21/08/2012 - Boaventura de Sousa Santos (*) - Carta Maior
Faço um apelo aos governos brasileiro, equatoriano, venezuelano e argentino para que abandonem o projeto da reforma da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
E o apelo é especialmente dirigido ao Brasil dada a influência que tem na região.
(Boaventura de Sousa Santos)
Quem poderia imaginar há uns anos que partidos e governos considerados progressistas ou de esquerda abandonassem a defesa dos mais básicos direitos humanos, por exemplo, o direito à vida, ao trabalho e à liberdade de expressão e de associação, em nome dos imperativos do “desenvolvimento”? Acaso não foi por via da defesa desses direitos que granjearam o apoio popular e chegaram ao poder? Que se passa para que o poder, uma vez conquistado, se vire tão fácil e violentamente contra quem lutou para que ele fosse poder? Por que razão, sendo um poder das maiorias mais pobres, é exercido em favor das minorias mais ricas? Porque é que, neste domínio, é cada vez mais difícil distinguir entre os países do Norte e os países do Sul?
Os fatos

Na India, o governo do partido do Congresso, que lutou contra o colonialismo inglês, faz concessões de terras a empresas nacionais e estrangeiras e ordena a expulsão de milhares e milhares de camponeses pobres, destruindo os seus meios de subsistência e provocando um enfrentamento armado. Na Bolívia, o governo de Evo Morales, um indígena levado ao poder pelo movimento indígena, impõe, sem consulta prévia e com uma sucessão rocambolesca de medidas e contra-medidas, a construção de uma auto-estrada em território indígena (Parque Nacional TIPNIS) para escoar recursos naturais. No Equador, o governo de Rafael Correa, que corajosamente concede asilo político a Julian Assange, acaba de ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não ter garantido os direitos do povo indígena Sarayaku em luta contra a exploração de petróleo nos seus territórios. E já em maio de 2003 a Comissão tinha solicitado ao Equador medidas cautelares a favor do povo Sarayaku que não foram atendidas.

Os riscos
Para responder às questões com que comecei esta crônica vejamos o que há de comum entre todos estes casos. Todas as violações de direitos humanos estão relacionadas com o neoliberalismo, a versão mais anti-social do capitalismo nos últimos cinquenta anos. No Norte, o neoliberalismo impõe a austeridade às grandes maiorias e o resgate dos banqueiros, substituindo a protecção social dos cidadãos pela protecção social do capital financeiro. No Sul, o neoliberalismo impõe a sua avidez pelos recursos naturais, sejam eles os minérios, o petróleo, o gás natural, a água ou a agro-indústria. Os territórios passam a ser terra e as populações que nelas habitam, obstáculos ao desenvolvimento que é necessário remover quanto mais rápido melhor.

Quando a democracia concluir que não é compatível com este tipo de capitalismo e decidir resistir-lhe, pode ser demasiado tarde. É que, entretanto, pode o capitalismo ter já concluído que a democracia não é compatível com ele.
O que fazer?
Ao contrário do que pretende o neoliberalismo, o mundo só é o que é porque nós queremos. Pode ser de outra maneira se a tal nos propusermos. A situação é de tal modo grave que é necessário tomar medidas urgentes mesmo que sejam pequenos passos. Essas medidas variam de país para país e de continente para continente ainda que a articulação entre elas, quando possível, seja indispensável. No continente americano a medida mais urgente é travar o passo à reforma da CIDH em curso. Nessa reforma estão particularmente ativos três países com quem sou solidário em múltiplos aspectos de seu governo, o Brasil, o Equador, a Venezuela e a Argentina. Mas no caso da reforma da CIDH estou firmemente ao lado dos que lutam contra a iniciativa destes governos e pela manutenção do estatuto actual da CIDH. Não deixa de ser irônico que os governos de direita, que mais hostilizam o sistema interamericano de direitos humanos, como é o caso da Colômbia, assistam deleitados ao serviço que os governos progressistas objectivamente lhes estão a prestar.
O meu primeiro apelo é aos governos brasileiro, equatoriano, venezuelano e argentino para que abandonem o projeto da reforma. E o apelo é especialmente dirigido ao Brasil dada a influência que tem na região. Se tiverem uma visão política de longo prazo, não lhes será difícil concluir que serão eles e as forças sociais que os têm apoiado quem, no futuro, mais pode vir a beneficiar do prestígio e da eficácia do sistema interamericano de direitos humanos. Aliás, a Argentina deve à CIDH e à Corte a doutrina que permitiu levar à justiça os crimes de violação dos direitos humanos cometidos pela ditadura, o que muito acertadamente se converteu numa bandeira dos governos Kirchner na política dos direitos humanos.
Mas porque a cegueira do curto prazo pode prevalecer, apelo também a todos os ativistas de direitos humanos do continente e a todos os movimentos e organizações sociais - que viram no Fórum Social Mundial e na luta continental contra a ALCA a força da esperança organizada - que se juntem na luta contra a reforma da CIDH em curso. Sabemos que o sistema interamericano de direitos humanos está longe de ser perfeito, quanto mais não seja porque os dois países mais poderosos da região nem sequer subscreveram a Convenção Americana de Direitos Humanos (EUA e Canadá), Também sabemos que, no passado, tanto a Comissão como a Corte revelaram debilidades e seletividades politicamente enviesadas. Mas também sabemos que o sistema e as suas instituições têm vindo a fortalecer-se, atuando com mais independência e ganhando prestígio através da eficácia com que têm condenado muitas violações de direitos humanos.

E como esquecer a intervenção da CIDH sobre a violência doméstica no Brasil que conduziu à promulgação da Lei Maria da Penha?
Os dados estão lançados. À revelia da CIDH e com fortes limitações na participação das organizações de direitos humanos, o Conselho Permanente da OEA prepara um conjunto de recomendações para serem apresentadas para aprovação na Assembleia Geral Extraordinária, o mais tardar até Março de 2013 (até 30 de Setembro, os Estados apresentarão as suas propostas). Do que se sabe, todas as recomendações vão no sentido de limitar o poder da CIDH para interpelar os Estados em matéria de violação de direitos humanos. Por exemplo: dedicar mais recursos à promoção dos direitos humanos e menos à investigação de violações; encurtar de tal modo os prazos de investigação que tornam impossível uma análise cuidada; eliminar do relatório anual a referência a países cuja situação dos direitos humanos merece atenção especial; limitar a emissão e extensão de medidas cautelares; acabar com o relatório anual sobre a liberdade de expressão; impedir pronunciamentos sobre violações que pairam como ameaças mas ainda não foram concretizadas.
Cabe agora aos ativistas de direitos humanos e a todos os cidadãos preocupados com o futuro da democracia no continente travar este processo.
(*) Sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5737