terça-feira, 20 de setembro de 2011

O inferno astral do neoliberalismo

O que está ruim ainda tem a chance de ficar pior. A crise profunda do neoliberalismo tem tido como efeito político a ressurreição do conservadorismo. Se os novos liberais perderam força, os conservadores tomaram muito de seu espaço. A última vez em que isso aconteceu foi após a I Guerra Mundial, com o nazismo e do fascismo.
Antonio Lassance*

         O velho liberalismo romântico
         O neoliberalismo é uma ideologia, uma visão de mundo. Mais precisamente, é uma visão de mundo adepta do individualismo, da competição, do Estado mínimo e da primazia do mercado, o que justifica sua filiação ao velho liberalismo. O que havia de novo nesse liberalismo?
         O velho liberalismo de Adam Smith reservava funções claras ao Estado, mesmo que sumárias, como a defesa do território, a proteção (que hoje preferimos chamar de segurança pública), o recolhimento de impostos e a política monetária. Mas nenhum liberal clássico, ao defender o indivíduo, deixava de olhar a sociedade como um todo. A liberdade individual supostamente promoveria o bem estar da sociedade. Smith externava preocupação com o fato de que seus concidadãos, que vestiam o mundo, estavam em farrapos.
         Para o neoliberalismo, porém, não existe sociedade; o que existe são indivíduos (frase de Margareth Thatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido). Não existe serviço público que não possa e não deva ser prestado por empresas privadas (frase de David Cameron, atual primeiro ministro britânico).
         Para o liberalismo clássico, as corporações eram um problema a ser atacado. “A riqueza das nações”, de Adam Smith, criticava a proteção estatal às companhias comerciais, que exerciam atividades mercantis de forma monopolística, financiadas e escoltadas com recursos públicos. Para o novo liberalismo, as corporações são “a firma” e são equiparadas aos indivíduos. São pessoas jurídicas e têm por trás de si acionistas (indivíduos). Ao contrário da versão original, para o neoliberalismo a riqueza dos indivíduos é apátrida, e não uma riqueza “das nações”.
         Outro fator de novidade do neoliberalismo era a globalização, uma marcha tida como inexorável para o domínio absoluto do globo por essas grandes corporações (comerciais, industriais, mas sobretudo financeiras). Bem diferente da ideia de divisão internacional do trabalho, que tinha como base as nações e o trabalho, e não as empresas e os fluxos financeiros. Romanticamente, Smith apontava um caminho para cada país encontrar seu lugar ao sol, produzindo de acordo com sua vocação. Deve-se dar um desconto ao romantismo de Adam Smith, pois ele era contemporâneo da poesia de Lord Byron, da música de Beethoven, da pintura de Delacroix. O mundo respirava romantismo por todos os lados e parecia que o progresso salvaria a todos.
         A visão do neoliberalismo não é nada romântica. Os neoliberais são realistas até o último fio de cabelo. Eles são herdeiros da mutação genética introduzida no velho liberalismo pelo darwinismo social de Herbert Spencer, na segunda metade do século XIX. Sua vinculação a Friedrich Hayek tem traços claros que os colocam mais como apóstolos da lei do mais forte do que da lei do livre mercado.
         Ascensão e queda do neoliberalismo
         A construção do neoliberalismo desenrolou-se aos soluços, com inúmeros sobressaltos. Ele sobreviveu em estado vegetativo por décadas, até ganhar uma dimensão política avassaladora com o tridente formado por Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, nos anos 1980, personificado nas lideranças de Ronald Reagan, Margareth Thatcher e Helmut Kohl.
         Sua força política empunhava um ideário econômico agressivo, cuja síntese mais propalada tornou-se conhecida como o “Consenso de Washington”.
         O ciclo do neoliberalismo, quase como um ciclo biológico tradicional, durou cerca de vinte e cinco anos. É difícil encontrar hoje em dia algo que não traga sinais dessa herança. Mesmo com seus abalos, ao final dos anos 1990, ele ainda ganhou uma sobrevida por meio de governos da autointitulada “terceira via”. Sob este guarda-chuvas está uma legião composta pelos democratas nos EUA (Bill Clinton), socialdemocratas da Europa (Tony Blair, no Reino Unido; Gerhard Schröder, na Alemanha; Lionel Jospin, na França; Massimo D’Alema, na Itália) e parte da América Latina (como Fernando Henrique Cardoso, no Brasil; Carlos Andrés Perez, na Venezuela; Carlos Menem, na Argentina; e todos os governos da Concertación chilena).
         O inferno astral
         O neoliberalismo sofreria um profundo abalo e entraria definitivamente em seu inferno astral a partir de 2008, quando se ouviu um dobre de finados não na periferia do sistema, mas na catedral do capitalismo, em Nova York. Era o enterro da Lehman Brothers Holdings Incorporated.
         Mas uma das características do neoliberalismo, além da ousadia e do cinismo, é a teimosia. Ele insistia em disputar projetos políticos e em ganhar eleições com seus arautos. Neles residiam as últimas esperanças de dar a volta por cima, recobrar as energias e reinventar formas de acumulação que evitassem que o capitalismo carregasse a pecha de ser um grande prejuízo para a vida da maioria dos mortais.
         Para a surpresa dos incautos, o neoliberalismo conseguiu eleger novos garotos-propaganda. Na pátria-mãe, o Reino Unido, David Cameron; no Chile, Sebastián Piñera; na Alemanha, Angela Merkel.
         O Reino Unido é o exemplo mais retumbante do fracasso estrutural do neoliberalismo. Sua política econômica tem como eixo a redução de serviços públicos e a tentativa de desmonte de estruturas de Estado, uma retórica persistente, mas pouco efetiva. O inglês mantém um alto grau de prestação de serviços públicos estatais. Conjunturalmente, a inflação está em alta, com as projeções beirando os 5% - pois é, eles não vão cumprir a meta de inflação, que por lá está fixada em 2%. O desemprego não só está em alta, como é o maior dos últimos dois anos.
         A Escócia de Adam Smith, em má homenagem ao credo neoliberal, ostenta um grande número de serviços públicos gratuitos à população. Seu Estado de bem-estar social faz inveja ao dos ingleses. Os escoceses já haviam conseguido um parlamento próprio e agora têm ganhado mais adeptos em favor de sua independência. A política de desmonte, do governo Cameron, tem ajudado em muito a aumentar a adesão à proposta de secessão. As receitas da Escócia são suficientes para mostrar que, se alguém pode sair perdendo com a separação, é a Inglaterra.
         No País de Gales, a seção local do partido conservador cogita até trocar de nome e reclama de sua associação ao legado de Margareth Thatcher. A má fama do thatcherismo, segundo pesquisas, os prejudica eleitoralmente.
         No Chile, Piñera enfrenta as maiores manifestações desde Pinochet. Além dos estudantes nas ruas, grande parte dos moradores das cidades do sul do país, dependentes do gás subsidiado para se proteger do frio, protesta contra o reajuste do produto e o encarecimento do custo de vida.
         Na Alemanha, Merkel tem feito pouca coisa que pode ser considerada verdadeiramente neoliberal. Tanto que até seu companheiro de partido, Helmut Kohl, lhe faz críticas sistemáticas. Os socialdemocratas alemães parecem bem mais apegados ao neoliberalismo e dizem que a Alemanha vai pagar caro pelas “vacilações” de Merkel, que deveria ser mais dura em cobrar ajustes rigorosos em toda a zona do Euro.
         O conservadorismo e seu contraponto
         Mas a hora não é dada a comemorações. O que está ruim ainda tem a chance de ficar pior. A crise profunda do neoliberalismo tem tido como efeito político a ressurreição do conservadorismo. Se os novos liberais perderam força, os conservadores tomaram muito de seu espaço. A última vez em que isso aconteceu foi após a I Guerra Mundial, com o nazismo e o fascismo.
         O conservadorismo tem como bandeiras o combate aos imigrantes, o protecionismo, o militarismo e o gasto social seletivo. Quer reduzir a prestação de serviços públicos e trocá-los por cheques, “vouchers” e descontos de imposto de renda, mas não exatamente por razões privatistas. Há um duplo propósito. Torna possível financiar empresas privadas nacionais para prestar serviços públicos essenciais e fecha a porta aos imigrantes, que vivem na ilegalidade e não podem receber esses benefícios focalizados.
         O conservadorismo que tem no “Tea Party”, dos EUA, seu movimento mais proeminente, é protecionista, nacionalista, militarista, xenófobo, intolerante Os neoliberais não são a fonte desses cacoetes. Seus vícios originais são outros, embora aceitem compartilhá-los, principalmente o militarismo, se isso justificar vantagens competitivas.
         Neoliberais apoiam a imigração como forma de atrair talentos de qualquer parte do mundo e reduzir o custo da mão-de-obra, assim como para manter uma ampla parcela de trabalhadores apartada de direitos sociais. São a favor do direito de mulheres muçulmanas escolherem se querem ou não usar a burka, pois sua proibição desrespeita a liberdade individual. São cautelosos quanto ao militarismo, pois seus gastos são elevados. Henry Kissinger e James Baker escreveram, meses atrás, um artigo condenando a intervenção na guerra da Líbia, com base em um cálculo da relação custo-benefício para os Estados Unidos.
         Na crise financeira de 2008, os neoliberais foram, em grande medida, “liquidacionistas”, como o velho Hayek pregava. Disseram que os bancos em dificuldades deveriam ser deixados à sua própria sorte e quebrarem, se preciso fosse.
         Se há um contraponto político ao conservadorismo, ele ronda a América do Sul. Está pelo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela, Equador e Peru. Com defeitos, limitações, tibiezas e inúmeros problemas. Na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos de esquerda são de uma espontaneidade sem luxemburguismo (o da Rosa, não o do Vanderley). Dependem de associações civis pouco conectadas à luta política nacional e têm um profundo descrédito pelos partidos, inclusive os de ultraesquerda, afogados em sua própria retórica e empacados em sua falta de projeto.
       
*Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.