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quarta-feira, 15 de maio de 2013
Tragédia expõe debilidade de trabalhadoras têxteis de Bangladesh
por Suvendrini Kakuchi, da IPS
Derrocada de prédio, a 24 de abril, matou mais de mil trabalhadores e mostrou miséria dos trabalhadores do setor têxtil no Bangladesh
Daca, Bangladesh, 14/5/2013 – Até um mês atrás, a jovem Shapla era apenas mais uma empregada de uma fábrica da localidade de Savar, nos arredores da capital de Bangladesh. Atualmente, é uma sobrevivente com incapacidade de um dos piores acidentes da indústria têxtil deste país. A queda do grande Rana Plaza, um prédio com cinco fábricas, enterrou, no dia 24 de abril, uma enorme quantidade de trabalhadoras e trabalhadores sob um bloco de concreto e vidro. Havia quase mil mortes registradas, mas as buscas nos escombros prosseguiam.
“Fico desesperada pelo futuro”, declarou Shapla, de 18 anos. Um sentimento compartilhado por centenas de mulheres que, como ela, perderam algum membro naquele dia fatídico. Esta jovem mãe se recupera em um hospital de Daca da amputação de suas mãos. É considerada uma das “felizardas” por sobreviver à queda, mas ela resiste em ver um lado bom da tragédia, pois agora seguramente estará impedida de encontrar trabalho.
As mulheres, que constituem 80% da força de trabalho da pujante indústria do vestuário deste país, foram as mais afetadas pela tragédia. Também representam 80% das pessoas que morreram ou ficaram feridas no desastre. “Elas têm uma forte desvantagem social e econômica”, apontou Mashud Khatun Shefali, fundadora e diretora do Nari Uddung Kendra (Centro de Iniciativas de Mulheres).
Esta organização, dedicada a defender melhores condições de trabalho, ajuda as sobreviventes a superar o trauma do acidente, explicou Shefali. Algumas “ficaram tão mal que dizem que jamais voltarão a trabalhar em uma fábrica. Elas precisam de reabilitação física e psicológica de longo prazo, e que suas famílias e a sociedade as aceitem como pessoas com incapacidades”, destacou.
Bangladesh, onde a pobreza afeta 49% de seus 150 milhões de habitantes, desempenha há uma década um papel crucial no comércio internacional, ao oferecer uma vasta mão de obra barata. A indústria têxtil local é a terceira maior do mundo, atrás de China e Vietnã, com US$ 20 bilhões por ano, que representam 80% da entrada de divisas estrangeiras no país.
Grandes firmas do Ocidente ou de ricos países asiáticos, como Japão e Coreia do Sul, começaram a mudar seus centros de produção para Bangladesh quando os velhos polos produtivos, como Tailândia, aumentaram os salários. Companhias como Gap, Primark, HMV, Walmart, Sears e American Apparel produzem aqui roupa barata em massa, que depois é vendida aos países importadores.
Mais de cinco mil fábricas, com 3,5 milhões de trabalhadores lotando altos prédios em Daca e arredores, funcionam de forma ininterrupta. O quadro das empresas, das grandes e das pequenas, é principalmente de mulheres jovens de zonas rurais que emigram para a cidade esperando obter a capacitação à qual não têm acesso nas regiões agrícolas. Na cidade costumam morar juntas em lugares pequenos e dividir o banheiro e os alimentos.
Analfabetas e sem formação, as trabalhadoras têxteis têm poucos meios para conseguir uma renda estável. Sua vulnerabilidade as converte em presas fáceis dos empresários, os quais argumentam que, para continuarem “competitivos” no mercado mundial, devem gastar o menos possível com mão de obra.
Shefali contou que as jovens costumam começar como aprendizes e não recebem um salário, mas um pagamento que pode ser de apenas um dólar ao mês. Com o tempo passam a operar máquinas mais complexas e a ganhar um salário regular, disse a ativista. A maioria das mulheres costura, lava e empacota a roupa pelo equivalente a US$ 30 ou US$ 40, trabalhando uma média de dez horas por jornada os sete dias da semana. Já os homens costumam ocupar cargos mais altos, como controle de qualidade ou gerência.
O setor do vestuário é o que oferece maior número de emprego e proporciona um salário a milhares de mulheres. Entretanto, nos últimos tempos uma série de tragédias expôs as duras condições de trabalho no setor. Em novembro morreram cerca de cem trabalhadoras no incêndio da fábrica Tazreen Fashion, nos arredores de Daca. As sobreviventes denunciaram que os gerentes as trancaram quando tentaram escapar do fogo.
No acidente de 24 de abril, os responsáveis pela fábrica ameaçaram demitir as empregadas que não se apresentassem para trabalhar, apesar da advertência sobre a segurança do prédio de oito andares, que tinha autorização de construção para apenas cinco. Uma semana antes da tragédia, começaram a aparecer grandes rachaduras nos tetos e os engenheiros alertaram que a queda era inevitável.
A negligência em matéria de segurança trabalhista é uma das muitas violações de direitos que sofrem as empregadas das fábricas. Às vezes, devem cumprir turno de 14 horas para produzir uma partida que gerará um rápido benefício aos proprietários. Alguns ativistas dizem que, em um país muçulmano com altos índices de pobreza, a indústria têxtil oferece às mulheres uma oportunidade para sair de suas casas e melhorar seu status, pois passam de trabalhadoras do lar para provedoras da família.
A professora Sharmin Huq, aposentada pela Universidade de Daca e especialista em limitações físicas, teme que a discriminação social torne mais complicada a vida das mulheres. Também disse à IPS que as generosas doações que chegam de países como Alemanha e Estados Unidos para ajudar os sobreviventes devem ser canalizados para “a grande quantidade de trabalhadoras afetadas e ajudá-las a recomeçarem suas vidas”.
O capitalismo selvagem
Zahangir Kabir, proprietário da Rahman Apparels, com sede em Daca, reconhece que as condições de trabalho do setor têxtil são muito duras, mas argumentou que os empregadores são submetidos a “uma forte pressão”, e afirmou que pequenas companhias, como a sua, têm a obrigação de cumprir altos padrões comerciais e assumir perdas enormes.
Kabir tem duas fábricas, uma que costura e outra que lava jeans. Seu quadro de funcionários com 500 pessoas, na maioria mulheres, produz jaquetas e calças vendidas nos mercados europeus e norte-americanos. Mas os rígidos padrões de qualidade e prazos impostos pelas matrizes do Ocidente são difíceis de serem cumpridos em Bangladesh.
“Agitações políticas imprevistas e regulares cortes de eletricidade impedem o cumprimento dos prazos e a entrega de produtos baratos”, explicou Kabir. Os fornecedores de Bangladesh trabalham por uma prometida substanciosa renda, mas também enfrentam grandes riscos no “selvagem mercado capitalista”, afirmou. Envolverde/IPS
Fonte: Site Envolverde
http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/tragedia-expoe-debilidade-de-trabalhadoras-texteis-de-bangladesh/
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Direitos da Criadagem, essa afronta
Por Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa
“Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenavam-se as crianças ao desamparo e à mendicância. ‘Lei de Herodes’, segundo o romancista José de Alencar.
“Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça.
“Como dizia o Visconde de Sinimbu: ‘A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo’.”
As referências de Elio Gaspari em artigo sobre as cotas nas universidades, publicado há um ano (25/4/2012), se aplicariam perfeitamente ao alvoroço em torno da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que estabelece para o trabalho doméstico os mesmos direitos das demais atividades assalariadas. Não apenas porque esse trabalho deriva historicamente da nossa herança escravocrata: também, ou talvez principalmente, porque, no campo das relações trabalhistas, notórios “especialistas” são recorrentemente convocados a bater na tecla do direito como um entrave à livre negociação entre as partes, como se essas partes estivessem em pé de igualdade.
Não só na vida privada se recorre a eufemismos para nomear os subalternos: também nas grandes empresas começa a se disseminar o costume de chamar seus empregados por “colaboradores”, o que eventualmente pode sugerir uma alteração na relação contratual, nesses tempos de “flexibilização”, mas não esconde a tentativa de riscar a palavra “trabalhador” do mundo do capital. O que não altera a relação de exploração, mas pode mascará-la por esses artifícios de linguagem.
A lógica invertida
Foi, portanto, previsivelmente por essa lógica invertida – e pervertida – que os principais jornais pautaram suas reportagens sobre a PEC das Domésticas: chamando os “especialistas” de sempre para alertar para o risco de desemprego e o estímulo à informalidade que a lei provocaria, e para o transtorno que as novas obrigações representariam: calcular horas extras, recolher FGTS, pagar auxílio-creche exigiriam a contratação dos serviços de um contador e, consequentemente, mais gastos para o cidadão já massacrado por despesas de toda ordem para manter seu nível de vida – a casa, a escola e as múltiplas atividades dos filhos, o(s) carro(s), a ida a cinemas, restaurantes e shows, a academia, as festas, viagens e demais formas de lazer.
(Não deixa de ser curioso que, nas sucessivas reportagens sobre inadimplência, endividamento, aumento do custo de vida ou mesmo ecologia – sobre o desperdício de água, por exemplo – e estilo de vida, esses mesmos “especialistas” recomendem didática e pacientemente medidas de cortes de gastos ou mudança de hábitos, mas não se tenham lembrado disso no caso dos direitos das domésticas).
Ao mesmo tempo, ao montar um quadro comparativo entre as regras vigentes e as que passarão a vigorar a partir deste mês de abril, cada jornal trabalhou com os números como quis. Assim, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo se pautaram pela comparação mais lógica entre os gastos com a empregada contratada, o que evidencia um aumento de menos de 10%. Já O Globo, além desse quadro, elaborou outro para a hipótese de dispensa da empregada, de modo a sustentar o alarme na chamada da primeira página de quinta-feira (28/3): “Doméstica: custo de demissão dobra”, embora o texto informe que esta é apenas uma possibilidade e que a indenização do FGTS ainda depende de regulamentação.
O “espaço sagrado” do (nosso) lar
Na véspera, o mesmo jornal dedicara três páginas para tratar da lei recém-aprovada. Numa delas, destacava a turbulência vivida no “espaço ‘sagrado’ do lar” – o nosso lar, naturalmente, que o das domésticas ninguém sabe onde fica – e o “estresse” pelo qual os empregadores estariam passando. Na matéria, a voz principal é de uma professora “com tese de doutorado sobre relações de consumo” e “especialista” – sempre eles – “no comportamento de empregadas domésticas”. Ela diz: “Passar de uma relação personalista para uma relação impessoal é muito doloroso porque acontece no ambiente doméstico, na casa das pessoas, onde elas estão acostumadas a ter algum tipo de sentimento de dominação” (o grifo é meu).
Acrescente-se, portanto, a terapia como mais uma despesa causada pela nova lei, para tratar de superar esse nefasto sentimento.
Mas o melhor vem a seguir: “Deixar de ter uma empregada é um pequeno grande drama na casa das pessoas porque não temos estrutura social para deixar as crianças”.
Alguém alguma vez se incomodou com a falta de estrutura social para as domésticas deixarem as suascrianças?
O abismo social
Na Folha de quarta-feira (27/3), um notório “especialista” em relações de trabalho e recursos humanos aborda esse tema pelo lado da regulamentação: “Entre os 7 milhões de domésticas do país, muitas são empregadas de um lado e empregadoras do outro – contratam pessoas” – na grande maioria dos casos, informalmente – “para tomar conta de seus filhos e de suas casas enquanto trabalham fora”.
O Globo, ao pé da matéria de domingo (31/3) que reclama de “mais custos” e “mais burocracia”, dá consistência a esse quadro, relatando o caso de Taciane Carolina da Silva, de 18 anos:
“Para trabalhar com babá numa casa da zona norte de Recife, ela deixa a filha de 2 anos, Ingrid Giovana de Moura, durante toda a semana com um pessoa que recebe R$100 por mês. Taciane, que não tem nem o ensino fundamental, soube da lei das domésticas pela televisão, mas confia na amizade para que a sua auxiliar não exija dela os mesmos direitos que sua patroa tem como obrigações.
“Afirma que, se isso ocorrer, terá que deixar o trabalho e se cadastrar no Bolsa Família, porque na cidade de Aliança, onde nasceu e vive sua filha, não há creches:
“– A escola só aceita crianças a partir de três anos.
“Taciana só pega sua filha aos sábados e devolve no domingo à noite, porque às 4h30m da segunda-feira já pega a condução para Recife, para seu trabalho.”
É preciso, portanto, ler uma reportagem até o fim, porque o mais importante pode estar ali.
As pautas ausentes
Uma menina de 18 anos que foi mãe aos 16, de precária formação escolar, que sai de madrugada para cuidar do filho alheio e só vê a própria filha nos fins de semana: não estaria aí um bom ponto de partida para uma pauta sobre esse “outro lado” que tanto descuramos?
Pistas não faltam. Muitas estão, certamente, na própria casa dos jornalistas. Mas também seção de cartas: no Globo, entre tantos protestos contra a “demagogia” do governo com a nova lei, reivindicações por um “sindicato das patroas” e manifestações raivosas contra a boa vida das domésticas ao compartilharem a casa e a mesa da classe média, uma leitora lamenta a provável hipótese de ter de dispensar sua empregada, “uma pessoa ótima”, com seis filhos, cinco dos quais menores de idade. “Minha funcionária não consegue escola para a de 14 anos porque não tem vaga. Onde ela mora, não há creche para os menores”.
Não seria o caso de, finalmente, apresentar as condições de vida dessas pessoas, suas dificuldades, seus sonhos, suas perspectivas de ascensão social?
Apenas o Estadão, e ainda assim por outro enfoque – o da trajetória de trabalhadores domésticos na direção de outro tipo de serviço, mais qualificado ou de melhor status –, investe um pouco nessa linha, ao contar a história de uma jovem do interior da Bahia, que trabalhava na roça desde criança. Como doméstica, começou aos 13 anos e, claro, “não era vista como empregada – era a ‘agregada’ que fazia todo o serviço da casa, outra herança do Brasil escravocrata”. Conseguiu ir para São Paulo, teve o apoio do novo patrão para estudar, formou-se em Letras e hoje é professora e guia de turismo.
Nos artigos, o esclarecimento
A reportagem é o espaço privilegiado do jornal, mas, fora esses breves exemplos, quem não quis se deixar levar pela excitação contra os novos direitos das domésticas precisou se socorrer no espaço de opinião dos jornais paulistas. Na Folha(quinta-feira, 28/3), o advogado Otávio Pinto e Silva (ver aqui) fala na “radical mudança cultural” a ser enfrentada mas mostra que não há motivo para alarde em relação às obrigações trabalhistas:
“É preciso estimular os empregadores domésticos a registrar os contratos de seus empregados, facilitando e desburocratizando os procedimentos relativos ao recolhimento de contribuições previdenciárias e depósitos de FGTS, com o uso da internet. Lembremos que no âmbito residencial não existe um departamento de pessoal ou de RH, encarregado de preencher guias e formulários para pagamentos bancários”.
No Estadão (sábado, 30/3), o artigo do sociólogo Ricardo Antunes (ver aqui) é um tapa na cara da arrogância dos mais ricos:
“Nossa origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala, soube amoldar-se ao avanço das cidades. A modernização conservadora deu longevidade ao servilismo da casa grande para as famílias citadinas. As classes dominantes sempre exigiram as vantagens do urbanismo com as benesses do servilismo, com um séquito de cozinheiras, faxineiras, motoristas, babás, governantas e, mais recentemente, personal trainers para manter a forma, valets nos restaurantes para estacionar os carros, etc.”
Antunes mostra, ao mesmo tempo, que há divisões entre a classe média – algo de que as reportagens não deram conta:
“Com as classes médias o quiproquó é maior: os seus estratos mais tradicionais e conservadores agem quase como um espelhamento deformado das classes proprietárias e vociferam a “revolta da sala de jantar”: não será estranho se começarem a defender o direito das trabalhadoras domésticas não terem os direitos ampliados. E sua bandeira principal já está indicada: são contrárias à ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas para lhes evitar o desemprego.
“Nos núcleos mais intelectualizados e democráticos das classes médias, há o sentimento de que uma chaga está sendo reduzida. Percebem a justeza destes direitos sociais válidos para o conjunto da classe trabalhadora, ainda que sua conquista altere significativamente seu modo de vida. Mais próxima (ou menos distante) do cenário dos países do Norte, tende a recorrer cada vez mais ao trabalho doméstico diarista em substituição ao mensalista.”
Todo jornal tem seus compromissos de classe, mas ao mesmo tempo não pode se recusar a abrir espaço ao contraditório. Pelo menos no espaço de opinião, é possível perceber a necessidade de enfrentar o abismo social que passeia entre a sala e a cozinha e compreender que nosso bem-estar não pode se sustentar às custas da exploração do outro.
Fonte: Blog do Miro
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Pressão fatal
Modelos de gestão movidos a competição nociva, assédio moral e humilhações podem explicar um ato extremo: o suicídio
João Correia, na Rede Brasil Atual
Cláudio debruçou-se sobre o parapeito de uma das passarelas da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Só tinha em mente pular e terminar com todo o sofrimento. Foi impedido por um companheiro de trabalho que passava. Maria tomou mais de 20 comprimidos, mas a dose não foi suficiente para que ela acabasse com a própria vida. Gislaine também tentou o suicídio tomando comprimidos.
Depois, jogou-se de uma das escadas de sua casa e sofreu traumas no corpo. Essas pessoas têm mais em comum do que o fato de ainda estarem vivas após frustradas tentativas de suicídio. A primeira semelhança, o diagnóstico de depressão profunda, os insere numa estatística silenciosa e alarmante: estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas sofram dessa doença no Brasil. O segundo elo está nos motivos que os levaram à decisão de se matar: problemas no trabalho. “Nos três casos ficaram claros fatores como assédio moral, perseguições, humilhações e sobrecargas, que desestruturaram e destruíram a vida dessas pessoas”, afirma Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalhador, pioneira no estudo do assédio moral.
Margarida é uma das autoras da cartilha Suicídio e Trabalho – Manual de Promoção à Vida para Trabalhadores e Trabalhadoras, lançada em maio pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo. Há uma década, sua pesquisa estarrecedora sobre assédio moral, intitulada Jornada de Humilhações, revelou que de 2.072 entrevistados 42% sofriam de humilhações constantes em seus ambientes laborais – 16% desse grupo já havia pensado em se matar.
No ano passado, a médica organizou outra pesquisa, Suicídio e Trabalho: Homicídio Culposo Corporativo?, ouvindo 400 trabalhadores, 84 homens e 316 mulheres. Mais de um quarto desse grupo teve ideias suicidas ligadas ao trabalho – tendência proporcionalmente mais presente entre os homens (37%, ante 24% das mulheres). “Os resultados da pesquisa e as histórias colhidas em meu consultório chamaram a atenção para uma realidade que coloca o suicídio como resultado da exploração constante que os trabalhadores têm sofrido, como um grito de socorro que ainda não foi ouvido.”
Para o psicólogo Nilson Berenchtein Netto, co-autor da cartilha, um dos motivos para que a relação entre suicídio e trabalho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros transtornos psíquicos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo. “Ou se diz que essas patologias ocorrem por falta de algum neurotransmissor, de alguma substância que faz com que a pessoa se deprima, ou que surgem do próprio psiquismo, considerando que ela se deprimiu porque não conseguiu se adaptar às relações sociais e pessoais. Essas correntes não levam em conta o trabalho como uma categoria fundamental na constituição do homem nem, portanto, a relação entre trabalho, depressão e suicídio”, diz Netto.
Fora do Brasil, um caso que tem chamado a atenção da imprensa mundial é o da empresa chinesa Foxconn. Foram 13 suicídios de funcionários nos últimos oito meses. A Foxconn, fornecedora de equipamentos eletrônicos para gigantes como Dell, Sony, HP e Apple, é acusada de submeter funcionários a uma disciplina militar e constante assédio moral.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, 3 mil pessoas suicidam-se todos os dias no mundo. A média aumentou 60% nos últimos 50 anos. Porém, a maioria dos órgãos ligados ao assunto, incluída a OMS, distancia-se de ver danos decorrentes de relações inadequadas de trabalho. Embora assuma o suicídio como problema de saúde pública, o órgão liga os casos a transtornos mentais, depressão, drogas. E quando os relaciona ao trabalho o faz de maneira discreta, atribuindo-os a vulnerabilidade individual.
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a taxa de 4,5 casos de suicídio em cada 100 mil mortes é considerada baixa, embora seu crescimento seja preocupante. Mais de 90% deles são atribuídos a transtornos mentais e ao abuso de substâncias psicoativas, sem relação direta com o universo do trabalho.
Margarida Barreto vê nesse cenário uma tentativa de responsabilizar o indivíduo pelo suicídio, deixando de lado fatores sociais marcantes. “É preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas, baseada no assédio moral e numa verdadeira gestão por injúria”, reforça a médica.
Lourival Batista Pereira, coordenador da Secretaria de Saúde do Sindicato dos Químicos de São Paulo, questiona a quem interessa o silêncio diante dessa problemática. “As empresas não têm intenção de assumir esse ônus, pois é comum tratar o trabalhador como uma peça descartável”, afirma.
A costureira Gislaine vê seu caso como exemplo. Entre 2003 e 2004, depois de ingressar numa multinacional do setor de plásticos, passou a sofrer humilhações constantes de uma das gerentes. “Eu trabalhava das 7h às 17h e, quando acabava meu serviço, ela descosturava tudo e dizia que estava malfeito para me humilhar. Dizia ter carta branca pra fazer o que quisesse”, conta Gislaine.
“Cheguei a ter um enfarte e tive de ser afastada. Quando voltei, 20 dias depois, retomaram as humilhações. Perdi peso, adoeci e fui ficando sem noção das coisas. Comecei a bater nas minhas filhas, deixei de ser uma pessoa alegre e me desestruturei completamente, profissionalmente e com minha família.” A situação culminou numa depressão profunda e em duas tentativas de suicídio. “Não tinha força nem para sair da cama. Só pensava em acabar com a vida”. Aos 51 anos, ela ainda vive à base de antidepressivos.
Pouco avanço
Perseguições e descaso também fazem parte da tragédia de Cláudio. Funcionário do setor de estoque de uma multinacional do ramo de tintas, ele começou a perceber que as regras de segurança não eram cumpridas. “Como eu questionava, começaram a me perseguir, dar trabalhos mais pesados. Havia funcionários que, por medo de represálias dos encarregados, nem sentavam mais ao meu lado. Me deram duas advertências só para que eu me calasse diante dos problemas e me colocaram para trabalhar numa área isolada. Comecei a entrar em pânico, a ter crises de choro, me descontrolar. A tentativa de suicídio foi pensando que assim a polícia veria o que estava acontecendo lá dentro”, conta o jovem de 29 anos.
Dois anos de perseguições provocaram em Cláudio um quadro de esquizofrenia que o obrigou a ficar internado numa clínica psiquiátrica por 20 dias. “Não conseguia mais sair na rua e comecei a achar que todos estavam me perseguindo, inclusive gente da família. Eu não entendia quem mentia e quem falava a verdade. Perdi o rumo da minha vida”, lamenta Cláudio, que há um ano trabalha em outra empresa e ainda precisa de medicamentos para depressão.
Para Lourival, do Sindicato dos Químicos, outro indício desse descaso está nos índices de adoecimento e de acidentes de trabalho, que engordam as estatísticas negativas do atual modelo de gestão empresarial. “Essas duas situações costumam gerar demissão e perseguição. O funcionário hoje só serve se está muito bem. Doente, incomoda, aí vêm as perseguições, numa tentativa de que eles se demitam sem direito a nada”, diz.
O caso de Maria é emblemático. Depois de 20 anos trabalhando na mesma empresa, multinacional do ramo de cosméticos, começou a sentir dores crônicas e teve de passar por cirurgias. “Foram cinco nos últimos cinco anos, nas mãos, no ombro esquerdo e no braço direito. Tive tendinite, rompimento nos dois ombros, e ainda não estou bem. Perdi o movimento e fiquei com deformações no braço. Dediquei toda minha vida a essa profissão e fui largada de lado”, lamenta. Maria recupera-se da última cirurgia e espera por decisões da Justiça do Trabalho e do INSS, que podem lhe render uma indenização ou a aposentadoria. Ou nada.
Dependendo do resultado, ela entrará para um seleto grupo de trabalhadores que ganharam ações na Justiça por assédio moral, o que começa a ocorrer no Brasil. Existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios e vários no âmbito federal à espera de votação. Na esfera estadual, desde maio de 2002, o Rio de Janeiro condena a prática. Também há projetos em tramitação em São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná e Bahia.
Gislaine entrou na Justiça contra sua algoz e ganhou a causa por assédio moral. A perseguidora foi condenada a pagar 250 cestas básicas à comunidade, “entregues por mim, em locais muito pobres, algo que me lavou a alma”, diz Gislaine. Cláudio também ganhou a causa na Justiça do Trabalho e a empresa foi obrigada a pagar um ano de plano de saúde e R$ 8 mil de indenização, o suficiente para que o rapaz pagasse as contas que se acumularam enquanto esteve afastado. Muito pouco para pagar as despesas que tem com os antidepressivos. Mais
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João Correia, na Rede Brasil Atual
Cláudio debruçou-se sobre o parapeito de uma das passarelas da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Só tinha em mente pular e terminar com todo o sofrimento. Foi impedido por um companheiro de trabalho que passava. Maria tomou mais de 20 comprimidos, mas a dose não foi suficiente para que ela acabasse com a própria vida. Gislaine também tentou o suicídio tomando comprimidos.
Depois, jogou-se de uma das escadas de sua casa e sofreu traumas no corpo. Essas pessoas têm mais em comum do que o fato de ainda estarem vivas após frustradas tentativas de suicídio. A primeira semelhança, o diagnóstico de depressão profunda, os insere numa estatística silenciosa e alarmante: estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas sofram dessa doença no Brasil. O segundo elo está nos motivos que os levaram à decisão de se matar: problemas no trabalho. “Nos três casos ficaram claros fatores como assédio moral, perseguições, humilhações e sobrecargas, que desestruturaram e destruíram a vida dessas pessoas”, afirma Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalhador, pioneira no estudo do assédio moral.
Margarida é uma das autoras da cartilha Suicídio e Trabalho – Manual de Promoção à Vida para Trabalhadores e Trabalhadoras, lançada em maio pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo. Há uma década, sua pesquisa estarrecedora sobre assédio moral, intitulada Jornada de Humilhações, revelou que de 2.072 entrevistados 42% sofriam de humilhações constantes em seus ambientes laborais – 16% desse grupo já havia pensado em se matar.
No ano passado, a médica organizou outra pesquisa, Suicídio e Trabalho: Homicídio Culposo Corporativo?, ouvindo 400 trabalhadores, 84 homens e 316 mulheres. Mais de um quarto desse grupo teve ideias suicidas ligadas ao trabalho – tendência proporcionalmente mais presente entre os homens (37%, ante 24% das mulheres). “Os resultados da pesquisa e as histórias colhidas em meu consultório chamaram a atenção para uma realidade que coloca o suicídio como resultado da exploração constante que os trabalhadores têm sofrido, como um grito de socorro que ainda não foi ouvido.”
Para o psicólogo Nilson Berenchtein Netto, co-autor da cartilha, um dos motivos para que a relação entre suicídio e trabalho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros transtornos psíquicos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo. “Ou se diz que essas patologias ocorrem por falta de algum neurotransmissor, de alguma substância que faz com que a pessoa se deprima, ou que surgem do próprio psiquismo, considerando que ela se deprimiu porque não conseguiu se adaptar às relações sociais e pessoais. Essas correntes não levam em conta o trabalho como uma categoria fundamental na constituição do homem nem, portanto, a relação entre trabalho, depressão e suicídio”, diz Netto.
Fora do Brasil, um caso que tem chamado a atenção da imprensa mundial é o da empresa chinesa Foxconn. Foram 13 suicídios de funcionários nos últimos oito meses. A Foxconn, fornecedora de equipamentos eletrônicos para gigantes como Dell, Sony, HP e Apple, é acusada de submeter funcionários a uma disciplina militar e constante assédio moral.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, 3 mil pessoas suicidam-se todos os dias no mundo. A média aumentou 60% nos últimos 50 anos. Porém, a maioria dos órgãos ligados ao assunto, incluída a OMS, distancia-se de ver danos decorrentes de relações inadequadas de trabalho. Embora assuma o suicídio como problema de saúde pública, o órgão liga os casos a transtornos mentais, depressão, drogas. E quando os relaciona ao trabalho o faz de maneira discreta, atribuindo-os a vulnerabilidade individual.
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a taxa de 4,5 casos de suicídio em cada 100 mil mortes é considerada baixa, embora seu crescimento seja preocupante. Mais de 90% deles são atribuídos a transtornos mentais e ao abuso de substâncias psicoativas, sem relação direta com o universo do trabalho.
Margarida Barreto vê nesse cenário uma tentativa de responsabilizar o indivíduo pelo suicídio, deixando de lado fatores sociais marcantes. “É preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas, baseada no assédio moral e numa verdadeira gestão por injúria”, reforça a médica.
Lourival Batista Pereira, coordenador da Secretaria de Saúde do Sindicato dos Químicos de São Paulo, questiona a quem interessa o silêncio diante dessa problemática. “As empresas não têm intenção de assumir esse ônus, pois é comum tratar o trabalhador como uma peça descartável”, afirma.
A costureira Gislaine vê seu caso como exemplo. Entre 2003 e 2004, depois de ingressar numa multinacional do setor de plásticos, passou a sofrer humilhações constantes de uma das gerentes. “Eu trabalhava das 7h às 17h e, quando acabava meu serviço, ela descosturava tudo e dizia que estava malfeito para me humilhar. Dizia ter carta branca pra fazer o que quisesse”, conta Gislaine.
“Cheguei a ter um enfarte e tive de ser afastada. Quando voltei, 20 dias depois, retomaram as humilhações. Perdi peso, adoeci e fui ficando sem noção das coisas. Comecei a bater nas minhas filhas, deixei de ser uma pessoa alegre e me desestruturei completamente, profissionalmente e com minha família.” A situação culminou numa depressão profunda e em duas tentativas de suicídio. “Não tinha força nem para sair da cama. Só pensava em acabar com a vida”. Aos 51 anos, ela ainda vive à base de antidepressivos.
Pouco avanço
Perseguições e descaso também fazem parte da tragédia de Cláudio. Funcionário do setor de estoque de uma multinacional do ramo de tintas, ele começou a perceber que as regras de segurança não eram cumpridas. “Como eu questionava, começaram a me perseguir, dar trabalhos mais pesados. Havia funcionários que, por medo de represálias dos encarregados, nem sentavam mais ao meu lado. Me deram duas advertências só para que eu me calasse diante dos problemas e me colocaram para trabalhar numa área isolada. Comecei a entrar em pânico, a ter crises de choro, me descontrolar. A tentativa de suicídio foi pensando que assim a polícia veria o que estava acontecendo lá dentro”, conta o jovem de 29 anos.
Dois anos de perseguições provocaram em Cláudio um quadro de esquizofrenia que o obrigou a ficar internado numa clínica psiquiátrica por 20 dias. “Não conseguia mais sair na rua e comecei a achar que todos estavam me perseguindo, inclusive gente da família. Eu não entendia quem mentia e quem falava a verdade. Perdi o rumo da minha vida”, lamenta Cláudio, que há um ano trabalha em outra empresa e ainda precisa de medicamentos para depressão.
Para Lourival, do Sindicato dos Químicos, outro indício desse descaso está nos índices de adoecimento e de acidentes de trabalho, que engordam as estatísticas negativas do atual modelo de gestão empresarial. “Essas duas situações costumam gerar demissão e perseguição. O funcionário hoje só serve se está muito bem. Doente, incomoda, aí vêm as perseguições, numa tentativa de que eles se demitam sem direito a nada”, diz.
O caso de Maria é emblemático. Depois de 20 anos trabalhando na mesma empresa, multinacional do ramo de cosméticos, começou a sentir dores crônicas e teve de passar por cirurgias. “Foram cinco nos últimos cinco anos, nas mãos, no ombro esquerdo e no braço direito. Tive tendinite, rompimento nos dois ombros, e ainda não estou bem. Perdi o movimento e fiquei com deformações no braço. Dediquei toda minha vida a essa profissão e fui largada de lado”, lamenta. Maria recupera-se da última cirurgia e espera por decisões da Justiça do Trabalho e do INSS, que podem lhe render uma indenização ou a aposentadoria. Ou nada.
Dependendo do resultado, ela entrará para um seleto grupo de trabalhadores que ganharam ações na Justiça por assédio moral, o que começa a ocorrer no Brasil. Existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios e vários no âmbito federal à espera de votação. Na esfera estadual, desde maio de 2002, o Rio de Janeiro condena a prática. Também há projetos em tramitação em São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná e Bahia.
Gislaine entrou na Justiça contra sua algoz e ganhou a causa por assédio moral. A perseguidora foi condenada a pagar 250 cestas básicas à comunidade, “entregues por mim, em locais muito pobres, algo que me lavou a alma”, diz Gislaine. Cláudio também ganhou a causa na Justiça do Trabalho e a empresa foi obrigada a pagar um ano de plano de saúde e R$ 8 mil de indenização, o suficiente para que o rapaz pagasse as contas que se acumularam enquanto esteve afastado. Muito pouco para pagar as despesas que tem com os antidepressivos. Mais
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