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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O desastroso papado de Bento XVI

15/02/2013 - original em The New Yorker
por John Cassidy (*) em 12/02/2013
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu para a Redecastorphoto

Poupem-me de mais cobertura reverencial sobre o Papa Bento XVI e sua decisão de entregar o cargo.

No plano pessoal, desejo-lhe felicidades. Aos 85 anos e cada dia mais fraco, sem dúvida merece descansar.

Mas no que tenha a ver com o que fez, verdade seja dita, já vai tarde.

Seu longo mandato no Vaticano, que incluiu mais de 20 anos no cargo de defensor da teologia da Igreja Católica antes de ser escolhido Papa em 2005, foi, pode-se dizer, quase completo desastre.

Ao se opor declaradamente ao mundo moderno em geral, ao meter os pés pelas mãos ao não responder adequada e decentemente a um dos mais horrendos escândalos dentro da Igreja desde a Reforma, o Vaticano de Bento XVI pôs em risco o futuro da Igreja e alienou quantidades incontáveis de católicos em todo o mundo, que foram formadas pelos preceitos da Igreja.

Não que faça alguma diferença, mas podem incluir meu nome nessa triste lista.

Em Leeds, West Yorkshire, as freiras da Escola Primária Sagrado Coração ensinavam o Novo Testamento, a mim e aos meus colegas de classe, usando livros bem finos, de capa dura, encadernados em azul escuro.

Cada um de nós recebia quatro livrinhos: “As boas novas, segundo Lucas”, “As boas novas, segundo Mateus”, “As boas novas, segundo Marcos” e “As boas novas, segundo João”. Dos quatro evangelistas, Lucas era, de longe, o mais gasto, porque ali se liam muitas parábolas de Jesus; e também Mateus, onde se lia o Sermão da Montanha:

Abençoados os pobres de espírito: deles é o reino dos céus. Abençoados os que sofrem, porque serão consolados. Abençoados os que nada têm, porque herdarão a terra”.

Vivíamos o início dos anos 1970, era de esperança e otimismo para muitos católicos. Acompanhando de perto o que pregava o Segundo Concílio Vaticano convocado pelo Papa João XXIII (foto) em 1959, a Igreja dedicava-se empenhadamente a modernizar algumas de suas doutrinas e práticas.

As missas, por muitos séculos limitadas ao latim, podiam então ser celebradas em outros idiomas. Os sacerdotes, que tradicionalmente davam as costas aos fiéis, postados de frente para o altar, foram instruídos para olhar no rosto de seus congregados e convidá-los a participar.

Em vez de focar antigos dogmas e ritualizações, via-se um retorno aos verdadeiros ensinamentos de Jesus, interpretados então por vias cada vez mais igualitárias e libertárias, como nos versos de um canto popular que cantávamos na igreja, do qual ainda lembro alguns versos:

"Ele enviou-me para trazer Boas Novas aos pobres. Para dizer aos encarcerados, que estão livres
Para dizer aos cegos, que podem ver,
Para libertar todos os decaídos e humilhados."

Naquele tempo, eu não sabia, mas a preocupação da igreja com questões pão-e-manteiga vinha de cima. Em 1967, o Papa Paulo VI (foto), sucessor de João XXIII, lançara “Populorum Progressio”, encíclica sobre “o desenvolvimento dos povos”, segundo a qual a economia devia cuidar das carências dos muitos, não só dos interesses de uns poucos.

Ao atualizar os ensinamentos da Igreja, para que olhasse a miséria e a desigualdade que se alastravam, o Pontífice reconheceu o direito a salário justo, à segurança do emprego e a condições decentes de trabalho. Reconheceu até o direito do empregado a engajar-se em seu sindicato.

Nem todos partilhavam a visão do Catolicismo como força de promoção urgente da justiça social, embora muitos, na América do Sul e em outras áreas em desenvolvimento do mundo a tenham abraçado com paixão. Em vários locais, passou a ser conhecida como “teologia da libertação” – expressão cunhada pelo padre peruano Gustavo Gutierrez (foto abaixo).

Muitos outros sacerdotes, entre os quais o venerável Canon Flynn, pastor da igreja da minha cidade, Nossa Senhora de Lurdes, pouca atenção deram às novidades. Bastava-lhes celebrar os sacramentos como sempre haviam feito, dizer missa diariamente, distribuir a extrema unção aos paroquianos moribundos e receitar “três Padre-Nosso e três Ave-Maria” aos penitentes, entre os quais eu, menino, que chegavam para confessar os pecados. Mas a energia e o futuro da igreja pareciam concentrar-se entre os modernizadores.

Isso, apesar de o Papa Paulo VI ter reafirmado também muitos das tradicionais restrições do Vaticano no campo social, como contra o sexo fora do casamento, a homossexualidade e a favor do celibato forçado para sacerdotes e freiras.

Paulo VI não foi papa revolucionário.
Nada queria alterar das duras ordenações que vários papas romanos haviam imposto à cristandade durante a Idade Média. Mas no que tivesse a ver com paz e justiça social, com a tolerância com outras religiões nas suas muitas viagens – era chamado “o Papa Peregrino” – e em algumas reformas que introduziu no Vaticano, como o fim da coroa papal e a proibição de que cardeais com mais de 80 anos votassem nas eleições papais, Paulo VI dava sinais claros de algum interesse em reconciliar a Igreja e a realidade moderna.

Com a chegada do Papa João Paulo II, em 1979, tudo isso começou a mudar.
Em vários sentidos, Karol Wojtyla fora homem admirável: participou da resistência polonesa contra os nazistas; fez ativa oposição às guerras e ao militarismo (em 2003, criticou a invasão do Iraque); apoiava o cancelamento das dívidas do mundo em desenvolvimento; e foi líder massivamente carismático. Mas em termos teológicos e práticos, foi terrível retrocesso.

Com o cardeal Joseph Ratzinger, o futuro Bento XVI, ao seu lado, como principal teólogo do Vaticano, Wojtyla dedicou-se a desfazer boa parte do projeto de modernização dos 20 anos anteriores.

Criou leis em que condenava ampla e enfaticamente o aborto, o controle da natalidade e a homossexualidade. Cancelou alguns movimentos de relaxamento na obrigatoriedade do celibato para padres e na autorização de ordenação de mulheres. Criticou a teoria da libertação e cercou-se de ultraconservadores, como Ratzinger. Questionar os ensinamentos tradicionais, ainda que em tom respeitoso e humilde, passou a ser marca de fim potencial de qualquer carreira dentro da hierarquia da Igreja.

Depois da morte de João Paulo, em 2005, Ratzinger assumiu;
e a contraofensiva conservadora prosseguiu. De fato, intensificou-se. O Vaticano levantou a proibição à missa em latim e chamou de volta à Igreja alguns membros excomungados da Sociedade do Santo Pio X, grupo ultraconservador dedicado a fazer reverter o Segundo Concílio Vaticano.

Criticando a “cultura do relativismo” nas sociedades modernas e “a liberdade
anárquica que se faz passar falsamente por liberdade”, Bento XVI deixou claro que via, como sua missão fundamental, não ampliar e difundir a Igreja Católica e, sim, purificá-la; por “purificar a Igreja” ele jamais significou ter de enfrentar o escândalo da pedofilia na Igreja. Referia-se a podar os galhos não alinhados e trazer a Igreja de volta à trilha que, para ele, seria a limpa e certa.

Se esse processo alienasse alguns membros atuais e passados da fé, que assim fosse. Bento XVI disse várias vezes que a Igreja bem poderia tornar-se mais saudável, se fosse menor.

Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, Hans Küng (foto), teólogo suíço dissidente, que conheceu Bento XVI quando ambos eram jovens padres na Alemanha, propôs interessante comparação entre Bento XVI e Vladimir Putin, mostrando que os dois herdaram importantes reformas políticas que decidiram reverter a qualquer custo. Putin e Bento, ambos “instalaram associados deles em posições chaves e marginalizaram os que lhes interessava marginalizar” – disse Küng. E acrescentou:

"Podem-se traçar outros paralelos: o enfraquecimento do Parlamento russo e do Sínodo de Bispos do Vaticano; a degradação dos governadores das províncias russas e dos bispos católicos, que os converteu em meros executores de ordens; uma “nomenclatura” conformista; e obcecada resistência a qualquer reforma real. (...) Sob o papa alemão, uma “claque” de gente que segue o chefe, sem qualquer simpatia por qualquer tipo de reforma, foi convocada para integrar-se ao poder. São parcialmente responsáveis pela estagnação que se abateu sobre o sistema da Igreja."

Viu-se em ação essa estratégia de dispor as carroças em círculo fechado e desafiar o mundo, com resultado terrível, na reação da Igreja ao escândalo das crianças vítimas de abusos por padres católicos.

Como funcionário do Vaticano ao qual o Papa João Paulo II ordenou que enfrentasse aquela crise, Ratzinger teve contato direto e amplíssimo com imensa quantidade de provas de que o abuso sexual de crianças era prática disseminada e tolerada por autoridades da Igreja.

Mas só vários anos depois, quando ainda mais crimes haviam sido cometidos, o já então Papa Bento XVI pediu desculpas pelos atos dos pedófilos, adotou política de tolerância zero e até se reuniu com algumas das vítimas. Mas, mesmo então – dizem alguns críticos – o Papa e vários de seus colegas no Vaticano recusaram-se a investigar, descobrir e punir os padres pedófilos.

O currículo de omissão desse Papa é terrível” – disse ao jornal The Guardian, David Clohessy, diretor executivo da Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (12 mil membros).

“Ele conhece mais e mais detalhadamente sobre abusos sexuais cometidos por padres e acobertados pela Igreja que qualquer outra pessoa dentro da Igreja. E fez absolutamente nada para proteger as crianças”.

Da Irlanda, onde prosseguem as investigações de abuso sexual em larga escala em orfanatos e escolas administradas pela Igreja Católica, John Kelly (foto), um dos fundadores da rede irlandesa de Sobreviventes de Abusados por Padres, diz:

“Lamento dizer, mas o Papa Bento XVI não deixará saudades. Mas, com ele ou sem ele, o Vaticano continuará a impedir que se investiguem os crimes de abuso sexual de crianças cometidos durante seu papado. Na nossa avaliação, o Papa prometeu e quebrou a própria promessa”.

Como resultado dos escândalos sexuais não investigados e da tola tentativa em que o Vaticano se compromete de fazer andar para trás o relógio da história, a Igreja de Bento XVI caminha de mal, a pior, fazendo papel cada dia mais lamentável.

Em todo o mundo desenvolvido, o número de fiéis nas igrejas definha sem parar e faltam interessados em trabalhar como padres. Na Irlanda, e até na Alemanha de Bento XVI, os jovens desertam aos magotes da igreja. E até em países em desenvolvimento, como o Brasil, a Igreja Católica perde espaço e fiéis para outros credos. Claro, os católicos ainda são mais de um bilhão, há ainda pontos de luz e indivíduos que nos inspiram.

Em visita à minha família em Leeds, há algum tempo, soube de um jovem padre polonês, cheio de energia e entusiasmo, que assumiu a direção da igreja da minha infância e tenta salvá-la da demolição. Para fazer algum bem efetivo e levantar algum dinheiro, ele planejava converter a igreja em casa de internamento provisório para jovens delinquentes.

Ouvi-o celebrar missa aos gritos, como possuído – o que me fez lembrar com saudade do Catolicismo do Sermão da Montanha e de São Francisco de Assis, que as freiras tanto fizeram para meter na minha cabeça, há décadas.

Mas em Roma, os teólogos conservadores ainda comandam o show e, infelizmente, o mais provável é que as coisas continuem como estão.

Durante seu papado – disse Küng – Bento XVI ordenou tantos cardeais conservadores e reacionários, que dificilmente haverá entre eles, hoje, alguém com competência e sabedoria para salvar a Igreja Católica das muitas facetas da crise em que está naufragando”.

(*) John Cassidy é articulista do The New Yorker desde 1995. Autor de inúmeros artigos para a revista abrangendo desde temas de personalidades como Alan Greenspan e Ben Bernacke até assuntos como a indústria iraquiana do petróleo e economia de Hollywwod. Agita o blog Rational Irrationality. no website The New Yorker. Seu último livro, How Markets Fail: The Logic of Economic Calamities, foi publicado em novembro de 2009, por Farrar, Straus and Giroux. Cassidy também contribui com o The New York Review of Books e é comentarista financeiro da BBC. Trabalhou como jornalista em ambos os lados do Atlântico antes de vir para o The New Yorker. Durante 3 anos (desde 1986) foi chefe do escritório do Sunday Times, de Londres em New York e editor de negócios entre 1991 e 1993. Entre 1993 e 1995 foi Business Editor do jornal New York Post.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/02/o-desastroso-papado-de-bento-xvi.html

Não deixe de ler:
- Entre a cruz e a Opus Dei, a vingança - Pedro Porfírio

- Que não seja um Bento XVII - Leonardo Boff

- Banco do Vaticano é o principal acionista da maior indústria de armamentos do mundo, via 'Atrevete a pensar', texto publicado em 10/7/2012. Ver aqui em português, publicado em 14/02/2013 no blog Limpinho & Cheiroso

- Novo 'papado' para o capitalismo - Saul Leblon

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Entre a cruz e a Opus Dei, a vingança

14/02/2013 - Pedro Porfírio em seu blog

O futuro ex-papa deu seu recado quarta-feira de cinzas e deixou seus cardeais com as barbas de molho.

"O mundo moderno se apresenta aos nossos olhos não como uma casa a construir, mas como um organismo a ser curado. Ora, se um edifício pode ser reparado do exterior, um organismo só pode ser curado a partir de dentro". (Padre Louis-Joseph Lebret (1897 -1966), autor do livro Suicídio ou Sobrevivência do Ocidente, que teve grande participação no Concílio Vaticano II)

Renunciou para fazer o sucessor.
Nada mais despropositado, porém nada mais verdadeiro. Nada mais sintonizado com a personalidade de Joseph Alois Ratzinger, adestrado na Juventude Hitlerista em sua fogosa juventude.

Cardeal Carlo Maria Viganò virou o jogo
Foi o que restou ao irascível papa germânico, ao se sentir totalmente isolado desde que entrou em choque com sua principal aliada e "monitora", a obscurantista Opus Dei, como consequência do afastamento do representante do Banco Santander em Roma desde 1992, Ettore Gotti Tedeschi, da direção do Instituto para Obras de Religião - o Banco do Vaticano, em meio a uma saraivada de denúncias protagonizadas pelo cardeal Carlo Maria Viganò, ex-secretário geral do Vaticano, aos mil documentos contrabandeados pelo mordomo Paolo Gabriele e a um fogo cruzado incontrolável de mexericos.

Tedeschi é um "supernumerário" da poderosa organização de 90 mil seguidores fanáticos, cognominada como "o Exército do Papa", numa reportagem de novembro de 2008 da revista Superinteressante.

Fundada em 1928 pelo confessor do ditador Francisco Franco, o espanhol Josemaría Escrivá Balaguer (foto), foi  reconhecida em 1982 por João Paulo II, como uma "Prelazia Pessoal" (a única na estrutura da igreja romana).

Seu criador morreu em 1975 e foi declarado santo em 2002 pelo mesmo pontífice, num rito sumário.

A Opus Dei aparece como principal apoiadora nas escolhas dos dois últimos papas, como sabe muito bem qualquer repórter soterista do Vaticano.

Numa "vingança perfeita", nas palavras de um diplomata credenciado na "Santa Sé", segundo relato de Paolo Ordaz, do El País, o ex-futuro Papa pegou pesado na missa da quarta-feira de cinzas ao apontar a "hipocrisia religiosa" e a luta interna pelo poder, como causas da crise que o levou a um gesto extremo, que desautoriza o dogma da infalibilidade de um sumo pontífice.

Ou uma jogada de mestre
"Em uma cafeteria de Borgo Pio, o bairro de ruas estreitas (foto) contíguo ao Vaticano, um diplomata com credenciais junto à Santa Sé chamava a atenção para um aspecto:

 - "Praticamente todos os jornais, cada qual com seu estilo, desenham o Papa como uma vítima das lutas de poder no Vaticano.

Há alguns meses, quando abordavam o tema da incúria na Igreja, colocavam Ratzinger como culpado. É feio usar essa palavra referindo-se a um Papa, mas pode-se dizer que, com a renúncia, Ratzinger executa a vingança perfeita" - disse o diplomata na reportagem de Paolo Ordaz.

Uma jogada de mestre, segundo John Allen Jr., um "vaticanista", citado por Jerome Taylor, do jornal Independent de Londres. De fato, dos 120 cardeais com direito a voto na sua sucessão, Bento XVI nomeou 67.

Os outros 53 foram nomeados por João Paulo II, quando o então cardeal Joseph Alois Ratzinger já dava as cartas, como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, a versão moderna do Tribunal da Inquisição.

"Pelo menos, alguns cardeais podem se sentir fortemente pressionados a não fazer algo que possa ser percebido como um repúdio ao papado de Bento XVI, que possa causar consternação a ele. Como isso poderá ser traduzido em termos de votos no conclave não está de todo claro, mas é uma peça do quebra-cabeça que vale a pena considerar" - escreveu John Allen Jr. terça-feira, dia 12, no National Catholic Reporter.

Cobra engolindo cobra
Ao longo de seus 2 mil anos, o centro do poder da Igreja Católica sempre foi um ninho de cobras, com os maiores índices de intriga por metro quadrado do mundo.

Esse clima levou o então cardeal emérito de Milão, dom Carlo Maria Martini (foto), a afirmar em junho de 2008, que "a inveja é um vício clerical por excelência".

Segundo o cardeal italiano, que morreu em agosto de 2012 aos 85 anos, muitos dentro da Igreja estão "consumidos" pela inveja. Alguns não aceitam nomeações de outros para bispo, e este não é o único pecado capital entre os homens da Igreja.

Dom Carlo Maria Martini denunciou também o vício da vaidade, salientando que na Igreja "é muito grande. Continuamente,a Igreja se desnuda e se reveste de ornamentos inúteis, numa tendência à ostentação, ao alarde”.

O cardeal citou ainda o "carreirismo" na Igreja, e especialmente, na Cúria Romana, onde “cada um quer ser mais que o outro”.

Qualquer clérigo ou seminarista sabe que a intriga é o caminho das pedras no reino de São Pedro. E sabe mais ainda que tanto Karol Józef Wojtyła como Joseph Alois Ratzinger só se tornaram papas no estuário dos conflitos dentro da Corte (cúria em latim) vaticana, devidamente manipulados por influentes cardais "numerários" ou aliados da Opus Dei.

Conflitos tão radicalizados que quebraram uma hegemonia secular dos italianos, afetados pelo envenenamento do Papa João Paulo I (foto), em 28 de setembro de 1978, exatamente um mês depois de empossado sem pompas, por sua decisão, depois de  uma das mais rápidas votações (4 rodadas) do Colégio Cardinalício.

Veja a respeito meu artigo de 12 de fevereiro.

O dia que o Papa chutou o pau da barraca
Joseph Alois Ratzinger decidiu chutar o pau da barraca por que a coletânea de documentos contrabandeados pelo mordomo Paolo Gabriele (assinalado na foto), perdoado por ele e já em confortável prisão domiciliar desde dezembro passado, junto com os dossiês do arcebispo Carlo Maria Viganò, e anotações do cardeal Angelo Sodano (foto abaixo), ressentido ex-secretário de Estado, deixam meio Vaticano em maus lençóis, inclusive seu secretário pessoal, monsenhor Georg Gänswein.

Tido e havido como um teólogo de mão cheia, Bento XVI sabe do embaraço que vai causar à Igreja Católica Apostólica Romana como um todo. Até mesmo como será chamado ainda não se sabe, porque os prelados não imaginavam que possa existir um ex-Papa em vida.

Assim como ninguém pode garantir que ele optará pela auto-reclusão no belo mosteiro dentro da Cidade do Vaticano, a sé católica, com menos de 900 metros quadrados e 800 habitantes, quase todos do clero.

Isto é, enquanto estiver vivo e mantiver sua fama de maior autoridade na doutrina da fé, será sempre uma sombra inevitável, como foi aqui dom Eugênio Salles, quando se tornou cardeal emérito e continuou escrevendo semanalmente para os jornais, além de perturbar diretamente a gestão do seu sucessor, dom Eusébio Oscar Scheid.

Em busca de um Papa autônomo
Essa hipótese é que reforça a possibilidade do retorno de um italiano de fora da Cúria à chefia da Igreja, embora cresça nas bolsas de apostas (!) o nome do ganense Peter Turkson (foto), de 64 anos, presidente do Conselho Pontifício para Justiça e Paz e fiel escudeiro de Bento XVI, e que se considera o Barack Obama da Igreja Católica.

Como não entro nessa pilha de bolsas de apostas, e como tenho certeza que a Igreja Católica jamais será a mesma depois da renúncia de um Papa em 600 anos, ainda acredito na escolha de um cardeal em condições de comandar sem precisar pedir a benção ao colega demissionário.

E o cardeal Angelo Scola (foto), amigo de Bento XVI, mas festejado por sua visão arejada em relação a outras religiões, é o mais blindado para assumir o vespeiro onde interesses escusos, vaidades, intrigas e ambições substituíram há séculos o poder do Espírito Santo.

Não ser a mesma não quer dizer que seja melhor ou pior, pois cada um tem sua avaliação do que é bom para uma Igreja que perde fiéis enquanto conserva o fausto de uma época que não existe mais como compensação existencial para o poder sustentado em fontes feudais, como o laudêmio (imposto) que lhe é devido em muitos países do mundo, inclusive o Brasil.

Mesmo exposta, Opus Dei influencia
A hierarquia da Igreja está dominada pelo ultra-conservadorismo da Opus Dei, que contou até com o ex-premier Sílvio Berlusconi em seu projeto de hegemonia do Vaticano, mas cujo objetivo estratégico maior era desmontar a Europa socialista. Muitos dos novos cardiais foram apadrinhadas pelos seguidores de São Josemaria Escrivá.

Como demonstração de gratidão pelo apoio recebido na sua eleição, após 8 votações, João Paulo II (foto) concedeu a esse grupo, em 1982, o status  de "Prelazia Pessoal", que a subordina diretamente ao Papa e fez do seu fundador santo, num dos processos mais sumários de canonização, só superado pelo de madre Tereza de Calcutá.

Bento XVI não fez por menos: em 2005 mandou instalar uma estátua de 5 metros do agora São Josemaria Esquivá na fachada exterior da Basílica de São Pedro, que benzeu pessoalmente numa festiva solenidade religiosa em 14 de setembro daquele ano.

Além disso, chamou dois influentes cardeais do Opus Dei para seu primeiro escalão: Julián Herranz, presidente emérito do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, e o secretário da Pontifícia Congregação para os Bispos, arcebispo Francesco Monterisi.

Há quem garanta que o cardeal Tarcísio Bertone (foto, ao lado de Bento XVI), principal homem na cúpula vaticana e pivô da crise que levou à inesperada renúncia, também tenha o respaldo da organização, razão pela qual Bento XVI não conseguiu livrar-se de sua incômoda companhia.

À distância, mas não tão distante assim, Bento XVI trocava figurinhas com o arcebispo de Madri e principal clérigo da organização, cardeal Antonio Maria Rouco Varela, também presidente da Conferência Episcopal Espanhola.

A entrega do Banco do Vaticano ao "supernumerário" Ettore Gotti Tedeschi (foto), no final de 2009, foi a gota d'água que cindiu de vez o poder na Igreja, cujas riquezas são incomensuráveis.

Descartado então da Secretaria Geral do Vaticano, sob a acusação de malbaratar recursos da Igreja, fazendo pagamentos indevidos a um conjunto de empresas que trabalhavam para a cidade-estado, o arcebispo Carlo Maria Viganò ficou revoltado: durante o seu mandato, que começou em julho de 2009, implementou reformas e cortes que levaram o Vaticano de um déficit de oito milhões de euros em 2009 para lucros de 34,4 milhões de euros em 2010.

A Opus Dei não vai ficar chupando dedo.
Mas a brusca renúncia de Bento XVI também a deixou tão exposta como na roubalheira no Banco do Vaticano, documentada pelo arcebispo Carlo Maria Viganò.

Neste momento, a "Santa Sé" está vulnerável, sem liderança e sem destino previsível. O que até agora foi uma guerra intestina, protegida dos fiéis, não é mais segredo para ninguém.

E como o mordomo não estava sozinho no seu estrago devastador, tem ainda muita água para rolar debaixo da ponte, além do que se revelou em conta-gotas.

Decididamente, a Igreja que já superou crises e cismas mais graves no passado de pouca comunicação, vive hoje seu mais dramático dilema, numa atualidade inflada de mídias: o suicídio ou a sobrevivência.

Fonte:
http://www.blogdoporfirio.com/2013/02/entre-cruz-e-opus-dei-vinganca.html

Não deixe de ler:
- Que não seja um Bento XVII - Leonardo Boff

- Banco do Vaticano é o principal acionista da maior indústria de armamentos do mundo, via 'Atrevete a pensar', texto publicado em 10/7/2012. Ver aqui, em 14/02/2013, publicado em português no blog Limpinho & Cheiroso

- Novo 'papado' para o capitalismo - Saul Leblon

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Que não seja um Bento XVII

15/02/2013 - Que Papa esperar que não seja um Bento XVII?
- Leonardo Boff em seu blog

Dei generosamente uma entrevista à Folha de São Paulo que quase não aproveitou nada do que disse e escrevi. Então publico a entrevista inteira aqui no blog para reflexão e discussão entre os interessados pelas coisas da Igreja Católica.

As perguntas foram reordenadas por L. Boff.

*****************

1.Como o Sr. recebeu a renúncia de Bento XVI?

R/ Eu desde o principio sentia muita pena dele, pois pelo que o conhecia, especialmente em sua timidez,  imaginava o esforço que devia fazer para saudar o povo, abraçar pessoas, beijar crianças. Eu tinha certeza de  que um dia ele, aproveitaria alguma ocasião sensata, como os limites físicos de sua saúde e menor vigor mental para renunciar. Embora tenha se mostrado um Papa autoritário, não era apegado ao cargo de Papa. Eu fiquei aliviado porque a Igreja está sem liderança espiritual que suscite esperança e ânimo.

Precisamos de um outro perfil de Papa mais pastor que professor, não um homem da instituição-Igreja mas um representante de Jesus que disse: “se alguém vem a mim eu não mandarei embora” (Evangelho de João 6,37), podia ser um homoafetivo, uma prostituta, um transsexual.

2. Como é a personalidade de Bento XVI já que o Sr. privou de certa amizade com ele?

R/ Conheci Bento XVI nos meus anos de estudo na Alemanha entre 1965-1970. Ouvi muitas conferências dele mas não fui aluno dele. Ele leu minha tese doutoral: "O lugar da Igreja no mudo secularizado” e gostou muito a ponto de achar uma editora para publicá-la, um calhamaço de mais de 500 pp. Depois trabalhamos juntos na revista internacional Concilium, cujos diretores se reuniam todos os anos na semana de Pentecostes em algum lugar na Europa. Eu a editava em português. Isso entre 1975-1980.

Enquanto os outros faziam sesta eu e ele passeávamos e conversávamos temas de teologia, sobre a fé na América Latina, especialmente sobre São Boaventura e Santo Agostinho, do quais é especialista e eu até hoje os frequento a miúde.

Depois em 1984 nos encontramos num momento conflitivo: ele como meu julgador no processo do ex-Santo Ofício, movido contra meu livro "Igreja: carisma e poder” (Vozes 1981). Ai tive que sentar na cadeirinha onde Galileo Galilei e Giordano Bruno entre outros sentaram. Submeteu-me a um tempo de “silêncio obsequioso”; tive que deixar a cátedra e proibido de publicar qualquer coisa. Depois disso nunca mais nos encontramos. Como pessoa é finíssimo, tímido e extremamente inteligente.

3. Ele como Cardeal foi o seu Inquisidor depois de ter sido seu amigo: como viu esta situação?

R/Quando foi nomeado Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Inquisição) fiquei sumamente feliz. Pensava com meus botões: finalmente teremos um teólogo à frente de uma instituição com a pior fama que se possa imaginar. Quinze dias após me respondeu, agradecendo e disse: - vejo que há várias pendências suas aqui na Congregação e temos que resolvê-las logo.

É que praticamente a cada livro que publicava vinham de Roma perguntas de esclarecimento que eu demorava em responder. Nada vem de Roma sem antes ter sido enviado a Roma.

Havia aqui bispos conservadores e perseguidores de teólogos da libertação que enviavam as queixas de sua ignorância teológica a Roma a pretexto de que minha teologia poderia fazer mal aos fiéis.

Ai eu me dei  conta: ele já foi contaminado pelo bacilo romano que faz com que todos os que ai trabalham no Vaticano rapidamente encontram mil razões para serem moderados e até conservadores. Então sim fiquei mais que surpreso, verdadeiramente decepcionado.

4. Como o Sr. recebeu a punição do “silêncio obsequioso”?

R/ Após o interrogatório e a leitura de minha defesa escrita que está como adendo da nova edição de "Igreja: carisma e poder" (Record 2008) são 13 cardeais que opinam e decidem. Ratzinger é um apenas entre eles. Depois  submetem a decisão ao Papa. Creio que ele foi voto vencido porque conhecia outros livros meus de teologia, traduzidos para alemão e me havia dito que tinha gostado deles, até, uma vez, diante do Papa numa audiência em Roma fez uma referência elogiosa.

Eu recebi o “silêncio obsequioso” como um cristão ligado à Igreja o faria: calmamente o acolhi. Lembro que disse: “é melhor caminhar com a Igreja que sozinho com minha teologia”. Para mim foi relativamente fácil aceitar a imposição porque a Presidência da CNBB me havia sempre apoiado e dois Cardeais Dom Aloysio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns me acompanharam a Roma e depois participaram, numa segunda parte, do diálogo com o Cardeal Ratzinger e comigo. Ai éramos três contra um.

Colocamos algumas vezes o Card Ratzinger em certo constrangimento pois os cardeais brasileiros lhe asseguravam que as críticas contra a teologia da libertação que ele fizera num document saído recentemente eram eco dos detratores e não uma análise objetiva. E pediram um novo documento positivo; ele acolheu a ideia e realmente o fez dois anos após. E até pediram a mim e ao meu irmão teólogo Clodovis que estava em Roma que escrevêssemos um esquema e o entregássemos na Sagrada Congregação. E num dia e numa noite o fizemos e o entregamos.

5. O Sr deixou a Igreja em 1992. Guardou alguma mágoa de todo o affaire no Vaticano?

R/ Eu nunca deixei a Igreja. Deixei uma função dentro dela que é de padre. Continuei como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do pais. Quem entende a lógica de um sistema autoritário e fechado, que pouco se abre ao mundo, não cultiva o diálogo e a troca (os sistemas vivos vivem na medida em que se abrem e trocam) sabe que, se alguém, como eu, não se alinhar totalmente a tal sistema, será vigiado, controlado e eventualmente punido.

É semelhante aos regime de segurança nacional que temos conhecido na América Latina sob os regimes militares no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Dentro desta lógica o então Presidente da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Oficio, ex-Inquisição), o Cardeal J. Ratzinger condenou, silenciou, depôs de cátedra ou transferiu mais de cem teólogos.

Do Brasil fomos dois: a teóloga Ivone Gebara (foto) e eu. Em razão de entender a referida lógica, e lamentá-la, sei que eles estão condenados fazer o que fazem na maior das boas vontades.

Mas como dizia Blaise Pascal:”Nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. Só que esta boa-vontade não é boa, pois cria vítimas. Não guardo nenhuma mágoa ou ressentimento pois exerci compaixão e misericórdia por aqueles que se movem dentro daquela lógica que, a meu ver, está a quilômetros luz da prática de Jesus. Aliás é coisa do século passado, já passado. E evito voltar a isso.

6. Como o Sr. avalia o pontificado de Bento XVI? Soube gerenciar as crises internas e externas da Igreja?

R/ Bento XVI foi um eminente teólogo mas um Papa frustrado. Não tinha o carisma de direção e de animação da comunidade, como tinha João Paulo II.

Infelizmente ele será estigmatizado, de forma reducionista, como o Papa onde grassaram os pedófilos, onde os homoafetivos não tiveram reconhecimento e as mulheres foram humilhadas como nos USA negando o direito de cidadania a uma teologia feita a partir do gênero.

E também entrará na história como o Papa que censurou pesadamente a Teologia da Libertação, interpretada à luz de seus detratores, e não à luz das práticas pastorais e libertadoras de bispos, padres, teólogos, religiosos/as e leigos que fizeram uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da vida e da liberdade.

Por esta causa justa e nobre foram incompreendidos por seus irmãos de fé,  e muitos deles presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança do Estado militar. Entre eles estavam bispos como Dom Angelelli (esquerda) da Argentina e Dom Oscar Romero (direita) de El Salvador. Dom Helder foi o mártir que não mataram.

Mas a Igreja é maior que seus papas e ela continuará, entre sombras e luzes, a prestar um serviço à humanidade, no sentido de manter viva a memória de Jesus, de oferecer uma fonte possível de sentido de vida que vai para além desta vida.

Hoje sabemos pelo Vatileaks que dentro da Cúria romana se trava uma feroz disputa de poder, especialmente entre o atual Secretário de Estado Bertone e o ex-secretário Sodano já emérito. Ambos tem seus aliados.

Bertone, aproveitando as limitações do Papa, construiu praticamente um governo paralelo.

Os escândalos de vazamento de documentos secretos da mesa do Papa e do Banco do Vaticano, usado pelos milionários italianos, alguns da mafia, para lavar dinheiro e mandá-lo para fora, abalaram muito o Papa. Ele foi se isolando cada vez mais. Sua renúncia se deve aos limites da idade e das enfermidades, mas agravadas por estas crises internas que o enfraqueceram e que ele não soube ou não pode atalhar a tempo.

7. O Papa João XXIII disse que a Igreja não pode virar um museu mas uma casa com janelas e portas abertas. O Sr. acha que Bento XVI não tentou transformar  a Igreja novamente em algo como um museu?

R/ Bento XVI é um nostálgico da síntese medieval. Ele reintroduziu o latim na missa, escolheu vestimentas de papas renascentistas e de outros tempos passados, manteve os hábitos e os cerimoniais palacianos; para quem iria comungar, oferecia primeiro o anel papal para ser beijado e depois dava a hóstia, coisa que nunca mais se fazia.

Sua visão era restauracionista e saudosista de uma síntese entre cultura e fé que existe muito visível em sua terra natal, a Baviera, coisa que ele explicitamente comentava.

Quando na Universidade onde ele estudou e eu também, em Munique, viu um cartaz me anunciando como professor visitante para dar aulas sobre as novas fronteiras da teologia da libertação pediu o reitor que protelasse sine dia o convite já acertado.

Seus ídolos teológicos são Santo Agostinho e São Boaventura que mantiveram sempre uma desconfiança de tudo o que vinha do mundo, contaminado pelo pecado e necessitado de ser resgatado pela Igreja. É uma das razões que explicam sua oposição à modernidade que a vê sob a ótica do secularismo e do relativismo e fora do campo de influência do cristianismo que ajudou a formar a Europa.

8. A igreja vai mudar, em sua opinião, a doutrina sobre o uso de preservativos e em geral a moral sexual?

R/ A Igreja deverá manter as suas convicções, algumas que estima irrenunciáveis como a questão do aborto e da não manipulação da vida. Mas deveria renunciar ao status de exclusividade, como se fora a única portadora da verdade. Ela deve se entender dentro do espaço democrático, no qual sua voz se faz ouvir junto com outras vozes. E as respeita e até se dispõe a aprender delas. E quando derrotada em seus pontos de vista, deveria oferecer sua experiência e tradição para melhorar onde puder melhorar e tornar mais leve o peso da existência.

No fundo ela precisa ser mais humana, humilde e ter mais fé, no sentido de não ter medo. O que se opõe à fé não é o ateísmo, mas o medo. O medo paralisa e isola as pessoas das outras pessoas. A Igreja precisa caminhar junto com a humanidade, porque a humanidade é o verdadeiro Povo de Deus. Ela o mostra mais conscientemente mas não se apropria com exclusividade desta realidade.

9. O que um futuro Papa deveria fazer para evitar a emigração de tantos fiéis para outras igrejas, e especialmente pentecostais?

R/ Bento XVI freou a renovação da Igreja incentivada pelo Concílio Vaticano II. Ele não aceita que na Igreja haja rupturas. Assim que preferiu uma visão linear, reforçando a tradição. Ocorre que a tradição a partir dos séculos XVIII e XIX se opôs a todas as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos. Ele tentou reduzir a Igreja a uma fortaleza contra estas modernidades. E via no Vaticano II o cavalo de Tróia por onde elas poderiam entrar. Não negou o Vaticano II mas o interpretou à luz do Vaticano I que é todo centrado na figura do Papa com poder monárquico, absolutista e infalível.

Assim se produziu uma grande centralização de tudo em Roma sob a direção do Papa que, coitado, tem que dirigir uma população católica do tamanho da China.

Tal opção trouxe grande conflito na Igreja até entre inteiros episcopados como o alemão e francês e contaminou a atmosfera interna da Igreja com suspeitas, criação de grupos, emigração de muitos católicos da comunidade e acusações de relativismo e magistério paralelo. Em outras palavras na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos.

O perfil do próximo Papa, no meu entender, não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia. Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política. Deveria tomar como lema a frase de Jesus  que já citei anteriormente: ”Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”, pois acolhia a todos, desde uma prostituta como Madalena até um teólogo como Nicodemos.

Não deveria ser um homem do Ocidente que já é visto como um acidente na história. Mas um homem do vasto mundo globalizado sentindo a paixão dos sofredores e o grito da Terra devastada pela voracidade consumista.

Não deveria ser um homem de certezas mas alguém que estimulasse a todos a buscarem os melhores caminhos. Logicamente se orientaria pelo Evangelho mas sem espírito proselitista, com a consciência de que o Espírito chega sempre antes do missionário e o Verbo ilumina a todos que vem a este mundo, como diz o evangelista São João.

Deveria ser um homem profundamente espiritual e aberto a todos os caminhos religiosos para juntos manterem viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus.

E por fim, um homem de profunda bondade, no estilo do Papa João XXIII, com ternura para com os humildes e com firmeza profética para denunciar quem promove a exploração e faz da violência e da guerra instrumentos de dominação dos outros e do mundo.

Que nas negociações que os cardeais fazem no conclave e nas tensões das tendências, prevaleça um nome com semelhante perfil.

Como age o Espírito Santo ai é mistério. Ele não tem outra voz  e outra cabeça do que aquela dos cardeais.

Que o Espírito não lhes falte.

Fonte:
http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/15/que-papa-esperar-que-nao-seja-um-bento-xvii/

Não deixe de ler:
- O Banco do Vaticano é o principal acionista da maior indústria de armamentos do mundo, a Pietro Beretta (02/08/2012)
- Banco do Vaticano é o principal acionista da maior indústria de armamentos do mundo, via 'Atrevete a pensar', texto publicado em 10/7/2012. Ver aqui em 14/02/2013, publicado no blog Limpinho & Cheiroso
- Novo 'papado' para o capitalismo - Saul Leblon

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O papa e o marxismo

12/4/2012 12:32, por Frei Betto*
Original publicado no Jornal Correio do Brasil

"O marxismo não é mais útil"


O papa Bento XVI tem razão: o marxismo não é mais útil. Sim, o marxismo conforme muitos na Igreja Católica o entendem: uma ideologia ateísta, que justificou os crimes de Stalin e as barbaridades da revolução cultural chinesa.


Aceitar que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é o mesmo marxismo conforme a ótica de Marx seria como identificar catolicismo com Inquisição.

Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais útil.


Porque já não se justifica enviar mulheres tidas como bruxas à fogueira nem torturar suspeitos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem com a pedofilia de padres e bispos.



Do mesmo modo, o marxismo não se confunde com os marxistas que o utilizaram para disseminar o medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber o que é marxismo; assim como há que retornar aos Evangelhos e a Jesus para saber o que é cristianismo, e a Francisco de Assis para saber o que é catolicismo.

Ao longo da história, em nome das mais belas palavras foram cometidos os mais horrendos crimes.

Em nome da democracia, os EUA se apoderaram de Porto Rico e da base cubana de Guantánamo. Em nome do progresso, países da Europa Ocidental colonizaram povos africanos e deixaram ali um rastro de miséria. Em nome da liberdade, a rainha Vitória, do Reino Unido, promoveu na China a devastadora Guerra do Ópio. Em nome da paz, a Casa Branca cometeu o mais ousado e genocida ato terrorista de toda a história: as bombas atômicas sobre as populações de Hiroshima e Nagasaki. Em nome da liberdade, os EUA implantaram, em quase toda a América Latina, ditaduras sanguinárias ao longo de três décadas (1960-1980).

O marxismo é um método de análise da realidade.
E, mais do que nunca, útil para se compreender a atual crise do capitalismo. O capitalismo, sim, já não é útil, pois promoveu a mais acentuada desigualdade social entre a população do mundo; apoderou-se de riquezas naturais de outros povos; desenvolveu sua face imperialista e monopolista; centrou o equilíbrio do mundo em arsenais nucleares; e disseminou a ideologia neoliberal, que reduz o ser humano a mero consumista submisso aos encantos da mercadoria.
Hoje, o capitalismo é hegemônico no mundo. E de 7 bilhões de pessoas que habitam o planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, e 1,2 bilhão padecem fome crônica. O capitalismo fracassou para 2/3 da humanidade que não têm acesso a uma vida digna. Onde o cristianismo e o marxismo falam em solidariedade, o capitalismo introduziu a competição; onde falam em cooperação, ele introduziu a concorrência; onde falam em respeito à soberania dos povos, ele introduziu a globocolonização.

A religião não é um método de análise da realidade. O marxismo não é uma religião. A luz que a fé projeta sobre a realidade é, queira ou não o Vaticano, sempre mediatizada por uma ideologia. A ideologia neoliberal, que identifica capitalismo e democracia, hoje impera na consciência de muitos cristãos e os impede de perceber que o capitalismo é intrinsecamente perverso. A Igreja Católica, muitas vezes, é conivente com o capitalismo porque este a cobre de privilégios e lhe franqueia uma liberdade que é negada, pela pobreza, a milhões de seres humanos.

Ora, já está provado que o capitalismo não assegura um futuro digno para a humanidade. Bento XVI o admitiu ao afirmar que devemos buscar novos modelos. O marxismo, ao analisar as contradições e insuficiências do capitalismo, nos abre uma porta de esperança a uma sociedade que os católicos, na celebração eucarística, caracterizam como o mundo em que todos haverão de “partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”. A isso Marx chamou de socialismo.

O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx lançou, em 2011, um livro intitulado O Capital – um legado a favor da humanidade. A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de O Capital, de Karl Marx, publicada em Hamburgo, em 1867. "Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. “Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo." Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século 20?

O autor do novo O Capital, nomeado cardeal por Bento XVI em novembro de 2010, qualifica de “sociais-éticos” os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de “selvagem” e “pecado”, e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política.”As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo”, afirma o arcebispo.

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de “querido homônimo”, falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus.


O que sugere, nas entrelinhas, que o autor do Manifesto Comunista se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais