26/05/2013 - O papel da militância
- Maurício Caleiro em seu blog Cinema & Outras Artes
Dois artigos publicados recentemente procuram debater, a partir de ângulos diferenciados, uma contradição essencial da política brasileira na última década: a ascensão do conservadorismo e a persistência de uma pauta neoliberal durante um período em que, graças a vitória em três eleições presidenciais sucessivas, verifica-se a hegemonia de uma aliança dita progressista, capitaneada pelo PT.
Ambos os textos analisam, em maior ou menor grau, a postura e o papel da militância nesse processo e fornecem subsídios para uma reflexão mais aprofundada do tema, objetivo deste post.
O aumento de um sentimento de frustração entre a esquerda e da impressão de que os governos petistas estariam cada vez mais conservadores tornou-se ainda mais evidente nas últimas semanas, como se pode facilmente observar nos fóruns públicos e nas redes sociais.
Segundo essas fontes, tal conservadorismo se manifestaria na promoção de um novo ciclo de privatizações - desta feita com o agravante de utilizar o marco regulatório do governo FHC, ao invés do de Lula -, na recusa em regularizar a mídia, nos baixíssimos níveis de assentamento de terras contrapostos às regalias concedidas ao agronegócio, no desmonte da Funai e no genocídio indígena, na primazia dos pactos com o poder religioso em relação à pauta comportamental, entre outros itens.
Em São Paulo, principal vitrine do petismo no âmbito municipal, a reação truculenta de Haddad à greve dos professores estaria ajudando a disseminar a impressão de que não só o conservadorismo se impõe, mas, pior, que o petismo, que deveria combatê-lo, o reforça.
Genealogia do pragmatismo
"… E quando finalmente a esquerda chegou ao governo havia perdido a batalha das ideias."
No primeiro dos dois textos acima citados, "As esquerdas e a pauta conservadora", Roberto Amaral parte desta citação do historiador Perry Anderson - referente à França atual mas apropriadíssima para o caso brasileiro - para questionar porque, segundo o colunista, mesmo após mais de uma década de governo petista, "e apesar do agravante constituído pela tragédia europeia, é a visão neoliberal, reiteradamente desmentida pela realidade, que domina o debate, o noticiário e até mesmo ações de governo".
O articulista perfaz uma meticulosa revisão histórica das causas do fenômeno, culpando os militares e a forma como foi feita a transição à democracia, os partidos de esquerda que "fogem do debate ideológico, ensarilham suas teses, saem de campo, tudo em nome da conciliação" e, marcadamente, a mídia oligarquizada e dominada pelo ideário neoliberal.
Talvez por escrúpulos decorrentes do fato de ter sido ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004, deixa de examinar de forma apropriada o lulismo, item prioritário em um estudo sobre a supremacia do pragmatismo ante o ideológico na política brasileira, em relação a qual oferece um diagnóstico sombrio:
"Silentes, acovardadas nossas esquerdas permitem que a direita, sucessivamente derrotada nas urnas, estabeleça a pauta nacional, e nela nos enredamos: ‘mensalão’, redução da menoridade penal, violência, fracasso da política, fracasso dos políticos... o eufemismo de ‘fracasso da democracia’."
Militantes em disputa
Já Matheus Machado, em um texto tão polêmico quanto pertinente, (publicado ontem neste site) resume com propriedade o atual dilema entre conservadorismo e necessidade de avanços progressistas, e o papel da militância em tal quadro:
"Desde que o PT chegou à presidência escuto de meus amigos governistas que é 'um governo em disputa'. A tese era que a política de coalizão abrigaria forças muito diversas e que cabia disputar internamente e tomar cuidado com as críticas para não enfraquecê-lo. O resultado prático foi que a crítica e aguerrida militância petista acabou se abstendo das manifestações de rua e se dedicando cada vez mais a simplesmente justificar o governo."
"Mesmo agora, depois de dez anos no poder e com aprovação popular em torno de 70%, ainda vejo petistas mais preocupados em justificar publicamente os descalabros do que em criticar o abandono de causas históricas do Partido dos Trabalhadores, como a Previdência, os Direitos Humanos ou as bandeiras dos povos da floresta. Enquanto isso os militantes das outras forças da esfera federal, como a bancada fundamentalista, fincavam os pés, iam para as ruas e lançavam grandes campanhas para empurrar para a direita o centro do governo. A impressão que dá é que se o governo federal estava realmente em disputa, os antigos militantes petistas perderam por W.O."
Lógica binária
Há fatores que potencialmente agravaram o conformismo do petismo e de seus apoiadores, a começar da própria conjuntura político-partidária do país nas últimas duas décadas, fortemente polarizada entre PT e PSDB, o que reforça uma mentalidade do tipo "nós contra eles", binária e maniqueísta.
Assim, a necessária luta interna por uma agenda mais progressista para a administração federal tendeu a ser negligenciada, substituída, como menciona Matheus, por um discurso que apregoa a defesa das plataformas da aliança capitaneada por PT e PMDB, sob o alegado risco de municiar o adversário tucano.
Tal distorção está no centro de um processo no qual, em nome de uma discutível hegemonia partidária – desmentida, na prática, a cada votação no parlamento, verdadeiras operações de guerra -, boa parte da base petista omite-se ante a cessão não só às demandas dos demais membros da aliança, mas ao exercício público da militância na defesa de suas posições no interior da coligação.
O resultado prático de tal dinâmica tem sido o abandono de bandeiras históricas do PT e o conservadorismo crescente que tem caracterizado o governo Dilma Rousseff.
Ainda no bojo dessa dicotomia PT-PSDB, um dos expedientes recorrentes dos analistas simpáticos ao atual governo tem sido compará-lo, de forma reiterada, ao de FHC, mas não ao de Lula, seu antecessor direto e que lhe entregou um país em muito melhores condições do que ele recebera do cacique tucano.
O fato de tal comparação fazer todo o sentido no âmbito da disputa presidencial que ora se delineia não anula o fato de que, contraposto ao de Lula, o governo Dilma apresenta, em diversas áreas, indiscutíveis retrocessos.
O fator internet
Como mencionado em post recente, há tempos pesquisas vêm demonstrando que a web 2.0, com suas possibilidades interativas que têm nas redes sociais sua expressão mais visível, estimula a formação de grupos virtuais com forte identificação ideológica.
Em decorrência de tal dinâmica, nas "igrejinhas" que de tal processo decorrem, a discordância e o dissenso, quando não negligenciados ou sequer levados em conta, tendem a ser punidos com a restrição ou bloqueio do contato de quem se coloca contra o senso comum dominante no grupo virtual.
Transplantado para a seara política, esse fenômeno estaria a estimular a formação de comunidades virtuais em que prevaleceria, para cada participante, uma tendência a constituir grupos interativos marcados pela identificação com determinadas linhas, programas, ideologias, partido ou políticos, em detrimentos de outros.
Desnecessário apontar que tal modelo tende a reforçar a já citada dicotomia "nós x eles", com o agravante de desestimular o conhecimento das argumentações, táticas e planos de um e de outro bloco contendor.
O alerta de Lênin sobre a necessidade prioritária de se conhecer o que pensa e trama o adversário como forma de adivinhar lhe os passos têm sido irresponsavelmente negligenciado.
Revendo o conceito de "PIG"
O embate político, naturalmente, não se dá exclusivamente através das redes digitais, embora venha sendo de forma crescente por estas influenciado.
Para além da dinâmica acima referida e do binarismo PT-PSDB, outro fator a agravar o imobilismo da militância petista advém do hábito, ora disseminado, de desdenhar a priori as críticas às gestões petistas, descartando-as como maquinações de uma mídia corporativa cuja ação a qualificaria como "PIG" (Partido da Imprensa Golpista).
Qualquer observador criterioso da cena midiática brasileira sabe que esta é, em larga medida, a expressão de uma plutocracia associada ao grande capital e ao mercado financeiro - e, assim, infesa ao que seja reivindicação social e contrária ao programa dos partido ditos progressistas - e que as críticas a ela dirigidas, em larga medida, se justificam.
Nos últimos quatro anos, boa parte do material publicado por este blog dedica-se justamente a examinar seus descalabros e denunciá-los.
Ademais, como mencionado em um post anterior, mostra-se cada vez mais questionável a premissa segundo a qual o tal de "PIG" tenderia a se colocar invariavelmente contra os governos petistas.
O silêncio quanto à truculência dos governos Dima e Haddad ante greves e o apoio entusiasmado às privatizações são sinais claros de que, quando a ideologia neoliberal que orienta a mídia corporativa e as medidas tomadas pelo governo petista se harmonizam, não há relação de oposição entre eles – pelo contrário.
Alguns analistas, como o jornalista e blogueiro Luis Carlos Azenha, vão mais longe e apontam uma identidade de interesses entre a mídia corporativa e o modelo orientador da estratégia desenvolvimentista ora priorizada por Dilma.
O fato de boa parte da militância se recusar a enxergar tais nuances, substituindo o seu papel de força reivindicatória interna pela defesa incondicional do governo e pela adoção do maniqueísmo segundo o qual o "PIG" é sempre a encarnação do mal, a leva, na atual situação, a situações contraditórias, que põem a própria sustentabilidade de sua posição em xeque: no leilão do petróleo, por exemplo, sua tentativa de justificar o retorno à privatização em moldes fernandistas encontrou eco na opinião de jornalistas os quais despreza e odeia, pela negatividade e marcação cerrada que alegadamente fazem ao governo – casos de Miriam Leitão, Carlos Sardenberg e William Waack, exultantes com a medida.
Ora, o fato de tal medida ser saudada por tais arautos do mercado e do neoliberalismo não deveria levar a militância a uma reavaliação reflexiva, que superasse o mero automatismo com que defende o governo Dilma?
Críticas contraproducentes
Além disso, a esta altura da peleja, parecem questionáveis os efeitos do imenso investimento da militância em desqualificar a mídia, não sendo despropositado apontar que ele resulta contraproducente em ao menos três aspectos, além dos já apontados:
Mantém a esquerda e seus canais comunicacionais em uma posição meramente reativa e a reboque da mídia corporativa, que acaba por pautar-lhes;
Agrava a sensação de saturação da crítica de mídia como instrumento político, saturação esta que o mencionado Azenha já diagnosticara por ocasião do primeiro encontro entre blogueiros progressistas, em 2010;
Demonstrar, através da crítica de mídia e sobretudo para a própria militância, que grupos comunicacionais reconhecidamente conservadores e antipetistas são conservadores e antipetistas toma, dia após dia, um tempo e um investimento em trabalho enormes, os quais poderiam ser melhor gastos na organização de formas de pressão pública para que o governo que a militância apoia aprovasse um marco regulatório para as comunicações, bandeira histórica da esquerda e do partido e item de primeira necessidade para o aprimoramento da democracia no Brasil.
A Justiça como inimiga
Um terceiro fator a desviar a militância petista de sua prioritária missão de lutar contra o conservadorismo e pelas bandeiras históricas do partido advém dos ódios decorrentes da relações entre o partido e a Justiça – particularmente o STF -, no bojo do julgamento da AP 470, vulgo "mensalão".
Não se questiona, aqui, o mérito da revolta petista contra as decisões do tribunal – cujos métodos questionáveis foram repetidas vezes por este blog criticados. E sim a constatação de que muita energia está sendo dispersada num combate diário, feito de denúncias - fundadas ou não -, tentativas de desqualificação, e acompanhamento à lupa dos mínimos gestos dos ministros do Supremo e do Procurador-Geral, sendo que é pouquíssimo provável que tal mobilização resulte em algo efetivamente proveitoso, que não o exorcismo de eventualmente justificáveis ódios e ressentimentos pessoais.
O momento é grave e apresenta desafios concretos: o tamanho e a importância da luta política contra o conservadorismo no Brasil, neste momento, pedem ações mais articuladas e objetivamente efetivas.
Se a militância petista investisse na luta política interna metade da energia que diariamente gasta para desqualificar Joaquim Barbosa certamente o governo Dilma não seria reiteradas vezes tachado de conservador.
Estratégia de vitimação
A todos esses fatores, acrescenta-se um temor adicional: o de que tanto o hábito de culpar o "PIG" quanto o de acusar o Judiciário – em ambos os casos antevendo intenções golpistas - esteja levando parte considerável do petismo não só à intransigência ante críticas, mas ao hábito de se vitimar, considerando, ante críticas e ponderações, que o partido é uma vítima frequente de injustiças.
"Incrível como tudo é culpa do PT" é uma resposta ouvida com frequência entre a militância e nas redes sociais, à mínima ponderação ou crítica que se faça; resposta esta que evidencia, a um tempo, o processo de vitimação acima referido e a recusa em reconhecer que um partido no poder - e há mais de 10 anos - está naturalmente sujeito a muitas críticas e inquirições, ainda mais se ora promove um retrocesso conservador em franca contradição com sua plataforma eleitoral, tão crítica às privatizações e ao capitalismo predatório.
Da necessidade de mobilização
A reação de muitos petistas ao conservadorismo atroz do governo Dilma e a atitudes francamente contrárias ao espírito democrático petista tomadas por alguns de seus governadores e prefeitos mostra que caráter retrógrado que acometeu a atual administração federal não é um fenômeno isolado. Ele (se) reflete, cada vez mais, (n)o comportamento de uma militância que se mostra disposta a avalizar a renúncia a princípios éticos e programáticos em troca da manutenção do poder – ainda que este poder, em larga medida, esteja servindo para repor uma pauta conservadora e privatista, a qual difere tanto das bandeiras históricas do PT quanto dos compromissos eleitorais da candidata Dilma.
A militância do PT é uma força social representativa, que teria muito a contribuir para o aprimoramento da democracia brasileira caso saísse de sua posição majoritariamente conformista de hoje, em que, malgrado as raras e louváveis exceções que confirmam a regra, prevalece a defesa acéfala de toda e qualquer medida governamental.
Com a ajuda dos simpatizantes e dos demais setores de esquerda que ainda se dispõem a dar um voto de confiança ao PT, a militância poderia, vindo a público, colaborar de forma decisiva no sentido de corrigir a rota excessivamente conservadora que o governo Dilma assumiu desde seu início e radicalizou ainda mais nas últimas semanas.
Mas trata-se de uma missão cuja urgência é máxima, determinada por novas privatizações no horizonte - altamente ameaçadoras à autodeterminação nacional que Dilma jurou defender - e pela necessidade de impor uma marca esquerdista efetiva à aliança liderada pelo PT, resgatando os valores históricos do petismo e evitando, assim, a fuga de um eleitorado mais à esquerda que não suporta mais o retrocesso e o descompromisso com a agenda de campanha do atual governo federal.
Tal mobilização vai acontecer?
Muito provavelmente não, pois o pragmatismo eleitoral tende a atropelar escrúpulos e consciências, mas o recado está dado.
Fonte:
http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/2013/05/o-papel-da-militancia.html
Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.