segunda-feira, 30 de julho de 2012

Entrevista com João Pedro Stédile


 "A América Latina está vivendo uma conjuntura positiva para a classe trabalhadora em geral"


Como o senhor avalia a atual conjuntura política dos países da América Latina, sobretudo em relação ao Paraguai onde o presidente Fernando Lugo sofreu impeachment?

A América Latina está vivendo uma conjuntura positiva para a classe trabalhadora em geral, pois saímos da hegemonia total dos Estados Unidos e do neoliberalismo com a eleição de diversos governos progressistas em todo o continente. E, agora, há uma disputa permanente do futuro do continente ao redor de três projetos ou propostas. O primeiro é a retomada da ofensiva dos Estados Unidos, que quer recolonizar a região e transformá-la apenas em fornecedora de matérias primas e energia para ter lucro máximo para suas empresas que por aqui operam. Há um segundo projeto que defende uma integração continental, sem os americanos, mas ainda nos marcos dos interesses das empresas capitalistas. E há um terceiro projeto, que nós chamamos de Alba (Aliança Bolivariana Para os Povos de Nossa América), que se propõe a fazer uma integração econômica, política e cultural, que juntasse governos progressistas com as organizações populares. Essas três propostas se enfrentam todos os dias em todos os espaços. A cada eleição presidencial, haverá candidatos dos três projetos. A vitória de [Fernando] Lugo (presidente deposto do Paraguai) fortalecia o projeto dois e três, e representava um alento para a região do Cone Sul, pois derrotou as oligarquias paraguaias depois de 60 anos de ditadura do partido colorado. Eles tentaram derrubá-lo em 23 outros processos de impeachment e somente conseguiram derrubá-lo agora, quando os serviços de inteligência e os interesses econômicos dos Estados Unidos se envolveram e ajudaram a preparar esse golpe de Estado, que teve uma unidade impressionante em termos econômicos, políticos e midiáticos.

Na avaliação do senhor, qual o papel dos movimentos sociais no século XXI? 
Os movimentos sociais, no sentido genérico, que envolve todas as formas de organização da classe trabalhadora -desde o movimento sindical, popular, até a luta por moradia, por saúde, de luta pela terra e etc.-, devem continuar com sua missão histórica que é organizar o povo para que ele lute por melhores condições de vida, pela defesa de seus interesses e por um novo projeto de sociedade. Os movimentos têm um papel fundamental, pois sem a organização popular na base e sem consciência de classe, não será possível fazer mudanças estruturais na sociedade e nem institucionais nos espaços do poder Legislativo e Executivo quando elegermos nossos representantes. 

A atuação do MST no Brasil contrasta com o fato de alguns militantes do movimento após ocuparem seus espaços comercializarem as casas onde moram ou os terrenos. Como o senhor avalia isso?


Há uma situação da condição humana que faz com que em qualquer novo espaço, território, assentamento, condomínio ou bairro, nem todas as pessoas se adaptem. A FAO (organização das Nações Unidas) tem um estudo que aponta que em qualquer mudança de moradia, há uma desistência média de 15% das pessoas, inclusive nos edifícios de luxo! Nos assentamentos do MST, e também nos novos edifícios dos bairros da cidade, tem desistências, trocas, mudanças, que, portanto, são naturais que ocorram. No caso do MST, as desistências são maiores na região amazônica, aonde às vezes não tem estrada, escola, nenhum atendimento de saúde, e aí as famílias não aguentam e desistem. Aqui nas regiões Sul e Sudeste acontece um movimento inverso. Há algumas desistências, mas o número de novas pessoas que vão morar no assentamento é maior do que a desistência, porque as famílias levam os parentes para morar no mesmo lote. Nós lutamos e conseguimos colocar na Constituição que, no caso da reforma agrária, a família camponesa recebe apenas um titulo de concessão de uso familiar. Em nome da mulher e do homem. E eles não podem vender. Portanto, mesmo quando há desistências, o que acontece são trocas de lotes, ou, no máximo, o desistente vende as benfeitorias que fez como a casa, animais e repassa o lote pro Incra colocar outra família. 

Ainda é possível falar em socialismo no século XXI? 

Não só é possível como é necessário. O Socialismo é uma proposta da classe trabalhadora para construir uma sociedade mais justa e igualitária, aonde todos tenham direitos e oportunidades iguais, e aonde a riqueza seja distribuída de acordo com o trabalho de cada um. No fundo, todas as pessoas de boa vontade defendem esse sonho, ainda que não tenham claro como será. Portanto, as sociedades do futuro serão socialistas. O capitalismo é o modelo do passado, da exploração, da concentração de riqueza, da desigualdade social, da humilhação. E por mais que a burguesia, alguns exploradores e seus porta-vozes na mídia e na sociedade achem que vai ser eterno, um dia vai desmoronar. Disso não tenham duvidas. 
A violência no campo é comum nos assuntos ligados a Reforma Agrária. Como está o índice de mortes nos conflitos do campo?


Num passado recente, desde os tempos da ditadura e até o neoliberalismo, a classe dominante no campo era controlada pelos latifundiários atrasados. E cada vez que havia algum conflito trabalhista ou de ocupação de terra, ou tentativa de despejo de posseiros antigos, os latifundiários usavam da violência física e procuravam eliminar as lideranças dos trabalhadores. Para se ter uma ideia, de 1984 a 2004, já na democracia formal, foram assassinados mais de 1.600 lideranças, e apenas 80 culpados foram a julgamento. Na ultima década, a classe dominante no campo se transformou e agora quem manda são empresas transnacionais e fazendeiros modernos. Então a forma de repressão vem mudando. Em vez de assassinatos, eles nos criminalizam; nos reprimem através do poder judiciário e da imprensa. Esses são os dois poderes sobre os quais eles têm controle absoluto. Não precisam mais matar. Vejam o que fizeram conosco no caso da ocupação da fazenda grilada pela Cutrale, em Iaras. A fazenda pertence à União e o Incra pediu despejo da empresa. Nós ocupamos. A Cutrale, aliada com a Coca-Cola, a Globo e o governo [José] Serra (então governador de São Paulo), organizou uma campanha midiática que transformou os pobres sem terras em demônios devastadores de laranja! Vejam o que fizeram no caso de Pinheirinho, em São José dos Campos. Uma área de empresa falida e corrupta. E lá se juntaram as mesmas forças. Não houve mortes. Mas houve um massacre ideológico, político e as famílias perderam as casas depois de oito anos de trabalho honesto. 
O senhor é um dos nomes mais influentes do MST, como o senhor avalia o papel do MST na questão agrária e da reforma agrária?


O MST tem um papel histórico de seguir organizando de forma autônoma os pobres do campo, que lutam por terra, por trabalho, por melhores condições de vida. Infelizmente o agronegócio, que está mancomunado com o poder econômico, de quem é sócio, com os meios de comunicação, criaram uma ilusão na sociedade brasileira de que o agronegócio é solução. E escondem que ele aumenta a produtividade expulsando milhares de trabalhadores, usando venenos de forma intensiva, que transformou o Brasil no país que mais usa venenos e que tem alimentos mais contaminados no mundo. E isso gera câncer em 400 mil pessoas por ano no Brasil. Ou seja, o agronegócio dá lucro; produz, mas para meia dúzia de fazendeiros e empresas transnacionais. Por outro lado, nos temos 4 milhões de famílias camponesas, pobres, sem terra, sem trabalho; muitos morando nas periferias das cidades do interior. Nós temos 10 milhões de analfabetos no interior do país. Nós temos 5 milhões de famílias que vivem no interior e que dependem do Bolsa Família para comer! Então nós temos muito trabalho pela frente. Organizar os pobres do campo. Está difícil, mas continuaremos incansáveis o nosso trabalho até que a classe trabalhadora como um todo se dê conta das mudanças necessárias no país, e possamos debater um novo projeto para o país, como fizemos, a partir das lutas sociais da região do ABC, na década de 79 a 89.
           
Qual o verdadeiro tipo de reforma agrária defendido pelo MST?

No passado, a expressão reforma agrária era entendida por muitos apenas como desapropriação de uma fazenda e distribuição dos lotes de terra. Essa reforma agrária funcionava quando o modelo econômico era dominado pelas indústrias. E, portanto, os camponeses se integravam com a indústria e conseguiam sair da pobreza. Era a chamada reforma agrária clássica, que a maioria dos países industrializados fizeram. Agora, o capitalismo dominante é do capital financeiro e das empresas transnacionais, também na agricultura. O chamado agronegócio. Assim, eles conseguem aumentar o lucro e a produção sem os camponeses. Por isso que muitos de seus porta-vozes dizem que não precisa mais reforma agrária. Não precisa para eles ganharem dinheiro. Mas precisa reforma agrária para resolver os problemas dos pobres do campo. Agora, nós precisamos de um novo tipo de reforma agrária. Uma reforma agrária que comece na distribuição de terras, mas que organize cooperativas de produção para instalar agroindústrias nos assentamentos e no interior. Porque é isso que aumenta a renda e tira da pobreza. Uma reforma agrária que adote a matriz tecnológica da agroecologia produz alimentos sadios, sem veneno, e sem alterar o equilíbrio do meio ambiente. Uma reforma agrária que distribua educação.Portanto, teríamos que instalar mais escolas fundamentais e de Ensino Médio em todo interior, para criar alternativas para a juventude e levar o conhecimento para o interior. Imaginem que nos últimos 20 anos, foram fechadas –repito, fechadas!- 25 mil escolas no meio rural. Nós precisamos abrir escolas e não fechar. Por isso nossa luta ficou mais difícil e demorada, porque agora temos que lutar por um outro de desenvolvimento agrícola e derrotar o agronegócio. O agronegócio é o modelo do lucro, do capital. Nós queremos uma reforma agrária popular, de outro tipo.


Estamos em ano eleitoral, qual a relação do MST com as eleições?


O MST teve o mesmo comportamento desde a sua formação em relação às eleições. Nós não devemos nos comportar como partido e indicar candidatos. Os nossos militantes que têm vocação política devem entrar em partidos políticos e fazer as disputas lá. Nós mantemos autonomia dos partidos e dos governos. Mas como nossos militantes têm consciência social, e como procuramos fazer trabalho de conscientização com nossa base, é evidente que o resultado é que nossa base e militância sempre procura fazer campanha, no período eleitoral, para eleger os candidatos mais populares, mais progressistas, de esquerda, e que estejam comprometidos com o povo. E aí em cada região tem as realidades partidárias diferenciadas, em que esse perfil de candidato aparecem em diversos partidos.


O PT assumiu a presidência da República com um discurso de esquerda. Qual a opinião do senhor sobre os oito anos do governo Lula e os 18 meses do governo Dilma? 
Os governos Lula e Dilma não são governos do PT. Participam dele muitos partidos, inclusive alguns conservadores e oportunistas. Não é um governo de esquerda, na minha opinião; é um governo progressista. E evidentemente que foi muito importante elegermos para derrotar os candidatos neoliberais, que representavam apenas os interesses do grande capital e das empresas transnacionais. Na minha opinião, os governos têm essa característica, em primeiro lugar, porque se elegeram num período histórico de descenso do movimento de massas, em que a classe trabalhadora, depois de 89-95, havia sido derrotada política e ideologicamente. E, portanto, não disputou nas ruas, com lutas e mobilizações, o governo. Tanto é que a principal forma de fazer campanha nesse período tem sido apenas a televisão. E os partidos brigam muito pelos minutos de televisão. Em segundo lugar, a vitória eleitoral só foi possível porque foi construída uma aliança interclassista, com diferentes interesses de classe dentro do governo. Interesses que estão dentro de cada Ministério e que, às vezes, são até antagônicos. E em terceiro lugar, sua natureza é determinada porque os movimentos populares, os partidos e a sociedade brasileira em geral carecem de um projeto para o país. Desde 1989, nós paramos de debater um projeto para o país. E na ausência de um programa histórico, de um projeto, os partidos e seus políticos vão agindo apenas na base do pragmatismo, ou resolvendo os problemas cotidianos da administração pública.


Fonte: Portal da CUT