domingo, 1 de julho de 2012

“Estamos diante de uma guerra não convencional”

22/06/2012 - Carta Maior

Em uma entrevista especial concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12, da Argentina, e La Jornada, do México, o presidente do Equador, Rafael Correa analisa o que considera ser um dos principais problemas do mundo hoje: o poder das grandes corporações de mídia que agem como um verdadeiro partido político contra governos que não rezam pela sua cartilha.

“Essa é a luta, não há luta maior. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste”.

(Carta Maior, La Jornada e Página/12)

Rio de Janeiro - Representante de uma nova geração de líderes políticos da esquerda latinoamericana, o presidente do Equador, Rafael Correa, foi lançado para a linha de frente do cenário político mundial com o pedido de asilo político feito, em Londres, pelo fundador do Wikileaks, Julian Assange. Há poucas semanas, Assange entrevistou Correa e os dois conversaram, entre coisas, sobre um tema de interesse de ambos: as operações de manipulação conduzidas pelas grandes corporações midiáticas. Agora, durante sua passagem pela Rio+20, Rafael Correa voltou com força ao tema.

Em uma entrevista especial concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12, da Argentina, e La Jornada, do México, Correa analisa este que considera ser um dos principais problemas do mundo hoje: o poder das grandes corporações de mídia que, na América Latina, agem como um verdadeiro partido político contra governos que não rezam pela cartilha dos interesses desses grupos. “Essa é a luta, não há luta maior. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste”.

Na entrevista, Correa fala sobre o pedido de asilo de Assange, relata o debate sobre uma nova lei de comunicações no Equador e faz um balanço pessimista sobre os resultados da Rio+20.

Há um argumento segundo o qual a liberdade de imprensa é propriedade dos meios de comunicação empresariais. Imagino que essa não seja a sua opinião.
Correa: Não nos enganemos. Desde que se inventou a impressora a liberdade de imprensa, entre aspas, responde à vontade, ao capricho e à má fé do dono da impressora. Devemos lutar para inaugurar a verdadeira liberdade de imprensa que é parte de um conceito maior e um direito de todos os cidadãos, que é a liberdade de expressão, que defendemos radicalmente. No entanto, o poder midiático que faz negócios com o objetivo de ter lucro, até isso quer privatizar. Então, se eles têm tanta vocação para comunicar, como dizem, que o façam sem finalidades lucrativas, porque para mim isso é uma contradição.

Este é um grande problema na América Latina e também em nível planetário. Tenho tomado conhecimento que existem posições semelhantes às nossas, mas houve um tempo em que nos sentíamos muito sozinhos, quando fomos vítimas de um ataque tremendo por não abaixar a cabeça diante de um negócio muitas vezes corrupto e encoberto sob a capa da liberdade de expressão. Essa é a luta, não há luta maior.

Presidente, nestes dias foram divulgados telegramas pelo Wikileaks onde apareceram jornalistas equatorianos que eram considerados informantes pela embaixada dos Estados Unidos. Isso confirma as hipóteses levantadas quando o senhor foi vítima de um golpe de Estado.
Correa: As mentiras deles sempre acabam sendo derrubadas. Entidades que financiam esses empórios midiáticos, certas organizações que, em nome da sociedade civil, nos denunciam ante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a SIP, em todos os lados. Agora vemos que esses senhores são identificados via Wikileaks como informantes da embaixada (estadunidense). Wikileaks que nunca é publicado pela maioria da imprensa comercial. Não é só isso. Essa gente é financiada pela USAID, que vocês conhecem. A USAID financiou com 4,5 milhões de dólares a estes supostos defensores da liberdade de expressão, supostamente para fortalecer a democracia e a ação cívica. Na verdade, para fortalecer a oposição aos governos progressistas da América Latina. Os povos da região tem que reagir contra esse tipo de prática.

Independentemente da solicitação do senhor Assange – ele solicitou asilo político -, ele disse que quer vir para o Equador para seguir cumprindo sua missão em defesa da liberdade de expressão sem limites, porque o Equador é um território de paz comprometido com a justiça e a verdade. Isso que o senhor Assange disse é mais próximo da realidade do Equador do que as porcarias que o poder midiático publica todos os dias.

Sabemos que o senhor ainda não tomou uma decisão sobre a situação que está atravessando alguém que revelou informações secretas sobre conspirações dos Estados Unidos e está pagando com a prisão por ter trabalhado pela liberdade de imprensa.
Correa: Se, no Equador, alguém tivesse passado a centésima parte do que passou Assange, nós seríamos chamados de ditadores e repressores, mas como o que Assange divulgou afeta as grandes potências e isso evidencia uma moral dupla e como os Estados nos tratam por meio de suas embaixadas, então é preciso aplicar todo o peso da lei contra Assange. E o chamam de violador.

Eu não quero antecipar minha decisão. Recebemos o pedido de asilo, analisaremos as causas desse pedido e tomaremos uma decisão quando for pertinente. Ele está em nossa em nossa embaixada em Londres sob a proteção do Estado equatoriano.

É claro que há aqui uma dupla moral, uma para os poderosos e outra para os débeis, uma para os que querem manter o status quo e para sua imprensa, e outra para os governos que querem mudar esse status quo e para a imprensa alternativa. Todos os dias há julgamentos em países desenvolvidos contra jornais. Neste caso não há problema, porque isso é civilização, mas, processar em nosso país um jornal ou um jornalista é qualificado como barbárie. E não é verdade que nós criminalizamos a opinião, pois em nosso país todos os dias publicam tudo, todos os dias publicam que há falta de liberdade de expressão. Qualquer um pode dizer que o governo é bom ou mau, que é competente ou incompetente. Mas o que não pode se dizer em um meio de comunicação é que o presidente, ou qualquer cidadão, é um criminoso de lesa humanidade e que ele disparou sem aviso prévio contra um hospital, porque isso é calúnia, isso é delito em qualquer país.

O caso Assange pode dar origem a uma tensão diplomática entre Equador e Grã-Bretanha?
Correa: Isso é a última coisa que queremos, mas nós não vamos pedir permissão a nenhum país para tomar decisões soberanas. O Equador não tem mais alma de colônia nem alma de vassalo. Se dar asilo, refúgio ou residência a fugitivos da justiça provocasse deterioração, a relação da América Latina com os Estados Unidos estaria deterioradíssima. Porque, provavelmente, Argentina, Brasil, México e outros países não devem estar de acordo que qualquer fugitivo viole a justiça. Esse não é o caso do senhor Assange, mas sim de corruptos como os banqueiros que quebraram o Equador em 99 e fugiram para os Estados Unidos, onde gozam hoje de uma vida bastante cômoda.

Vocês têm um Murdoch no Equador?
Correa: No Equador, temos seis famílias que representam heranças familiares, não é propriedade democrática, um capitalismo popular onde há 10 mil acionistas em um empório. Os meios de comunicação no Equador são manejados por meia dúzia de famílias, que decidem o que os equatorianos devem saber e conhecer. Vocês se dão conta da vulnerabilidade que temos como sociedade? A informação depende dos interesses e dos caprichos de meia dúzia de famílias. Mas se um governo soberano e digno não as chama para consultar sobre o nome dos ministros ou sobre a indicação de embaixadores, como ocorria antes, vão com tudo para cima desse governo porque ele não se submete aos seus caprichos. É um problema mundial, mas em outros países é atenuado com participação, profissionalismo muito profundo, uma ética muito forte, tudo o que brilha por sua ausência aqui no Equador.

Presidente, um funcionário da Usaid acaba de dizer que eles estão ajudando as oposições a estes governos.
Correa: Franqueza anglo-saxã.

Impunidade?
Correa: Impunidade e arrogância.

Essa ideia nos fala de um tempo da informação como arma de guerra e a América Latina sofre uma verdadeira invasão dessas fundações como a USAID, a NED, o IRI. Isso não torna muito perigosa a nossa situação? A presença das ONGs destas fundações não é perigosa para o Equador?
Correa: Oxalá consigamos despertar os povos latino-americanos para essa situação. As direitas, os grupos de poder, sabem que nas urnas não conseguirão nos derrotar. Daí as campanhas contínuas de desgastes, de propaganda, de difamação, de enfraquecimento e desestabilização. Nós vivemos isso desde os primeiros dias de governo. Desde o primeiro dia de governo. O mesmo ocorre na Venezuela, na Bolívia, na Argentina e em todos os governos progressistas da região. Sofremos as campanhas desses meios que são a vanguarda do capitalismo, do status quo dos partidos tradicionais de direita que se afundaram por seus próprios erros, para difamar, para distorcer a verdade com a cumplicidade de veículos da mídia internacional.

Essa é a contradição de que fala Ignacio Ramonet. Na Europa hoje há desemprego, estagnação, resgate de milionários, resgate de bancos e não de cidadãos, e os jornais dizem que isso é necessário, que é sério, técnico e correto. Que as pessoas morram de fome, precisamos salvar o capital! Enquanto isso, em países como o Equador, que é um dos que mais crescem na América Latina, que reduziu a pobreza, gerou mais emprego, tem a taxa de desemprego mais baixa da região e da história, todos os dias nos dizem que isso é populismo e demagogia, que é preciso mudar de governo.

Estamos ante uma campanha propagandística para defender os poderes fáticos que sempre dominaram nossos países. A direita perdeu as eleições nos Estados Unidos e agora chegam essas organizações para financiar esses grupos na América Latina. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste.

Por isso pergunto sobre o tema da informação como arma de guerra, como a arma letal antes do primeiro disparo.
Correa: Estou convencido disso. Alguns ainda imaginam a imprensa, sobretudo na América Latina, como o quarto poder nascente, que floresceu quando chegaram as democracias, quando ocorreram avanços técnicos e se multiplicaram as publicações, quando se avançou na alfabetização e as grandes massas passaram a poder ler. Esse poder impediria que o poder político, o poder do Estado, ultrapasse certos limites. Assim chegou a desinformação. Lembremos, por exemplo, do affair Dreyfus na França, quando por racismo e xenofobia se acusou um capitão judeu, como denunciou Emile Zola em seu famoso editorial “Eu acuso”. Essa imprensa limitava os excessos do poder político, mas esse vigoroso e ingênuo cachorrinho, bem intencionado, que lutava pelos interesses dos cidadãos, converteu-se de repente em um mastim feroz, com um poder ilimitado, raivoso, que não só tenta encurralar o Estado como também os próprios cidadãos.

O poder midiático na América Latina, como ocorre no Equador, é frequentemente superior ao poder político. Precisamos tirar certos estereótipos de cena ou do ambiente de certa burocracia internacional como alma de ONG, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que fala de pobrezinhos jornalistas e de malvados políticos. Isso não é certo. Os políticos são, muitas vezes, patrióticos. A antipatia que certos jornalistas alimentam, desfiando seus ódios e amarguras, acaba fazendo com que se metam inclusive em questões pessoais, com a família, etc.

Então, vejamos a realidade. Trata-se de tabus e nos ensinaram a ter medo de criticar esses negócios, como se, criticando-os, estivéssemos criticando a liberdade de expressão. Esses são os negócios da má imprensa.

Presidente, viremos a página e passemos à crise
Correa: É que esse tema (da mídia) me apaixona. É um tema acadêmico que me apaixona, ao qual dedicarei meu tempo quando sair da presidência. Pretendo me dedicar a ele, investigar e escrever porque se trata de um problema gravíssimo, porque estamos nas mãos de um poder midiático que superou inclusive o poder financeiro e político, e domina o mundo.

Você resumiu ontem em uma palavra o documento final da Rio+20, classificando-o como “lírico”...
Correa: É assim. Não há compromisso concreto. Podem verificar. Onde há um compromisso em cifras, por exemplo, com o limite de emissões de gases, compensações, acordos, acordos vinculantes como seria uma declaração de direitos da natureza em um tribunal internacional do meio ambiente, como propôs o Equador. Não há nada disso. Fala-se de cuidar melhor do planeta, mas não há um compromisso concreto. O avanço é muito pequeno.

A que atribui a ausência dos Estados Unidos e da Alemanha? Elas podem ter contribuído para essa falta de compromissos concretos?
Correa: Vai mais além. O problema não é técnico. Todo mundo sabe qual é o problema, todo o mundo sabe quais são as respostas. O problema é político. Quem gera os bens ambientais e quem consome esses bens ambientais? Se os países ricos ou os países em desenvolvimento podem consumir gratuitamente um bem que outros geram por que é que vão se comprometer a compensar e cuidar. Não farão isso a não ser que esteja em perigo evidente sua própria existência ou seus próprios interesses.

Então, o problema é político, é a relação de poder. Imagine que a situação fosse a inversa, que a Floresta Amazônica, por exemplo, estivesse nos Estados Unidos e que eles fossem geradores de bens ambientais e que nós dos países em desenvolvimento fôssemos os consumidores. Já teriam nos invadido em nome dos direitos humanos, da justiça, da liberdade, etc., para exigir compensações. Então, esse é um problema de poder. Enquanto não mudarem as relações de poder, muito pouco se irá avançar.

Considera então que o saldo provisório da Rio+20 é um fracasso?
Correa: Sim. Não se conseguiu avançar quase nada. Não há compromisso concreto, nada concreto. Nem sequer dinheiro. Houve uma reunião do G-20 no México e a maioria, 80% dos que estavam lá, regressaram para suas casas. Não vieram para a Rio+20. Não interessa. Apenas alguns poucos vieram para a Cúpula, sobretudo latino-americanos.

Houve também a Cúpula dos Povos, um encontro muito interessante.
Correa: Quisemos participar, mas não foi possível, estava muito longe. Infelizmente foi um problema de logística. Mas vamos ter um evento de direitos da natureza, paralelo à Cúpula, nos mesmos locais da Cúpula, para o qual convidamos 400 dirigentes de organizações sociais alternativas, progressistas de esquerda que buscam a justiça de nossa América e do mundo inteiro. O presidente Evo Morales também participará dessa conferência.

Eu queria perguntar-lhe sobre o que representam estas alianças como a do Pacífico (Colômbia, Chile, Peru e México) e o anúncio feito pelo presidente Felipe Calderón do Transpacífico, que é algo novo. Isso pode ser visto como uma ameaça à integração e à unidade da América Latina?
Correa: Bom, o maior problema em essência sobre o tema do cuidado com o meio ambiente e que também está na base da crise da Europa e dos Estados Unidos é que tudo foi mercantilizado. Eles não querem ver isso porque afeta os interesses dominantes. O mercado é uma realidade econômica que não podemos negar, mas o grande desafio da humanidade é que a sociedade deve conseguir dominar o mercado. O que temos hoje é o mercado dominando a sociedade e as pessoas, mercantilizando tudo. Como o mercado só se interessa pelo que é mercadoria, pelo que tem preços explícitos, não administra adequadamente bens públicos como o meio ambiente. Por isso pode consumir irresponsavelmente bens ambientais, bens públicos globais, depredar a natureza, etc., porque não têm preços explícitos, porque não são mercadoria.

Então, quanto mais se ampliar essa lógica do mercado, mais esses problemas se agravarão e os perigos serão ainda maiores para a conservação do planeta. Eu diria que nós somos muito críticos destes tratados de livre comércio, somos muito críticos da mercantilização da vida e da humanidade em geral. Esse é um dos grandes desafios que enfrentamos. Insisto, o mercado é um fenômeno econômico irrefutável, mas o grande desafio é fazer com que as sociedades dominem o mercado e não o contrário.

Senhor presidente, que medidas os países da América Latina deveriam tomar para não perder o rumo da histórica na direção de uma integração regional soberana e progressista. Como vê os avanços no Mercosul, na Unasul e na Comunidade Andina de Nações (CAN)?
Correa: Avançou-se como nunca antes. Isso não quer dizer que estejamos bem. Teremos que avançar muito mais rápido. Creio que há uma vocação concreta e uma posição integracionista sincera, não uma integração mercantilista como havia antes. O Mercosul nasceu na noite neoliberal dos anos 90. A CAN nasceu a todo vapor e depois diminuiu. A integração mercantilista não quer fazer grandes sociedades de nações, mas sim grandes mercados, não fazer cidadãos de nossa América, mas sim consumidores. A concepção da Unasul é diferente. Nós temos uma concepção integral, onde uma parte é comercial, que sempre é importante, mas não é o mais importante, e as outras partes tem a ver com conectividade, nova arquitetura financeira regional, harmonização de políticas, políticas de defesa.

Oxalá consigamos avançar também em políticas trabalhistas para que nunca mais caiamos na América Latina na armadilha de competir para atrair investimentos, deteriorando e precarizando as forças de trabalho. Ao invés de atrair capitais na base do suor e das lágrimas de nossos trabalhadores, pensamos em outro mundo. Como disse, creio que avançamos, mas precisamos ir muito mais rápido.

O senhor tocou de passagem o tema do Conselho de Defesa Sulamericano, que está objetivamente estancado, e seu país sofreu um ataque estrangeiro em 2008. Na sua avaliação, com a chegada do presidente Santos na Colômbia, a hipótese de tensões entre Colômbia e Equador está completamente dissipada?
Correa: As relações bilaterais entre Equador e Colômbia gozam de um extraordinário momento. Há uma grande coordenação com o governo do presidente Santos. A Colômbia sempre foi o vizinho com o qual tivemos a melhor relação em nossa história. Infelizmente, essa história, séculos de irmandade, foi rompida pela traição de um presidente como Uribe. Mas, graças a deus, com o governo do presidente Santos isso foi superado e creio que ele também tem uma vocação integracionista muito profunda e apoia – de fato, tem apoiado – a proposta do Conselho de Defesa.

O Conselho de Defesa teve seus primeiros estremecimentos com o anúncio da radicação de tropas dos Estados Unidos na Colômbia. Essa possível radicação de tropas norte-americanas na Colômbia está definitivamente abortada?
Correa: Não tenho maiores conhecimentos a respeito desse assunto. Até onde sei há uma estreita colaboração norteamericana com o pretexto da luta antidrogas e oxalá que a ajuda se concentre aí. Mas temos que fazer um esforço de bastante ingenuidade para nos convencermos disso porque muitas vezes se fazem outras coisas com essas supostas ajudas, sobretudo com governos que não sigam a linha de Washington.

A pergunta anterior está associada a outras situações graves como a remilitarização com novas bases no Panamá e outros três centros operacionais do comando Sul , uma base nova no Chile e nas Malvinas o grande problema é a base britânica ali instalada. Toda esta expansão dos Estados Unidos não é ameaçadora para a região?
Correa: Nós queremos nos convencer que com Barack Obama, que acreditamos ser uma boa pessoa, a política internacional dos EUA mudou, mas as evidências nos mostram que não é assim, que tudo continua lamentavelmente igual, sobretudo no que diz respeito à América Latina, cujos governos comprometidos com justiça, dignidade e soberania passaram a ser vistos como uma ameaça para seus interesses. Devemos estar muito atentos a essa presença das forças armadas norte-americanas em nossa América e a esse processo de rearmamentismo que está ocorrendo nesta época tão difícil e complexa.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20436

Os videos que compõem essa entrevista podem ser acessados em:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=4t1pNQicRbg
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=IR48HKl0FnQ
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=88U5EYGr3i0
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=yvqaQM8V_1Q
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=xLEJndzkV6I

sábado, 30 de junho de 2012

O GOLPE EM ASSUNÇÃO E A TRÍPLICE FRONTEIRA

27/06/2012 - por Mauro Santayana em seu blog

A moderação dos Estados Unidos, que dizem estranhar a rapidez do processo de impeachment do Presidente Lugo, não deve alimentar o otimismo continental.

Em plena campanha eleitoral, a equipe de Obama (mesmo a Sra. Clinton) caminha com cautela, e não lhe convém tomar atitudes drásticas nestas semanas.

Esta razão os leva a deixar o assunto, neste momento, nas mãos da OEA.

Na verdade, se as autoridades de Washington não ordenaram a operação relâmpago contra Lugo, não há dúvida de que o parlamento paraguaio vem sendo, e há muito, movido pelo controle remoto do Norte.

E é quase certo que, ao agir como agiram, os inimigos de Lugo contavam com o aval norte-americano.

E ainda contam.

Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana informava a Washington, em março de 2009, que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo, mediante o parlamento. Infelizmente não sabemos o que a embaixada dos Estados Unidos em Assunção comunicou ao seu governo depois e durante toda a maturação do golpe: Assange e Manning estão fora de ação.

Não é segredo que os falcões ianques sonham com o controle da Tríplice Fronteira. Nãohá, no sul do Hemisfério, ponto mais estratégico do que o que une o Brasil ao Paraguai e à Argentina.

É o ponto central da região mais populosa e mais industrializada da América do Sul, a pouco mais de duas horas de vôo de Buenos Aires, de São Paulo e de Brasília. Isso sem falar nas cataratas do Iguaçu, no Aqüífero Guarani e na Usina de Itaipu.

Por isso mesmo, qualquer coisa que ocorra em Assunção e em Buenos Aires nos interessa, e de muito perto.

Não procede a afirmação de Julio Sanguinetti, o ex-presidente uruguaio, de que estamos intervindo em assuntos internos do Paraguai. É provável que o ex-presidente - que teve um desempenho neoliberal durante seu mandato – esteja, além de ao Brasil e à Argentina, dirigindo suas críticas também a José Mujica, lutador contra a ditadura militar, que o manteve durante 14 anos prisioneiro, e que vem exercendo um governo exemplar de esquerda no Uruguai.

Não houve intervenção nos assuntos internos do Paraguai, mas a reação normal de dois organismos internacionais que se regem por tratados de defesa do estado de direito no continente, o Mercosul e a Unasul – isso sem se falar na OEA, cujo presidente condenou, ad referendum da assembléia, o golpe parlamentar de Assunção. É da norma das relações internacionais a manifestação de desagrado contra decisões de outros países, mediante medidas diplomáticas. Essas medidas podem evoluir, conforme a situação, até a ruptura de relações, sem que haja intervenção nos assuntos internos, nem violação aos princípios da autodeterminação dos povos.

A prudência – mesmo quando os atos internos não ameacem os países vizinhos – manda não reconhecer, de afogadilho, um governo que surge ex-abrupto, em manobra parlamentar de poucas horas. E se trata de sadia providência expressar, de imediato, o desconforto pelo processo de deposição, sem que tenha havido investigação minuciosa dos fatos alegados, e amplo direito de defesa do presidente.

Registre-se o açodamento nada cristão do núncio apostólico em hipotecar solidariedade ao sucessor de Lugo, a ponto de celebrar missa de regozijo no dia de sua posse.

O Vaticano, ao ser o primeiro a reconhecer o novo governo, não agiu como Estado, mas, sim, como sede de uma seita religiosa como outra qualquer.

O bispo é um pecador, é verdade, mas menos pecador do que muitos outros prelados da Igreja. Ele, ao gerar filhos, agiu como um homem comum. Outros foram muito mais adiante nos pecados da carne – sem falar em outros deslizes, da mesma gravidade - e têm sido “compreendidos” e protegidos pela alta hierarquia da Igreja.

O maior pecado de Lugo é o de defender os pobres, de retornar aos postulados da Teologia da Libertação.

Lugo parece decidido a recuperar o seu mandato – que duraria, constitucionalmente, até agosto do próximo ano. Não parece que isso seja fácil, embora não seja improvável. Na realidade, Lugo não conta com a maior parcela da classe média uruguaia, e possivelmente enfrente a hostilidade das forças militares. Os chamados poderes de fato – a começar pela Igreja Católica, que tem um estatuto de privilégios no Paraguai – não assimilaram o bispo e as suas idéias. Em política, no entanto, não convém subestimar os imprevistos.

Os fazendeiros brasileiros que se aproveitaram dos preços relativamente baixos das terras paraguaias e lá se fixaram, não podem colocar os seus interesses econômicos acima dos interesses permanentes da nação. É natural que aspirem a boas relações entre os dois países e que, até mesmo, peçam a Dilma que reconheça o governo. Mas o governo brasileiro não parece disposto a curvar-se diante dessa demanda corporativa dos “brasiguaios”.

No Paraguai se repete uma endemia política continental, sob o regime presidencialista. O povo vota em quem se dispõe a lutar contra as desigualdades e em assegurar a todos a educação, a saúde e a segurança, mediante a força do Estado. Os parlamentos são eleitos por feudos eleitorais dominados por oligarcas, que pretendem, isso sim, manter seus privilégios de fortuna, de classe, de relações familiares. Nós sofremos isso com a rebelião parlamentar, empresarial e militar (com apoio estrangeiro) contra Getúlio, em 1954, que o levou ao suicídio; contra Juscelino, mesmo antes de sua posse, e, em duas ocasiões, durante seu mandato. Todas foram debeladas. A conspiração se repetiu com Jânio, e com Jango – deposto pela aliança golpista civil e militar, patrocinada por Washington, em 1964.

A decisão dos paises do Mercosul de suspender o Paraguai de sua filiação ao Mercosul, e a da Unasul de só reconhecer o governo paraguaio que nasça das novas eleições marcadas para abril, não ferem a soberania do Paraguai, mas expressam um direito de evitar que as duas alianças continentais sejam cúmplices de um golpe contra o estado democrático de direito no país vizinho.

Fonte:
http://www.maurosantayana.com/2012/06/o-golpe-em-assuncao-e-triplice.html

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Economia verde divide a Ásia

28/6/2012 - por Marwaan Macan-Markar, da IPS (Inter Press Service)
extraído do site Envolverde

Bangcoc, Tailândia, 28/6/2012 – A cúpula Rio+20 fez ressaltar o descontentamento de ativistas e de alguns governos da Ásia com os conceitos de “economia verde” e “crescimento verde”, considerados uma fachada para manter um modelo que depreda os recursos naturais.

A Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico (Cespap), agência regional da Organização das Nações Unidas (ONU) integrada por 58 países, é favorável a empregar esses enfoques, mas gigantes como China, Índia, Irã e Rússia são contra.

A economia verde promove transformações nas formas de produção e de consumo para atender as problemáticas ambientais, mediante a inovação tecnológica e atribuindo valor econômico aos bens naturais. Ativistas afirmam que este enfoque só reforça o atual modelo de desenvolvimento, baseado na produção e no consumo excessivos. Esta divergência ficou evidente nos dias finais da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada este mês no Rio de Janeiro.

O embaixador chinês na Tailândia, Guan Mu, publicou no dia 21 uma longa coluna no jornal The Nation, de Bangcoc, destacando a importância do desenvolvimento sustentável, mas evitando sempre usar conceitos como “economia verde” ou “crescimento verde”. “A China não só encontrou o caminho para um desenvolvimento sustentável adequado às suas condições nacionais, como fez importantes contribuições ao desenvolvimento sustentável em todo o mundo”, afirmou. “A China está disposta a fortalecer a cooperação e a unir esforços com outras partes para fazer mais contribuições ao desenvolvimento sustentável global sob o princípio de responsabilidades comuns mas diferenciadas”, destacou.

No dia anterior, em Manila, ativistas liderados pela Kalikasan, uma rede de grupos ambientalistas com sede nas Filipinas, protestaram diante da embaixada dos Estados Unidos contra a economia verde porque “enriquece as corporações”. “Nós, o povo, a quem não permitem falar na Rio+20 e que vemos nossos direitos pisoteados, não nos calaremos”, afirmou durante o protesto a secretária-geral da Asia Pacific Research Network, Lyn Pano. “Fortaleceremos nossas fileiras e lutaremos de forma constante” para rechaçar a economia verde, enfatizou.

Enquanto isso, o discurso da Cespap na Rio+20 sugeria que os países da Ásia e do Pacífico estavam a favor de adotar a economia verde em seus planos. “Estamos satisfeitos pelo fato de as políticas da economia verde serem reconhecidas como uma ferramenta importante para o desenvolvimento sustentável e para a erradicação da pobreza”, afirmou a secretária-executiva da agência, Noeleen Heyzer, durante uma reunião de alto nível.

A pressa das agências da ONU, incluindo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), para adotar as políticas de economia verde ignora temores asiáticos de que “sejam usados para prejudicar o marco aceito de desenvolvimento sustentável”, alertou Shalmali Guttal (foto ao lado), pesquisadora principal do centro de estudos Focus on the Global South, com sede em Bangcoc. “Preocupa que esta seja uma tentativa dos países industrializados, os maiores poluidores do mundo, para imporem o protecionismo verde no mercado internacional”, declarou Guttal à IPS.

As nações em desenvolvimento da Ásia têm uma razão para estarem nervosas, porque este é outro esforço dos países industrializados de evitar os compromissos que assumiram de ajudar as nações do Sul a cumprirem suas metas de desenvolvimento”, ressaltou.

Os órgãos da ONU deveriam ouvir o povo, a que, supõe-se, estão ajudando”, acrescentou.

Os desacordos entre a Cespap e alguns governos da região sobre economia verde já havia ficado evidentes na sexta Conferência Ministerial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Ásia e do Pacífico (MCED-6), realizada no Cazaquistão em outubro de 2010. O comunicado de imprensa final desse encontro teve que ser reformulado. China, Índia, Irã e Rússia objetaram a expressão “economia verde” que tinha um grande destaque no texto e inclusive no título. O comunicado a mencionava como a estratégia apoiada pelos ministros asiáticos. A Cespap foi obrigada a divulgar novo comunicado de imprensa identificando o crescimento verde como “um enfoque (a mais) de desenvolvimento sustentável”.

Para um diplomata asiático em Bangcoc que pediu para não ser identificado, “este é um tema que se tornou polêmico. A partir de então, fiscalizamos a forma com a Cespap emprega os termos crescimento verde e economia verde sem seus documentos”, contou.

No âmbito interno, a maioria dos países contribui para o desenvolvimento de alternativas baixas em carbono e investimentos em tecnologia verde. Contudo, resistimos a sermos pressionados para apoiar a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável”, afirmou o diplomata.

A Cespap estava, de fato, na vanguarda do debate sobre crescimento verde, reconhecendo-o como uma alternativa de desenvolvimento sustentável. O conceito foi promovido na MCED-5, realizada na Coreia do Sul, em 2005. Três anos depois, após a crise financeira de 2008, muitos outros também apoiaram o conceito de economia verde, desde o Pnuma até o Grupo dos 20 países industrializados e emergentes.

Os países asiáticos enfrentam a restrição de recursos, o preço do combustível sobe e isto é um impedimento ao seu desenvolvimento”, afirmou Rae Kwon Chung (foto ao lado), diretor de meio ambiente e desenvolvimento da Cespap. “A pobreza não pode ser erradicada sem se resolver essa falta de recursos. As recentes crises energética e alimentar devem desatar uma grande mudança. Os países em desenvolvimento requerem um sistema energético distinto. A economia verde é uma das estratégias para pôr em prática o desenvolvimentos sustentável”, explicou à IPS.

A necessidade dessa mudança é evidente quando se observa que para produzir um dólar a região consome três vezes mais recursos naturais do que o resto do mundo, segundo informe da Cespap divulgado pouco antes da Rio+20. Muitas economias da Ásia e do Pacífico são importadoras de recursos e matérias-primas e sensíveis às altas de preços. Em 2011, as altas dos alimentos e do petróleo afundaram na pobreza 42 milhões de pessoas, enquanto no ano anterior 19 milhões haviam tido a mesma sorte.

Grandes nações, como China e Índia, e outras menores, como Camboja e Vietnã, são elogiadas no informe por adotarem programas para “reverdecer suas economias”.

No entanto, as maiores economias regionais erguem uma bandeira vermelha quando o crescimento verde é colocado em outro contexto, como uma nova receita internacional e vinculante para o desenvolvimento sustentável do Sul global.

Isto continuará sendo um tema de divisão e as sessões da Cespap vão refletir isso. Alguns governos já disseram basta”, afirmou a fonte diplomática.

Envolverde/IPS
Fonte:
http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/economia-verde-divide-asia/?utm_source=CRM&utm_medium=cpc&utm_campaign=28

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Murar o medo

22/06/2012 - por Mia Couto
extraído do site Vermelho (*)


Mia Couto: a quem serve o medo?

Esta conferência foi pronunciada pelo romancista moçambicano em novembro de 2011, nas Conferências do Estoril, da Fundação Cascais, que ocorrem anualmente na cidade portuguesa de Cascais para debater os desafios da globalização, sendo dirigida a um público formado por políticos, empresários, acadêmicos, intelectuais, estudantes, jornalistas e formadores de opinião.
Por Mia Couto

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo.

No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.

Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente.

E porque se tratam de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de investimento divino, precisamos de intervenção de poderes que estão para além da força humana. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade.

Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar pelo e conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como por exemplo estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento?

Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar?

Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia, são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.

Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra.

Essa arma chama-se fome.

Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte de nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo.

Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética e nem de legalidade. É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha.

A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo, muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.

Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.

Quando não têm medo da fome, têm medo da comida.

Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras."

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe!


(*) Agradecimento especial a Selenia Granja que, de Salvador, garimpou esse texto e o deixou à mostra no Facebook de onde foi pinçado.

Original do site Vermelho em:
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=186637&id_secao=11#.T-xpdOa5c-E.facebook
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