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sexta-feira, 18 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 4/5

A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público

1- A Transnacionalização e a Maior Concentração de Capital no Campo dos Recursos Hídricos


A liberalização e a mercantilização vem ensejando uma nova dinâmica à "conquista da água".

Trata-se, segundo Ricardo Petrella, “da integração entre todos os setores no contexto da luta pela sobrevivência e pela hegemonia no seio do oligopólio mundial. Cada um desses setores - água potável, água engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos – têm, no momento, seus protagonistas, suas especialidades, seus mercados, seus conflitos”.

A Nestlé e a Danone, por exemplo, são as duas maiores empresas do mundo em água mineral engarrafada e junto com a Coca-Cola e a Pepsi-Cola tornaram-se concorrentes das empresas de tratamento de água graças ao desenvolvimento e comercialização nas empresas e residências de uma água dita de síntese, purificada, apresentada como mais sadia do que a das torneiras.

As empresas francesas Vivendi Universal, com faturamento de cerca de 12,2 bilhões de dólares em 2001, e a Suez-Lyonaise des Euax, com faturamento de 9 bilhões de dólares no mesmo ano, vêm disputando ou se associando, conforme o caso, para ter o controle da água potável das torneiras com a gigante alemã RWE (e sua filial inglesa Thames Water), com a Biwwater, a Saur-Bouygues, a estadunidense Bechtel, Wessex Water (Enrom).

Segundo Franck Poupeau analista do Le Monde, “no mercado da água, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há quinze anos. Os sucessos da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos dez anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter”.

A lógica mercantil capitalista, por seu turno, vem mudando o destino da água, assim como os seus destinatários.

É o que se pode ver durante a crise provocada pela seca de 1995 no norte do México, quando o governo cortou o fornecimento de água para camponeses e fazendeiros locais, para garantir o abastecimento para as indústrias controladas em sua maioria por capitais estrangeiros (Barlow, M. in Ouro Azul – consultar http://www.canadians.org)/

Lester Brown também vem assinalando o desvio de água obedecendo à lógica da lucratividade. É ele quem nos oferece cálculos que nos dizem que, na Índia, uma tonelada de água pode gerar um lucro de US $ 200 na agricultura e de US$ 10.000 na indústria. Não deve nos causar surpresa, portanto, quando, aceita essa lógica de mercantilizar a água, se beneficie a água para o destino (e o destinatário) industrial, aliás como vem ocorrendo nos EUA, conforme o próprio Lester Brown, que nos informa que fazendeiros estão preferindo vender a água para industriais pois assim obtém maior lucro! Como observou um morador de Novo México após a água de sua comunidade ser desviada para o uso da indústria de tecnologia de ponta: “A água flui morro acima para o dinheiro”. (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org/).

Pode-se dizer, em benefício da dúvida quanto às boas intenções dos que estão propondo essas políticas, que esses são efeitos não desejados da sua aplicação. Todavia, são efeitos reais cujas conseqüências estão sendo, sobretudo, de agravar a injustiça ambiental. Afinal, a admissibilidade de que usemos a quantificação para efetuarmos cálculos mercantis, tão bem ancorada nos fundamentos da ciência ocidental moderna (e colonial), ao se abstrair da materialidade concreta do mundo deixa escapar as relações mundanas que não se deixam aprisionar por essa lógica matemático-mercantil e, assim, a lei da oferta e da procura que funciona tão bem no papel não se mostra desse modo no mundo das coisas tangíveis e o capitalismo realmente existente não se mostra, sobretudo quando se o considera sob o prisma ambiental, um bom alocador de recursos. Até porque a alocação de recursos naturais não depende da dinâmica societária e quando essa dinâmica se inscreve nessa alocação de recursos deveria tomar em conta, sempre, que está imersa em sistemas complexos que não se deixam aprisionar por lógicas lineares, mesmo que multivariadas.

Ricardo Petrella captou a importância do que significa, na verdade, esse processo de apropriação privada desse recurso que flui por todos os seres vivos quando nos diz: “A privatização das águas é, na verdade, a aceitação da privatização de um poder político.

(...) Dessa forma a iniciativa privada se transforma no detentor do poder político real, ou seja do poder de decidir sobre a alocação e distribuição da água”.

(Ricardo Petrella em entrevista concedida à Agência Carta Maior, durante o 1° Fórum Alternativo Mundial da Água em Florença).

2- A QUALIDADE DOS SERVIÇOS – aumento da injustiça ambiental e dos conflitos
O discurso da qualidade foi um dos principais argumentos invocados para toda a política de liberalização e privatização dos serviços de abastecimento e tratamento de água, cuja melhoria e ampliação estaria o Estado impossibilitado de fazer por falta de recursos para investimentos.

Entretanto, longe da tão apregoada superioridade da gestão privada, a Suez, a Vivendi, a Thames Water (RWE) e a Wessex Water (Enrom) foram classificadas pela Agência de Proteção Ambiental do Reino Unido entre as cinco maiores empresas poluidoras em 3 anos consecutivos (1999, 2000 e 2001). Em Buenos Aires, onde a Suez é gestora das concessões, 95 % das águas residuais da cidade é vertida no Rio da Prata, provocando danos ambientais cujos reparos são pagos com recursos públicos.

Em várias localidades os conflitos vêm se acentuando em virtude da má qualidade dos serviços e do aumento do preços das tarifas. Segundo Franck Poupeau, do Le Monde, “as multinacionais da água (...) em alguns casos foram obrigadas a retirar-se de países da América do Sul e a pedir indenização junto a instâncias internacionais. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de 'desobediência civil' contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por conta da deterioração da qualidade da água e do aumento em mais de 100% das tarifas.

A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993. Mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto, de 104%, em média, provocou o protesto dos consumidores da província: Os primeiros a se organizarem foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidadezinhas formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.”

O governo da província começou por apresentar um pedido de sanções contra a empresa após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. "Diante do boicote de pagamento, primeiramente a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Então, passou a atacar os consumidores de Tucumán junto ao ICSID (International Center for Settlement of Investment Disputes), organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos” (Poupeau, F. Le Monde).

Também em La Paz, o bairro mais pobre da cidade, El Alto, que teve papel destacado no movimento que, em outubro de 2003, derrubou o governo de Gonzalo de Lozada, nos dá uma clara demonstração das conseqüências de se estabelecer uma regra universal de regulação que desconsidera as práticas de gestão comunais, muitas das quais, ali, originárias da cultura Aymará e Quéchua. Com a privatização retirou-se daquelas populações o controle dos seus recursos com o conseqüente aumento dos preços impedindo-se, assim, o acesso dos mais pobres à água. Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pela empresa francesa Lyonaise des Eaux, através do Consórcio Águas del Illimani, seus preços aumentaram 600% (de 2 bolivianos para 12) e o preço pela instalação que era de 730 bolivianos antes da privatização passou a 1.100 bolivianos e a água abundante não está acessível para a população.

Em 2000, em Cochabamba (Bolívia) ocorreu um conflito intenso que ficou conhecido como a Guerra da Água e que ensejou, assim, como em Tucumán, na Argentina, novas formas de gestão democrática com ampla participação protagônica da população, ali conhecido como Cabildo Abierto (Ver Revista no. 2 do Observatório Social da América Latina).

Cabe, nesse caso, destacar um componente original do affair Cochabamba, onde o Consórcio liderado pela empresa estadunidense Bechtel obteve a concessão mediante um expediente jurídico inusitado: uma cláusula de confidencialidade! É surpreendente que uma concessão pública seja feita com um expediente que proíba sua divulgação! Até aqui, conhecia-se o argumento da razão de Estado para se garantir o sigilo de algumas informações e decisões que se considerava estratégicas para o Estado. Entretanto, uma cláusula de confidencialidade para não revelar os termos de uma concessão de exploração de serviços de água, mostra o quanto não se pode transportar para o espaço público as regras da empresa privada, onde o direito do proprietário está protegido e acima do interesse público [12].

Caberia destacar, ainda, no Brasil, o caso do Riachão afluente do rio Pacuí na bacia do São Francisco no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, onde a falta de água vem se agravando com a implantação de pivôs centrais por parte de grandes proprietários irrigantes. Na região, o conflito vem se acentuando pela expansão de várias monoculturas empresariais, seja de eucaliptos, pinnus alba e pinnus elliotis para fazer carvão vegetal ou matéria prima para a indústria de celulose. Nessa mesma região, o movimento camponês lançou no município de Manga, em 1996, um tipo de manifestação que desde então se repete em todo o país - a Romaria das Águas. O movimento ganhou uma radicalidade tal que lançou mão de uma manifestação até ali inusitada – a greve de sede. Lembremos que na greve de fome o manifestante se mantém vivo muitos dias se alimentando de água, o que não acontece na greve de sede. A importância da água não podia se manifestar de modo mais contundente!

As resistências à mercantilização e à privatização da água vêm se tornando cada vez mais freqüentes em todo mundo. Em vários casos o processo foi interrompido: Cochabamba e La Paz (Bolívia), Montreal, Vancouver e Moncton (Canadá), em Nova Orleans, na Costa Rica, na África do Sul, em várias regiões da Índia, da Bélgica, em várias municipalidades da França que voltaram a ter serviços públicos de água administradas diretamente pelo Estado ou por meio de autogestão, como em Cochabamba, Bolívia. Vários conflitos foram registrados ainda nas Filipinas, no Senegal, em Mali, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, em Burkina-Fasso, em Gana e na Itália [13].

Cresce por todo o lado por meio das lutas pela reapropriação pública da água a compreensão de quais são os verdadeiros interesses que vêm se movendo em torno do atual debate por novas formas de gestão e controle da água. “As empresas multinacionais de água estão conseguindo cada vez mais o controle das águas do mundo. Os organismos financeiros internacionais seguem fomentando a expansão internacional dessas empresas e os acordos internacionais de livre comércio lhes permitirão exercer ainda maior influência no setor da água. Não obstante, essas empresas sempre têm posto seus interesses de lucro privado acima das necessidades da população e os organismos financeiros internacionais e as instituições que regem o comércio até agora não tem garantido que as privatizações da água não prejudiquem aos povos e ao ambiente” (Amigos da Terra - “Sed de Ganancias”. Consultar o sítio http://www.foei.org/).


Vender água no mercado aberto não atende as necessidades de pessoas sedentas e pobres”, nos diz a canadense Maude Barlow. “Pelo contrário, a água privatizada é entregue àqueles que podem pagar por ela, tais como cidades e indivíduos ricos e indústrias que usam água intensivamente, como as de tecnologia de ponta e agricultura". (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org)./

As denúncias em relação à privatização da água referem-se, quase sempre, às conseqüências socioambientais decorrentes da integração das economias locais a um mercado que se quer nacional e mundialmente unificado o que, cada vez mais, vem implicando não somente uma orientação da produção para o comércio exterior, mas também a intensificação da exploração dos recursos naturais. Maude Barlow mostrou como “os países reduzem as taxas locais e as normas de proteção ambiental para permanecer competitivos. (...) Os governos ficam, então, com uma capacidade fiscal reduzida para recuperar as águas poluídas e construir infra-estruturas para proteger a água; ao mesmo tempo, torna-se mais difícil regulamentarem a prevenção de poluições posteriores.”

[12] Sublinhemos, de passagem, que grande parte do problema ambiental se deve exatamente ao segredo comercial que protege o proprietário de não revelar as substâncias e os processos com que opera expondo, antes de tudo, o trabalhador a conviver com substâncias que, depois, são lançadas como resíduos sólidos, líquidos e gasosos no ambiente. A falta de democracia no interior das empresas, nas fábricas e fazendas é, de fato, o maior dos empecilhos para que o ambiente seja cuidado desde a produção e não a partir dos seus efeitos.  Afinal, o efeito estufa, como o próprio nome indica, é efeito e deveríamos estar cuidando de evitar a sua produção e não dos seus efeitos. Mas, para isso seria necessário que democratizássemos a empresa, instituição de poder que, diga-se de passagem, menos sensível tem sido à democracia.

[13] Depois do segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi criada a Coalizão Mundial contra a Privatização e a Mercantilização da Água no dia 23 de maio de 2002 em Créteil, pelos representantes de cerca de trinta organizações vindos da Malásia, Índia, Gana, Marrocos, da França, da Itália, da Suíça, da Espanha, do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil, da Bolívia, da Argentina, do Equador e do Chile.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]


Próxima parte (final): 5/5 - A Guerra da Água

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A água não pode faltar na Rio+20

13/06/2012 - por Thalif Deen, da IPS
original extraído do site Envolverde

A manchete de um jornal de Nova York, em março deste ano, capturou a essência de uma possível ameaça à estabilidade mundial: Informe dos Estados Unidos prevê tensões pela água”.

O estudo, uma somatória de relatórios da inteligência norte-americana, alerta que nos próximos dez anos muitos países “quase seguramente experimentarão problemas relacionados com a água, por escassez, má qualidade ou inundações, que poderiam gerar instabilidade e falhas nos Estados, aumentando as tensões regionais”.

Apesar destas advertências, há temores de que no plano de ação que se espera seja acordado na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que acontece de 20 a 22 deste mês no Rio de Janeiro, deixe fora o assunto fundamental da água e do saneamento. “Muitos estão perdendo sua fé no sistema das Nações Unidas, e um resultado fraco na Rio+20 contribuirá para essa desconfiança”, alertou Karin Lexen [ao lado], do Instituto Internacional da Água de Estocolmo.

Naturalmente, gostaríamos de ver um resultado contundente, com compromissos concretos e com visão de futuro”, disse Karin à IPS. Esta especialista também afirmou que seria importante os líderes reunidos no Rio de Janeiro acordarem novas metas de desenvolvimento sustentável. Como elemento crucial da economia, a água claramente deve ser tema de uma das metas, e também deve estar incluída em outras referentes a setores como energia e alimentação, destacou.


A Rio+20, da qual participarão mais de 120 chefes de Estado e de governo, acontecerá 20 anos depois da Cúpula da Terra, também realizada no Rio de Janeiro. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, afirmou que a cúpula deve obter progressos nos elementos fundamentais da sustentabilidade: energia, água, alimentação, cidades, oceanos, emprego e empoderamento das mulheres. Por sua vez, a relatora especial da ONU sobre direito humano a água e saneamento, Catarina de Albuquerque [ao lado], exortou os Estados-membros a contemplarem este tema na Rio+20.

Em carta aberta dirigida aos governos que discutem o documento final do encontro, Catarina expressa sua preocupação pela possibilidade de ser excluído do texto um expresso reconhecimento do direito humano a água e saneamento, após fracassarem neste aspecto três rodadas de negociações em Nova York. “Alguns países sugeriram uma linguagem alternativa que não faz menção explícita a esse direito. Outros tentaram reinterpretá-lo e inclusive diluir o conteúdo deste direito”, apontou.

A relatora destacou que o acesso a água já foi reconhecido, em 2010, como direito humano tanto pela Assembleia Geral da ONU como pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Quando fixarem metas sobre acesso a água potável, os líderes reunidos na Rio+20 deverão integrar o conceito desse recurso como direito humano, insistiu Catarina. A água deve estar disponível em quantidade suficiente para proteger a saúde e a dignidade humanas, especialmente para os mais marginalizados, ressaltou.

No entanto, Karin destacou que na Rio+20 será fundamental acordar “uma gestão sábia e sustentável da água”. Se tudo continuar como está, a demanda mundial poderá superar a oferta em 40% até 2030. Isto, advertiu, porá em risco também a energia e a alimentação, aumentará os custos da saúde pública, limitará o desenvolvimento econômico, desatará tensões sociais e geopolíticas e causará danos ambientais duradouros.

Portanto, os fundamentos de uma economia verde eficiente devem ser construídos sobre água, energia e segurança alimentar, e esses temas precisam ser enfrentados de forma integrada e global, além de constarem” do documento final do Rio, acrescentou Karin.

Esta especialista opinou que as conferências internacionais ainda não dão à água o lugar de destaque que merece, considerando seu papel fundamental para a vida e o desenvolvimento, além de ser ferramenta para a cooperação e também possível motivo de conflitos. Embora a água seja mencionada no rascunho da declaração final, está excluída quando se refere a outras áreas relacionadas.

As delegações continuam debatendo sobre o conceito do acesso a água e saneamento como direito humano, quando faltam poucos dias para o início da reunião.

Temos muito trabalho na última semana que resta pela frente, e na própria cúpula, para garantir que haja compromissos concretos e um resultado contundente”, enfatizou Karin.


Envolverde/IPS


Original em: http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/a-agua-nao-pode-faltar-na-rio20/?utm_source=CRM&utm_medium=cpc&utm_campaign=13

quarta-feira, 24 de março de 2010

Água, um direito a ser preservado

Série Água (parte 3)

Por Maria Lúcia Martins

Público e privado

Vandana Shiva nos relata que antes da chegada dos britânicos ao sul da Índia, comunidades geriam sistemas de água coletivamente por meio de um sistema chamado kudimaramath (auto-reparo). Antes do advento da legislação corporativa por parte da East Índia Company, no século 18, um camponês pagava a um fundo público trezentas mil unidades de grão que ganhasse e duzentas e cinquenta dessas unidades ficavam no povoado para a manutenção das provisões comuns e dos trabalhos públicos. Em 1830, os pagamentos dos camponeses elevaram-se a 650 unidades, das quais quinhentas e quarenta iam direto para a East India Company. Como resultado, houve aumento do pagamento e da perda de receita de manutenção os camponeses e as provisões comuns foram destruídas.
Cerca de trezentos mil reservatórios de água construídos durante séculos na Índia pré-britânica foram destruídos, afetando a produtividade agrícola e a renda dos agricultores.

A East India Company foi expulsa pelo primeiro movimento de pela independência em 1857. Em 1858, os britânicos aprovaram a Lei do Trabalho Compulsório de Madras, popularmente conhecida como a Lei Kudimaramath, determinando que os camponeses fornecessem mão-de-obra para a manutenção dos sistemas de água e irrigação. Pelo fato de o kudimaramath ser baseado na autogestão e não na coerção, a lei fracassou em mobilizar a participação da comunidade na reconstrução de provisões comuns.

Comunidades autogeridas não foram apenas uma realidade histórica, elas são um fato contemporâneo. Interferência estatal e privatização não as destruíram inteiramente. Em levantamento de nivel nacional, que cobriu distritos nas regiões tropicais secas em sete estados, N.S. Jodha chegou à conclusão de que as necessidades de combustível e forragem mais básicas dos pobres de toda a Índia continuam a ser supridas a partir de recursos vindos de propriedades públicas.

Podemos ver as semelhanças da experiência da Índia com o Brasil, onde o aumento de tarifas continua ao longo do processo de privatização de nossa água, e os preços crescentes excluem os pobres. Também tivemos e ainda temos no país, em pontos do interior, a autogestão dos recursos hídricos por comunidades. Mas, gradativamente, a autogestão foi substituída pelas companhias públicas e, hoje, por empresas privadas em boa parte vinculadas a grandes corporações transnacionais.

Situação no Brasil

A participação das empresas privadas vem crescendo cada vez mais dentro setor de saneamento básico brasileiro, que envolve tratamento de água e esgoto, e atualmente depende, essencialmente, das companhias públicas, municipais e estaduais. Algumas empresas que atuam no país são vinculadas à grandes corporações, mas esta vinculação nem sempre está explicita nos sites destas empresas.

Os dados da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, feita pelo IBGE revelam que o percentual de domicílios ligados à rede de esgoto permanece subindo: de 51,1% (2007) para 52,5% (2008). No entanto, a proporção de domicílios ligados à rede de esgoto cai na região Norte. Em 2008, o Brasil tinha 30,2 milhões domicílios ligados à rede de esgoto, uma participação 1,4 ponto percentual maior que em 2007. O Norte, mesmo tendo a menor parcela (9,5%) de domicílios com esse serviço, teve redução de 0,5 ponto percentual, não mantendo o crescimento ocorrido entre 2006 e 2007. Nessa região cresceu 5,5 pontos percentuais a proporção de domicílios com fossa séptica (mais 308 mil). O Norte ainda possuía 1,6 milhão de domicílios sem rede coletora ou fossa séptica. O percentual de domicílios atendidos por rede geral de abastecimento de água (83,9%) também manteve-se em crescimento: mais 0,7 ponto percentual ou 1,9 milhão de unidades em relação a 2007. No Nordeste, o acréscimo foi de 2,3 pontos percentuais, ou mais 770 mil domicílios. Após alta de 0,6 ponto percentual em relação a 2007, 87,9% (50,6 milhões) dos domicílios passaram a contar com coleta de lixo. Houve altas em todas as regiões.
Os serviços de saneamento básico estão concentrados em regiões mais populosas e de maior atividade econômica. No país, os 10% de trabalhadores mais bem remunerados detêm 42,7% dos rendimentos, percentual que segue indicando a forte desigualdade da distribuição dos rendimentos, apesar de ligeiramente inferior ao de 2007 (43,3%). Em suma, poucos podem pagar pela água, e os preços praticados após a privatização, em várias partes do mundo, se elevam. No Brasil não tem sido diferente.
Em 2006, um projeto pioneiro surgiu na área de conservação da água, fundamental para uma mudança no tratamento da questão ambiental no meio rural. O piloto do projeto chamado de Produtores de Água foi desenvolvido nas bacias do rio Piracicaba, Capivari e Jundiaí, em áreas integrantes do Sistema Cantareira, prioritárias para a produção de água. Implementado por subbacias o Produtor de Água prevê apoio técnico e financeiro à execução de ações de conservação de água e solo, como a construção de terraços e bacias de infiltração, a readequação de estradas vicinais, a recuperação e proteção de nascentes, o reflorestamento de áreas de proteção permanente e reserva legal, o saneamento ambiental, etc. Prevê também o pagamento de incentivos (compensação financeira e outros) aos produtores rurais que, comprovadamente, contribuírem para a proteção e a recuperação de mananciais, gerando benefícios para a bacia e sua população. A concessão dos incentivos ocorre somente após a implantação parcial ou total das ações e práticas conservacionistas, previamente contratadas. E os valores a serem pagos aos produtores são calculados em fuçnão dos resultados: abatimento da erosão e da sedimentação, redução da poluição difusa e aumento da infiltração de água no solo. O produtor rural participa ativamente do processo, assumindo os papéis de fiscal, executor e mantenedor das ações. O Estado do Rio de Janeiro já adotou o projeto de Produtores de Água.

Guerras por água

E seu livro Guerras por água, privatização, poluição e lucro, Vandana Shiva deixa claro que nem as leis internacionais sobre águas, nem as leis nacionais respondem adequadamente aos desafios políticos e ecológicos colocados pelos conflitos por água. Nenhum documento legal na legislação atual menciona a mais fundamental lei relacionada à água – a lei natural do ciclo da água.

Shiva descreve as Quatro teorias dos direitos à água: A teoria da soberania territorial; A teoria do fluxo da água; A teoria da divisão equitativa; e A teoria do interesse da comunidade, que guiaram as práticas de distribuição desse recurso em todo o mundo.

A teoria da soberania territorial de 1896, também conhecida como doutrina Harmon, sustenta que os estados ribeirinhos têm direitos exclusivos ou soberanos sobre as águas que fluem em seu território. Os países podem utilizar essas águas como bem entenderem, a despeito de infringirem direitos de outros estados ribeirinhos. Essa doutrina foi importante na disputa entre EUA e México sobre o rio Grande. A doutrina Harmon nunca conquistou aceitação completa porque viola o conceito de justiça. Mesmo países que se beneficiaram da regra concederam direitos aos usuários ribeirinhos inferiores.

A teoria do fluxo natural da água, também conhecida como teoria da integridade territorial, afirma que já que um rio é parte do território do estado, todo proprietário ribeirinho inferior tem direito ao fluxo natural desse rio, sem ser tolhidos pelos proprietários ribeirinhos superiores. O proprietário ribeirinho superior
deve permitir que a água flua no seu curso natural para o proprietário ribeirinho inferior no seu canal comum com utilização razoável da parte do proprietário ribeirinho superior. Este princípio deriva das leis britânicas de propriedade privada e aplicava-se à água num estado unitário.

As teorias de uso equitativo e interesse comunitário têm grande semelhança. O uso equitativo sustenta que os rios internacionais deveriam ser utilizados por estados diferentes em base justa. Nos anos recentes, a teoria da utilização equitativa ganhou aceitação internacional. As Regras de Helsinque sobre o Uso das Águas dos Rios Internacionais, adotadas em 1966, reconheceram que os estados têm direito a uma parte razoável e equitativa no uso benefício das águas de uma bacia de drenagem internacional. Estas regras derrubaram aquelas do oeste norte-americano e estabeleceram que uma utilização existente possa ter que dar lugar a uma nova utilização para uma distribuição equitativa.

Apesar de popular, a teoria da distribuição equitativa esbarra no conceito de "distribuição equitativa". O critério equitativo, utilizado para resolver conflitos interestatais, não se presta a uma articulação precisa; dividir um rio não é tarefa das mais fáceis. O princípio subjacente do rateio equitativo é a equidade, não a igualdade. utilidade equitativa é definida como o máximo de benefício provido a todos os estados ribeirinhos, levando em consideração suas diferentes necessidades econômicas

A necessidade atual é combinar ecologia com equidade e sustentabilidade com justiça.

A existência de princípios internacionais, como as Regras de Hesinque e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Referente ao Uso dos Cursos d Água internacionais para Fins outros que a Navegação, não garante, necessariamente, a justiça. Cada bacia é tão distinta que uma abordagem monolítica do uso da água seria inviável.

A questão dos direitos de alocação da água não se dá apenas como uma questão de equilíbrio entre a soberania territorial e os direitos ribeirinhos; projetos de água também têm um forte impacto ecológico, e os custos são distribuídos de maneira desigual entre estados e entre grupos sociais. Apesar do fluxo natural não ser um critério absoluto, a conservação deve ser um critério para determinar o uso sustentável. A perspectiva ecológica também ajuda a corrigir a visão de que a água conservada é água desperdiçada. As ligações ecológicas entre a água da superfície e os lençóis freáticos e entre a água doce e a vida nos oceanos não foram observadas nem no gerenciamento das fontes, nem nos arcabouços legais.

"As guerras por água são guerras paradigmáticas – conflitos sobre como percebemos e experimentamos a água – e guerras tradicionais, travadas com revólveres e granadas. Estes choques entre culturas da água estão ocorrendo em todas as sociedades. A cultura da mercantilização está em guerra com diversas culturas de compartilhamento, de receber e dar água gratuitamente", define Vandana Shiva. Guerras paradigmáticas, explica, porque ocorrem em todas as sociedades de leste a oeste, de norte a sul. Neste sentido, guerras por água são guerras globais, com culturas e ecossistemas diferentes, compartilhando a ética universal da água como uma necessidade ecológica, em oposição a uma cultura corporativa de privatização, ganância e o cerco das águas públicas. Num dos lados dessas disputas estão milhões de espécies e bilhões de pessoas que buscam água suficiente para sua manutenção. Do outro lado, está um punhado de corporações globais, dominadas pela Suez Lyonnaise des Eaux, Vivendi Environment (Veloia) e Betchel, a OMC, o FMI e os governos do G7. Muitos conflitos políticos por recursos naturais, no entanto, são escondidos ou sufocados. Aqueles que controlam o poder preferem mascarar as guerras por água como conflitos étnicos e religiosos. Tais deturpações de guerras por água desviam a energia política necessária para soluções justas e sustentáveis sobre a partilha da água. Algo similar aconteceu com os conflitos por terra e água entre palestinos e israelenses.

Vandana Shiva argumenta que "a ecologia do terror nos mostra o caminho para a paz. A paz está em alimentarmos a democracia econômica e ecológica e em nutrirmos a diversidade. Democracia não é apenas um ritual eleitoral, mas o poder para as pessoas moldarem seu destino, determinarem como seus recursos naturais são possuídos e utilizados, como sua sede é saciada, como sua comida é produzida e distribuída e que sistemas de saúde e educação elas têm.

Criar a paz, ela assinala, exige que resolvamos as guerras por água, guerras por comida, guerras por biodiversidade e guerras pela atmosfera. Como Gandhi
disse uma vez: "A Terra tem o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a ganância de alguns poucos".

* Série Água continua amanhã (25/3) com o seguinte tema: Princípios da democracia da água.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Parem com a apropriação da água!

Declaração da Via Campesina no Fórum Alternativo Mundial da Água 
22/03/2012
Via Campesina

Nós, organizações camponesas de diferentes países do mundo, membros da Via Campesina, reunidos de 12 a 17 de março de 2012, no Fórum Alternativo Mundial da Água, em Marselha, França, representados por delegados vindos da Turquia, Brasil, Bangladesh, Madagascar, Portugal, Itália, França e México, expressamos a nossa solidariedade aos afetados por catástrofes ambientais e, especialmente, aos que são vítimas da construção de represas, dos gases de xisto, da apropriação, da mercantilização e da escassez da água, das contaminações generalizadas, das repressões e dos assassinatos levados à prática contra os militantes defensores da água.
Reivindicamos que o direito pela água seja respeitado, dentro do princípio regulador da soberania alimentar. O direito à água é o respeito permanente ao ciclo da água, tomado integralmente. Afirmamos que a privatização e a mercantilização da água e de todo outro bem comum (sementes, terra, conhecimentos locais e tradicionais, etc.) são um crime contra a terra e a humanidade. Os grandes projetos de represas e de centrais hidroelétricas aprisionam e se apropriam da água, não tendo em conta nem necessidades, nem práticas tradicionais, nem a opinião das comunidades locais, além de debocharem da preservação do ecossistema.
As crises da água, da biodiversidade, as crises sociais, energéticas e financeiras encontram-se todas juntas e são as consequências do neoliberalismo e do modelo de agricultura industrial promovido pelas instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio), os tratados de livre comércio, o Conselho Mundial da Água, as multinacionais e a maioria dos governos.
A economia verde é uma falsa solução frente às mudanças climáticas e à escassez da água. A mercantilização da água, do carvão, da biodiversidade, os OGM, as nanotecnologias e a geoengenharia são as novas saídas e propostas do neoliberalismo para responder às crises. A evasão crescente continua enquanto estas respostas tecnicistas e mercantis são as principais responsáveis pelo caos ecológico e social que nos atinge.
O modelo de produção industrial, as monoculturas e a agroquímica têm contaminado nossas águas, pondo em perigo nossa saúde. Defendemos as práticas agroecológicas e a agricultura camponesa, que levam à prática a soberania alimentar e contribuem com a preservação e a utilização sustentável da água.
A água é um bem comum em benefício de todos os seres vivos, e deve ser submetida a um gerenciamento público, democrático, local e sustentável. Os conhecimentos locais e tradicionais de gerenciamento da água, que protegem e consideram o ecossistema em sua totalidade, existem desde sempre. Eles são testemunhas atemporais de sua eficácia. As políticas públicas e as leis sobre a água devem reconhecer e respeitar esses conhecimentos.
Pela soberania alimentar: Parem com a apropriação da água!
Marseille, França, 18 de Março de 2012.

(Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O direito à água, uma miragem política



por Thalif Deen, da IPS
223 O direito à água, uma miragem políticaNações Unidas, 27/7/2011 – Os governos têm uma grande cota de responsabilidade nos poucos avanços a se comemorar dia 28 de julho, data de primeiro aniversário da histórica resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) que reconheceu o acesso a água e saneamento como um direito humano básico. Os Estados-membros reagiram com lentidão”, queixou-se Maude Barlow, presidente nacional do The Council of Canadians, uma das maiores organizações não governamentais do Canadá que promove a justiça social e econômica. “Sei que meu próprio governo ainda não a aprovou e diz – incorretamente – que a resolução não é vinculante”, afirmou Barlow as IPS.
No dia 28 de julho do ano passado, a Assembleia Geral da ONU, de 192 membros, adotou a histórica resolução que, dois meses depois, foi aprovada pelo Conselho de Direitos Humanos, de 47 membros, com sede em Genebra. “O avanço mais significativo foi a adoção de uma segunda resolução por parte do Conselho”, disse Barlow, ex-conselheira da ONU em matéria de água e atual presidente da Food & Water Watch, com sede em Washington. Essa segunda resolução assentou as responsabilidades dos governos para colocar em prática este direito e, também, deixou claro que agora é vinculante, acrescentou.
De todo modo, a medida gerou divisões políticas: 122 países votaram a favor e 41 se abstiveram, mas não houve votos contrários. Entre as abstenções figuraram as dos Estados Unidos e de outros países industrializados, bem como de várias nações em desenvolvimento: Botsuana, Etiópia, Guiana, Quênia, Lesoto, Trinidad e Tobago e Zâmbia.
Fleur Anderson, coordenadora de campanhas internacionais na organização End Water Poverty, com sede em Londres, disse à IPS que apesar da resolução da ONU a crise da água e do saneamento continuou por todo o ano. “E o problema não é a escassez hídrica ou a mudança climática, mas as escolhas feitas pelos governos de não financiar o fornecimento de água e saneamento para cada comunidade”, afirmou.
Segundo Anderson, ainda falta um longo caminho para cumprir o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio que propõe reduzir, até 2015, em 50% o número de pessoas sem acesso a saneamento adequado. Se os governos não aumentarem para 1% do produto interno bruto o gasto em saneamento, este direito não significará nada para os pais das quatro mil crianças que morrem por dia vítimas da diarreia, ressaltou a especialista. Esta doença é causada por falta de saneamento e pela má qualidade da água.
A campanha “Sanitation and Water for All” (Saneamento e Água para Todos) tem o potencial de colocar à prova a liderança de governos e da sociedade civil na hora de dar maior financiamento, coordenação e planejamento, mas os Estados-membros têm de apostar neste desafio, afirmou. Se as coisas continuarem a ser feitas como de costume, “o Objetivo do Milênio em matéria de saneamento não será cumprido nos próximos 200 anos”, acrescentou.
John Sauer, da Water for People, disse à IPS que, do ponto de vista dos Estados Unidos, se avançou por este país ter designado um coordenador mundial da água: Christian Holmes. E também deu outro passo importante ao assinar um Memorando de Entendimento com o Banco Mundial sobre o Dia Mundial da Água, acrescentou. Outros países também progrediram. A Libéria, por exemplo, fez um levantamento de todas as suas fontes hídricas em áreas rurais, o que ajudou a alimentar um plano nacional que agora está sendo analisado pela presidente Ellen Johnson Sirleaf.
“Essencialmente, estamos trabalhando para criar um plano interno de ação na maior quantidade possível de países, e a maioria incluirá pressionar seus governos para que elaborem um plano de ação a ser apresentado ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU” e para que este documento detalhe como se fará para cumprir as obrigações de respeitar e proteger o direito à água, afirmou Barlow. A The Council of Canadians prepara uma campanha para que os governos adotem o direito a água e saneamento em suas constituições.

Fonte: Envolverde/IPS
(IPS)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Quem são os donos dessas águas?

20/07/2012 - Encontro com Mario Farias
Antonio Fernando Araujo

Ficou fácil lembrar de Mario Farias, agora que estamos às véseperas do Dia Internacional da Luta pela Água como Direito Humano.

Em 21 de junho passado, no Pavilhão Azul da Cúpula dos Povos, um dos cenários alternativos da Rio+20, teria sido oportuno encaixar o que ele me dissera 10 dias antes, enquanto preparava numa calçada ao lado do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, a construção de uma cisterna:

"Viemos aqui para divulgar uma teoria social voltada para a captação da água da chuva, especialmente na região do semiárido do nordeste brasileiro e norte de Minas".

Dizia isso com um entusiasmo contagiante, ao mesmo tempo em que estendia um dos braços na direção de Niteroi, como se Afogados de Ingazeira fosse lá e a vastidão do semiárido começasse do outro lado da baía de Guanabara.

Estávamos no Aterro do Flamengo, mais precisamente numa lateral daquele museu. Esse cearense que dedica seu tempo a uma organização chamada Articulação do Semi-Árido brasileiro (ASA), presente em toda a região, logo começou a me contar sobre o programa "Um Milhão de Cisternas" (P1MC), até 2014, uma das ações do governo federal, como parte do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido.

"No fundo, no fundo", disse-me, "tudo não passa de uma proposta de educação". E prosseguiu: "Ela vem desencadeando um vasto movimento de articulação e de convivência sustentável, das famílias com o ecossistema do semiárido. O envolvimento delas é o ponto chave porque quanto maior o número, quanto mais mobilizadas estiverem, mais fortalecida fica a sociedade civil..., se capacita, pra encarar o cotidiano, às vezes duro, da nossa região."

Mario Farias não disse, mas implícito nessa fala, talvez seja legítimo imaginarmos que entre essas famílias, um processo de tomada de decisão mais democrático esteja sendo estabelecido e inserido nas comunidades beneficiadas. E se a relação é de quatro pessoas para cada cisterna esse universo deve contemplar cerca de 4 milhões de habitantes. "Já chegamos a 400 mil, ou seja, 1,6 milhão já estão beneficiados por esse Programa", concluiu animado.

Vamos nós agora, divagar. Se supormos que esse processo faça parte e represente muito mais do que a luta pela sobrevivência, o início do entendimento de que mudanças mais profundas precisam acontecer no nosso sistema sócio-político-econômico, nada impede que possamos inclui-lo em um rol de utopias que apontam de fato para o futuro que queremos. "O FUTURO QUE QUEREMOS".

Era isso que dizia um dos mais difundidos cartazes oficiais da Rio+20. Mas qual o mundo futuro com que sonhamos para o semiárido? Quem são os donos dessas águas que captamos e que nos garantem sobreviver? Qual a terra futura que aguarda as gerações dos que viverão aqui? Esse sistema que aí está e rege nossas vidas, por vezes miserável, é o melhor da democracia que imaginamos? Ou nos preparamos, desde já, para alterações reais que imprimam um novo significado para o ato de viver numa região tão carente como essa?

A tragédia que acontece na maioria dos governos modernos, disse a professora emérita da Universidade de Toronto, Ursula Franklin, é que eles abraçaram a globalização econômica, que nega o ponto de vista da comunidade ou do meio ambiente a favor do ponto de vista exclusivo para o lucro. Para os governos e corporações, o lucro será grande e está em primeiro plano, e o cuidado com as pessoas, a natureza e os princípios democráticos desaparecem. Se a água do mundo será salva para as gerações futuras, milhões de cidadãos do planeta terão de assumir uma posição baseada num conjunto de princípios e considerações éticas diretamente opostos ao ponto de vista predominante da economia global [1].

Daí porquê, quando o “Fórum Social Temático", preparatório para a Cúpula dos Povos da Rio+20, ocorrido em Porto Alegre em janeiro deste ano aglutinou mais de duas dezenas de Grupos Temáticos em torno do assunto “Crise Capitalista e Justiça Social e Ambiental” e pode "acolher a multiplicidade de experiências e contribuições dos diversos sujeitos que lutam por outro modelo de sociedade, alicerçado na justiça social e ambiental", e, na sequência de eventos, não só dialogaram com milhares de ativistas, mas - ao final da Rio+20 -, produziu um texto intitulado OUTRO FUTURO É POSSÍVEL, revelou-nos então "uma fotografia do momento presente, ainda inicial, de um processo largo de reflexão, formulação e organização de tod@s que lutam pela construção de um novo paradigma de organização social, econômica e política, a partir das experiências reais e de nossos sonhos de outro mundo possível", ele se apresentou tão convincente e absolutamente tão contraposto ao documento sugerido pelos negociadores oficiais da ONU na Rio+20, “O Futuro que Queremos”, que não nos restaram alternativas a não ser apoiá-lo, levando-nos assim a discordar integralmente do oficial, desde os seus fundamentos até as suas conclusões e recomendações.

Estão aí os Programas da Articulação do Semi-Árido brasileiro, essas e outras anotações do Fórum Social Temático e as formulações de outras tantas propostas surgidas ao sabor das discussões que frutificaram no Aterro do Flamengo apontando para uma cartilha de sobrevivência e de desenvolvimento que passa ao largo dos interesses de organismos como a ONU e a OMC (Organização Mundial do Comércio), e da "economia verde" das megacorporações que, com a globalização, almejam substituir os Estados na condução da humanidade.

Talvez, quem sabe, por não estar explícito naquele documento oficial, como deveria, que este início de século já parece definitivamente marcado como o alvorecer de uma consciência mais aguda sobre a trajetória danosa que o homem vem percorrendo, desde o instante em que imaginou que a natureza está aí, não para se harmonizar com ele, mas apenas como uma mercadoria a mais, posta a seu dispor para ser explorada da forma como ele bem entender, e para ser comercializada da maneira a mais lucrativa que suas ambições possam alcançar.

Ainda mais e provavelmente, por não constar dele proposta alguma no âmbito da cosmologia das águas que contemple experiências sustentáveis como as que inúmeras outras comunidades mundo afora, na Índia, Bolívia, Canadá, França, etc. desenvolveram e vêm levando adiante tendo sempre em mente e exaltando a "cultura da água-vida que enfatize seus valores éticos, seus aspectos culturais, sagrados, simbólicos e a cosmovisão dos povos tradicionais e originários", como preconizam os que defendem a água como um direito essencial, como me assegurou Mario Farias, e não uma mercadoria.

Naquele 21 de junho, véspera do Final da Cúpula, numa reunião da Rede RAMPEDRE (Relatório Mundial Online para o Direito a Água), na Tenda da Água, coordenada pelo professor Ricardo Petrella, economista e fundador do Comitê Internacional pelo Contrato Mundial da Água, foi subscrito que o dia 28 de julho, data em que se comemora a aprovação da Resolução da ONU que determina como Direito Humano a Água e o Saneamento, seria lembrado também como o "Dia Internacional da Luta pela Água como Direito Humano". Na véspera, numa conversa com jornalistas, Ricardo Petrella explicou o porque dessa luta. "Os países industrializadas, principalmente os da União Européia e os EUA, querem derrubar essa resolução, que contraria os interesses das grandes corporações" [2].

Podemos até nos regozijar pelo fato de o "direito à água" ter constado da Declaração Final da Rio+20, reflexo de uma crescente oposição, não apenas às instituições de globalização corporativa (como a OMC, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, a "Trindade Profana", no dizer de ativistas sócio-ambientais indianos), mas também aos governos que tentam conciliar o inconciliável através de Agências internacionais - das Águas ou do Meio-Ambiente que almejam criar -, os interesses de grandes grupos econômicos (onde prevalece o lucro antes da vida) com uma necessidade básica de servir ao bem comum como é expressa e transparece dos planos da Articulação do Semi-Árido, nas palavras de Mario Farias.

E aqui queremos reiterar nossa preocupação com as conhecidas gigantes da água, como as francesas Suez e Vivendi, a norte-americana Bechtel, a alemã RWE, etc. Entretanto, não podemos deixar de alertar que outras celebridades transnacionais, cujos produtos tradicionais pouco ou nada têm a ver com a gestão de recursos hídricos, como Nestlé, Coca-Cola, Nike, Shell, PepsiCo, etc. há alguns anos começaram a dirigir olhares de cobiça, cada vez mais intensos, às fontes de água doce do mundo.

Não é nada desprezível a influência financeira dessas corporações no sentido de forçar os governos a privatizar os serviços de água. Não foi à toa que quase todas enviaram seus representantes à Conferência, participando ativamente de plenárias e encontros, nem que fosse para apenas avaliar em que grau se encontra a resistência dos povos à privatização desse bem e a vontade deles em manter sob seus controles tais suprimentos.

Quando em outubro de 2011 entrevistei o professor Milton Matta, em Belém do Pará, ele me falou de um longo caminho que as cidades ainda terão que percorrer até chegarem a conclusão que o atual modelo de identificação de fontes de água na superfície, cuidados para evitar contaminações dos mananciais, os processos técnicos e operacionais necessários para a captação, tratamento e finalmente, a distribuição através de uma enorme rede de dutos, associados aos indispensáveis serviços de manutenção, de redução do desperdício, de administração e de cobrança é um padrão completamente superado [3].

Matta é um dos estudiosos do sistema de águas de toda a bacia amazônica. Foi ele e sua equipe de pesquisadores das Universidades do Pará e do Ceará que, em maio de 2010, anunciou sua descoberta à comunidade científica, do que seria o maior aquífero do Brasil - quiçá do mundo, em volume de água, o dobro do Guarani -, o Alter-do-Chão com seus estimados 90 mil quilômetros cúbicos de água submersas que se estendem desde a faixa oriental do estado do Amazonas, nas cercanias de Manaus, prolongando-se sob quase todo o estado do Pará e alcançando parte do Amapá.

Foi dele, de quem ouvi pela primeira vez, a ideia de substituir parte da complexa rede de distribuição de água dos grandes centros urbanos por unidades menores que captassem águas subterrâneas e de chuva, uma captação bem mais simples e onde a pureza é comprovadamente mais alta, pois estão mais bem protegidas de agentes contaminantes, apresentam melhor qualidade físico-química e bacteriológica, sofrem menos evaporação, o tratamento é menos oneroso e a rede de distribuição infinitamente menos complexa, mais fáceis de construir e de manter, portanto mais econômica, pois cada poço ou cisternas serviriam para abastecer apenas algumas poucas unidades consumidoras.

E ainda mais: não é sem profunda inquietude que sabemos da presença constante de grandes embarcações petroleiras, que ao esvaziarem seus tanques lastreados com águas trazidas de outras regiões - contaminadas inclusive com um tipo de caramujo que na foz do Amazonas não encontra predador natural -, os reabastecem com a água amazônica doce e quase potável, oriunda dos Andes e das dezenas dos afluentes, desde o Marañon e o Solimões até o Amazonas.

"Não basta a pirataria dos espécimes dos rios, da nossa biodiversidade e dos lugarejos ribeirinhos, estamos diante também do surrupio descarado das nossas águas que são estudadas na Europa, para em seguida serem vendidas, a peso de ouro, no Oriente Médio e no norte da África, onde um barril de água potável já vale mais do que um de petróleo", denunciou o mesmo professor Matta [4].

A luta enfim, tanto no nordeste quanto no norte, pode apresentar-se de formas diferentes e nada impede que na solidão daquelas paragens semiáridas ou úmidas do Brasil as pessoas assumam o controle desses processos todos. Mais adiante, o que se poderia pensar de um conjunto de "unidades de água", de captação de água da chuva ou até mesmo de parcelas da população organizadas dentro de uma área mais extensa de captação, que se torne capaz de prover, através de um sistema próprio de distribuição, o acesso à água por parte da população?

Não chega a ser novidade. Já foi colocado em prática por outras comunidades em distritos remotos da África do Sul, castigados por secas periódicas, mais ou menos nos moldes do que ocorre em nosso semiárido. Aliás, a África do Sul é um dos raros países do mundo onde o direito humano à água é considerado básico e como tal gravado em sua Constituição.

Transplantada para o semiárido, aquela ideia do professor Matta, seria parte de um mundo que se quer sustentável.

Um sistema desses, que compreenderia aquelas pequenas "unidades de água" voltadas para a captação e armazenamento da água que provem da chuva, servida tanto para beber e cozinhar quanto para a higiene e lazer e a ele se agregariam as águas subterrâneas.

No campo e na periferia dos centros urbanos, além disso, e através da irrigação, útil ainda para a produção de hortaliças, temperos e frutas, atividades típicas de uma agricultura familiar integrada a um sistema de distribuição peculiar onde o fato das casas e lavouras - ao contrário das cidades - serem muito distantes uma das outras e em topografias diversas, exigiria quase que um "desenho" específico para cada comunidade.

Isso é tudo que as grandes corporações não desejam.

Essa autonomia que caracterizaria essas "comunidades de água", exercendo a gerência de seus recursos hídricos, contraria todos os planos corporativos que visam transformar a água tornada escassa e cara e sua distribuição, numa mercadoria a mais, no universo de "commodities" e num serviço destinado apenas aos que puderem pagar, ambos calcados nesse conceito mercantilista que agora nos chega nessa Rio+20, com soluções de mercado apelidadas de "economia verde".

Bate de frente com os esforços dessas megaempresas de se apossar daquilo que muitos estudiosos já consideram como a próxima e mais promissora riqueza de qualquer região, seus recursos hídricos, sejam eles de que origem for, de superfície, subterrânea, das montanhas geladas ou das calotas polares.

Em momento algum levam em conta a adoção de políticas públicas locais e regionais, como as da ASA do semiárido brasileiro, lastreadas por outras tantas, ainda que concebidas e acordadas no âmbito das nações, mas que tenham em comum a garantia do "direito universal à água e ao saneamento através da preservação do recurso na origem, da racionalidade no seu uso e da equidade social em sua distribuição."

O impulso mundial da luta pelo fim da aquisição corporativa dos suprimentos de água do mundo que almejamos, aos poucos se torna ainda mais robusto e universal na medida em que juntam-se às forças dos demais grupos ambientais, das mulheres contra as discriminações de gênero, dos movimentos que representam aqueles que por sua condição social, cor da pele ou realidade sexual são excluídos, por todos enfim, que não rezam por uma cartilha de subjugação capitalista e discriminatória.

Notas:
[1] Maude Barlow e Tony Clarke - Ouro Azul, M. Brooks do Brasil Editora Ltda - São Paulo - 2003 - pags. 245-246

[2] Em janeiro de 2009, Ricardo Petrella, já dera, ao site esquerda.net, uma entrevista em Lisboa, abordando esse mesmo tema. Ver em: http://www.youtube.com/watch?v=F-jUtqpu2AU&feature=player_embedded

[3] Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 6/6 - UM JOGO EM QUE NEM TODOS TRAPACEIAM - Antonio Fernando Araujo. Ver em: http://brasileducom.blogspot.com.br/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_03.html

[4] Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 4/6 - DO ENCONTRO DAS ÁGUAS AMAZÔNICAS COM O MUNDO GLOBALIZADO - Antonio Fernando Araujo. Ver em: http://brasileducom.blogspot.com.br/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_03.html