Primeiro nascido em um acampamento, Marcos Tiaraju está prestes a se formar em medicina
Por Mauro Graeff Júnior
Seu nome é carregado de simbolismo. Foi escolhido por um grupo de colonos sem-terra em uma reunião realizada sob lonas pretas. Marcos faz referência à palavra marco, início. Tiaraju é uma homenagem a Sepé Tiaraju, o líder dos índios guaranis morto em 1756 na defesa das terras do Rio Grande do Sul contra portugueses e espanhóis.
Marcos Tiaraju Correa da Silva, de 24 anos, foi a primeira criança nascida em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O jovem perdeu a mãe em um conflito com ruralistas, cresceu em manifestações e hoje estuda medicina em Cuba. Quer voltar ao Brasil em um ano e meio, formado, para continuar a luta iniciada pelos pais.
A história de Marcos entrelaça-se com a trajetória do MST. Ele nasceu em 1º de novembro de 1985 na Fazenda Annoni, no norte do Rio Grande do Sul, na primeira área ocupada pelo recém-criado grupo. O local, para onde migraram 1,5 mil famílias de agricultores pobres, é o berço do movimento e tornou-se símbolo da batalha pela terra.
José Correa da Silva e Roseli Celeste Nunes da Silva, os pais, entraram no MST após ficarem cansados da vida miserável. Chegaram à fazenda de 9 mil hectares com algumas sacolas de roupa, os dois filhos – de 3 e 6 anos – e o sonho de virar donos de um pedaço de chão. Roseli, aos 31 anos, estava grávida de nove meses. “Não tínhamos alternativa”, afirma o pai de Marcos.
O bebê nasceu num hospital perto do acampamento. Viveu os primeiros meses de vida em barracas, amamentado em protestos e ocupações. Sua mãe o levou nos braços em uma marcha de 500 quilômetros que durou 28 dias, entre a Fazenda Annoni e Porto Alegre. Para os colonos, o menino virou um talismã desde o nascimento, lembra o padre Arlindo Fritzen, um dos fundadores do movimento. “Ele é o símbolo da vida, da esperança, para milhares de pessoas que se juntaram pelo sonho da reforma agrária. O sucesso dele é uma vitória, mostra que o sacrifício não foi à toa”, diz Fritzen, que batizou Marcos.
Em 31 de março de 1987, Roseli participava de uma manifestação em Sarandi, também no norte do estado, quando o caminhão de uma empresa agrícola avançou sobre uma barreira de colonos. Rose, como era chamada, morreu esmagada. Virou nome de acampamentos, assentamentos, escolas e brigadas do MST por todo o Brasil. A história dela foi contada nos documentários Terra para Rose e O Sonho de Rose, ambos da carioca Tetê Moraes.
Abalado com a morte da mulher e com três filhos pequenos para criar, o pai de Marcos não suportou a dura rotina nos acampamentos, onde faltava até água para beber. Foi tentar a vida na cidade como pintor de paredes, sem perder os vínculos com os amigos do movimento. A reaproximação com o MST ocorreu em 1996, quando a documentarista preparava o segundo filme sobre Roseli. “Decidimos que o sonho de Rose, o sonho de minha mãe, deveria virar realidade. Ela não poderia ter morrido em vão. Precisávamos ter nossa terra”, conta o estudante.
Convidado por um amigo, o futuro médico morou um ano em um assentamento na região metropolitana de Porto Alegre, longe da família. Lá, aos 14 anos, reencontrou- se com o passado.
Essa temporada reascendeu seus ideais adormecidos, os mesmos que moveram sua mãe. “Ganhei uma camiseta estampada com uma foto dela comigo nos braços e uma frase que ela sempre repetia: ‘Prefiro morrer lutando do que morrer de fome’. Nunca foi fácil aceitar a sua morte e acredito que nunca será. Mas sinto orgulho do que ela fez.”
Em 1999, o sonho foi realizado. A família Silva recebeu 14 hectares em Viamão, nos arredores de Porto Alegre. Não foi fácil para Marcos seguir com os estudos e morar no novo assentamento. Caminhava diariamente 7 quilômetros até o ponto de ônibus mais próximo. Meses depois, ganhou uma bicicleta e passou a pedalar 30 quilômetros por dia para ir e voltar da escola. Pensou várias vezes em trocar os livros pela enxada.
De volta ao convívio com o movimento, passou a envolver-se mais em protestos e ocupações. Morou em acampamentos, pegou em foices e reviveu a rotina dos primeiros meses de vida. O passaporte para mudar de país e de vida veio em 2005, quando engrossou uma marcha de 12 mil sem-terra a Brasília. Acabou convidado a estudar medicina em Cuba. “Senti o compromisso moral de aceitar a proposta, já que diariamente dentro do movimento- levantamos a bandeira da educação e da saúde como forma de melhorar a vida dos mais pobres.”
Sem nunca ter saído do Brasil e com espanhol precário, o gaúcho desembarcou em 2006 na ilha de Fidel Castro. Cursou os dois primeiros anos de faculdade em Havana e agora está em Camaguey, a oito horas da capital. Suas despesas com estudo, alimentação, higiene pessoal e moradia são custeadas pelo governo cubano. Também recebe auxílio financeiro do MST a cada três ou quatro meses. Se tudo der certo, se graduará em 2012. Ainda não escolheu qual especialização vai seguir, mas tem claro que voltará às fileiras do movimento. Quer usar a medicina para atender “os companheiros” . Diz querer ajudar a reconquistar a simpatia da população em relação aos sem-terra. “Temos de mostrar nossos objetivos e nossas raízes, a luta pacífica pela terra.”
O universitário sabe ser um símbolo da causa. Os filmes que contam a história de sua mãe são exibidos com sucesso nos acampamentos e assentamentos. Os documentários o fizeram conhecido entre os que lutam pela reforma agrária. “A história do Marcos dá uma energia positiva para jovens que passaram tantas dificuldades como ele. É uma mensagem de esperança”, afirma a documentarista Tetê Moraes, que acompanha os passos do estudante desde o nascimento e recentemente fez um curta-metragem sobre o filho de Rose.
Consciente de seu papel histórico para o MST, o futuro médico busca inspiração na própria história para honrar a peleja de Roseli. Com o filho nos braços, em um depoimento do filme Terra para Rose, ela dizia: “Espero que quando ele (Marcos) estiver grande, tudo isso não seja em vão. Que ele tenha um futuro melhor”.