28/12/2013 - No pior IDH do país, a lição dos médicos cubanos
- Por Vera Paoloni (*), especial para o portal Brasil 247
A jornalista Vera Paolani relata a transformação de Melgaço [foto], na Ilha do Marajó, que tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano do País.
Lá, não há saneamento básico e a população sofre com micoses, contaminações genitais, hipertensão e gravidez precoce.
Essa realidade começou a mudar com a chegada de médicos cubanos, que atendem, no mínimo, 24 pessoas por dia, em consultas médias de trinta minutos.
A cubana Maribel Saborit [foto] relata uma experiência:
"Fomos a uma comunidade ribeirinha, fizemos a travessia de barco e na casa de um senhor diabético de 86 anos ouvimos, depois do exame: quatro médicos aqui, quatro médicos me visitando em casa, meu Deus posso morrer feliz. Nunca tinha visto um médico"
28 DE DEZEMBRO DE 2013
Melgaço, no Marajó, Pará, tem o pior IDH - Índice de Desenvolvimento Humano do país, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil 2013, divulgado no final de julho.
São 24 mil habitantes, dos quais 12 mil não sabem ler e nem escrever, apenas 681 pessoas frequentam o ensino médio, saneamento é zero, saúde é rarefeita e internet só de vez em quando e apenas por celular.
O melhor de Melgaço é o povo, as pessoas, atestam Maribel, Oyainis e Maribel as três médicas e o médico cubano Orlando que estão morando e trabalhando no município marajoara desde 21 de setembro, há pouco mais de 3 meses.
Eles integram o programa audacioso e certeiro "Mais Médicos", que leva assistência e médicos a municípios carentes e vulneráveis. Ponto para o Ministério da Saúde e para a presidenta Dilma Rousseff.
Se o povo é o melhor de Melgaço, o pior é a água. Ribeirinho, Melgaço não tem água tratada e nem saneamento básico.
Isso gera micoses e contaminações genitais. Há gravidez muito precoce e um índice alarmante de hipertensão que atinge muitos jovens, resume o quarteto médico cubano que atende 24 pessoas, no mínimo, todo dia em Melgaço, de segunda a sexta.
Com a consulta média de 30 minutos, salvo situações mais complicadas e que exigem mais tempo. Em todas as consultas, a medicina preventiva em ação: tratar a água com hipoclorito de sódio, ferver a água, só pra citar um exemplo.
Pobreza e generosidade
Quase a metade, 48% da população de Melgaço é pobre, aponta o Mapa da Pobreza do IBGE publicado em 2003.
Grande parte da população do campo tem remuneração de R$ 71,50, fazendo com que as famílias na zona rural sobrevivam, em média, com R$ 662 por mês - menos que um salário mínimo.
As distâncias são grandes e se leva até 15 dias pra cruzar o espaço de mais de 6 mil quilômetros. Com toda toda essa adversidade, o povo de Melgaço é acolhedor e generoso, garantem as médicas e o médico cubanos.
15 horas de barco
Em português entrevistei as três médicas e o médico ontem (19.dez) à noite, em Belém. Na capital, fizeram um treinamento na área de saúde e retornam segunda-feira, 23.dez, bem no período de recesso natalino.
De Melgaço a Breves, uma hora de barco e de Breves a Belém, mais 14 horas. Ao todo 15 horas pra chegar em Belém, atravessando a baía do Marajó.
Nem açaí e nem farinha
Como a jornada de trabalho em Melgaço é de 40 horas semanais, igual a Cuba, pergunto o que fazem no final de semana pra driblar a saudade de casa, já que as famílias ficaram em Cuba.
"Lavamos e passamos nossas roupas, limpamos nossos quartos, lemos, entramos na internet pra passar correio eletrônico, descansamos". E Orlando informa que em julho vão de férias a Cuba.
Os quatro me contam que Belém e Melgaço são "mais quentes que Cuba", mas isso não atrapalha. Gostam da comida à base de peixe, frango, carne, arroz, feijão.
Só açaí [foto] e farinha não faz parte do cardápio deles.
"Muito forte o açaí" diz Maribel Saborit sorridente. Eu afianço a elas e ele que não sabem o que estão perdendo. E rimos todos.
Nove anos de estudo
Nem a imensidão de água da baía do Marajó, o calor ou as travessias de barco até as comunidades assustam o quarteto médico cubano.
Os quatro trabalharam em missões humanitárias na Venezuela e na Bolívia.
Estudaram os nove anos da formação de medicina cubana: 6 da medicina geral e mais 3 da medicina integral, algo semelhante à residência médica brasileira, em que a especialização é feita juntamente com trabalho prático. E os quatro trabalhavam em Cuba.
Maribel Saborit tem 21 anos de profissão. Maribel Hernanez, 19 anos. Oyanis, 8 anos e Orlando, 22 anos.
Cuba orientou como critério de participação no programa Mais Médicos, o mínimo de uma missão humanitária.
Orlando esteve no Paquistão e Venezuela. Oyainis, na Venezuela. Maribel Saborit e Maribel Hernandez, na Venezuela e Bolívia. Além dos 9 anos de estudo, atuação em uma missão humanitária por 3 anos.
Um médico em casa?
Embora o quarteto fale num bem compreensível portunhol, indago se não falarem bem o português fez com que algum paciente deixasse de entendê-los.
"De jeito nenhum, diz Oyainis Santos [foto].
A gente olha pra eles, conversa e se entende. Fazemos um amplo interrogatório, anotamos, fazemos exames físicos completos".
E Maribel Saborit completa:
"o povo é muito acolhedor, generoso e agradecido. Fomos a uma comunidade ribeirinha, fizemos travessia de barco e na casa de um senhor diabético de 86 anos ouvimos, depois do exame: 4 médicos aqui, quatro médicos me visitando em casa, meu Deus posso morrer feliz. Nunca tinha visto um médico"!
Sem essa de dr., dra.
Fico surpresa quando me dizem que se apresentam aos pacientes como Orlando, Maribel e Oyainis.
Assim, sem dr., dra., termos que aqui no Brasil são acrescidos à profissão de médicos.
Maribel Saborit ri e me diz: "por que dr., dra? Somos iguais, só tivemos mais chance de estudar, ter uma graduação. Mas nossa identidade é a mesma de quando nascemos".
Internet, problemão
O contato com a família é via e-mail, pois falar pelo celular é muito caro.
Cada um tem um tablet 3G, que faz parte dos equipamentos do Mais Médicos. E eles compraram um pacote basicão da Vivo, "mas os créditos somem muito rápido", se queixam. Como falar por telefone é caro demais, sobra conversar por e-mail na internet do celular.
Eu digo a elas e ele que quem mora e luta na Amazônia quando vara uma notícia pro mundo, rompe o cordão sanitário do isolamento em que nos encontramos.
O acesso à internet poderia ser uma forma de ajudar a romper esse cordão, mas temos o pior acesso de todas as cinco regiões do país e no Marajó, o pior acesso do Pará. Estamos ilhados, portanto.
Afinal, o que vocês ganham de salário fica com vocês ou vai pra família, indago? "Parte fica conosco, parte vai para nossas famílias e outra parte vai para o nosso governo, para ajudar o nosso povo cubano", me diz Maribel Hernandez [foto].
"Mas com o que ficamos é suficiente para nos manter, para lazer.
A prefeitura de Melgaço paga nosso alojamento e esse é muito bom: tem um quarto para cada um de nós, com banheiro, cama, ar condicionando. Temos mais que suficiente", fala Maribel Saborit.
E Oyainis completa: "a saúde em Cuba precisa da ajuda de todos nós, porque o país sofre um embargo econômico que é muito doloroso para nossa gente. Então, a ajuda precisa vir de nós, cubanos e de nossos aliados".
Faz parte da nossa formação retribuir
A conversa vai chegando ao fim, pois há várias pessoas chamando o quarteto médico cubano e querendo tirar fotos, indagar, conversar, rir junto.
E eu faço a última inquirição: o que fez vocês saírem de Cuba e vir pra Melgaço? E Maribel Saborit diz:
"olha, faz parte da nossa formação ajudar países e pessoas mais necessitadas com nosso conhecimento que foi dado de forma coletiva e gratuita. Só estamos retribuindo".
Encerramos a conversa e eu fico matutando que grandeza é essa de Cuba e do seu povo que tanto tem a nos ensinar!
Se eu conheço quantos médicos do meu país que fariam algo semelhante aqui mesmo.
Em janeiro [2014] vou a Melgaço numa caravana formativa da Fetagri/CUT no Marajó.
Quero rever meu novo quarteto camarada e amigo e conversar com o povo atendido pelas médicas e pelo médico cubanos.
E só finalizando mesmo: fizemos uma pequena homenagem às 3 médicas cubanas e ao médico cubano ontem à noite na formatura de encerramento do curso de Formação de Formadores promovido pela Escola Chico Mendes da Amazônia e da qual participamos 46 pessoas, de todas as CUTs da Amazônia.
(*) Vera Paoloni é bancária, jornalista e secretária de comunicação da CUT/Pará
Fonte:
http://lapaoloni.blogspot.com.br/2013/12/missao-humanitaria-humildade-e.html
Leia também:
- Mariel para Cuba, Brasil e o socialismo - Beto Almeida
Nota:
A inserção de imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.