilo de:
Trigo: 1.300 litros
Milho: 900
Arroz: 3.400
Carne de frango: 3.900
Carne de porco: 4.800
Carne de ovelha: 6.100
Carne de gado: 15.500
Algodão: 11.000
Ou a seguinte quantidade de litros de água é necessária para produzir 1 unidade dos seguintes produtos:
Um litro de leite: 1.000 litros
Uma xícara de chá: 30
Uma xícara de café: 140
Uma folha de papel: 10
Uma fatia de pão: 40
Uma maçã: 70
Uma camiseta: 2.700
A água embutida nisso é chamada de água virtual.
Quando uma commodity é exportada de um país para outro, o país importador se torna seguro em termos de água e alimentos contanto que tenha uma economia que seja diversificada, e as pessoas tenham meios de vida que lhes possibilitem comprar alimentos importados. Das 210 economias existentes no mundo, ao menos 160 são economias “importadoras” de água virtual. Há apenas cerca de 10 economias que têm um excedente de água significativo que pode ser “exportado” em forma virtual. Esses países incluem os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, Argentina e França. O Brasil é, em potencial, o maior “exportador” de água virtual do mundo.
Quais as maiores consequências ambientais para um país como o Brasil, a partir desta consideração de ser o maior exportador de água virtual do mundo?
John Anthony Allan - A forma como usamos a terra e os recursos hídricos no passado negligenciava os impactos ambientais impostos pela agricultura intensiva. Esses custos não se refletem nos preços das commodities alimentícias vendidas e compradas internacionalmente, e nem mesmo nos preços dos alimentos no mercado interno. O Brasil não deveria correr para satisfazer a demanda global por sua água, colocando commodities no mercado mundial a preços que impossibilitem que o ambiente das terras e dos recursos hídricos do Brasil seja usado de modo sustentável.
Como podemos fazer para que essa “água virtual” seja contabilizada e informada para os consumidores? O senhor acredita que isso ajudaria na questão da economia da água?
John Anthony Allan - Será muito difícil fazer com que o valor da água usada na produção de alimentos de origem vegetal e de carne se reflita no preço dos alimentos. Nem os agricultores que produzem as commodities, nem os comerciantes que as tornam disponíveis nas economias importadoras de alimentos, nem seus clientes e consumidores estão conscientes do teor de água embutida nelas e de seu valor. É improvável que a regulamentação cause algum impacto porque os números sobre o teor de água são muito imprecisos e podem ser facilmente questionados. Educar os consumidores é uma forma mais provável de mudar seu comportamento e sua forma de consumo. Os desafios políticos são imensos, especialmente numa economia de mercado.
Qual a importância de se divulgar a “pegada da água” e que tipo de ações deve ser pensado como resposta aos resultados apresentados por essa “água virtual”?
John Anthony Allan - O conceito de “pegada de água” é uma forma muito eficaz de contribuir para conscientizar os agricultores, negociantes, supermercados e consumidores a respeito do teor de água das commodities que eles produzem, vendem ou compram e consomem. A comparação da pegada de água de uma dieta pesada à base de carne de gado que consome 5 m3 de água por dia com a de um vegetariano que consome 2,5 m3 de água por dia apresenta um resultado crasso. Tem-se mostrado que uma dieta pesada à base de carne de gado e outros produtos de origem animal é muito ruim para a saúde de um indivíduo. Ela também é muito ruim para o meio ambiente aquático.
De que forma o tratamento de esgotos contribui para a economia da água? Quanto se gasta de água para fazer um saneamento básico de qualidade?
John Anthony Allan - A maior parte da água é usada para produzir alimentos. Mais de 80% da água que um indivíduo ou uma economia necessita são usados na produção de alimentos. 70% dessa água é água verde – ou seja, água proveniente de chuva que é retida no solo. A maior parte da produção agrícola do Brasil vem dessa água que está no solo. Os outros 30% são constituídos de água azul ou água doce. A água doce vem dos rios e do lençol freático. A água que usamos em casa e para trabalhos que não a agricultura corresponde a entre 10 e 20% da água de que um indivíduo ou uma economia necessita. A proporção depende de quão industrializada é a economia e de quão elevado é o padrão de vida. Os efluentes líquidos e o esgoto são gerados pelo uso doméstico e industrial de água. Mediante um investimento considerável, os efluentes podem ser reutilizados. Mas é preciso lembrar que esses efluentes são sempre uma pequena proporção do total de água de que a sociedade necessita. É cada vez mais possível e apropriado que as economias avançadas invistam na reutilização de efluentes. Mas a decisão política de alocar verbas para investir no tratamento de efluentes urbanos tem de ser ponderada levando em conta o valor do investimento em outros setores, como educação, saúde, comunicações, energia etc. As grandes economias de água podem ser feitas no setor agrícola, onde os volumes de água usados são vastos. Os agricultores tomam conta de toda a água verde. Ao lado com os engenheiros, eles tomam conta de toda a água azul usada na agricultura irrigada. Junto, isto representa 80% da água usada no mundo inteiro. Os agricultores detêm a chave para a segurança da água – especialmente no Brasil.
Tradução é de Luís Marcos Sander.
Fonte: MST / IHU Online.
“A forma como usamos a terra e os recursos hídricos no passado negligenciava os impactos ambientais impostos pela agricultura intensiva. Esses custos não se refletem nos preços das commodities alimentícias vendidas e compradas internacionalmente, e nem mesmo nos preços dos alimentos no mercado interno. O Brasil não deveria correr para satisfazer a demanda global por sua água, colocando commodities no mercado mundial a preços que impossibilitem que o ambiente das terras e dos recursos hídricos do Brasil seja usado de modo sustentável”. Essas são as palavras do cientista britânico John Anthony Allan, escritas por ele na entrevista que aceitou conceder, por e-mail. Conhecido no mundo inteiro por ter criado o conceito de água virtual, explicado a seguir, Tony Allan identifica que as grandes economias de água podem ser feitas no setor agrícola, onde os volumes de água usados são vastos. “Os agricultores tomam conta de toda a água verde. Junto com os engenheiros, eles tomam conta de toda a água azul usada na agricultura irrigada. Junto, isto representa 80% da água usada no mundo inteiro. Os agricultores detêm a chave para a segurança da água – especialmente no Brasil”, alerta.
John Anthony Allan é professor no King’s College de Londres e na Escola de Estudos Orientais e Africanos. Pioneiro em conceitos chave para a compreensão e a divulgação das questões referentes à problemática da água e à sua conexão com a agricultura, as mudanças climáticas, a economia e a política, Tony Allan foi laureado com o “Prêmio da Água de Estocolmo 2008” (2008 Stockholm Water Prize).
Confira a entrevista.
O senhor pode explicar o conceito de “água virtual”? Como fazer o cálculo de quanto cada produto consume de água?
John Anthony Allan - Os alimentos e outras commodities necessitam de água para serem produzidos. As commodities alimentícias possuem um teor de água particularmente grande. Por exemplo, as seguintes quantidades de água são necessárias para produzir 1 quilo de:
Trigo: 1.300 litros
Milho: 900
Arroz: 3.400
Carne de frango: 3.900
Carne de porco: 4.800
Carne de ovelha: 6.100
Carne de gado: 15.500
Algodão: 11.000
Ou a seguinte quantidade de litros de água é necessária para produzir 1 unidade dos seguintes produtos:
Um litro de leite: 1.000 litros
Uma xícara de chá: 30
Uma xícara de café: 140
Uma folha de papel: 10
Uma fatia de pão: 40
Uma maçã: 70
Uma camiseta: 2.700
A água embutida nisso é chamada de água virtual.
Quando uma commodity é exportada de um país para outro, o país importador se torna seguro em termos de água e alimentos contanto que tenha uma economia que seja diversificada, e as pessoas tenham meios de vida que lhes possibilitem comprar alimentos importados. Das 210 economias existentes no mundo, ao menos 160 são economias “importadoras” de água virtual. Há apenas cerca de 10 economias que têm um excedente de água significativo que pode ser “exportado” em forma virtual. Esses países incluem os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, Argentina e França. O Brasil é, em potencial, o maior “exportador” de água virtual do mundo.
Quais as maiores consequências ambientais para um país como o Brasil, a partir desta consideração de ser o maior exportador de água virtual do mundo?
John Anthony Allan - A forma como usamos a terra e os recursos hídricos no passado negligenciava os impactos ambientais impostos pela agricultura intensiva. Esses custos não se refletem nos preços das commodities alimentícias vendidas e compradas internacionalmente, e nem mesmo nos preços dos alimentos no mercado interno. O Brasil não deveria correr para satisfazer a demanda global por sua água, colocando commodities no mercado mundial a preços que impossibilitem que o ambiente das terras e dos recursos hídricos do Brasil seja usado de modo sustentável.
Como podemos fazer para que essa “água virtual” seja contabilizada e informada para os consumidores? O senhor acredita que isso ajudaria na questão da economia da água?
John Anthony Allan - Será muito difícil fazer com que o valor da água usada na produção de alimentos de origem vegetal e de carne se reflita no preço dos alimentos. Nem os agricultores que produzem as commodities, nem os comerciantes que as tornam disponíveis nas economias importadoras de alimentos, nem seus clientes e consumidores estão conscientes do teor de água embutida nelas e de seu valor. É improvável que a regulamentação cause algum impacto porque os números sobre o teor de água são muito imprecisos e podem ser facilmente questionados. Educar os consumidores é uma forma mais provável de mudar seu comportamento e sua forma de consumo. Os desafios políticos são imensos, especialmente numa economia de mercado.
Qual a importância de se divulgar a “pegada da água” e que tipo de ações deve ser pensado como resposta aos resultados apresentados por essa “água virtual”?
John Anthony Allan - O conceito de “pegada de água” é uma forma muito eficaz de contribuir para conscientizar os agricultores, negociantes, supermercados e consumidores a respeito do teor de água das commodities que eles produzem, vendem ou compram e consomem. A comparação da pegada de água de uma dieta pesada à base de carne de gado que consome 5 m3 de água por dia com a de um vegetariano que consome 2,5 m3 de água por dia apresenta um resultado crasso. Tem-se mostrado que uma dieta pesada à base de carne de gado e outros produtos de origem animal é muito ruim para a saúde de um indivíduo. Ela também é muito ruim para o meio ambiente aquático.
De que forma o tratamento de esgotos contribui para a economia da água? Quanto se gasta de água para fazer um saneamento básico de qualidade?
John Anthony Allan - A maior parte da água é usada para produzir alimentos. Mais de 80% da água que um indivíduo ou uma economia necessita são usados na produção de alimentos. 70% dessa água é água verde – ou seja, água proveniente de chuva que é retida no solo. A maior parte da produção agrícola do Brasil vem dessa água que está no solo. Os outros 30% são constituídos de água azul ou água doce. A água doce vem dos rios e do lençol freático. A água que usamos em casa e para trabalhos que não a agricultura corresponde a entre 10 e 20% da água de que um indivíduo ou uma economia necessita. A proporção depende de quão industrializada é a economia e de quão elevado é o padrão de vida. Os efluentes líquidos e o esgoto são gerados pelo uso doméstico e industrial de água. Mediante um investimento considerável, os efluentes podem ser reutilizados. Mas é preciso lembrar que esses efluentes são sempre uma pequena proporção do total de água de que a sociedade necessita. É cada vez mais possível e apropriado que as economias avançadas invistam na reutilização de efluentes. Mas a decisão política de alocar verbas para investir no tratamento de efluentes urbanos tem de ser ponderada levando em conta o valor do investimento em outros setores, como educação, saúde, comunicações, energia etc. As grandes economias de água podem ser feitas no setor agrícola, onde os volumes de água usados são vastos. Os agricultores tomam conta de toda a água verde. Ao lado com os engenheiros, eles tomam conta de toda a água azul usada na agricultura irrigada. Junto, isto representa 80% da água usada no mundo inteiro. Os agricultores detêm a chave para a segurança da água – especialmente no Brasil.
Tradução é de Luís Marcos Sander.
Fonte: MST / IHU Online.
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sexta-feira, 19 de março de 2010
Blog da reforma agrária já está no ar
Estreou na última quinta-feira, dia 18, o blog da rede de comunicadores em apoio à reforma agrária e contra a criminalização dos movimentos sociais. Está foi uma das decisões da reunião de montagem da rede, que ocorreu na semana passada na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e que teve a presença de cerca de 100 pessoas, entre jornalistas, radialistas, blogueiros, estudantes e radiodifusores comunitários.
O endereço é http://www.reformaagraria.blog.br/
Um dos objetivos editoriais do blog é acompanhar os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instalada no final do ano passado por imposição da bancada ruralista que visa criminalizar os lutam por terra no país. A nova página também servirá para divulgar experiências bem sucedidas de reforma agrária, de assentamentos rurais e de agricultura familiar, que a mídia privada omite. Ela terá sessões fixas, como o raio-x do latifúndio, impactos do agronegócio, quem apóia a reforma agrária, entre outras.
O blog pretende ser um ponto de referência para outros sítios, blogs e publicações que tratam deste tema. Ele é aberto à colaboração de todos os que entendem a urgência da reforma agrária e que não aceitam a criminalização da luta pela terra promovida pelos latifundiários do campo e da mídia. Para aderir à rede de comunicadores basta acessar a página e fazer o cadastro. Contribua com textos, fotos, vídeos.
Os responsáveis pelo blog são os signatários do manifesto de criação da rede. Reproduzo o manifesto abaixo:
Está em curso uma ofensiva conservadora no Brasil contra a reforma agrária, e contra qualquer movimento que combata a desigualdade e a concentração de terra e renda. E você não precisa concordar com tudo que o MST faz para compreender o que está em jogo.
Uma campanha orquestrada foi iniciada por setores da chamada “grande imprensa brasileira” – associados a interesses de latifundiários, grileiros - e parcelas do Poder Judiciário. E chegou rapidamente ao Congresso Nacional, onde uma CPMI foi aberta com o objetivo de constranger aqueles que lutam pela reforma agrária.
A imagem de um trator a derrubar laranjais no interior paulista, numa fazenda grilada, roubada da União, correu o país no fim do ano passado, numa ofensiva organizada. Agricultores miseráveis foram presos, humilhados. Seriam os responsáveis pelo "grave atentado". A polícia trabalhou rápido, produzindo um espetáculo que foi parar nas telas da TV e nas páginas dos jornais. O recado parece ser: quem defende reforma agrária é "bandido", é "marginal". Exemplo claro de “criminalização” dos movimentos sociais.
Quem comanda essa campanha tem dois objetivos: impedir que o governo federal estabeleça novos parâmetros para a reforma agrária (depois de três décadas, o governo planeja rever os “índices de produtividade” que ajudam a determinar quando uma fazenda pode ser desapropriada); e “provar” que os que derrubaram pés de laranja são responsáveis pela “violência no campo”.
Trata-se de grave distorção.
Comparando, seria como se, na África do Sul do Apartheid, um manifestante negro atirasse uma pedra contra a vitrine de uma loja onde só brancos podiam entrar. A mídia sul-africana iniciaria então uma campanha para provar que a fonte de toda a violência não era o regime racista, mas o pobre manifestante que atirou a pedra.
No Brasil, é nesse pé que estamos: a violência no campo não é resultado de injustiças históricas que fortaleceram o latifúndio, mas é causada por quem luta para reduzir essas injustiças. Não faz o menor sentido...
A violência no campo tem um nome: latifúndio. Mas isso você dificilmente vai ver na TV. A violência e a impunidade no campo podem ser traduzidas em números: mais de 1500 agricultores foram assassinados nos últimos 25 anos. Detalhe: levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra que dois terços dos homicídios no campo nem chegam a ser investigados. Mandantes (normalmente grandes fazendeiros) e seus pistoleiros permanecem impunes.
Uma coisa é certa: a reforma agrária interessa ao Brasil. Interessa a todo o povo brasileiro, aos movimentos sociais do campo, aos trabalhadores rurais e ao MST. A reforma agrária interessa também aos que se envergonham com os acampamentos de lona na beira das estradas brasileiras: ali, vive gente expulsa da terra, sem um canto para plantar - nesse país imenso e rico, mas ainda dominado pelo latifúndio.
A reforma agrária interessa, ainda, a quem percebe que a violência urbana se explica – em parte – pelo deslocamento desorganizado de populações que são expulsas da terra e obrigadas a viver em condições medievais, nas periferias das grandes cidades.
Por isso, repetimos: independente de concordarmos ou não com determinadas ações daqueles que vivem anos e anos embaixo da lona preta na beira de estradas, estamos em um momento decisivo e precisamos defender a reforma agrária.
Se você é um democrata, talvez já tenha percebido que os ataques coordenados contra o MST fazem parte de uma ofensiva maior contra qualquer entidade ou cidadão que lutem por democracia e por um Brasil mais justo.
Secretaria Geral
Escritório Nacional do MST/RJ
O endereço é http://www.reformaagraria.blog.br/
Um dos objetivos editoriais do blog é acompanhar os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instalada no final do ano passado por imposição da bancada ruralista que visa criminalizar os lutam por terra no país. A nova página também servirá para divulgar experiências bem sucedidas de reforma agrária, de assentamentos rurais e de agricultura familiar, que a mídia privada omite. Ela terá sessões fixas, como o raio-x do latifúndio, impactos do agronegócio, quem apóia a reforma agrária, entre outras.
O blog pretende ser um ponto de referência para outros sítios, blogs e publicações que tratam deste tema. Ele é aberto à colaboração de todos os que entendem a urgência da reforma agrária e que não aceitam a criminalização da luta pela terra promovida pelos latifundiários do campo e da mídia. Para aderir à rede de comunicadores basta acessar a página e fazer o cadastro. Contribua com textos, fotos, vídeos.
Os responsáveis pelo blog são os signatários do manifesto de criação da rede. Reproduzo o manifesto abaixo:
Está em curso uma ofensiva conservadora no Brasil contra a reforma agrária, e contra qualquer movimento que combata a desigualdade e a concentração de terra e renda. E você não precisa concordar com tudo que o MST faz para compreender o que está em jogo.
Uma campanha orquestrada foi iniciada por setores da chamada “grande imprensa brasileira” – associados a interesses de latifundiários, grileiros - e parcelas do Poder Judiciário. E chegou rapidamente ao Congresso Nacional, onde uma CPMI foi aberta com o objetivo de constranger aqueles que lutam pela reforma agrária.
A imagem de um trator a derrubar laranjais no interior paulista, numa fazenda grilada, roubada da União, correu o país no fim do ano passado, numa ofensiva organizada. Agricultores miseráveis foram presos, humilhados. Seriam os responsáveis pelo "grave atentado". A polícia trabalhou rápido, produzindo um espetáculo que foi parar nas telas da TV e nas páginas dos jornais. O recado parece ser: quem defende reforma agrária é "bandido", é "marginal". Exemplo claro de “criminalização” dos movimentos sociais.
Quem comanda essa campanha tem dois objetivos: impedir que o governo federal estabeleça novos parâmetros para a reforma agrária (depois de três décadas, o governo planeja rever os “índices de produtividade” que ajudam a determinar quando uma fazenda pode ser desapropriada); e “provar” que os que derrubaram pés de laranja são responsáveis pela “violência no campo”.
Trata-se de grave distorção.
Comparando, seria como se, na África do Sul do Apartheid, um manifestante negro atirasse uma pedra contra a vitrine de uma loja onde só brancos podiam entrar. A mídia sul-africana iniciaria então uma campanha para provar que a fonte de toda a violência não era o regime racista, mas o pobre manifestante que atirou a pedra.
No Brasil, é nesse pé que estamos: a violência no campo não é resultado de injustiças históricas que fortaleceram o latifúndio, mas é causada por quem luta para reduzir essas injustiças. Não faz o menor sentido...
A violência no campo tem um nome: latifúndio. Mas isso você dificilmente vai ver na TV. A violência e a impunidade no campo podem ser traduzidas em números: mais de 1500 agricultores foram assassinados nos últimos 25 anos. Detalhe: levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra que dois terços dos homicídios no campo nem chegam a ser investigados. Mandantes (normalmente grandes fazendeiros) e seus pistoleiros permanecem impunes.
Uma coisa é certa: a reforma agrária interessa ao Brasil. Interessa a todo o povo brasileiro, aos movimentos sociais do campo, aos trabalhadores rurais e ao MST. A reforma agrária interessa também aos que se envergonham com os acampamentos de lona na beira das estradas brasileiras: ali, vive gente expulsa da terra, sem um canto para plantar - nesse país imenso e rico, mas ainda dominado pelo latifúndio.
A reforma agrária interessa, ainda, a quem percebe que a violência urbana se explica – em parte – pelo deslocamento desorganizado de populações que são expulsas da terra e obrigadas a viver em condições medievais, nas periferias das grandes cidades.
Por isso, repetimos: independente de concordarmos ou não com determinadas ações daqueles que vivem anos e anos embaixo da lona preta na beira de estradas, estamos em um momento decisivo e precisamos defender a reforma agrária.
Se você é um democrata, talvez já tenha percebido que os ataques coordenados contra o MST fazem parte de uma ofensiva maior contra qualquer entidade ou cidadão que lutem por democracia e por um Brasil mais justo.
Secretaria Geral
Escritório Nacional do MST/RJ
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A crise da imprensa é ética
Emir Sader
Chovem os artigos na imprensa internacional sobre a crise da imprensa, enquanto crescente numero de jornais fecham, despedem jornalistas, diminuem suas tiragens. Os diagnósticos, ao serem feitos, em grande medida por pessoal ligado a essa imprensa, não conseguem sair do rame rame usual: a difusão da internet grátis, dos jornais grátis, etc., etc., seriam os responsáveis. Será?
Mas um artigo, desta vez da prestigiosa publicação norteamericana The Nation ? ?How to save jornalism??, de John Nichols e Robert W. McChesney, de 25 de janeiro deste ano - aponta para um diagnóstico um pouco diferente. Em primeiro lugar, classifica o jornalismo como um ?bem público?, considerando que deveria ser considerado da mesma forma que se considera a educação, saúde pública, o transporte, a infra estrutura.
Considerado dessa maneira, o fato de ser financiado por publicidade já desvia ou deforma esse caráter público, porque a publicidade visa interesses privados, venda de mercadorias, prestação de serviços na esfera privada. Essa concepção remeteria ao tema do financiamento público da imprensa.
Quanto ao diagnostico que aponta para a difusão da internet, os autores recordam que a crise começou muito antes, já nos anos 1970, apontando para a busca de maximização dos lucros pelas grandes corporações, que foram tornando as mídias empresas como outras quaisquer de seu imenso leque de investimentos, tendo como resultado, entre outros, a diminuição da qualidade e a banalização do jornalismo, cada vez mais longe de ser um bem público.
As propostas atuais de tentativa de superação da crise financeira, apontam normalmente para o pagamento das páginas de internet, dado que a publicidade nestas representa um ganho de 10% do que se perde nas publicações impressas. No entanto, apenas um que outro jornal que acredita na sua capacidade de manter audiência sendo pago ? como o The Wall Street Journal ? se arriscam nessa direção. Ainda assim é duvidoso que possam arrecadar uma proporção minimamente significativa do que perdem com a diminuição da tiragem e, principalmente, com a retração da publicidade, canalizada para outros meios.
Na realidade a crise da imprensa é a da perda de credibilidade, é uma crise ética, de sua transformação em um instrumento da publicidade, do ponto de vista econômico, e da sua constituição em mentor político e ideológico da direita. Os dados, publicados recentemente, demonstram como todos os grandes jornais brasileiros perdem leitores, mas sobretudo perdem influência. Embora todos os maiores jornais e quase todas as revistas semanais ? à exceção da Carta Capital ? sejam de férrea oposição ao governo, este mantêm 83% de apoio e eles conseguem apenas 5% de rejeição do governo. Temos aí uma idéia da baixíssima produtividade desses órgãos de oposição.
Jornais progressistas como La Jornada, do México, Página 12, da Argentina, Público, da Espanha, que gozam de alta credibilidade, se consolidam e se expandem, tendo páginas abertas amplamente visitadas. Seu patrimônio é sua ética social, suas posições políticas democráticas, o espírito pluralista dos seus comentaristas, a originalidade da suas coberturas jornalísticas.
Chovem os artigos na imprensa internacional sobre a crise da imprensa, enquanto crescente numero de jornais fecham, despedem jornalistas, diminuem suas tiragens. Os diagnósticos, ao serem feitos, em grande medida por pessoal ligado a essa imprensa, não conseguem sair do rame rame usual: a difusão da internet grátis, dos jornais grátis, etc., etc., seriam os responsáveis. Será?
Mas um artigo, desta vez da prestigiosa publicação norteamericana The Nation ? ?How to save jornalism??, de John Nichols e Robert W. McChesney, de 25 de janeiro deste ano - aponta para um diagnóstico um pouco diferente. Em primeiro lugar, classifica o jornalismo como um ?bem público?, considerando que deveria ser considerado da mesma forma que se considera a educação, saúde pública, o transporte, a infra estrutura.
Considerado dessa maneira, o fato de ser financiado por publicidade já desvia ou deforma esse caráter público, porque a publicidade visa interesses privados, venda de mercadorias, prestação de serviços na esfera privada. Essa concepção remeteria ao tema do financiamento público da imprensa.
Quanto ao diagnostico que aponta para a difusão da internet, os autores recordam que a crise começou muito antes, já nos anos 1970, apontando para a busca de maximização dos lucros pelas grandes corporações, que foram tornando as mídias empresas como outras quaisquer de seu imenso leque de investimentos, tendo como resultado, entre outros, a diminuição da qualidade e a banalização do jornalismo, cada vez mais longe de ser um bem público.
As propostas atuais de tentativa de superação da crise financeira, apontam normalmente para o pagamento das páginas de internet, dado que a publicidade nestas representa um ganho de 10% do que se perde nas publicações impressas. No entanto, apenas um que outro jornal que acredita na sua capacidade de manter audiência sendo pago ? como o The Wall Street Journal ? se arriscam nessa direção. Ainda assim é duvidoso que possam arrecadar uma proporção minimamente significativa do que perdem com a diminuição da tiragem e, principalmente, com a retração da publicidade, canalizada para outros meios.
Na realidade a crise da imprensa é a da perda de credibilidade, é uma crise ética, de sua transformação em um instrumento da publicidade, do ponto de vista econômico, e da sua constituição em mentor político e ideológico da direita. Os dados, publicados recentemente, demonstram como todos os grandes jornais brasileiros perdem leitores, mas sobretudo perdem influência. Embora todos os maiores jornais e quase todas as revistas semanais ? à exceção da Carta Capital ? sejam de férrea oposição ao governo, este mantêm 83% de apoio e eles conseguem apenas 5% de rejeição do governo. Temos aí uma idéia da baixíssima produtividade desses órgãos de oposição.
Jornais progressistas como La Jornada, do México, Página 12, da Argentina, Público, da Espanha, que gozam de alta credibilidade, se consolidam e se expandem, tendo páginas abertas amplamente visitadas. Seu patrimônio é sua ética social, suas posições políticas democráticas, o espírito pluralista dos seus comentaristas, a originalidade da suas coberturas jornalísticas.
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quinta-feira, 18 de março de 2010
O futuro da mídia progressista nos Estados Unidos
Um novo livro destaca como a mídia progressista e independente chegou
a ter a maior influência de sua história nos Estados Unidos. Essa
mídia já alcança um público de milhões de pessoas todos os dias e está
decididamente mais influente do que nunca. Antigamente seria
considerado um grande sucesso se uma revista progressista obtivesse
mais de 200 mil assinantes por mês. Mas hoje há dúzias ou mais de
blogs, revistas e sites de notícias online, nos EUA, que têm mais de 1
milhão de leitores únicos por mês. O artigo é de Don Hazen.
Don Hazen - AlterNet
Enquanto o establishment jornalístico, e mesmo progressistas, como Bob
McChesney e John Nichols lutam pelo que resta do declínio dos anúncios
dirigidos ao jornalismo corporativo, os ativistas e jornalistas Tracy
Van Slike e Jessica Clark escolheram contar uma história diferente,
mais positiva, sobre o futuro da mídia nos EUA.
No seu livro "Além da Câmara de Eco: reformulando a Política através
das redes de mídia progressista" [Beyond the Echo Chamber: Reshaping
Politics Throug Networked Progressive Media] (New Press), os autores
nos levam a uma jornada pela relativamente recente (dos últimos 8 anos
para cá) surgimento da mídia progressista e independente. A conclusão
a que chegam é inegável: sob qualquer ponto de vista, o que conhecemos
por mídia progressista e netroots, alcança um público muito maior –
milhões de pessoas todos os dias - e está decididamente mais influente
do que nunca.
Antigamente seria considerado um grande sucesso se uma revista
progressista obtivesse mais de 200 mil assinantes por mês. Mas hoje há
dúzias ou mais de blogs, revistas e sites de notícias online que têm
mais de 1 milhão de leitores únicos por mês. A recém formada rede Ad
Progress www.adprogress.com, fundada por AlterNet [www.alternet.org],
The Nation [www.thenation.com] e Mother Jones [www.motherjones.com], a
qual se juntaram American Prospect [www.prospect.org], The New
Republic[www.tnr.com] e outros têm mais de um milhão de leitores. E, a
propósito, a mídia progressista não está em crise, principalmente
porque não depende de uma única fonte de receita – os anúncios -, como
acontece à mídia corporativa; em vez disso, é frequentemente
financiada por uma mistura de subvenções, doações de leitores, vendas
de anúncios e lista de parceiros do vasto setor do ativismo não
lucrativo.
Lideradas por fazedores de mídia criativa agressiva, como Robert
Greenwald, da Brave New Films, Markos Moulitsas do The Daily Kos, Jane
Hamsher do FireDogLake, John Byrne da Raw Story e Mark Karlin da
BuzzFlash, a nova mídia progressista usa uma série de estratégias e
táticas muitíssimo mais agressivas e orientadas para o ativismo do que
o pequeno universo das revistas impressas que dominaram a mídia
progressista por longo período (Heck, a Revista da The Nation, tem 145
anos).
Mas, antes que o establishment da mídia progressista se tornasse tão
convencido do seu papel, há ainda fraquezas maiores e nuvens negras no
horizonte. Clark e Van Slyke não se esquivam dos obstáculos, dedicando
a melhor metade do livro a analisar os desafios do futuro com
histórias de sucesso e promovendo modelos de redes sociais e
colaboração que eles acham que podem fortalecer a influência recém
desoberta da mídia progressista.
O que é mídia progressista?
A mídia progressista é feita por um vasto conjunto de entidades de
todos os tamanhos e formatos. Mas, com larga vantagem, sua maior
audiência é online.
A mídia progressista é ideologicamente diversa, indo do liberal ao
radical. Grosso modo, as milhares de pessoas que fazem mídia
progressista acreditam em tornar o mundo um lugar melhor através dos
seus esforços midiáticos. Elas estão lutando por uma sociedade mais
igualitária e justa, pela democratização da informação, pela
transparência no exercício do poder público e pela defesa de questões
sociais, cobrando responsabilidades e prestações de contas aos
responsáveis (para falar de alguns dos valores que os progressistas
cultivam). Muitas das entidades de mídia progressista praticam o
jornalismo de opinião e a reportagem investigativa, enquanto outras
estão muito mais voltadas para a agitação e propaganda altamente bem
sucedidas, organizando táticas para chamar a atenção para questões e
causas.
E o termo progressista é um balaio de gatos. Há muitas diferenças
entre esses grupos, na filosofia, no tipo de jornalismo praticado, na
orientação ideológica e na estrutura de negócios. Algumas dessas
diferenças podem não ser tão significantes para um não-iniciado, mas
dentre os praticantes dessas mídias há alguns que merecem ser
anotados. Por exemplo, há um abismo entre o imensamente visitado
Huffington Post [www.huffingtonpost.com] e entidades menores, com foco
mais restrito, como o Grit TV www.grittv.org de Laura Flander, ou o
ColorLines Magazine[www.colorlines.com], ou ainda a reunião de alguns
em portais de mídia progressista, como Mother Jones Magazine, The
Nation e o influente programa de rádio e tevê de Amy Goodman,
Democracy Now![www.democracynow.org]. O Huffington Post, que tem dez
vezes mais visitação que os restantes (com exceção do Salon.com) está
na liderança das mídias com visão progressista, desfrutando de uma
equipe de qualidade escrevendo, e da voz influente de sua fundadora,
Arianna Huffington.
A genialidade do Huffington Post é que, virtualmente, todo
comentarista liberal progressista com algo a dizer ou uma idéia a
comunicar sente que precisa “blogar” no “Huff Po”, embora muita gente
termine levando seus textos para o site, fazendo com que muito
conteúdo fique disperso e seja perdido. Ainda, o Huffington Post é a
carteira de uma grande quantidade notícias sobre celebridades, fofocas
e coberturas desse tipo, como as infames votações em que leitores
podem escolher o “mais engraçado de Hollywood” ou o melhor decote na
entrega do prêmio Globo de Ouro. Não surpreendentemente, essas coisas
são sempre muito populares.
Embora a influência da mídia progressista seja crescente e a sua
audiência, maior do que nunca (eles chegam até a terem representação
na TV corporativa, como é o caso de Rachel Maddow, Keith Olbermann e
Ed Schulz), a defesa justificável em Beyond the Echo Chambers não é
toda a história. O fechamento recente da rádio Air America nos lembra
que nem tudo vai bem no universo da mídia progressista. De fato, há
vários problemas fundamentais muito similares [nos veículos dessa
mídia], em termos de um futuro de longo prazo.
A primeira questão é a demografia. Embora haja algumas pequenas
organizações de mídia tocadas por pessoas negras, a imensa maioria das
organizações midiáticas com recursos tem audiência predominante de
pessoas brancas, bem-educadas, quase sempre com mais de 60% de homens,
com idades que abarcam a geração baby boomer [nascidos entre 1945-63].
Isso reflete a maioria da audiência que segue mais de perto as
notícias da mídia corporativa, e a mídia de direita conservadora. Esse
fato demográfico é o que se expressa na visitação de blogs, revistas
de opinião e em sites de notícias. As consequências são duplas.
Primeiro, a mídia progressista, a despeito de seus valores, reflete o
universo masculino branco. (Há exceções óbvias de lideranças de
audiência, como Katrina vanden Heuvel, na The Nation e o time
editorial feminino de Monika Bauerlein e Clara Jeffries no Mother
Jones, enquanto o Women's Media Center – Centro de Mídia da Mulher -,
sob a nova direção de Jehmu Greene trabalha para melhorar a situação
de um longo período de desequilíbrio quando se trata de articulistas
mulheres.
A esmagadora brancura não é um valor progressista; uma falta de
diversidade embaraça a mídia progressista há décadas, como nas
questões de classe, dado que a mídia progressista tem sido sempre o
lar de elites, em sua maioria altamente educadas. Clark e Van Slyke
enfrentam esse desafio no capítulo inteligentemente intitulado “Pale,
Male and Stale” (Pálido, Masculino e Batido). Focando sempre o lado
positivo das coisas, os autores citam o crescimento da vida online da
comunidade afro-americana, com alguns blogs populares. Então, há
campanhas altamente bem sucedidas da Color of Change
(http://colorofchange.org/) [Organização cujo slogan é mudando a cor
da democracia, em inglês]. No ano passado, a organização lançou uma
campanha contra a cobertura racista da Fox News, pressionando dezenas
de anunciantes a abandonarem o programa de Glenn Beck e o ranço
diabolicamente racista do demagogo favorito de Rupert Murdoch. E,
liderados por Roberto Lovato, um veterano da mídia progressista, a
www.presente.org instrumentalizou a pressão para que o programa do
anti-imigrante Lou Dobbs saísse do ar.
Essas conquistas dão uma dimensão da influência do setor progressista
e da sua estratégia sofisticada nas questões de raça. Mas elas também
sugerem que há uma mistura fundamental entre várias organizações e
táticas de mídia online, que borram as fronteiras entre o jornalismo e
o puro ativismo. Se essa mudança é o melhor para a evolução da mídia
progressista é um debate que eu deixo para depois, mas é claramente
verdade que os nossos maiores sucessos foram alcançados via esforços
que muitos não chamariam de jornalismo, ou mesmo mídia, mas uma nova
forma de organização que usa os dispositivos da mídia na internet.
Um segundo desafio é o financiamento. Embora a mídia progressista vá
melhor das pernas do que a mídia corporativa, porque não é dependente
de anúncios, ela nunca foi bem financiada por fundações ou indivíduos
ricos (embora a sobrevivência de veículos mais antigos da mídia
progressista dependam da lealdade e da estada no poder de alguns
doadores individuais-chave). E isso que a grande recessão só está
encolhendo as doações das fundações.
Um caso de grande sucesso em financiamento é a história do Media
Matters [www.mediamatters.org], que acompanha as transgressões da
mídia corporativa e de direita. Empreendimento importante na mídia
ecológica em geral, Media Matters beneficiou-se muito de doações de
parte da Democracy Alliance www.democracyalliance.org, um grupo de
doadores progressistas com muito dinheiro.
Mas, no maior financiamento pessoal recente de mídia independente, as
bilionárias Herb e Marion Sandler escolheram criar o ProPublica
http://www.propublica.org, com 10 milhões de dólares por ano, pondo um
ex-editor do Wall Street Journal ao custo de 550 mil dólares por ano.
Propublica tende a ser fóbico quanto a todas as coisas progressistas.
Propublica emprega alguns bons jornalistas e produz um trabalho de
qualidade. Mas a organização é constituída no antigo modelo de:
“produzir trabalho investigativo e, de alguma maneira, magicamente, o
problema descoberto será resolvido”. Falta-lhes investimento
substancial em marketing, promoção e organização na internet. Todos
esses elementos são essenciais para que se consiga uma mudança
política numa era dominada por milhares de lobistas e de relações
públicas propagandistas e centenas de milhões de dólares protegendo o
interesse de todo e qualquer interesse imaginável.
O terceiro desafio é provavelmente o mais fundamental. A despeito
desses sucessos recentes, a mídia progressista ainda não está pronta
para chegar aonde pode travar uma batalha real com a mídia de direita.
Muitos estão familiarizados com o poder da Fox e de Rupert Murdoch,
com a imensa audiência de Rush Limbaugh e dezenas de outros jogadores
de direita. E há muito mais direitosos online e nas revistas.
Os conservadores sempre investiram muito dinheiro na mídia e nas
comunicações, enquanto muito do dinheiro progressista se destina a uma
miríade de questões da preferência de doadores individuais. É como se
eles de alguma maneira contassem com a mídia establishment para
fustigar a mídia de direita. Bem, nós sabemos como isso tem
funcionado. Muitas questões liberais são recepcionadas por
conservadores, e negligenciadas por uma aparentemente super tímida
administração Obama.
Uma série de números ilustra o problema. Enquanto progressistas vibram
felizes com o sucesso da MSNBC e de Rachel Maddow, e cada vez mais
estejam grudados na tevê todas as noites, o domínio continuado da Fox
News, na tv a cabo é acachapante. Eis os números da audiência
comparados no dia 27 de janeiro, quando Obama falou à nação, de acordo
com o site TV by the Numbers: Bill O'Reilly marcou 4.067 000
espectadores, Glenn Beck alcançou 3.140 000 espectadores, e Sean
Hannity obteve 3. 636 000 espectadores – audiências gigantescas,
aproximadamente três vezes o tamanho de Keith Olbermann (1. 159 000
espectadores) e Rachel Maddow (883 000 espectadores). Clark e Van
Slyke tratam do problema no capítulo “Luta contra a Direita”,
destacando o sucesso da Brave New Films perturbando a Fox News. Mas,
como sabemos muito bem, a avassaladora mídia Murdoch continua a
bradar, chafurdando na lama.
O capítulo 8 do livro "Além da Câmara de Eco", intitulado “Assembléia
do Coro Progressista”, analisa as características do trabalho do
FireDogLake [www.firedoglake.com] e inclui elementos de uma entrevista
comigo, na qual tento descrever o pensamento por trás da AlterNet.org.
Se você quiser uma visão compreensiva de muitas mídias progressistas
bem sucedidas ao longo dos últimos 8 anos, por favor compre uma cópia
de Beyond the Echo Camber. Há desafios imensos pela frente, os quais
Van Slyke e Clark conhecem muito bem. Porém, os autores insistem que
há muito mais resultado em construir alternativas e, usando as novas
ferramentas online – Facebook, Twitter e muitas outras – os
progressistas podem se mover para um estágio de luta de longo prazo
por uma sociedade melhor.
Nota da Redação: A Media Consortium (www.themediaconsortium.org) é uma
rede de mídias alternativas que criaram uma espécie de associação, nos
moldes da recém criada Altercom, no Brasil, da qual Carta Maior faz
parte.
Tradução: Katarina Peixoto
a ter a maior influência de sua história nos Estados Unidos. Essa
mídia já alcança um público de milhões de pessoas todos os dias e está
decididamente mais influente do que nunca. Antigamente seria
considerado um grande sucesso se uma revista progressista obtivesse
mais de 200 mil assinantes por mês. Mas hoje há dúzias ou mais de
blogs, revistas e sites de notícias online, nos EUA, que têm mais de 1
milhão de leitores únicos por mês. O artigo é de Don Hazen.
Don Hazen - AlterNet
Enquanto o establishment jornalístico, e mesmo progressistas, como Bob
McChesney e John Nichols lutam pelo que resta do declínio dos anúncios
dirigidos ao jornalismo corporativo, os ativistas e jornalistas Tracy
Van Slike e Jessica Clark escolheram contar uma história diferente,
mais positiva, sobre o futuro da mídia nos EUA.
No seu livro "Além da Câmara de Eco: reformulando a Política através
das redes de mídia progressista" [Beyond the Echo Chamber: Reshaping
Politics Throug Networked Progressive Media] (New Press), os autores
nos levam a uma jornada pela relativamente recente (dos últimos 8 anos
para cá) surgimento da mídia progressista e independente. A conclusão
a que chegam é inegável: sob qualquer ponto de vista, o que conhecemos
por mídia progressista e netroots, alcança um público muito maior –
milhões de pessoas todos os dias - e está decididamente mais influente
do que nunca.
Antigamente seria considerado um grande sucesso se uma revista
progressista obtivesse mais de 200 mil assinantes por mês. Mas hoje há
dúzias ou mais de blogs, revistas e sites de notícias online que têm
mais de 1 milhão de leitores únicos por mês. A recém formada rede Ad
Progress www.adprogress.com, fundada por AlterNet [www.alternet.org],
The Nation [www.thenation.com] e Mother Jones [www.motherjones.com], a
qual se juntaram American Prospect [www.prospect.org], The New
Republic[www.tnr.com] e outros têm mais de um milhão de leitores. E, a
propósito, a mídia progressista não está em crise, principalmente
porque não depende de uma única fonte de receita – os anúncios -, como
acontece à mídia corporativa; em vez disso, é frequentemente
financiada por uma mistura de subvenções, doações de leitores, vendas
de anúncios e lista de parceiros do vasto setor do ativismo não
lucrativo.
Lideradas por fazedores de mídia criativa agressiva, como Robert
Greenwald, da Brave New Films, Markos Moulitsas do The Daily Kos, Jane
Hamsher do FireDogLake, John Byrne da Raw Story e Mark Karlin da
BuzzFlash, a nova mídia progressista usa uma série de estratégias e
táticas muitíssimo mais agressivas e orientadas para o ativismo do que
o pequeno universo das revistas impressas que dominaram a mídia
progressista por longo período (Heck, a Revista da The Nation, tem 145
anos).
Mas, antes que o establishment da mídia progressista se tornasse tão
convencido do seu papel, há ainda fraquezas maiores e nuvens negras no
horizonte. Clark e Van Slyke não se esquivam dos obstáculos, dedicando
a melhor metade do livro a analisar os desafios do futuro com
histórias de sucesso e promovendo modelos de redes sociais e
colaboração que eles acham que podem fortalecer a influência recém
desoberta da mídia progressista.
O que é mídia progressista?
A mídia progressista é feita por um vasto conjunto de entidades de
todos os tamanhos e formatos. Mas, com larga vantagem, sua maior
audiência é online.
A mídia progressista é ideologicamente diversa, indo do liberal ao
radical. Grosso modo, as milhares de pessoas que fazem mídia
progressista acreditam em tornar o mundo um lugar melhor através dos
seus esforços midiáticos. Elas estão lutando por uma sociedade mais
igualitária e justa, pela democratização da informação, pela
transparência no exercício do poder público e pela defesa de questões
sociais, cobrando responsabilidades e prestações de contas aos
responsáveis (para falar de alguns dos valores que os progressistas
cultivam). Muitas das entidades de mídia progressista praticam o
jornalismo de opinião e a reportagem investigativa, enquanto outras
estão muito mais voltadas para a agitação e propaganda altamente bem
sucedidas, organizando táticas para chamar a atenção para questões e
causas.
E o termo progressista é um balaio de gatos. Há muitas diferenças
entre esses grupos, na filosofia, no tipo de jornalismo praticado, na
orientação ideológica e na estrutura de negócios. Algumas dessas
diferenças podem não ser tão significantes para um não-iniciado, mas
dentre os praticantes dessas mídias há alguns que merecem ser
anotados. Por exemplo, há um abismo entre o imensamente visitado
Huffington Post [www.huffingtonpost.com] e entidades menores, com foco
mais restrito, como o Grit TV www.grittv.org de Laura Flander, ou o
ColorLines Magazine[www.colorlines.com], ou ainda a reunião de alguns
em portais de mídia progressista, como Mother Jones Magazine, The
Nation e o influente programa de rádio e tevê de Amy Goodman,
Democracy Now![www.democracynow.org]. O Huffington Post, que tem dez
vezes mais visitação que os restantes (com exceção do Salon.com) está
na liderança das mídias com visão progressista, desfrutando de uma
equipe de qualidade escrevendo, e da voz influente de sua fundadora,
Arianna Huffington.
A genialidade do Huffington Post é que, virtualmente, todo
comentarista liberal progressista com algo a dizer ou uma idéia a
comunicar sente que precisa “blogar” no “Huff Po”, embora muita gente
termine levando seus textos para o site, fazendo com que muito
conteúdo fique disperso e seja perdido. Ainda, o Huffington Post é a
carteira de uma grande quantidade notícias sobre celebridades, fofocas
e coberturas desse tipo, como as infames votações em que leitores
podem escolher o “mais engraçado de Hollywood” ou o melhor decote na
entrega do prêmio Globo de Ouro. Não surpreendentemente, essas coisas
são sempre muito populares.
Embora a influência da mídia progressista seja crescente e a sua
audiência, maior do que nunca (eles chegam até a terem representação
na TV corporativa, como é o caso de Rachel Maddow, Keith Olbermann e
Ed Schulz), a defesa justificável em Beyond the Echo Chambers não é
toda a história. O fechamento recente da rádio Air America nos lembra
que nem tudo vai bem no universo da mídia progressista. De fato, há
vários problemas fundamentais muito similares [nos veículos dessa
mídia], em termos de um futuro de longo prazo.
A primeira questão é a demografia. Embora haja algumas pequenas
organizações de mídia tocadas por pessoas negras, a imensa maioria das
organizações midiáticas com recursos tem audiência predominante de
pessoas brancas, bem-educadas, quase sempre com mais de 60% de homens,
com idades que abarcam a geração baby boomer [nascidos entre 1945-63].
Isso reflete a maioria da audiência que segue mais de perto as
notícias da mídia corporativa, e a mídia de direita conservadora. Esse
fato demográfico é o que se expressa na visitação de blogs, revistas
de opinião e em sites de notícias. As consequências são duplas.
Primeiro, a mídia progressista, a despeito de seus valores, reflete o
universo masculino branco. (Há exceções óbvias de lideranças de
audiência, como Katrina vanden Heuvel, na The Nation e o time
editorial feminino de Monika Bauerlein e Clara Jeffries no Mother
Jones, enquanto o Women's Media Center – Centro de Mídia da Mulher -,
sob a nova direção de Jehmu Greene trabalha para melhorar a situação
de um longo período de desequilíbrio quando se trata de articulistas
mulheres.
A esmagadora brancura não é um valor progressista; uma falta de
diversidade embaraça a mídia progressista há décadas, como nas
questões de classe, dado que a mídia progressista tem sido sempre o
lar de elites, em sua maioria altamente educadas. Clark e Van Slyke
enfrentam esse desafio no capítulo inteligentemente intitulado “Pale,
Male and Stale” (Pálido, Masculino e Batido). Focando sempre o lado
positivo das coisas, os autores citam o crescimento da vida online da
comunidade afro-americana, com alguns blogs populares. Então, há
campanhas altamente bem sucedidas da Color of Change
(http://colorofchange.org/) [Organização cujo slogan é mudando a cor
da democracia, em inglês]. No ano passado, a organização lançou uma
campanha contra a cobertura racista da Fox News, pressionando dezenas
de anunciantes a abandonarem o programa de Glenn Beck e o ranço
diabolicamente racista do demagogo favorito de Rupert Murdoch. E,
liderados por Roberto Lovato, um veterano da mídia progressista, a
www.presente.org instrumentalizou a pressão para que o programa do
anti-imigrante Lou Dobbs saísse do ar.
Essas conquistas dão uma dimensão da influência do setor progressista
e da sua estratégia sofisticada nas questões de raça. Mas elas também
sugerem que há uma mistura fundamental entre várias organizações e
táticas de mídia online, que borram as fronteiras entre o jornalismo e
o puro ativismo. Se essa mudança é o melhor para a evolução da mídia
progressista é um debate que eu deixo para depois, mas é claramente
verdade que os nossos maiores sucessos foram alcançados via esforços
que muitos não chamariam de jornalismo, ou mesmo mídia, mas uma nova
forma de organização que usa os dispositivos da mídia na internet.
Um segundo desafio é o financiamento. Embora a mídia progressista vá
melhor das pernas do que a mídia corporativa, porque não é dependente
de anúncios, ela nunca foi bem financiada por fundações ou indivíduos
ricos (embora a sobrevivência de veículos mais antigos da mídia
progressista dependam da lealdade e da estada no poder de alguns
doadores individuais-chave). E isso que a grande recessão só está
encolhendo as doações das fundações.
Um caso de grande sucesso em financiamento é a história do Media
Matters [www.mediamatters.org], que acompanha as transgressões da
mídia corporativa e de direita. Empreendimento importante na mídia
ecológica em geral, Media Matters beneficiou-se muito de doações de
parte da Democracy Alliance www.democracyalliance.org, um grupo de
doadores progressistas com muito dinheiro.
Mas, no maior financiamento pessoal recente de mídia independente, as
bilionárias Herb e Marion Sandler escolheram criar o ProPublica
http://www.propublica.org, com 10 milhões de dólares por ano, pondo um
ex-editor do Wall Street Journal ao custo de 550 mil dólares por ano.
Propublica tende a ser fóbico quanto a todas as coisas progressistas.
Propublica emprega alguns bons jornalistas e produz um trabalho de
qualidade. Mas a organização é constituída no antigo modelo de:
“produzir trabalho investigativo e, de alguma maneira, magicamente, o
problema descoberto será resolvido”. Falta-lhes investimento
substancial em marketing, promoção e organização na internet. Todos
esses elementos são essenciais para que se consiga uma mudança
política numa era dominada por milhares de lobistas e de relações
públicas propagandistas e centenas de milhões de dólares protegendo o
interesse de todo e qualquer interesse imaginável.
O terceiro desafio é provavelmente o mais fundamental. A despeito
desses sucessos recentes, a mídia progressista ainda não está pronta
para chegar aonde pode travar uma batalha real com a mídia de direita.
Muitos estão familiarizados com o poder da Fox e de Rupert Murdoch,
com a imensa audiência de Rush Limbaugh e dezenas de outros jogadores
de direita. E há muito mais direitosos online e nas revistas.
Os conservadores sempre investiram muito dinheiro na mídia e nas
comunicações, enquanto muito do dinheiro progressista se destina a uma
miríade de questões da preferência de doadores individuais. É como se
eles de alguma maneira contassem com a mídia establishment para
fustigar a mídia de direita. Bem, nós sabemos como isso tem
funcionado. Muitas questões liberais são recepcionadas por
conservadores, e negligenciadas por uma aparentemente super tímida
administração Obama.
Uma série de números ilustra o problema. Enquanto progressistas vibram
felizes com o sucesso da MSNBC e de Rachel Maddow, e cada vez mais
estejam grudados na tevê todas as noites, o domínio continuado da Fox
News, na tv a cabo é acachapante. Eis os números da audiência
comparados no dia 27 de janeiro, quando Obama falou à nação, de acordo
com o site TV by the Numbers: Bill O'Reilly marcou 4.067 000
espectadores, Glenn Beck alcançou 3.140 000 espectadores, e Sean
Hannity obteve 3. 636 000 espectadores – audiências gigantescas,
aproximadamente três vezes o tamanho de Keith Olbermann (1. 159 000
espectadores) e Rachel Maddow (883 000 espectadores). Clark e Van
Slyke tratam do problema no capítulo “Luta contra a Direita”,
destacando o sucesso da Brave New Films perturbando a Fox News. Mas,
como sabemos muito bem, a avassaladora mídia Murdoch continua a
bradar, chafurdando na lama.
O capítulo 8 do livro "Além da Câmara de Eco", intitulado “Assembléia
do Coro Progressista”, analisa as características do trabalho do
FireDogLake [www.firedoglake.com] e inclui elementos de uma entrevista
comigo, na qual tento descrever o pensamento por trás da AlterNet.org.
Se você quiser uma visão compreensiva de muitas mídias progressistas
bem sucedidas ao longo dos últimos 8 anos, por favor compre uma cópia
de Beyond the Echo Camber. Há desafios imensos pela frente, os quais
Van Slyke e Clark conhecem muito bem. Porém, os autores insistem que
há muito mais resultado em construir alternativas e, usando as novas
ferramentas online – Facebook, Twitter e muitas outras – os
progressistas podem se mover para um estágio de luta de longo prazo
por uma sociedade melhor.
Nota da Redação: A Media Consortium (www.themediaconsortium.org) é uma
rede de mídias alternativas que criaram uma espécie de associação, nos
moldes da recém criada Altercom, no Brasil, da qual Carta Maior faz
parte.
Tradução: Katarina Peixoto
quarta-feira, 17 de março de 2010
MULHERES
Por Laerte Braga
Na opinião de um arcebispo católico o “feminismo” só se justifica se as mulheres “tomarem a vida como filhas de Maria”. Não é o que pensa a “sister” Fernanda. Atendendo a um apelo da família resolveu soltar-se no programa BBB. Dançou de forma sensual. A, outra, ex-PM fez um strip tease e ficou só com a parte inferior do biquíni.
A família democrática, cristã e ocidental vota, mais de 60 milhões de ligações, para os telefones da arena contemporânea. Eliminar esse ou aquele no programa. Um frenesi “revolucionário”.
"Lembre do seu sonho e se doe a essa oportunidade: você conseguiu isso na melhor época da sua vida --solteira e começando sua profissão. Esquece o mundo aqui fora. Viva intensamente essa oportunidade surreal e não se esqueça que você é solteira e mostre o diabinho que tem dentro de você”. É um trecho da carta da irmã da “sister” interpretando o desejo e a vontade da família.
No final ao invés de uma cenoura, um milhão e meio de reais. A moça considerou a carta como uma “dica explícita”. Não só dançou, como bebeu e sem ser fumante, roubou um cigarro de um “brother” e deu umas tragadas.
É dentista, não deve conhecer aquele creme dental que protege você doze horas por dia, contra doze problemas bucais. Breve vai estar na telinha estalando os dentes.
Herbert Viana em texto postado na internet – “pelo amor de Deus, eu não quero usar ninguém, nem falar do que não sei, nem procurar culpados, nem acusar ou apontar pessoas, mas ninguém está percebendo que toda essa busca insana pela estética ideal é muito menos lipo-as e muito mais piração. Uma coisa e saúde, outra é obsessão. O mundo pirou, enlouqueceu. Hoje Deus é a auto-imagem. Religião é dieta, fé só na estética, ritual é malhação”.
Inquirido, isso mesmo, inquirido sobre as mulheres às véspera do Dia Internacional da Mulher, um deputado de sobrenome Andrada (os Andradas mamam em tetas públicas desde os tempos da loba que amamentou Rômulo e Remo) disse o óbvio do absoluto vácuo cerebral –“conquistaram seu espaço sem perder a graça e a beleza femininas de mãe”.
Celso Furtado considerou a revolução feminista a mais importante do século XX. O notável brasileiro tinha formação marxista e considerava a caminhada das mulheres de maior importância que a revolução de 1917.
Ao longo dos séculos a mulher foi propriedade privada do homem. Essa caminhada foi deixando corpos e almas estendidos por esses mesmos séculos passados, num processo de lutas que certamente não pretendia e nem pretende terminar na dança sensual de uma “sister” aconselhada a liberar-se tendo em vista a cenoura no final da vara.
Existem milhões de trabalhadoras anônimas que sustentam os pilares da família cristã, democrática e ocidental, não aparecem na televisão e nem fazem danças sensuais, sequer imaginam o que seja uma lipo, sujeitam-se a privações de toda a sorte e emergem triunfantes na extraordinária capacidade do ser humano de amar a si no reconhecer o outro.
E empunham bandeiras por reforma agrária, como empunharam pelo direito do voto. Ou terminaram em fogueiras cristãs por conta de “bruxarias”. João o Inglês. Penso que o feminino de papa, papisa, existe só por conta de Joana ou Gilberta. Disfarçada de monge, por conta de sua inteligência e seus notáveis conhecimentos, sucedeu a Leão IV com o nome de João VII.
Teria morrido apedrejada em meio a uma procissão quando dava a luz a um filho gerado por outro monge. Fora fácil disfarçar a gravidez, mas impossível evitar o parto. Os cardeais gritavam “milagre, milagre”.
O arcebispo sugere que a vida seja tomada como Maria a tomou. A papisa foi apedrejada até a morte por ter “profanado o trono de São Pedro”.
Não se trata, necessariamente, da Igreja Católica, mas do que Foucauld chama de “desatino”, no que desatino representa em seu todo, historicamente, a contestação à ordem instituída.
Na exclusão. Na ordem natural dos registros não existe a papisa. Na “foto” desses arquivos ela foi apagada.
O dilema da “revolução feminista”, para usar a expressão de Celso Furtado, está exatamente na capacidade da mulher perceber que todo esse processo não pode ser, mas está sendo, apropriado pela ordem dominante dos nossos dias.
A “revolução” busca transformar seres em objetos. Um retrocesso cruel e perverso que leva ao nada. Homens e mulheres.
Uma nova Idade Média. Os shoppings e seus imensos fossos de neon e brilhos.
Ao longo da ditadura militar tombaram várias mulheres guerreiras. Capazes de indignarem-se com a bestialidade do regime. Empunharam metralhadoras como enfrentaram fogueiras em tempos passados. Ou marcharam pelo voto.
Há dias atrás Anita Leocádio Prestes, filha de Luís Carlos Prestes e Olga Benário, recusou os favores da ordem dita democrática. Pensões, indenizações, compensações.
Permaneceu íntegra e Maria em sua essência. Não aquela forjada pelos cardeais trezentos anos depois do Cristo. E desejada pelo arcebispo nos dias de hoje. Não cruza a fronteira da liberdade para ingressar nos shoppings. E tampouco veste o hábito da hipocrisia.
Nem se estende em danças sensuais numa prostituição travestida de liberdade, escondendo o real objeto. “Cacau dá água na boca”.
Nem vou falar de Maria Madalena.
São muitas “marias”.
Irmãos e irmãs, mas companheiros e companheiras numa luta que não terminou. Não tem só a cor da “revolução feminista”.
Tem todos os matizes do ser humano na busca de um outro mundo possível, onde a “ração seja exposta ao sol e dividida”.
É uma luta que permanece e não inclui, por exemplo, Hilary Clinton. Mas mulheres palestinas vítimas da boçalidade sionista. Ou mulheres muçulmanas castradas em sua essência, no que o Profeta não disse.
E mulheres objetos no capitalismo devasso dos que jogam água suja em “vadias”, de suas janelas limpas e cristalinas da verdade vaticana vendida em qualquer loja de conveniência ou numa mesa de um centro cirúrgico de lipos. A sede é em Wall Street.
E nem é uma luta solitária. É de mulheres e homens, no mesmo passo.
É pela vida, pelo ser humano. E antes que a “revolução” seja tragada pelas elites políticas e econômicas e vire uma Kátia de Abreu da vida.
É fundamental que seja Doroty Stang.
Toda a violência contra a mulher, contra qualquer ser, tem a sua raiz no “atino” dos que constroem monstruosos “hospitais/shoppings” para os “desatinados” se atinarem.
É a hora e a vez dos desatinos.
Uma outra etapa do processo. Aí sim, será uma revolução total.
A mulher cubana, a mulher vietnamita, a mulher afegã, a mulher camponesa. A mulher operária. A mulher DASPU.
Continuam a ser apedrejadas por profanarem o trono de Wall Street.
Torna-se necessário o retomar a revolução e caminhar desatinadas/os nas cidades imersas no grito silenciado do progresso transformado em alienação/exclusão nas telas/telinhas/páginas do desodorante que não exige máscaras para que os banheiros sejam limpos.
Que banheiros? Os que eles sempre sujaram.
O Dia Internacional da Mulher é de reflexão. De todo o ser humano. Há que ser a “volta dos mortos vivos” (para lembrar o extraordinário e centenário Roberto Menezes).
Eles continuam a nos impingir os bezerros de ouro. A homens e a mulheres.
Na opinião de um arcebispo católico o “feminismo” só se justifica se as mulheres “tomarem a vida como filhas de Maria”. Não é o que pensa a “sister” Fernanda. Atendendo a um apelo da família resolveu soltar-se no programa BBB. Dançou de forma sensual. A, outra, ex-PM fez um strip tease e ficou só com a parte inferior do biquíni.
A família democrática, cristã e ocidental vota, mais de 60 milhões de ligações, para os telefones da arena contemporânea. Eliminar esse ou aquele no programa. Um frenesi “revolucionário”.
"Lembre do seu sonho e se doe a essa oportunidade: você conseguiu isso na melhor época da sua vida --solteira e começando sua profissão. Esquece o mundo aqui fora. Viva intensamente essa oportunidade surreal e não se esqueça que você é solteira e mostre o diabinho que tem dentro de você”. É um trecho da carta da irmã da “sister” interpretando o desejo e a vontade da família.
No final ao invés de uma cenoura, um milhão e meio de reais. A moça considerou a carta como uma “dica explícita”. Não só dançou, como bebeu e sem ser fumante, roubou um cigarro de um “brother” e deu umas tragadas.
É dentista, não deve conhecer aquele creme dental que protege você doze horas por dia, contra doze problemas bucais. Breve vai estar na telinha estalando os dentes.
Herbert Viana em texto postado na internet – “pelo amor de Deus, eu não quero usar ninguém, nem falar do que não sei, nem procurar culpados, nem acusar ou apontar pessoas, mas ninguém está percebendo que toda essa busca insana pela estética ideal é muito menos lipo-as e muito mais piração. Uma coisa e saúde, outra é obsessão. O mundo pirou, enlouqueceu. Hoje Deus é a auto-imagem. Religião é dieta, fé só na estética, ritual é malhação”.
Inquirido, isso mesmo, inquirido sobre as mulheres às véspera do Dia Internacional da Mulher, um deputado de sobrenome Andrada (os Andradas mamam em tetas públicas desde os tempos da loba que amamentou Rômulo e Remo) disse o óbvio do absoluto vácuo cerebral –“conquistaram seu espaço sem perder a graça e a beleza femininas de mãe”.
Celso Furtado considerou a revolução feminista a mais importante do século XX. O notável brasileiro tinha formação marxista e considerava a caminhada das mulheres de maior importância que a revolução de 1917.
Ao longo dos séculos a mulher foi propriedade privada do homem. Essa caminhada foi deixando corpos e almas estendidos por esses mesmos séculos passados, num processo de lutas que certamente não pretendia e nem pretende terminar na dança sensual de uma “sister” aconselhada a liberar-se tendo em vista a cenoura no final da vara.
Existem milhões de trabalhadoras anônimas que sustentam os pilares da família cristã, democrática e ocidental, não aparecem na televisão e nem fazem danças sensuais, sequer imaginam o que seja uma lipo, sujeitam-se a privações de toda a sorte e emergem triunfantes na extraordinária capacidade do ser humano de amar a si no reconhecer o outro.
E empunham bandeiras por reforma agrária, como empunharam pelo direito do voto. Ou terminaram em fogueiras cristãs por conta de “bruxarias”. João o Inglês. Penso que o feminino de papa, papisa, existe só por conta de Joana ou Gilberta. Disfarçada de monge, por conta de sua inteligência e seus notáveis conhecimentos, sucedeu a Leão IV com o nome de João VII.
Teria morrido apedrejada em meio a uma procissão quando dava a luz a um filho gerado por outro monge. Fora fácil disfarçar a gravidez, mas impossível evitar o parto. Os cardeais gritavam “milagre, milagre”.
O arcebispo sugere que a vida seja tomada como Maria a tomou. A papisa foi apedrejada até a morte por ter “profanado o trono de São Pedro”.
Não se trata, necessariamente, da Igreja Católica, mas do que Foucauld chama de “desatino”, no que desatino representa em seu todo, historicamente, a contestação à ordem instituída.
Na exclusão. Na ordem natural dos registros não existe a papisa. Na “foto” desses arquivos ela foi apagada.
O dilema da “revolução feminista”, para usar a expressão de Celso Furtado, está exatamente na capacidade da mulher perceber que todo esse processo não pode ser, mas está sendo, apropriado pela ordem dominante dos nossos dias.
A “revolução” busca transformar seres em objetos. Um retrocesso cruel e perverso que leva ao nada. Homens e mulheres.
Uma nova Idade Média. Os shoppings e seus imensos fossos de neon e brilhos.
Ao longo da ditadura militar tombaram várias mulheres guerreiras. Capazes de indignarem-se com a bestialidade do regime. Empunharam metralhadoras como enfrentaram fogueiras em tempos passados. Ou marcharam pelo voto.
Há dias atrás Anita Leocádio Prestes, filha de Luís Carlos Prestes e Olga Benário, recusou os favores da ordem dita democrática. Pensões, indenizações, compensações.
Permaneceu íntegra e Maria em sua essência. Não aquela forjada pelos cardeais trezentos anos depois do Cristo. E desejada pelo arcebispo nos dias de hoje. Não cruza a fronteira da liberdade para ingressar nos shoppings. E tampouco veste o hábito da hipocrisia.
Nem se estende em danças sensuais numa prostituição travestida de liberdade, escondendo o real objeto. “Cacau dá água na boca”.
Nem vou falar de Maria Madalena.
São muitas “marias”.
Irmãos e irmãs, mas companheiros e companheiras numa luta que não terminou. Não tem só a cor da “revolução feminista”.
Tem todos os matizes do ser humano na busca de um outro mundo possível, onde a “ração seja exposta ao sol e dividida”.
É uma luta que permanece e não inclui, por exemplo, Hilary Clinton. Mas mulheres palestinas vítimas da boçalidade sionista. Ou mulheres muçulmanas castradas em sua essência, no que o Profeta não disse.
E mulheres objetos no capitalismo devasso dos que jogam água suja em “vadias”, de suas janelas limpas e cristalinas da verdade vaticana vendida em qualquer loja de conveniência ou numa mesa de um centro cirúrgico de lipos. A sede é em Wall Street.
E nem é uma luta solitária. É de mulheres e homens, no mesmo passo.
É pela vida, pelo ser humano. E antes que a “revolução” seja tragada pelas elites políticas e econômicas e vire uma Kátia de Abreu da vida.
É fundamental que seja Doroty Stang.
Toda a violência contra a mulher, contra qualquer ser, tem a sua raiz no “atino” dos que constroem monstruosos “hospitais/shoppings” para os “desatinados” se atinarem.
É a hora e a vez dos desatinos.
Uma outra etapa do processo. Aí sim, será uma revolução total.
A mulher cubana, a mulher vietnamita, a mulher afegã, a mulher camponesa. A mulher operária. A mulher DASPU.
Continuam a ser apedrejadas por profanarem o trono de Wall Street.
Torna-se necessário o retomar a revolução e caminhar desatinadas/os nas cidades imersas no grito silenciado do progresso transformado em alienação/exclusão nas telas/telinhas/páginas do desodorante que não exige máscaras para que os banheiros sejam limpos.
Que banheiros? Os que eles sempre sujaram.
O Dia Internacional da Mulher é de reflexão. De todo o ser humano. Há que ser a “volta dos mortos vivos” (para lembrar o extraordinário e centenário Roberto Menezes).
Eles continuam a nos impingir os bezerros de ouro. A homens e a mulheres.
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Laerte Braga
segunda-feira, 15 de março de 2010
Luis Fernando Veríssimo: "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data"
Por Ayrton Centeno
Como Luis Fernando Veríssimo, 73 anos, arruma tempo para tanto trabalho não se sabe. O que se sabe é que são mais de 70 livros. E sem contar as antologias! Há de tudo: romances, novelas, quadrinhos, contos, crônicas, guias turísticos e até poesia. No final de 2009, chegou às livrarias Os Espiões, sua obra mais recente. No entanto, sua tarefa mais pesada não é essa, mas a de alimentar diariamente colunas nos jornais O Globo, O Estado de S. Paulo e Zero Hora. Autor de uma frase cáustica sobre a imprensa - "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data" - o saxofonista, cronista, romancista, quadrinista, contista e novelista fala aqui sobre mídia, governo Lula, sua situação entre os chamados formadores de opinião, decadência dos diários tradicionais, e-books, elites e eleições.
Brasília Confidencial - Hoje, no Brasil, a mídia enxerga um país totalmente diferente daquele que a maioria da população vê. Enquanto a grande imprensa, pessimista, trabalha sobre uma paleta de escândalos, a população, otimista, toca a sua vida de modo mais tranquilo. Que país o Sr. vê?
Luís Fernando Veríssimo - A imprensa cumpre o seu papel fiscalizador, mas não há duvida que, com algumas exceções, antipatiza com o Lula e com o PT. Acho que os historiadores do futuro terão dificuldade em entender o contraste entre essa quase-unânime reprovação do Lula pela grande imprensa e sua também descomunal aprovação popular. O que vai se desgastar com isto é a idéia da grande imprensa como formadora de opinião.
BC - A grande imprensa enaltece a diversidade de opiniões, mas, curiosamente, os principais jornais do Brasil têm a mesma opinião sobre os mesmos assuntos. Este pensamento único não compromete uma pluralidade de opiniões que a mídia costuma defender quando não está olhando para si própria?
LFV - O irônico é que hoje existem menos alternativas à imprensa "oficial" do que existia nos tempos da censura. Mas as alternativas existem, e o tal pensamento único não é imposto, mas decorre de uma identificação dos grandes grupos jornalísticos do país com alguns princípios, como o da economia de mercado, o governo mínimo, etc.
BC - O senhor defende na sua coluna a reforma agrária e questiona a criminalização dos movimentos sociais. Não se sente muito solitário na mídia tratando desses temas?
LFV - Meus palpites não são muito consequentes. Acho que me toleram como a um parente excêntrico.
BC- Todas as pesquisas indicam a queda da circulação dos grandes diários dentro e fora do Brasil. Com uma longa trajetória no jornalismo, como percebe esta queda persistente, que expressa também o afastamento de uma geração do hábito de ler jornais? E como acompanha o trânsito de boa parte do público para a internet?
LFV - Quem é viciado em jornal e revista como eu só pode lamentar que a era da letrinha impressa esteja chegando ao fim, como anunciam. Mas este é um preconceito como qualquer outro. Mesmo mudando o veículo ainda existirá o texto, e um autor. Vou começar a me preocupar quando o próprio computador começar a escrever.
BC - Atribui-se a um advogado famoso, dono de clientela de altíssimo poder aquisitivo, uma reação irada ao saber que seu cliente endinheirado fora preso: "O que é isso? No Brasil só vão presos os três Ps: preto, puta e pobre!", reagiu indignado. Estamos no século 21, mas as elites parecem continuar no 19. Acredita que vá ver isto mudar?
LFV - As nossas elites não mudaram muito desde D. João VI. Vamos lhes dar mais um pouco de tempo.
BC - A atual política externa do Brasil, mais independente, colabora de alguma maneira para mudar este comportamento?
LFV - A política externa independente é uma das coisas positivas deste governo. Embora o pragmatismo excessivo possa levar a uma tolerância desnecessária com bandidos, às vezes.
BC - O escritor argentino Jorge Luís Borges dizia que a única notícia realmente nova em toda a sua vida foi a chegada do homem à Lua. O resto já tinha acontecido antes de uma ou outra forma. O que o surpreendeu, além disso? Borges tinha razão?
LFV - O sistema GPS. Finalmente, uma voz vinda do alto para guiar os nossos passos.
BC - Em que trabalha no momento ou pretende trabalhar? De outra parte, o que acha dos e-books?
LFV - Acabei de lançar um romance, chamado Os Espiões. Não tenho outro romance planejado no momento. Devem sair um livro para público juvenil, um de quadrinhos e um sobre futebol este ano, mas não sei bem quando. Quanto aos e-books, só vou aceitar quando tiverem cheiro de livro.
BC - Teremos eleições em 2010 e o governo Lula opera na proposta de um pleito plebiscitário - Nós x Eles - contrapondo os oito anos do PT contra os oito anos do PSDB. Se fosse fazer esta comparação o que diria?
LFV - De certo modo, este governo continuou o outro. E vou votar para que o próximo continue este.
Como Luis Fernando Veríssimo, 73 anos, arruma tempo para tanto trabalho não se sabe. O que se sabe é que são mais de 70 livros. E sem contar as antologias! Há de tudo: romances, novelas, quadrinhos, contos, crônicas, guias turísticos e até poesia. No final de 2009, chegou às livrarias Os Espiões, sua obra mais recente. No entanto, sua tarefa mais pesada não é essa, mas a de alimentar diariamente colunas nos jornais O Globo, O Estado de S. Paulo e Zero Hora. Autor de uma frase cáustica sobre a imprensa - "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data" - o saxofonista, cronista, romancista, quadrinista, contista e novelista fala aqui sobre mídia, governo Lula, sua situação entre os chamados formadores de opinião, decadência dos diários tradicionais, e-books, elites e eleições.
Brasília Confidencial - Hoje, no Brasil, a mídia enxerga um país totalmente diferente daquele que a maioria da população vê. Enquanto a grande imprensa, pessimista, trabalha sobre uma paleta de escândalos, a população, otimista, toca a sua vida de modo mais tranquilo. Que país o Sr. vê?
Luís Fernando Veríssimo - A imprensa cumpre o seu papel fiscalizador, mas não há duvida que, com algumas exceções, antipatiza com o Lula e com o PT. Acho que os historiadores do futuro terão dificuldade em entender o contraste entre essa quase-unânime reprovação do Lula pela grande imprensa e sua também descomunal aprovação popular. O que vai se desgastar com isto é a idéia da grande imprensa como formadora de opinião.
BC - A grande imprensa enaltece a diversidade de opiniões, mas, curiosamente, os principais jornais do Brasil têm a mesma opinião sobre os mesmos assuntos. Este pensamento único não compromete uma pluralidade de opiniões que a mídia costuma defender quando não está olhando para si própria?
LFV - O irônico é que hoje existem menos alternativas à imprensa "oficial" do que existia nos tempos da censura. Mas as alternativas existem, e o tal pensamento único não é imposto, mas decorre de uma identificação dos grandes grupos jornalísticos do país com alguns princípios, como o da economia de mercado, o governo mínimo, etc.
BC - O senhor defende na sua coluna a reforma agrária e questiona a criminalização dos movimentos sociais. Não se sente muito solitário na mídia tratando desses temas?
LFV - Meus palpites não são muito consequentes. Acho que me toleram como a um parente excêntrico.
BC- Todas as pesquisas indicam a queda da circulação dos grandes diários dentro e fora do Brasil. Com uma longa trajetória no jornalismo, como percebe esta queda persistente, que expressa também o afastamento de uma geração do hábito de ler jornais? E como acompanha o trânsito de boa parte do público para a internet?
LFV - Quem é viciado em jornal e revista como eu só pode lamentar que a era da letrinha impressa esteja chegando ao fim, como anunciam. Mas este é um preconceito como qualquer outro. Mesmo mudando o veículo ainda existirá o texto, e um autor. Vou começar a me preocupar quando o próprio computador começar a escrever.
BC - Atribui-se a um advogado famoso, dono de clientela de altíssimo poder aquisitivo, uma reação irada ao saber que seu cliente endinheirado fora preso: "O que é isso? No Brasil só vão presos os três Ps: preto, puta e pobre!", reagiu indignado. Estamos no século 21, mas as elites parecem continuar no 19. Acredita que vá ver isto mudar?
LFV - As nossas elites não mudaram muito desde D. João VI. Vamos lhes dar mais um pouco de tempo.
BC - A atual política externa do Brasil, mais independente, colabora de alguma maneira para mudar este comportamento?
LFV - A política externa independente é uma das coisas positivas deste governo. Embora o pragmatismo excessivo possa levar a uma tolerância desnecessária com bandidos, às vezes.
BC - O escritor argentino Jorge Luís Borges dizia que a única notícia realmente nova em toda a sua vida foi a chegada do homem à Lua. O resto já tinha acontecido antes de uma ou outra forma. O que o surpreendeu, além disso? Borges tinha razão?
LFV - O sistema GPS. Finalmente, uma voz vinda do alto para guiar os nossos passos.
BC - Em que trabalha no momento ou pretende trabalhar? De outra parte, o que acha dos e-books?
LFV - Acabei de lançar um romance, chamado Os Espiões. Não tenho outro romance planejado no momento. Devem sair um livro para público juvenil, um de quadrinhos e um sobre futebol este ano, mas não sei bem quando. Quanto aos e-books, só vou aceitar quando tiverem cheiro de livro.
BC - Teremos eleições em 2010 e o governo Lula opera na proposta de um pleito plebiscitário - Nós x Eles - contrapondo os oito anos do PT contra os oito anos do PSDB. Se fosse fazer esta comparação o que diria?
LFV - De certo modo, este governo continuou o outro. E vou votar para que o próximo continue este.
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Luis Fernando Veríssimo
domingo, 14 de março de 2010
Uma questão de justiça social
Entre os dias 3 e 5 de março, 45 especialistas discutiram a legitimidade da reserva de vagas para negros em universidade públicas no plenário do Supremo Tribunal Federal. A audiência pública foi convocada pelo ministro Ricardo Lewandowski, relator de um processo movido pelo partido Democratas (ex-PFL) contra a Universidade de Brasília (UnB), que reserva 20% das vagas disponíveis no seu vestibular a estudantes negros.
Para o jurista Fábio Konder Comparato, professor aposentado da Universidade de São Paulo e um dos defensores da proposta, a adoção de cotas raciais nas universidades públicas “não apenas é constitucional, como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalida de por omissão”. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista concedida à CartaCapital.
CartaCapital: As cotas raciais são constitucionais?
Fábio Konder Comparato: Em primeiro lugar, é preciso saber que a reserva de vagas para negros nas universidades públicas não apenas é constitucional como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalida de por omissão. O artigo 3º, inciso III, da Constituição de 1988, é muito claro a esse respeito. “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Essa determinação constitucional não é um simples programa de intenções. É uma norma obrigatória. Enquanto os poderes públicos não cumprem esse objetivo nem tomam medidas para atingi-lo, eles estão descumprindo a Constituição. No caso específico da população negra, a desigualdade é brutal. Atualmente, pretos e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres da nossa população. Eles são os pobres dos pobres. No mercado de trabalho, com a mesma
qualificação e escolaridade, os negros recebem em média a metade do salário pago aos brancos. Enquanto 58% da população branca está no Ensino Médio, há apenas 37% de negros neste mesmo nível educacional.
CC: Daí a necessidade de políticas de inclusão. Mas não necessariamente de reserva de vagas ou cotas raciais, afirmam os críticos da medida. O senhor concorda?
FKC: Essas distorções se reproduzem no Ensino Superior. Além disso, a Constituição tem outros dispositivos análogos à proposta de reserva de vagas para negros nas universidades. No artigo 7º, inciso XX, estabelece-se a necessidade de “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos”. Da mesma forma como os opositores das cotas chamam esse tipo de política de racista, poderíamos dizer que a Constituição, nesse ponto, foi sexista. Mas não é esse o entendimento, trata-se de uma medida de proteção a uma minoria. E eu insisto num ponto: a ausência de medidas de inclusão como as cotas nas universidades é que representa um descumprimento da norma constitucional. E, devo acrescentar, se ficarmos apenas nessa política de cotas nas universidades, estaremos apenas cumprindo o mínimo daquilo que deveríamos fazer para levantar a população negra no Brasil.
CC: Por mais que se constate a vulnerabilidade da população negra no Brasil, muitos criticam a adoção de critérios raciais no ingresso à universidade. Boa parte deles defende a adoção de critérios estritamente sociais para as cotas, como a renda familiar. Há validade neste tipo de argumento?
FKC: Bom, esse é um retrato do Brasil. Nos EUA, o racismo é declarado, não é escondido. E os americanos tomam medidas para reduzir as desigualdades entre as diferentes etnias. No Brasil, o racismo é enrustido e dissimulado. E toda vez que procuramos lutar contra essa desigualdade escandalosa, os conservadores racistas se põem de pé e bradam contra a existência de “políticas racistas”. Exteriormente temos uma brilhante Constituição, equivalente a dos países mais avançados do mundo. Mas isso daqui é só para inglês ver. Internamente, cada um sabe o seu lugar. E nada de pular de galho, senão o cidadão se arrebenta no chão. Isso representa uma hipocrisia difícil de ser tolerada.
CC: Essa hipocrisia também se verifica no discurso meritocrático? Isto é, de que apenas pelo mérito os melhores alunos deveriam ingressar no Ensino Superior.
FKC: Mas os negros vão entrar na universidade de que jeito? Por decreto? Eles também não passam por um processo de seleção, pelo vestibular? Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando foi criado um curso de pós-graduação em Direitos Humanos, nós criamos vagas preferenciais para estudantes negros e para deficientes físicos. No caso dos negros, o desempenho deles foi exatamente igual ao dos brancos. E eles não entraram de graça, tiveram de passar por um rigoroso processo de admissão.
CC: Para o senhor, todos esses argumentos são falaciosos?
FKC: Sim. Tanto que o partido que encampou essa ação de inconstitucionalida de das cotas é um retrato do Brasil. Eles, com o perdão da palavra, se auto-intitulam “Democratas”. É... no nome são. Mas aqui é assim, tudo é só no nome. Nada é pra valer.
CC: Mas porque este tipo de argumento sensibiliza até mesmo pessoas com histórico de militância no movimento negro, e que identificam nas cotas raciais um precedente perigoso? FKC: Eu entendo isso. Depois de quase quatro séculos de escravidão, existe na mentalidade dos pretos e pardos um complexo de inferioridade muito grande. E muitos rejeitam medidas que consideram puramente assistenciais. Mas estes representam, evidentemente, uma minoria. A grande maioria da população negra é indiferente. Eles engoliram o racismo que sofreram por séculos e não protestam. E há uma minoria esclarecida que defende a dignidade da população negra e exige o cumprimento da Constituição. Assim como há também uma minoria que não quer mexer no assunto porque, segundo eles, isso seria um reconhecimento de que os negros são inferiores. De modo geral, eles se consideram iguais em tudo em relação aos brancos. Acontece que eles não são iguais economicamente ou
socialmente. Os negros estão em situação de grande penúria e os dados que passei não são invenção, tratam-se de dados oficiais. É preciso reconhecer essa injustiça flagrante para lutar contra ela.
CC: Há uma série de ações contestando as cotas raciais na Justiça. O senhor tem conhecimento se também existem ações contra o poder público por descumprimento da Constituição, no que diz respeito à redução das desigualdades étnicas?
FKC: Na Justiça do Trabalho, fiquei sabendo de algumas poucas ações contra bancos, por haver – dissimuladamente, como sempre no Brasil – uma política de não contratação de negros. E foi só recentemente que começaram a aparecer apresentadores negros na tevê brasileira. Os últimos dados do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) mostram que, em 2006, 55,2% da nossa população masculina se reconheceu como negra. E 49,7% das mulheres brasileiras também se reconheciam como negras. Levando em conta o percentual considerável daqueles que não reconhecem a sua origem africana, os negros constituem a maioria incontestável da população no Brasil. Deveríamos ficar de braços cruzados em relação à marginalização desse povo?
CC: O senhor acredita que a política de reserva de vagas para negros tende a sair das universidades e ser aplicada também no mercado de trabalho, para corrigir essas distorções?
FKC: Acho que sim. Não sei bem se os EUA podem servir de modelo, mas eles estão bem mais adiantados do que nós nesse quesito. Não só pelas políticas de inclusão nas universidades, mas também pelas ações afirmativas para garantir o emprego da população negra em instituições privadas e no serviço público. Também não podemos nos esquecer que a eleição de um presidente negro, nos EUA, é um fato extraordinário. E eles já tinham, desde o começo dos anos 60, um juiz negro na Suprema Corte. Só agora, com o governo Lula, o Brasil viu a nomeação de um juiz negro para o Supremo: o ministro Joaquim Barbosa. Nós sempre estamos atrasados em relação os EUA. Parece que só copiamos deles o que não presta, como as perversas técnicas capitalistas americanas, sobretudo no mercado financeiro.
Para o jurista Fábio Konder Comparato, professor aposentado da Universidade de São Paulo e um dos defensores da proposta, a adoção de cotas raciais nas universidades públicas “não apenas é constitucional, como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalida de por omissão”. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista concedida à CartaCapital.
CartaCapital: As cotas raciais são constitucionais?
Fábio Konder Comparato: Em primeiro lugar, é preciso saber que a reserva de vagas para negros nas universidades públicas não apenas é constitucional como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalida de por omissão. O artigo 3º, inciso III, da Constituição de 1988, é muito claro a esse respeito. “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Essa determinação constitucional não é um simples programa de intenções. É uma norma obrigatória. Enquanto os poderes públicos não cumprem esse objetivo nem tomam medidas para atingi-lo, eles estão descumprindo a Constituição. No caso específico da população negra, a desigualdade é brutal. Atualmente, pretos e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres da nossa população. Eles são os pobres dos pobres. No mercado de trabalho, com a mesma
qualificação e escolaridade, os negros recebem em média a metade do salário pago aos brancos. Enquanto 58% da população branca está no Ensino Médio, há apenas 37% de negros neste mesmo nível educacional.
CC: Daí a necessidade de políticas de inclusão. Mas não necessariamente de reserva de vagas ou cotas raciais, afirmam os críticos da medida. O senhor concorda?
FKC: Essas distorções se reproduzem no Ensino Superior. Além disso, a Constituição tem outros dispositivos análogos à proposta de reserva de vagas para negros nas universidades. No artigo 7º, inciso XX, estabelece-se a necessidade de “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos”. Da mesma forma como os opositores das cotas chamam esse tipo de política de racista, poderíamos dizer que a Constituição, nesse ponto, foi sexista. Mas não é esse o entendimento, trata-se de uma medida de proteção a uma minoria. E eu insisto num ponto: a ausência de medidas de inclusão como as cotas nas universidades é que representa um descumprimento da norma constitucional. E, devo acrescentar, se ficarmos apenas nessa política de cotas nas universidades, estaremos apenas cumprindo o mínimo daquilo que deveríamos fazer para levantar a população negra no Brasil.
CC: Por mais que se constate a vulnerabilidade da população negra no Brasil, muitos criticam a adoção de critérios raciais no ingresso à universidade. Boa parte deles defende a adoção de critérios estritamente sociais para as cotas, como a renda familiar. Há validade neste tipo de argumento?
FKC: Bom, esse é um retrato do Brasil. Nos EUA, o racismo é declarado, não é escondido. E os americanos tomam medidas para reduzir as desigualdades entre as diferentes etnias. No Brasil, o racismo é enrustido e dissimulado. E toda vez que procuramos lutar contra essa desigualdade escandalosa, os conservadores racistas se põem de pé e bradam contra a existência de “políticas racistas”. Exteriormente temos uma brilhante Constituição, equivalente a dos países mais avançados do mundo. Mas isso daqui é só para inglês ver. Internamente, cada um sabe o seu lugar. E nada de pular de galho, senão o cidadão se arrebenta no chão. Isso representa uma hipocrisia difícil de ser tolerada.
CC: Essa hipocrisia também se verifica no discurso meritocrático? Isto é, de que apenas pelo mérito os melhores alunos deveriam ingressar no Ensino Superior.
FKC: Mas os negros vão entrar na universidade de que jeito? Por decreto? Eles também não passam por um processo de seleção, pelo vestibular? Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando foi criado um curso de pós-graduação em Direitos Humanos, nós criamos vagas preferenciais para estudantes negros e para deficientes físicos. No caso dos negros, o desempenho deles foi exatamente igual ao dos brancos. E eles não entraram de graça, tiveram de passar por um rigoroso processo de admissão.
CC: Para o senhor, todos esses argumentos são falaciosos?
FKC: Sim. Tanto que o partido que encampou essa ação de inconstitucionalida de das cotas é um retrato do Brasil. Eles, com o perdão da palavra, se auto-intitulam “Democratas”. É... no nome são. Mas aqui é assim, tudo é só no nome. Nada é pra valer.
CC: Mas porque este tipo de argumento sensibiliza até mesmo pessoas com histórico de militância no movimento negro, e que identificam nas cotas raciais um precedente perigoso? FKC: Eu entendo isso. Depois de quase quatro séculos de escravidão, existe na mentalidade dos pretos e pardos um complexo de inferioridade muito grande. E muitos rejeitam medidas que consideram puramente assistenciais. Mas estes representam, evidentemente, uma minoria. A grande maioria da população negra é indiferente. Eles engoliram o racismo que sofreram por séculos e não protestam. E há uma minoria esclarecida que defende a dignidade da população negra e exige o cumprimento da Constituição. Assim como há também uma minoria que não quer mexer no assunto porque, segundo eles, isso seria um reconhecimento de que os negros são inferiores. De modo geral, eles se consideram iguais em tudo em relação aos brancos. Acontece que eles não são iguais economicamente ou
socialmente. Os negros estão em situação de grande penúria e os dados que passei não são invenção, tratam-se de dados oficiais. É preciso reconhecer essa injustiça flagrante para lutar contra ela.
CC: Há uma série de ações contestando as cotas raciais na Justiça. O senhor tem conhecimento se também existem ações contra o poder público por descumprimento da Constituição, no que diz respeito à redução das desigualdades étnicas?
FKC: Na Justiça do Trabalho, fiquei sabendo de algumas poucas ações contra bancos, por haver – dissimuladamente, como sempre no Brasil – uma política de não contratação de negros. E foi só recentemente que começaram a aparecer apresentadores negros na tevê brasileira. Os últimos dados do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) mostram que, em 2006, 55,2% da nossa população masculina se reconheceu como negra. E 49,7% das mulheres brasileiras também se reconheciam como negras. Levando em conta o percentual considerável daqueles que não reconhecem a sua origem africana, os negros constituem a maioria incontestável da população no Brasil. Deveríamos ficar de braços cruzados em relação à marginalização desse povo?
CC: O senhor acredita que a política de reserva de vagas para negros tende a sair das universidades e ser aplicada também no mercado de trabalho, para corrigir essas distorções?
FKC: Acho que sim. Não sei bem se os EUA podem servir de modelo, mas eles estão bem mais adiantados do que nós nesse quesito. Não só pelas políticas de inclusão nas universidades, mas também pelas ações afirmativas para garantir o emprego da população negra em instituições privadas e no serviço público. Também não podemos nos esquecer que a eleição de um presidente negro, nos EUA, é um fato extraordinário. E eles já tinham, desde o começo dos anos 60, um juiz negro na Suprema Corte. Só agora, com o governo Lula, o Brasil viu a nomeação de um juiz negro para o Supremo: o ministro Joaquim Barbosa. Nós sempre estamos atrasados em relação os EUA. Parece que só copiamos deles o que não presta, como as perversas técnicas capitalistas americanas, sobretudo no mercado financeiro.
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Fábio Konder Comparato
quinta-feira, 11 de março de 2010
Donos da mídia criticam participação popular e regras para setor
Em evento organizado pelo Instituto Millenium, em São Paulo, diretores e representantes dos principais veículos de comunicação do país criticaram mais uma vez os mecanismos de democracia participativa e defenderam a auto-regulação para o setor de mídia no Brasil. "No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso. Conferências são nada mais que a instrumentalização de um projeto político ideológico que tem como alvo minar a liberdade de imprensa e o capitalismo", afirmou Denis Rosenfield, articulista do Estadão.
Depois de sete horas de discurso sobre o que seriam os principais riscos para a democracia e a liberdade de expressão no Brasil de hoje, foram apresentadas as conclusões do evento promovido pelo Instituto Millenium na última segunda-feira (1). Entre elas, afirmações categóricas de uma linha de pensamento que a imprensa brasileira já não tem mais vergonha de defender:
- o setor de comunicação no país não precisa de mais leis, e sim de auto-regulação
- as Conferências Nacionais representam a estatização da opinião de minorias e são promovidas por entidades da sociedade civil cujo teor é decisivamente determinado por interesses partidários, governamentais ou ambos
- é urgente fazer um debate forte contra o Programa Nacional de Direitos Humanos para impedir que ele seja implementado
Tamanho espírito democrático foi propagado por figuras como Denis Rosenfield e Alberto Di Franco, articulistas do jornal O Estado de S.Paulo; Roberto Civita e Sidnei Basile, do Grupo Abril; Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja e William Waack, editor da Rede Globo, todos palestrantes convidados do 1o Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, apoiado por entidades como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), ANER (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais) e Abap (Associação Brasileira de Agências de Publicidade) e realizado num hotel de luxo esta semana em São Paulo.
Alvo favorito da grande imprensa desde o final de 2009, a terceira edição do Programa Nacional de Direito Humanos foi duramente atacada durante o seminário como um "ambicioso plano de implantação de um regime autoritário no Brasil".
"O Plano (sic) agride gravemente o direito de propriedade e sugere o controle dos meios de comunicação. Será um autoritarismo cuidando da história de outro autoritarismo. E o Brasil autoritário e intolerante que o governo quer construir é sustentado nesses dois pilares: o exercício da democracia direta e o controle dos meios de comunicação", acredita Di Franco. "Você lê que o governo se dá ao direito de criar uma classificação dos programas de acordo com os direitos humanos e que o invasor de terras passa a decidir junto com o juiz se vai sair dali ou não e deixa barato? Será que ninguém tinha lido isso?", esbravejou Reinaldo Azevedo, que fez questão de assumir a paternidade das "denúncias" contra o PNDH-3 para além da polêmica da criação da Comissão da Verdade, que já ocupava as páginas dos jornais.
Para os convidados e membros do Instituto Millenium, o PNDH-3, documento construído num processo amplo de participação popular, que envolveu mais de 14 mil pessoas em todo o país - "organizações de fachada", segundo William Waack -, é uma clara escalada da intervenção do Estado na vida da população. Num texto publicado na página da organização no internet, intitulado "Panfleto contra o PNDH-3", afirma-se que "os verdadeiros direitos humanos são garantir a propriedade privada e as liberdades individuais básicas".
Tanta fúria contra o Programa surge de pouquíssimas de suas mais de 500 propostas de ação, como a que propõe um "projeto de lei para tornar obrigatória a presença no local, do juiz ou do representante do Ministério Público, à ocasião do cumprimento de mandado de manutenção ou reintegração de posse de terras, quando houver pluralidade de réus, para prevenir conflitos violentos no campo"; a que sugere "elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações" - algo implementado há vários anos pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados - e "garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicaçã o que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos".
Em síntese, criar mecanismos para que os meios de comunicação cumpram o que já prevê a Constituição brasileira, que segue periodicamente ignorada por grande parte das emissoras de rádio e TV, concessionárias públicas. Para seguir nesta toada e convencer a opinião pública de que sua teoria está correta, a estratégia das grandes empresas de comunicação é travestir tais iniciativas de violadoras da liberdade de expressão.
"Vivemos um debate democrático no Brasil e o PT, por intermédio da liberdade de imprensa, propõe subverter a democracia pelos processos democráticos" , afirma Denis Rosenfield." A tendência é de implementação do PNDH-3, mas isso depende de como a sociedade vai reagir. Houve reação dos militares e da Igreja, e os dois setores foram contemplados. Então não há muito convencimento do governo em relação ao plano. Mas as entidades empresariais estão contemporizando. Se fizerem isso, serão as vítimas", sentencia.
A dificuldade fica maior quando vozes do próprio Partido dos Trabalhadores embarcam neste discurso. "Vira e mexe aparece uma vontade no governo de controlar a mídia. O Brasil tem caminhado num sistema democrático, embora apareça fatos como o PNDH (...) Não vejo necessidade de uma ação governamental pra ver se o jornal tal está respeitando os Direitos Humanos", disse o deputado federal Antonio Palocci, também presente ao evento do Instituto Millenium.
O "autoritarismo" da participação popular
Como pano de fundo da crítica ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 está a aversão das grandes empresas de comunicação a quaisquer mecanismos de participação popular na definição das políticas públicas no país. As conferências nacionais, realizadas há décadas no país e potencializadas nas últimas gestões do governo federal, seriam controladas, como apontou a conclusão do Fórum do Instituto Millenium, por interesses partidários e governamentais.
"Em termos éticos, 90% dessas organizações são totalitárias e querem impor um modelo e padrão da vida pública", afirmou Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp, fonte favorita da grande imprensa quando se trata de criticar a esquerda. Não se concebe compreendê-las como espaços abertos e plurais, onde qualquer cidadão e cidadã pode manifestar sua opinião. Nem mesmo os mecanismos de democracia direta previstos no artigo 14 da Constituição Federal - que a grande mídia afirma defender - são respeitados. Para Carlos Alberto Di Franco, do Estadão, por exemplo, plebiscitos e referendos devem ser vistos como "formas excepcionalíssimas de consulta".
Para Denis Rosenfield, as conferências são "meios de participação política de movimentos sociais e sindicatos que têm objetivos específicos contra os meios de comunicação, apresentando isso de forma palatável como o controle social e a defesa dos direitos humanos, quando o alvo evidente é cercear a liberdade de expressão".
No bojo das críticas à democracia participativa, tais grupos econômicos desqualificaram, mais uma vez, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), da qual as mesmas entidades que organizaram o evento em São Paulo se recusaram a participar. "As entidades empresariais colocaram premissas para sua participação, já que a pauta da Confecom era revisão do marco regulatório e o controle social. Nós dissemos que não poderia ficar de fora a liberdade de expressão, a livre iniciativa, o combate à pirataria. Insistimos para que isso viesse à pauta e isso não sobreviveu à agenda das demais entidades que lá estavam", tentou explicar Sidnei Basile, do Grupo Abril, ignorando que todos esses temas foram de fato debatidos na Confecom. "Então nos retiramos. Foi bom, foi correto marcar nossos princípios. E o conto do vigário que estava sendo vendido não vigorou", afirmou o jornalista, que minutos antes taxou de cínica e hipócrita tal iniciativa do governo.
Um dos temas mais criticados pela grande imprensa nos debates da Confecom foi justamente o controle social da mídia, que voltou ao centro do alvo no Fórum do Instituto Millenium. Os dardos vieram de todos os lados.
"Estranho que, justamente quando vivemos uma democracia plena, se esteja falando em maior controle dos meios de comunicação. Mais estranho ainda é falar isso quando mais de 60 milhões de brasileiros já têm acesso à internet, onde o fluxo de idéias e opiniões é totalmente livre e felizmente impossível de censurar e controlar", avaliou Roberto Civita, para quem, talvez, baste o fluxo de idéias e opiniões na rede mundial de computadores.
"Não pode haver controles além da própria constituição de um país (...) Não se pode fazer lei a torto e a direito. E a Constituição de 88, no que diz respeito a concessões, publicidade e meios de comunicação, é muito explicita. E o que se vê hoje são tentativas de cada vez mais frequentes de se inibir a publicidade ou a notícia. (...) Tem muita gente querendo uma nova lei de imprensa. Da vontade de dizer: "faz". Não existe boa lei de imprensa em nenhum lugar", sentenciou o deputado federal pelo PDT Miro Teixeira, ex-Ministro das Comunicações.
Já o atual ministro, num rompante de seu espírito democrático, deixou claro: "em hipótese alguma o governo aceitaria uma discussão sobre o controle social da mídia. Não será permitido discutir isso do ponto de vista governamental; é algo que consideramos absolutamente intocável", afirmou Hélio Costa, para quem a Confecom - que, diga-se de passagem, aprovou resolução em defesa do controle social e da participação popular nos meios de comunicação - não determina o que o governo deve fazer, levantando apenas sugestões "que não necessariamente devem ser colocadas em prática".
A lei do mercado
O recado, em suma, é o seguinte: nada de povo e nada de lei nas comunicações brasileiras. "Quanto menos legislação melhor", disse Civita. ""No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso", garante Rosenfield. Para não parecer que o que se defendia ali era a lei da selva, Sidnei Basile, do Grupo Abril, sacou da cartola a palavra mágica: auto-regulação. "O que se pode fazer conosco só nós é que podemos definir (...) Faço o convite para uma cultura da auto-regulação e da prevalência da boa fé", disse. Alguém consegue acreditar? Di Franco emendou: "Não é o Estado que tem que ser o tutor da sociedade. O mercado e a auto-regulação fazem isso extremamente bem".
"Vejam a última resolução da Anvisa, que diz que os medicamentos não podem ficar ao alcance do consumidor. Agora o Estado deve dizer tudo o que devemos fazer e como nos comportar? Liberdade de consumo, cinto de segurança, etc. Somos idiotas? O capitalismo também se caracteriza pela liberdade de escolha em todos os seus sentidos", teorizou Denis Rosenfield.
Com a auto-regulação concordaram até Hélio Costa e o deputado federal Antonio Palocci: "Os códigos de conduta das empresas, que educam sua equipe e organizam o trabalho da maneira adequada para tratar temas sensíveis, têm funcionado de forma eficiente. Não será o Estado que dirá como fazer", disse o petista.
Mas nem esta linha redutora do dever do Estado em promover a pluralidade, a diversidade e a participação popular e combater as violações de direitos humanos nos meios de comunicação foi suficiente para que os pensadores do Instituto Millenium abrissem mão da tese de que a liberdade de expressão está mesmo ameaçada no Brasil por iniciativas do governo federal e o autoritarismo dos movimentos sociais.
"Os grandes grupos empresariais estão satisfeitos com este governo. Se preocupam apenas com seus interesses materiais imediatos e se esquecem do espírito do capitalismo: a afirmação da liberdade de escolha e de expressão. Será que não estão colocando a corda no pescoço a médio e longo prazo?", questionou Rosenfield. Quem dera...
(Bia Barbosa)
Depois de sete horas de discurso sobre o que seriam os principais riscos para a democracia e a liberdade de expressão no Brasil de hoje, foram apresentadas as conclusões do evento promovido pelo Instituto Millenium na última segunda-feira (1). Entre elas, afirmações categóricas de uma linha de pensamento que a imprensa brasileira já não tem mais vergonha de defender:
- o setor de comunicação no país não precisa de mais leis, e sim de auto-regulação
- as Conferências Nacionais representam a estatização da opinião de minorias e são promovidas por entidades da sociedade civil cujo teor é decisivamente determinado por interesses partidários, governamentais ou ambos
- é urgente fazer um debate forte contra o Programa Nacional de Direitos Humanos para impedir que ele seja implementado
Tamanho espírito democrático foi propagado por figuras como Denis Rosenfield e Alberto Di Franco, articulistas do jornal O Estado de S.Paulo; Roberto Civita e Sidnei Basile, do Grupo Abril; Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja e William Waack, editor da Rede Globo, todos palestrantes convidados do 1o Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, apoiado por entidades como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), ANER (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais) e Abap (Associação Brasileira de Agências de Publicidade) e realizado num hotel de luxo esta semana em São Paulo.
Alvo favorito da grande imprensa desde o final de 2009, a terceira edição do Programa Nacional de Direito Humanos foi duramente atacada durante o seminário como um "ambicioso plano de implantação de um regime autoritário no Brasil".
"O Plano (sic) agride gravemente o direito de propriedade e sugere o controle dos meios de comunicação. Será um autoritarismo cuidando da história de outro autoritarismo. E o Brasil autoritário e intolerante que o governo quer construir é sustentado nesses dois pilares: o exercício da democracia direta e o controle dos meios de comunicação", acredita Di Franco. "Você lê que o governo se dá ao direito de criar uma classificação dos programas de acordo com os direitos humanos e que o invasor de terras passa a decidir junto com o juiz se vai sair dali ou não e deixa barato? Será que ninguém tinha lido isso?", esbravejou Reinaldo Azevedo, que fez questão de assumir a paternidade das "denúncias" contra o PNDH-3 para além da polêmica da criação da Comissão da Verdade, que já ocupava as páginas dos jornais.
Para os convidados e membros do Instituto Millenium, o PNDH-3, documento construído num processo amplo de participação popular, que envolveu mais de 14 mil pessoas em todo o país - "organizações de fachada", segundo William Waack -, é uma clara escalada da intervenção do Estado na vida da população. Num texto publicado na página da organização no internet, intitulado "Panfleto contra o PNDH-3", afirma-se que "os verdadeiros direitos humanos são garantir a propriedade privada e as liberdades individuais básicas".
Tanta fúria contra o Programa surge de pouquíssimas de suas mais de 500 propostas de ação, como a que propõe um "projeto de lei para tornar obrigatória a presença no local, do juiz ou do representante do Ministério Público, à ocasião do cumprimento de mandado de manutenção ou reintegração de posse de terras, quando houver pluralidade de réus, para prevenir conflitos violentos no campo"; a que sugere "elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações" - algo implementado há vários anos pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados - e "garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicaçã o que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos".
Em síntese, criar mecanismos para que os meios de comunicação cumpram o que já prevê a Constituição brasileira, que segue periodicamente ignorada por grande parte das emissoras de rádio e TV, concessionárias públicas. Para seguir nesta toada e convencer a opinião pública de que sua teoria está correta, a estratégia das grandes empresas de comunicação é travestir tais iniciativas de violadoras da liberdade de expressão.
"Vivemos um debate democrático no Brasil e o PT, por intermédio da liberdade de imprensa, propõe subverter a democracia pelos processos democráticos" , afirma Denis Rosenfield." A tendência é de implementação do PNDH-3, mas isso depende de como a sociedade vai reagir. Houve reação dos militares e da Igreja, e os dois setores foram contemplados. Então não há muito convencimento do governo em relação ao plano. Mas as entidades empresariais estão contemporizando. Se fizerem isso, serão as vítimas", sentencia.
A dificuldade fica maior quando vozes do próprio Partido dos Trabalhadores embarcam neste discurso. "Vira e mexe aparece uma vontade no governo de controlar a mídia. O Brasil tem caminhado num sistema democrático, embora apareça fatos como o PNDH (...) Não vejo necessidade de uma ação governamental pra ver se o jornal tal está respeitando os Direitos Humanos", disse o deputado federal Antonio Palocci, também presente ao evento do Instituto Millenium.
O "autoritarismo" da participação popular
Como pano de fundo da crítica ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 está a aversão das grandes empresas de comunicação a quaisquer mecanismos de participação popular na definição das políticas públicas no país. As conferências nacionais, realizadas há décadas no país e potencializadas nas últimas gestões do governo federal, seriam controladas, como apontou a conclusão do Fórum do Instituto Millenium, por interesses partidários e governamentais.
"Em termos éticos, 90% dessas organizações são totalitárias e querem impor um modelo e padrão da vida pública", afirmou Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp, fonte favorita da grande imprensa quando se trata de criticar a esquerda. Não se concebe compreendê-las como espaços abertos e plurais, onde qualquer cidadão e cidadã pode manifestar sua opinião. Nem mesmo os mecanismos de democracia direta previstos no artigo 14 da Constituição Federal - que a grande mídia afirma defender - são respeitados. Para Carlos Alberto Di Franco, do Estadão, por exemplo, plebiscitos e referendos devem ser vistos como "formas excepcionalíssimas de consulta".
Para Denis Rosenfield, as conferências são "meios de participação política de movimentos sociais e sindicatos que têm objetivos específicos contra os meios de comunicação, apresentando isso de forma palatável como o controle social e a defesa dos direitos humanos, quando o alvo evidente é cercear a liberdade de expressão".
No bojo das críticas à democracia participativa, tais grupos econômicos desqualificaram, mais uma vez, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), da qual as mesmas entidades que organizaram o evento em São Paulo se recusaram a participar. "As entidades empresariais colocaram premissas para sua participação, já que a pauta da Confecom era revisão do marco regulatório e o controle social. Nós dissemos que não poderia ficar de fora a liberdade de expressão, a livre iniciativa, o combate à pirataria. Insistimos para que isso viesse à pauta e isso não sobreviveu à agenda das demais entidades que lá estavam", tentou explicar Sidnei Basile, do Grupo Abril, ignorando que todos esses temas foram de fato debatidos na Confecom. "Então nos retiramos. Foi bom, foi correto marcar nossos princípios. E o conto do vigário que estava sendo vendido não vigorou", afirmou o jornalista, que minutos antes taxou de cínica e hipócrita tal iniciativa do governo.
Um dos temas mais criticados pela grande imprensa nos debates da Confecom foi justamente o controle social da mídia, que voltou ao centro do alvo no Fórum do Instituto Millenium. Os dardos vieram de todos os lados.
"Estranho que, justamente quando vivemos uma democracia plena, se esteja falando em maior controle dos meios de comunicação. Mais estranho ainda é falar isso quando mais de 60 milhões de brasileiros já têm acesso à internet, onde o fluxo de idéias e opiniões é totalmente livre e felizmente impossível de censurar e controlar", avaliou Roberto Civita, para quem, talvez, baste o fluxo de idéias e opiniões na rede mundial de computadores.
"Não pode haver controles além da própria constituição de um país (...) Não se pode fazer lei a torto e a direito. E a Constituição de 88, no que diz respeito a concessões, publicidade e meios de comunicação, é muito explicita. E o que se vê hoje são tentativas de cada vez mais frequentes de se inibir a publicidade ou a notícia. (...) Tem muita gente querendo uma nova lei de imprensa. Da vontade de dizer: "faz". Não existe boa lei de imprensa em nenhum lugar", sentenciou o deputado federal pelo PDT Miro Teixeira, ex-Ministro das Comunicações.
Já o atual ministro, num rompante de seu espírito democrático, deixou claro: "em hipótese alguma o governo aceitaria uma discussão sobre o controle social da mídia. Não será permitido discutir isso do ponto de vista governamental; é algo que consideramos absolutamente intocável", afirmou Hélio Costa, para quem a Confecom - que, diga-se de passagem, aprovou resolução em defesa do controle social e da participação popular nos meios de comunicação - não determina o que o governo deve fazer, levantando apenas sugestões "que não necessariamente devem ser colocadas em prática".
A lei do mercado
O recado, em suma, é o seguinte: nada de povo e nada de lei nas comunicações brasileiras. "Quanto menos legislação melhor", disse Civita. ""No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso", garante Rosenfield. Para não parecer que o que se defendia ali era a lei da selva, Sidnei Basile, do Grupo Abril, sacou da cartola a palavra mágica: auto-regulação. "O que se pode fazer conosco só nós é que podemos definir (...) Faço o convite para uma cultura da auto-regulação e da prevalência da boa fé", disse. Alguém consegue acreditar? Di Franco emendou: "Não é o Estado que tem que ser o tutor da sociedade. O mercado e a auto-regulação fazem isso extremamente bem".
"Vejam a última resolução da Anvisa, que diz que os medicamentos não podem ficar ao alcance do consumidor. Agora o Estado deve dizer tudo o que devemos fazer e como nos comportar? Liberdade de consumo, cinto de segurança, etc. Somos idiotas? O capitalismo também se caracteriza pela liberdade de escolha em todos os seus sentidos", teorizou Denis Rosenfield.
Com a auto-regulação concordaram até Hélio Costa e o deputado federal Antonio Palocci: "Os códigos de conduta das empresas, que educam sua equipe e organizam o trabalho da maneira adequada para tratar temas sensíveis, têm funcionado de forma eficiente. Não será o Estado que dirá como fazer", disse o petista.
Mas nem esta linha redutora do dever do Estado em promover a pluralidade, a diversidade e a participação popular e combater as violações de direitos humanos nos meios de comunicação foi suficiente para que os pensadores do Instituto Millenium abrissem mão da tese de que a liberdade de expressão está mesmo ameaçada no Brasil por iniciativas do governo federal e o autoritarismo dos movimentos sociais.
"Os grandes grupos empresariais estão satisfeitos com este governo. Se preocupam apenas com seus interesses materiais imediatos e se esquecem do espírito do capitalismo: a afirmação da liberdade de escolha e de expressão. Será que não estão colocando a corda no pescoço a médio e longo prazo?", questionou Rosenfield. Quem dera...
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