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sábado, 2 de junho de 2012

A ausência de uma nova narrativa na Rio+20

02/06/2012 - Leonardo Boff (*)
original publicado em Carta Maior

O vazio básico do documento da ONU para a Rio+20 reside numa completa ausência de uma nova narrativa ou de uma nova cosmologia que poderia garantir a esperança de um “futuro que queremos” lema do grande encontro. A narrativa atual é a da conquista do mundo em vista do progresso e do crescimento ilimitado.
(Leonardo Boff)

O vazio básico do documento da ONU para a Rio+20 reside numa completa ausência de uma nova narrativa ou de uma nova cosmologia que poderia garantir a esperança de um “futuro que queremos” lema do grande encontro. Assim como está, nega qualquer futuro promissor.

Para seus formuladores, o futuro depende da economia, pouco importa o adjetivo que se lhe agregue: sustentável ou verde.

Especialmente a economia verde opera o grande assalto ao último reduto da natureza: transformar em mercadoria e colocar preço àquilo que é comum, natural, vital e insubstituível para a vida como a água, solos, fertilidade, florestas, genes etc.

O que pertence à vida é sagrado e não pode ir para o mercado dos negócios. Mas está indo, sob o imperativo categórico: apropia-te de tudo, faça comércio com tudo , especialmente com a natureza e com seus bens e serviços.

Eis aqui o supremo egocentrismo e a arrogância dos seres humanos, chamado também de antropocentrismo. Estes veem a Terra como um armazém de recursos só para eles, sem se dar conta de que não somos os únicos a habitar a Terra nem somos seus proprietários; não nos sentimos parte da natureza, mas fora e acima dela como seus “mestres e donos”.

Esquecemos, entretanto, que existe toda a comunidade de vida visível (5% da biosfera) e os quintilhões de quintilhões de microrganismos invisíveis (95%) que garantem a vitalidade e fecundidade da Terra. Todos estes pertencem ao condomínio Terra e têm direito de viver e conviver conosco. Sem as relações de interdependência com eles, sequer poderíamos existir. O documento desconsidera tudo isso. Podemos então dizer: com ele não há salvação. Ele abre o caminho para o abismo. Enquanto tivermos tempo, urge evitá-lo.

Tal vazio se deriva da velha narrativa ou cosmologia. Por narrativa ou cosmologia entendemos a visão do mundo que subjaz às idéias, às práticas, aos hábitos e aos sonhos de uma sociedade. Por ela se procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo, da história e o lugar do ser humano.

A nossa atual é a narrativa ou a cosmologia da conquista do mundo em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser mecanicista, determinística, atomística e reducionista. Por força desta narrativa 20% da população mundial controla e consome 80% de todos os recursos naturais; metade das grandes florestas foram destruídas, 65% das terras agricultáveis, perdidas, cerca de 27 a cem mil espécies de seres vivos desaparecem por ano (Wilson) e mais de mil agentes químicos sintéticos, a maioria tóxicos, são lançados na natureza. Construímos armas de destruição em massa, capazes de eliminar toda vida humana. O efeito final é o desequilíbrio do sistema-Terra que se expressa pelo aquecimento global. Com os gases já acumulados, até 2035 fatalmente se chegará a 3-4 graus Celsius, o que tornará a vida, assim como a conhecemos praticamente impossível.

A atual crise econômico-financeira que mergulha nações inteiras na miséria nos fazem perder a percepção do risco e conspiram contra qualquer mudança necessária de rumo.

Em contraposição, surge a narrativa ou a cosmologia do cuidado e da responsabilidade universal, potencialmente salvadora. Ela ganhou sua melhor expressão na Carta da Terra. Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso processo de evolução que se iniciou há 13,7 bilhões de anos. O universo está continuamente sepandindo, se auto-organizando e se autocriando.

Nele tudo é relação em redes e nada existe fora desta relação. Por isso todos os seres são interdependentes e colaboram entre si para garantirem o equilíbrio de todos os fatores. Missão humana reside em cuidar e manter essa harmonia sinfônica. Precisamos produzir, não para a acumulação e enriquecimento privado mas para o suficiente e decente para todos, respeitando os limites e ciclos da natureza.

Por detrás de todos os seres atua a Energia de fundo que deu origem e sustenta o universo permitindo emergências novas. A mais espetacular delas é a Terra viva e os humanos como a porção consciente dela, com a missão de cuidá-la e de responsabilizar-se por ela.


Esta nova narrativa garante “o futuro que queremos”.

Do contrário seremos empurrados fatalmente ao caos coletivo com consequências funestas. Ela se revela inspiradora. Ao invés de fazer negócios com a natureza, nos colocamos no seio dela em profunda sintonia e sinergia, respeitando seus limites e buscando o "bem viver" que é a harmonia entre todos e com a mãe Terra. Característica desta nova cosmologia é o cuidado no lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda a vida e dos direitos da natureza e não sua exploração e a articulação da justiça ecológica com a social.

Esta narrativa está mais de acordo com as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se o documento Rio+20 a adotasse, como pano de fundo, criar-se-ia a oportunidade de uma civilização planetária na qual o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganhariam centralidade.


Tal opção apontaria, não para o abismo, mas para o “o futuro que queremos”: uma biocivilização da boa esperança.


(*) Teólogo e escritor

terça-feira, 29 de maio de 2012

O capitalismo esquenta o planeta

28/05/2012 - Inter Press Service (IPS) - extraído do site Envolverde
por Fabiana Frayssinet, da IPS

Rio de Janeiro, Brasil – Os sistemas de produção e consumo atuais, representados pelas grandes corporações, pelos mercados financeiros e pelos governos que garantem sua manutenção, são “os que produzem e aprofundam o aquecimento global e a mudança climática”.


É desta forma que questionam o sistema econômico e financeiro imperante os organizadores da Cúpula dos Povos na Rio+20 pela Justiça Social e Ambiental, que reunirá cerca de 16 mil pessoas no Rio de Janeiro, paralelamente à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que acontecerá de 20 a 22 de junho nesta cidade.

As grandes corporações estão se apoderando da natureza, alertam sindicalistas e
demais organizações promotoras da Cúpula dos Povos. Foto: Clarinha Glock/IPS


O sistema capitalista, afirmam os promotores da Cúpula, está diante de suas “múltiplas crises” com “suas formas renovadas de dominação”.

Ainda segundo os ativistas, também é

- causador da fome,
- da desnutrição,
- da perda de florestas e
- de diversidade biológica e
- sociocultural,
- da contaminação química,
- da escassez de água potável,
- do aumento da desertificação dos solos,
- da acidificação dos oceanos,
- da monopolização de terras, e
- da mercantilização de todos os aspectos da vida nas cidades e no campo.

Esta forte e ampla crítica foi feita pelo grupo articulador da Cúpula dos Povos, integrada por organizações e movimentos sociais de diversas partes do mundo, que acontecerá entre os dias 15 e 23 de junho, como o principal evento paralelo à também chamada Rio+20. Após analisar os documentos da reunião oficial, os coordenadores da sociedade civil disseram temer pela falta de resultados positivos da negociação, que tem como foco de discussão a economia verde e a instauração de um novo sistema de governo ambiental internacional que a facilite.

A economia verde, em nosso entendimento, é uma forma de fazer avançar os interesses das corporações sobre a natureza”, afirmou Fátima Mello, integrante do Grupo de Articulação da Cúpula dos Povos. “Estamos muito preocupados com a criação de mercados financeiros nos quais a água, o ar e a biodiversidade passem a ser negociados como fontes de financiamento para um sistema que não altere de forma urgente os modelos de produção e consumo que estão levando o mundo à catástrofe”, ressaltou.

Fátima Mello e Marcelo Durão
Fátima, que participou junto com o também ativista Marcelo Durão de uma entrevista coletiva para correspondentes estrangeiros no Rio de Janeiro, teme que, a partir dos documentos da negociação oficial, o debate da Rio+20 “fique preso” em uma dicotomia entre “austeridade e recessão, como estamos vendo na Europa, versus desenvolvimentismo e crescimento a qualquer custo, como vemos no Brasil”.

Este debate da economia verde é uma falácia, um fortalecimento ainda maior do acúmulo da riqueza, com foco principal na natureza”, acrescentou Marcelo, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e um dos representantes da Via Campesina na Cúpula. Também comparou a Rio+20 com a primeira cúpula deste tipo realizada há 20 anos também no Rio de Janeiro, conhecida como Eco 92.

Enquanto há 20 anos foi estabelecido um vínculo entre chefes de Estado e membros da sociedade civil, agora “há uma relação entre as grandes corporações e os governantes”, apontou Marcelo. “A leitura que fazemos é que as grandes corporações estão se apoderando da natureza”, convertendo-a em uma “nova maneira de centralização da riqueza”, declarou à IPS.

No documento intitulado "O que está em jogo na Rio+20", os representantes da Cúpula dos Povos chamam a atenção para o novo conceito apresentado de economia verde, que “não questiona ou substitui o modelo baseado no extrativismo e nos combustíveis fósseis, nem seus padrões de consumo e de produção industrial”. O sistema imperante, acrescenta o texto, “estende a economia exploradora das pessoas e do meio ambiente a novos âmbitos, alimentando o mito de que é possível um crescimento infinito”.

As organizações da sociedade civil consideram que os cultivos geneticamente modificados, os agrotóxicos, os biocombustíveis, a nanotecnologia, a biologia sintética e a artificial, a geoengenharia, e a energia nuclear, entre outras, são apresentadas como “soluções tecnológicas” para os limites naturais do planeta e as múltiplas crises, sem encarar as verdadeiras causas que as provocam.

Além disso, é promovida a ampliação do sistema alimentar agroindustrial, “que é um dos maiores fatores causadores das crises climáticas, ambientais, econômicas e sociais, aprofundando a especulação com os alimentos e favorecendo os interesses das corporações do agronegócio em detrimento das produções local e rural”, indicam as entidades.

Os organizadores da Cúpula dos Povos disseram estar surpresos com a resposta à convocatória que teve em seu encontro “a crise” financeira, social, ambiental, econômica, energética e alimentar. Inscreveram-se cerca de 23 mil pessoas de 65 países, mas por razões de logística só poderão ser abrigadas aproximadamente 16 mil. Um dos pontos culminantes da Cúpula será uma caminhada a ser realizada no dia 20 de junho. Ao final do encontro se buscará elaborar alguma conclusão para apresentar na Rio+20.
 
Envolverde/IPS

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Vende-se a natureza

27.04.12 - escrito por Frei Betto
extraído do site Envolverde


Às vésperas da Rio+20 é imprescindível denunciar a nova ofensiva do capitalismo neoliberal: a mercantilização da natureza.


Já existe o mercado de carbono, estabelecido pelo Protocolo de Kyoto (1997).

Ele determina que países desenvolvidos, principais poluidores, reduzam as emissões de gases de efeito estufa em 5,2%.

Reduzir o volume de veneno vomitado por aqueles países na atmosfera implica subtrair lucros. Assim, inventou-se o crédito de carbono.

Uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivale a um crédito de carbono. O país rico ou suas empresas, ao ultrapassar o limite de poluição permitida, compra o crédito do país pobre ou de suas empresas que ainda não atingiram seus respectivos limites de emissão de CO2 e, assim, fica autorizado a emitir gases de efeito estufa. O valor dessa permissão deve ser inferior à multa que o país rico pagaria, caso ultrapassasse seu limite de emissão de CO2. 
Surge agora nova proposta: a venda de serviços ambientais. Leia-se: apropriação e mercantilização das florestas tropicais, florestas plantadas (semeadas pelo ser humano) e ecossistemas. Devido à crise financeira que afeta os países desenvolvidos, o capital busca novas fontes de lucro. Ao capital industrial (produção) e ao capital financeiro (especulação), soma-se agora o capital natural (apropriação da natureza), também conhecido por economia verde.

A diferença dos serviços ambientais é que não são prestados por uma pessoa ou empresa; são ofertados, gratuitamente, pela natureza: água, alimentos, plantas medicinais, carbono (sua absorção e armazenamento), minérios, madeira etc. A proposta é dar um basta a essa gratuidade. Na lógica capitalista, o valor de troca de um bem está acima de seu valor de uso. Portanto, tais bens naturais devem ter preços.

Os consumidores dos bens da natureza passariam a pagar, não apenas pela administração da "manufatura” do produto (como pagamos pela água que sai da torneira em casa), mas pelo próprio bem. Ocorre que a natureza não tem conta bancária para receber o dinheiro pago pelos serviços que presta. Os defensores dessa proposta afirmam que, portanto, alguém ou alguma instituição deve receber o pagamento - o dono da floresta ou do ecossistema.

A proposta não leva em conta as comunidades que vivem nas florestas. Uma moradora da comunidade de Katobo, floresta da República Democrática do Congo, relata:

"Na floresta, coletamos lenha, cultivamos alimentos e comemos. A floresta fornece tudo, legumes, todo tipo de animal, e isso nos permite viver bem. Por isso que somos muito felizes com nossa floresta, porque nos permite conseguir tudo que precisamos. Quando ouvimos que a floresta poderia estar em perigo, isso nos preocupa, porque nunca poderíamos viver fora da floresta. E se alguém nos dissesse para abandonar a floresta, ficaríamos com muita raiva, porque não podemos imaginar uma vida que não seja dentro ou perto da floresta. Quando plantamos alimentos, temos comida, temos agricultura e também caça, e as mulheres pegam siri e peixe nos rios. Temos diferentes tipos de legumes, e também plantas comestíveis da floresta, e frutas, e todo de tipo de coisa que comemos, que nos dá força e energia, proteínas, e tudo mais que precisamos.”

O comércio de serviços ambientais ignora essa visão dos povos da floresta. Trata-se de um novo mecanismo de mercado, pelo qual a natureza é quantificada em unidades comercializáveis.



Essa ideia, que soa como absurda, surgiu nos países industrializados do hemisfério Norte na década de 1970, quando houve a crise ambiental. Europa e EUA tomaram consciência de que os recursos naturais são limitados. A Terra não tem como ser ampliada. E está doente, contaminada e degradada.

Frente a isso, os ideólogos do capitalismo propuseram valorizar os recursos naturais para salvá-los. Calcularam o valor dos serviços ambientais entre US$ 16 e 54 trilhões (o PIB mundial, a soma de bens e serviços, totaliza atualmente US$ 62 trilhões). "Está na hora de reconhecer que a natureza é a maior empresa do mundo, trabalhando para beneficiar 100% da humanidade – e faz isso de graça”, afirmou Jean-Cristophe Vié, diretor do Programa de Espécies da IUCN, principal rede global pela conservação da natureza, financiada por governos, agências multilaterais e empresas multinacionais.


Garret Hardin
Em 1969, Garret Hardin publicou o artigo "A tragédia dos comuns” para justificar a necessidade de cercar a natureza, privatizá-la, e assim garantir sua preservação. Segundo o autor, o uso local e gratuitoda natureza, como o faz uma tribo indígena, resulta em destruição (o que não corresponde à verdade).
A única forma de preservá-la para o bem comum é torná-la administrável por quem possui competência – as grandes corporações empresariais. Eis a tese da economia verde.

Ora, sabemos como elas encaram a natureza: como mera produtora de ‘commodities’. Por isso, empresas estrangeiras compram, no Brasil, cada vez mais terras, o que significa uma desapropriação mercantil de nosso território.


(*) Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de "O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros. É também assessor de movimentos sociais.

sábado, 24 de março de 2012

Quem ganha e quem perde com o REDD e Pagamento por Serviços Ambientais?

Grupo Carta de Belém - Original transcrito do site Terra de Direitos

Organizações e movimentos sociais alertam sobre riscos da mercantilização da natureza e apontam alternativas ao modelo vigente


Documento de Sistematização das Convergências do Grupo Carta de Belém extraídas do seminário sobre REDD+ e Pagamento por Serviços Ambientais X Bens Comuns - Brasília, 21 e 22 de novembro de 2011

Passados quase 20 anos da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92 e da realização de 17 Conferências das Partes (COP) sobre mudanças climáticas, 9 COPs sobre desertificação e 10 sobre biodiversidade, os desequilíbrios climáticos se aceleram pelo mundo, a biodiversidade vegetal e animal está em regressão, os desertos crescem, as florestas e as zonas úmidas encolhem.

Durante este período, várias promessas e medidas foram adotadas por estas Conferências, mas ao contrário do que anunciam, os resultados que estas têm produzido vem nos levando a um processo de mercantilização dos bens comuns e da natureza, que acelera a destruição e a usurpação das florestas, da biodiversidade e dos territórios dos povos e comunidades.

Há uma grande centralidade dada às propostas corporativas e de mercado nas Convenções ambientais. Por exemplo, a criação de instrumentos financeiros como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que oficializa o mercado de carbono como política de combate às mudanças climáticas, e o REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) na Convenção de Clima; e a ferramenta econômica de valoração dos bens e serviços ambientais, o TEEB (Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade) na Convenção da Diversidade Biológica. Propostas que pretendem transferir para o mercado o cumprimento dos objetivos de redução de emissões quanto ao uso sustentável e à conservação da biodiversidade, enfraquecendo tais Convenções como fóruns multilaterais de negociação e atrasando a implementação dos objetivos das mesmas através de políticas sob responsabilidade dos Estados/Nações.

No caso específico do REDD, ao atrair a atenção do mundo sobre a importância das florestas para as mudanças climáticas, ainda que o desmatamento contribua com algo entre 11 e 20% da emissão global de gases de efeito estufa, desvia-se o foco do modelo industrial de produção e consumo desenfreado do Norte e das elites do Sul, principal responsável pelas catástrofes climáticas e a degradação dos ecossistemas, inclusive causa subjacente dos vetores que levam à destruição das florestas.

Neste sentido, o Grupo Carta de Belém formado por redes, organizações e movimentos sociais do Brasil que conformam um campo crítico às propostas de mercantilização dos bens comuns e da financeirização da natureza, pretende com esta publicação: apontar suas preocupações em relação a estes processos em curso; e dar visibilidade as iniciativas populares que devem ser fortalecidas pelo Estado brasileiro, através de políticas públicas estruturantes e eficazes, que fortaleçam as escolhas e os modos de produção sustentáveis da agricultura familiar e camponesa, extrativistas, povos indígenas e comunidades tradicionais associados ao uso sustentável da biodiversidade e da agrobiodiversidade.

Entendendo a lógica...
No caso do REDD, o foco da redução das emissões de gases do efeito estufa está nas florestas, sendo que a maioria das grandes florestas se encontra na faixa equatorial. Assim, os países desenvolvidos não apenas transferem sua responsabilidade para os países e povos do Sul, como passam a se apropriar da gestão de suas florestas e de seus territórios, pois estes passam a estar comprometidos com a captura de carbono produzido pelos países desenvolvidos. No caso brasileiro o processo está muito avançado, haja vista que leis estão sendo criadas para institucionalizar o mercado de títulos de emissões das florestas, como poderá ser visualizado mais adiante.

Como funciona e qual a relação do REDD com o Código Florestal e o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA)
Ao participar desse mercado de compensações das emissões, as florestas e os territórios passam a ser “o lastro”, ou seja, a garantia que autoriza a emissão de novos títulos de propriedade, os chamados “títulos verdes”. Por exemplo, uma pessoa vende um papel (um título) que diz que X vale o equivalente ao gás de efeito estufa (calculado como gás carbônico equivalente – CO²e) que não será emitido por um hectare de floresta preservada. O comprador pergunta o que lhe garante que isso é verdade. O vendedor responde que em tal lugar da Amazônia há um hectare de Resex ou de terra indígena ou de parque nacional preservado.

Estes títulos podem representar tanto a propriedade sobre o gás carbônico evitado (CREDD – Certidão de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) ou sobre a imobilização de 1 hectare de floresta nativa (CCRA – Certidão de Cota de Reserva Ambiental), prevista entre as alterações propostas ao novo Código Florestal como passível de compra por quem desmatou. A compra e venda destes títulos é feita na Bolsa de Valores por agentes privados, que passam a pagar os chamados “serviços” ambientais para os detentores das florestas nos territórios, em troca da emissão do título em seu nome.

Na prática, isso significa que os/as agricultores/as familiares e camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais, passem a ser identificados apenas como “fornecedores ou prestadores de serviços ambientais”. Isso traz grandes implicações em relação a seus modos de vida e identidade como sujeitos políticos autônomos e portadores de um projeto alternativo de sociedade, reconhecido socialmente graças as suas atividades e lutas históricas. Além disso, colocam estas populações como fiel da balança no sentido de “dar licença para poluir” aos compradores destes serviços.

Aquele que compra o “título verde” não só fica autorizado a continuar produzindo degradação e poluição, como lucra com a especulação destes novos ativos florestais no mercado financeiro. Os mesmos donos dos meios de produção responsáveis pela degradação e poluição pretendem ganhar duas vezes.

Primeiro graças ao crescimento insustentável que provoca a destruição e depois com as falsas soluções para combater o que foi destruído. Quanto maior o crescimento insustentável, a degradação das florestas, os desastres ambientais e a emissão de gases de efeito estufa, maiores os valores dos “serviços ambientais”. A fórmula é estritamente econômica e nada tem a ver com conservação e uso sustentável.

É esta a lógica de transformação da natureza em mercadoria: fazer com que ela possa ser comprada e vendida no mercado global. A natureza passa a integrar a proposta de uma economia “verde” ou “de baixo carbono” Então, o que se anuncia por detrás disso é uma
nova fase de acumulação primitiva do capital sobre diversos componentes da natureza, até então fora do mercado. Com a produção de novas propriedades, mercadorias e títulos, o sistema financeiro em crise passa a ter um novo lastro, ou seja, a garantia necessária para fazer seus negócios.

Parece triunfar como alternativa o já velho tripé que baseia o atual projeto de desenvolvimento insustentável: privatização, mercantilização e financeirização dos bens comuns, dos territórios e dos recursos naturais. Desde os primórdios do capitalismo este projeto já existe, nossas gerações o viram nos atingir diretamente. Foram muitas as tentativas de eliminar os direitos dos agricultores sobre suas terras, através da ofensiva da grilagem e do agronegócio. E outras tentativas de tirarem o direito dos agricultores sobre suas sementes, por meio da imposição de um pacote tecnológico que ao anunciar uma “revolução”, também pintada de “verde”, acabaram por transformar os agricultores à consumidores da cadeia de produção das transnacionais, com a imposição das sementes transgênicas e o aumento dos monocultivos e dos agrotóxicos.

A violação aos direitos dos agricultores, povos e comunidades tradicionais se acentua, e com o apoio do Estado brasileiro. Esse aprofundamento se dá com:

• a eliminação de barreiras para a ampliação do agronegócio;
• a redução do orçamento e do aparato administrativo para a promoção da Reforma Agrária;
• as tentativas de frear e suspender a demarcação e a homologação de terras Indígenas, Quilombolas e de Reservas Extrativistas;
• o abrandamento do licenciamento ambiental e da aceleração da implantação de usinas hidrelétricas, projetos de mineração e indústrias pesadas;
• a flexibilização dos principais marcos de proteção ambiental como o Código Florestal.

Reformas, novas leis e contratos revestidos de preocupação ambiental podem ser verdadeiros “cavalos de tróia”, trazendo os interesses do mercado e enfraquecendo a soberania do país, dos povos e das comunidades locais sobre a gestão dos recursos, florestas e dos territórios.

O contrato de REDD, agora na versão REDD+ - que acrescenta o manejo florestal sustentável e a conservação e aumento dos estoques de carbono florestal -, tem a principal intenção de disputar a gestão dos territórios com os povos e comunidades que historicamente os protegem.

Quem no futuro vai dizer a maneira como querem gerir seus territórios e assegurar o equilíbrio entre a preservação e suas atividades produtivas? Será que o mercado é que vai decidir por eles?

Com a atenção fixada sobre o tripé floresta-clima-carbono, povos, comunidades e agricultura familiar e camponesa – que têm seus modos de vida indissociáveis do uso e conservação dos ecossistemas – se tornam quase invisíveis, considerados somente como instrumentos de uma engrenagem já desenhada pelo mercado como solução.

A complexidade técnica dos cálculos do carbono e o aparato financeiro e burocrático previsto para a implantação de REDD+ e desse mercado combinam-se para afastar os centros de decisão real das organizações de base e, portanto, de uma democracia real. Por um lado avança a construção de mecanismos que garantem a expansão da apropriação das terras e dos recursos naturais pelo mercado, e por outro, aumenta a paralisia das políticas públicas de acesso à terra e ao território para as comunidades e povos tradicionais.

Fique de olho!!!
Há um acelerado processo de reformas legais e políticas em curso no Brasil a fim de adequar ou legalizar o avanço do capital sobre terras e recursos, tais como:

• Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), aprovada através da Lei 12.187/2009 e do Decreto 7.390/2010, pretende garantir o cumprimento das metas voluntárias de redução de emissões, assumidas na COP 15, em Copenhague. Colocou em marcha acelerada as alterações não apenas das políticas ambientais, mas também de políticas para os diversos setores econômicos como agricultura, siderurgia, transportes, energia, trabalho, tecnologia, etc. Na prática se traduz em sérias flexibilizações dos marcos legais conquistados e em uma mudança de paradigma no trato da matéria sócio-ambiental no país, como fica claro com a criação do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), o Novo Código Florestal e a tramitação de novos projetos de lei descritos abaixo.

• Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), criado pela PNMC, será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, através da negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitados. É o pilar da chamada economia do carbono e principal “título verde”.

• Projeto de Lei 195/2011 sobre REDD+, de autoria da Deputada Rebecca Garcia (PP-AM). Prevê a criação do Certificado de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (CREDD), título mobiliário representativo de 1 tonelada de dióxido de carbono equivalente evitada (1tCO2e), criando direitos sobre o carbono ou a propriedade privada sobre o ar e a possibilidade de circulação da nova mercadoria da chamada “economia de baixo carbono”.

• Novo Código Florestal, já aprovado pelo Senado, flexibiliza as leis ambientais em curso no país, contém um capítulo dedicado aos incentivos ‘positivos’ onde autoriza a emissão de títulos de crédito representativos de 1 hectare de floresta nativa, chamados de Cota de Reserva Ambiental (CRA), que poderão ser comprados e vendidos tanto para compensar a Reserva Legal exigida por lei, como para serem negociadas em bolsas de valores no mercado financeiro.

• PL 792/2007 sobre Pagamentos por Serviços Ambientais, assim como presente no novo Código Florestal, pretende estabelecer a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais, que antecede um mercado nacional destes serviços. O PL pretende autorizar a comercialização de diversos componentes da biodiversidade, através de contratos privados ou públicos realizados entre comunidades fornecedoras de “serviços ambientais” e empresas poluidoras-compradoras de autorizações para continuar a gerar danos (“compensações ambientais”). O que não significa um incentivo econômico conferido por políticas públicas para quem sempre preservou, mas a comercialização dos componentes da biodiversidade e dos bens comuns.

Esta engenharia legal faz com que os povos, comunidades tradicionais e os camponeses, passem a ser identificados tão somente como “fornecedores de serviços ambientais”, seja com a captura de carbono através do mecanismo REDD+, até com o fornecimento de água ou de polinizadores. A assinatura de contratos de PSA, do modo como vem sendo tratado no Congresso Nacional, fazem com que o “fornecedor do serviço” ceda seus direitos de uso sobre a área contratada, autorizando o LIVRE ACESSO ao comprador-pagador por no mínimo 15 anos (servidão ambiental). Em troca do pagamento é autorizada a emissão de um título de carbono (CREDD) ou de outro título que represente a floresta nativa da área (CRA) ao comprador-pagador do “serviço ambiental”, para ser negociado na bolsa de valores. Foi dada a largada para a inserção do ar e das florestas no mercado financeiro, assim como para a apropriação dos territórios para as mãos do agronegócio e dos agentes de mercado.

Resistir é preciso
Diante deste quadro acelerado de liberalização de marcos legais e políticas públicas conquistadas historicamente pelas lutas sociais e pelo conjunto da população brasileira, as quais trazem o mercado financeiro como principal regulador das relações em sociedade, o Grupo Carta de Belém se opõe abertamente à:
• entrega às empresas e ao mercado financeiro do poder de decisão e de intervenção sobre os territórios, pretendidas com a acelerada modificação de marcos legais e políticas públicas, seja através de contratos de pagamentos por serviços ambientais, contidos no PL 792/2007, do mecanismo de REDD+ presente no PL 195/2011, e com a flexibilização do Código Florestal;
• transformação das propostas e demandas históricas
das populações, organizações e movimentos sociais em mecanismos de mercado;
• qualquer marco legal ou política que induza a compra e venda de direitos. O meio ambiente ecologicamente equilibrado, a alimentação nutricional adequada, o acesso à terra e ao território, o trabalho, a saúde e a educação são Direitos Humanos que devem ser acessados por todos e todas, por dever constitucional do Estado e não através da assinatura de contratos, por tempo determinado, com financiadores privados;
• financeirização e entrada da lógica do mercado de carbono em iniciativas de compromisso social com a igualdade e a justiça socioambiental, como a agroecologia, os sistemas agroflorestais e outras tecnologias sociais dos territórios dos povos, comunidades e do campesinato;
• modificação do texto do Código Florestal, cujo lobby para alteração foi financiado pelas principais empresas desmatadoras do país e pelos integrantes da bancada ruralista. As modificações do Código mostram a verdadeira face do projeto empresarial e do agronegócio, como um passo para a inclusão dos mecanismos de REDD+ e dos serviços ambientais para permitir ao agronegócio que lucre com o aumento das áreas desmatadas, abertas à produção de grãos e à pecuária, como também com a conservação e a recuperação de áreas degradadas (APPs e RLs);
• flexibilização dos diversos marcos legais, inclusive constitucionais, que significam retrocesso social e violação de direito humanos e dos direitos dos agricultores, povos e comunidades tradicionais, como é o caso da PEC 215, que pretende alterar a constituição para que seja de competência exclusiva do legislativo a possibilidade de titulação dos territórios indígenas, quilombolas e unidades de conservação; como também quanto as exigências ambientais de estudo e relatório de impacto ambiental; e do ataque à constitucionalidade do Decreto nº 4.887/03 que regula a titulação dos territórios quilombolas; dos direitos ao consentimento livre, prévio e informado;
• redução dos ecossistemas e das funções ambientais a uma categoria de mercado, como se a natureza e os grupos sociais que vivem nela e dela não tivessem outra razão de existência do que a de estar ao serviço do mesmo. Nos opomos a qualquer política de incentivo ou remuneração de serviços ambientais que traga a possibilidade de privatização dos bens comuns. Não aceitamos que a biodiversidade seja tratada de forma fragmentada a ponto de liberar seus componentes para serem comprados e vendidos, como querem fazer com o mercado de carbono, da água, polinização das abelhas, beleza cênica, entre outros;
• perda de autonomia das comunidades e povos sobre seus territórios e sobre o modo como interagem com os territórios, provocada pelos compromissos que vão assumir perante os financiadores dos “serviços” ambientais, porque é extremamente complicado dominar o aparato técnico e escapar das teias da burocracia. Esta lógica impõe um conhecimento científico-técnico em oposição aos saberes e ao modo de vida local, que passam a ser desvalorizados, ignorados, difamados e criminalizados;
• medidas legais e políticas que vem se materializando nos territórios como violência, com a imposição de normas que confrontam os costumes e as estratégias de sobrevivência das comunidades e povos. Isso vem gerando novas possibilidades de criminalização, mais expulsões e violência, como é o caso das políticas de crédito e seguro que rejeitam as sementes e mudas crioulas, ou ainda a sua venda pelas comunidades agricultoras. Exemplo disso é o não reconhecimento das tecnologias sociais de segurança e soberania alimentar, como é o caso dos bancos comunitários de sementes, ou ainda as barreiras impostas pela vigilância sanitária que criminalizam e impedem o escoamento da produção da agricultura familiar camponesa e dos povos e comunidades tradicionais;
• atual estagnação e retrocesso das políticas públicas estruturantes destinadas ao fortalecimento dos agricultores, povos indígenas e comunidades tradicionais sobre seus territórios e seus recursos naturais, como a política de reforma agrária, de titulação dos territórios indígenas e dos territórios quilombolas.

A complexidade do que está em jogo e a precária situação de sobrevivência na qual se encontram agricultores/as familiares e camponeses, agroextrativistas e povos indígenas, bem como dificuldades em acessar informação qualificada que desvende o tecnicismo das propostas salvadoras apresentadas, fazem com que estes, não raras vezes, aceitem o que lhes é apresentado como sendo a solução dos seus problemas.

O grupo Carta de Belém não ignora essas dificuldades, compreende a perversidade dos mecanismos de mercado e das formas de introduzi-los nos ajustes das políticas públicas e nas bases de nossas organizações. Questiona, sim, as políticas e propostas que colocam REDD+ e os contratos de pagamentos por serviços ambientais como verdadeiras soluções para a sobrevivência individual e coletiva, sem apresentar e debater outros caminhos, que, inclusive, já estão em curso, construídos nos próprios territórios como medidas eficazes de proteção e construção de direitos. A redução da existência dos agricultores/as familiares e camponeses, agroextrativistas e povos indígenas a “fornecedores de serviços climáticos e ambientais” constitui uma violência aos seus modos de vida e de reprodução social.

Em defesa dos bens comuns
Essas populações não somente pensam e cuidam da sua posse, do seu sistema de produção e/ou de extrativismo e de vida familiar, mas de todo o território, da comunidade, da Terra Indígena, das Resexs, da microbacia, do Pólo, etc., que é considerado como um bem comum, do qual se cuida coletivamente.

Por isso, suas estratégias não são unicamente individuais/familiares. Mas também coletivas: comunidades-povos-território são gestionados por normas internas, leis, acordos e políticas comunitárias, coletivamente construídas para garantir o uso sustentável indispensável à continuidade destes grupos com seus modos de vida e na sua diversidade sociocultural.

Essas estratégias de futuro são construídas por elas e com elas, apoiadas sobre saberes acumulados ao longo do tempo e possuem marcos jurídicos e políticas publicas capazes de sustentá-las quando há vontade política, compromisso dos governantes com o povo e não com as corporações. Tais estratégias dialogam e necessitam hoje de novos intercâmbios com a ciência e a tecnologia, mas quando esta ciência e tecnologias não estão a serviço da apropriação privada dos bens comuns, ignorando seus conhecimentos e técnicas populares.

Nas últimas décadas, organizações camponesas e de agricultores/as familiares, de agroextrativistas e de povos indígenas vêm construindo instrumentos coletivos para assegurar e consolidar seus territórios e seu modo de vida. Dentre estes se encontram a sistematização e atualização de suas técnicas em torno do manejo agroecológico, dos sistemas agroflorestais e extrativismo, manejo comunitário da água; como também dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos naturais, como os ofícios de cura das rezadeiras, benzedeiras, parteiras, etc.; a construção de sistemas comunitários de garantia da qualidade de seus produtos, alguns já reconhecidos em Lei, como os sistemas participativos de avaliação da conformidade (SPGs, previsto na Lei de Orgânicos); a construção das redes de bancos familiares e comunitários de sementes; dos sistemas de trocas de recursos genéticos e conhecimentos, das feiras, encontros e reuniões; assim como as formas de solidariedade comunitária com as trocas de trabalho e realização de mutirões e puxirões.

Povos, comunidades e populações indígenas, agroextrativistas, camponesas e de agricultores familiares cuidam de seus territórios como bens comuns, bens comuns que são antes de tudo deles, que não existiriam sem eles. Com a escassez de recursos naturais produzidos pelo modelo de produção e consumo e os impactos negativos irreversíveis sobre a natureza e o clima, os ecossistemas nos quais e dos quais estes povos e comunidades vivem tornam-se preciosos para o futuro da humanidade e são cobiçados pelo mercado mundial. E esses recursos, indiretamente, ligados aos seus modos de viver, produzir e se reproduzir, cuidando dos seus territórios, tornam-se úteis para o mercado.

Falar em “transição para uma economia verde” parece desconsiderar toda a cultura e amadurecimento social ao longo das décadas em torno de assuntos tão complexos como desenvolvimento econômico-social, uso sustentável e direitos humanos. Tal proposta economicista e de mercado não pode substituir ou se propor a ser a grande política salvacionista deste período de crises do capital, em detrimento de todos os outros instrumentos que vêm sendo construídos pelos povos em seu amadurecimento social na luta por direitos, sob pena de se empreender um grave retrocesso social, ambiental e inclusive econômico. Essas populações e povos cuidam da biodiversidade, das águas, dos solos, das florestas, dos cerrados e dos pantanais não porque recebem pagamento por serviços ambientais, mas porque esses cuidados decorrem do seu modo de viver e produzir. Antes de pagamentos por serviços ambientais, precisam de políticas públicas estruturantes que fortaleçam seus modos de viver e produzir, como alternativas concretas e que historicamente apresentam-se como sustentáveis e produtivas. O próprio Censo Agropecuário de 2006 demonstra isso ao apontar a agricultura familiar como responsável por garantir boa parte da segurança alimentar do país, como importante fornecedora de alimentos para o mercado interno, responsável por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, por exemplo.

As organizações reunidas em torno do Grupo Carta de Belém apontam como alternativas reais para as crises enfrentadas pela humanidade, o incentivo às políticas públicas estruturantes aos modos de vida e de produção dos setores que historicamente são responsáveis pela conservação, uso dos recursos naturais e da produção sustentável e que devem passar necessariamente:

• Por políticas públicas que promovam uma Reforma Agrária Sustentável, associada à política agrícola;
• Pelo reconhecimento dos seus saberes e de que a produção de alimentos saudáveis e sem agrotóxicos vem de um modo de produção específico, dos territórios da agricultura familiar e camponesa, devendo a política conferir valor real aos produtos oriundos da agricultura familiar e do extrativismo, como já é feito, embora que ainda modestamente, através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Para além da aquisição de alimentos e sementes, é necessário apoio efetivo à produção e comercialização da produção dos territórios;
• Pela estruturação de pesquisa participativa e assistência técnica contextualizada qualificada para recuperar e melhorar as técnicas, a qualidade e a quantidade da produção e do extrativismo; que reconhecem a agroecologia praticada pela agricultura familiar e camponesa não como um nicho de produção e de mercado, mas como caminho de futuro para a agricultura e alimentação;
• Por políticas que considerem os territórios como um sistema integrado, um modo de produção de vida, que reconheçam a posse definitiva das comunidades e povos sobre seus territórios; que garantam o acesso aos serviços essenciais de educação, saúde, moradia, cultura e serviços públicos.

Ao contrário dos pagamentos por serviços ambientais, e da estruturação de um novo mercado “verde” através de mais privatização de bens comuns, apontamos como alternativas reais o fortalecimento e empoderamento dos povos, comunidades tradicionais e populações indígenas, agroextrativistas, camponesas e de agricultores familiares na gestão e manejo de seus territórios e de suas tecnologias sociais em construção que, pragmaticamente, é o que vem garantindo não apenas a sobrevivência de seu modo de vida, como a conservação e a recuperação dos ecossistemas e a soberania alimentar dos brasileiros.

Em pé, continuamos em luta!
Organizações que participaram do Seminário e assinam o documento:

- ActionAid Brasil
- Amigos da Terra Brasil
- Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
- Articulação Nacional de Agroecologia/ANA
- ANA Amazônia- Articulação Pacari
- Associação Agroecológica TIJUPÁ
- ASPTA - Agricultura Familiar e Agroecologia
- Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária/CEAPAC
- Conselho Indigenista Missionário/CIMI
- Resex Renascer Tapajós-Arapiuns
- Central Única dos Trabalhadores/CUT
- FASE
- Federação das Entidades Comunitárias do Estado do Pará/FECAP
- Federação dos/as Trabalhadores/as Rurais da Agricultura Familiar/FETRAF
- Fórum da Amazônia Oriental/FAOR
- Fórum Carajás
- Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social
- Fundação Rureco
- Fundo Dema
- Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC
- Instituto Mais Democracia
- Instituto Terramar
- Jubileu Sul Brasil
- Justiça nos Trilhos
- Marcha Mundial das Mulheres/MMM
- Movimento Anti-capitalista da Amazônia/MACA
- Movimento de Mulheres Camponesas/MMC
- Movimento dos Pequenos Agricultores/MPA
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST
- Plataforma Dhesca
- Rede Brasileira de Justiça Ambiental/RBJA
- Rede Alerta contra o Deserto Verde
- Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais
- Sindicato dos Trabalhadores/as Rurais de Xapuri/AC
- Terra de Direitos
- União dos Estudantes de Santarém
- Via Campesina Brasil

O Grupo Carta de Belém é formado por Amigos da Terra Brasil, CUT, FASE, FETRAF, FAOR, Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, INESC, Jubileu Sul Brasil, Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, Terra de Direitos e Via Campesina Brasil

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