sábado, 24 de março de 2012

Quem ganha e quem perde com o REDD e Pagamento por Serviços Ambientais?

Grupo Carta de Belém - Original transcrito do site Terra de Direitos

Organizações e movimentos sociais alertam sobre riscos da mercantilização da natureza e apontam alternativas ao modelo vigente


Documento de Sistematização das Convergências do Grupo Carta de Belém extraídas do seminário sobre REDD+ e Pagamento por Serviços Ambientais X Bens Comuns - Brasília, 21 e 22 de novembro de 2011

Passados quase 20 anos da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92 e da realização de 17 Conferências das Partes (COP) sobre mudanças climáticas, 9 COPs sobre desertificação e 10 sobre biodiversidade, os desequilíbrios climáticos se aceleram pelo mundo, a biodiversidade vegetal e animal está em regressão, os desertos crescem, as florestas e as zonas úmidas encolhem.

Durante este período, várias promessas e medidas foram adotadas por estas Conferências, mas ao contrário do que anunciam, os resultados que estas têm produzido vem nos levando a um processo de mercantilização dos bens comuns e da natureza, que acelera a destruição e a usurpação das florestas, da biodiversidade e dos territórios dos povos e comunidades.

Há uma grande centralidade dada às propostas corporativas e de mercado nas Convenções ambientais. Por exemplo, a criação de instrumentos financeiros como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que oficializa o mercado de carbono como política de combate às mudanças climáticas, e o REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) na Convenção de Clima; e a ferramenta econômica de valoração dos bens e serviços ambientais, o TEEB (Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade) na Convenção da Diversidade Biológica. Propostas que pretendem transferir para o mercado o cumprimento dos objetivos de redução de emissões quanto ao uso sustentável e à conservação da biodiversidade, enfraquecendo tais Convenções como fóruns multilaterais de negociação e atrasando a implementação dos objetivos das mesmas através de políticas sob responsabilidade dos Estados/Nações.

No caso específico do REDD, ao atrair a atenção do mundo sobre a importância das florestas para as mudanças climáticas, ainda que o desmatamento contribua com algo entre 11 e 20% da emissão global de gases de efeito estufa, desvia-se o foco do modelo industrial de produção e consumo desenfreado do Norte e das elites do Sul, principal responsável pelas catástrofes climáticas e a degradação dos ecossistemas, inclusive causa subjacente dos vetores que levam à destruição das florestas.

Neste sentido, o Grupo Carta de Belém formado por redes, organizações e movimentos sociais do Brasil que conformam um campo crítico às propostas de mercantilização dos bens comuns e da financeirização da natureza, pretende com esta publicação: apontar suas preocupações em relação a estes processos em curso; e dar visibilidade as iniciativas populares que devem ser fortalecidas pelo Estado brasileiro, através de políticas públicas estruturantes e eficazes, que fortaleçam as escolhas e os modos de produção sustentáveis da agricultura familiar e camponesa, extrativistas, povos indígenas e comunidades tradicionais associados ao uso sustentável da biodiversidade e da agrobiodiversidade.

Entendendo a lógica...
No caso do REDD, o foco da redução das emissões de gases do efeito estufa está nas florestas, sendo que a maioria das grandes florestas se encontra na faixa equatorial. Assim, os países desenvolvidos não apenas transferem sua responsabilidade para os países e povos do Sul, como passam a se apropriar da gestão de suas florestas e de seus territórios, pois estes passam a estar comprometidos com a captura de carbono produzido pelos países desenvolvidos. No caso brasileiro o processo está muito avançado, haja vista que leis estão sendo criadas para institucionalizar o mercado de títulos de emissões das florestas, como poderá ser visualizado mais adiante.

Como funciona e qual a relação do REDD com o Código Florestal e o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA)
Ao participar desse mercado de compensações das emissões, as florestas e os territórios passam a ser “o lastro”, ou seja, a garantia que autoriza a emissão de novos títulos de propriedade, os chamados “títulos verdes”. Por exemplo, uma pessoa vende um papel (um título) que diz que X vale o equivalente ao gás de efeito estufa (calculado como gás carbônico equivalente – CO²e) que não será emitido por um hectare de floresta preservada. O comprador pergunta o que lhe garante que isso é verdade. O vendedor responde que em tal lugar da Amazônia há um hectare de Resex ou de terra indígena ou de parque nacional preservado.

Estes títulos podem representar tanto a propriedade sobre o gás carbônico evitado (CREDD – Certidão de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) ou sobre a imobilização de 1 hectare de floresta nativa (CCRA – Certidão de Cota de Reserva Ambiental), prevista entre as alterações propostas ao novo Código Florestal como passível de compra por quem desmatou. A compra e venda destes títulos é feita na Bolsa de Valores por agentes privados, que passam a pagar os chamados “serviços” ambientais para os detentores das florestas nos territórios, em troca da emissão do título em seu nome.

Na prática, isso significa que os/as agricultores/as familiares e camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais, passem a ser identificados apenas como “fornecedores ou prestadores de serviços ambientais”. Isso traz grandes implicações em relação a seus modos de vida e identidade como sujeitos políticos autônomos e portadores de um projeto alternativo de sociedade, reconhecido socialmente graças as suas atividades e lutas históricas. Além disso, colocam estas populações como fiel da balança no sentido de “dar licença para poluir” aos compradores destes serviços.

Aquele que compra o “título verde” não só fica autorizado a continuar produzindo degradação e poluição, como lucra com a especulação destes novos ativos florestais no mercado financeiro. Os mesmos donos dos meios de produção responsáveis pela degradação e poluição pretendem ganhar duas vezes.

Primeiro graças ao crescimento insustentável que provoca a destruição e depois com as falsas soluções para combater o que foi destruído. Quanto maior o crescimento insustentável, a degradação das florestas, os desastres ambientais e a emissão de gases de efeito estufa, maiores os valores dos “serviços ambientais”. A fórmula é estritamente econômica e nada tem a ver com conservação e uso sustentável.

É esta a lógica de transformação da natureza em mercadoria: fazer com que ela possa ser comprada e vendida no mercado global. A natureza passa a integrar a proposta de uma economia “verde” ou “de baixo carbono” Então, o que se anuncia por detrás disso é uma
nova fase de acumulação primitiva do capital sobre diversos componentes da natureza, até então fora do mercado. Com a produção de novas propriedades, mercadorias e títulos, o sistema financeiro em crise passa a ter um novo lastro, ou seja, a garantia necessária para fazer seus negócios.

Parece triunfar como alternativa o já velho tripé que baseia o atual projeto de desenvolvimento insustentável: privatização, mercantilização e financeirização dos bens comuns, dos territórios e dos recursos naturais. Desde os primórdios do capitalismo este projeto já existe, nossas gerações o viram nos atingir diretamente. Foram muitas as tentativas de eliminar os direitos dos agricultores sobre suas terras, através da ofensiva da grilagem e do agronegócio. E outras tentativas de tirarem o direito dos agricultores sobre suas sementes, por meio da imposição de um pacote tecnológico que ao anunciar uma “revolução”, também pintada de “verde”, acabaram por transformar os agricultores à consumidores da cadeia de produção das transnacionais, com a imposição das sementes transgênicas e o aumento dos monocultivos e dos agrotóxicos.

A violação aos direitos dos agricultores, povos e comunidades tradicionais se acentua, e com o apoio do Estado brasileiro. Esse aprofundamento se dá com:

• a eliminação de barreiras para a ampliação do agronegócio;
• a redução do orçamento e do aparato administrativo para a promoção da Reforma Agrária;
• as tentativas de frear e suspender a demarcação e a homologação de terras Indígenas, Quilombolas e de Reservas Extrativistas;
• o abrandamento do licenciamento ambiental e da aceleração da implantação de usinas hidrelétricas, projetos de mineração e indústrias pesadas;
• a flexibilização dos principais marcos de proteção ambiental como o Código Florestal.

Reformas, novas leis e contratos revestidos de preocupação ambiental podem ser verdadeiros “cavalos de tróia”, trazendo os interesses do mercado e enfraquecendo a soberania do país, dos povos e das comunidades locais sobre a gestão dos recursos, florestas e dos territórios.

O contrato de REDD, agora na versão REDD+ - que acrescenta o manejo florestal sustentável e a conservação e aumento dos estoques de carbono florestal -, tem a principal intenção de disputar a gestão dos territórios com os povos e comunidades que historicamente os protegem.

Quem no futuro vai dizer a maneira como querem gerir seus territórios e assegurar o equilíbrio entre a preservação e suas atividades produtivas? Será que o mercado é que vai decidir por eles?

Com a atenção fixada sobre o tripé floresta-clima-carbono, povos, comunidades e agricultura familiar e camponesa – que têm seus modos de vida indissociáveis do uso e conservação dos ecossistemas – se tornam quase invisíveis, considerados somente como instrumentos de uma engrenagem já desenhada pelo mercado como solução.

A complexidade técnica dos cálculos do carbono e o aparato financeiro e burocrático previsto para a implantação de REDD+ e desse mercado combinam-se para afastar os centros de decisão real das organizações de base e, portanto, de uma democracia real. Por um lado avança a construção de mecanismos que garantem a expansão da apropriação das terras e dos recursos naturais pelo mercado, e por outro, aumenta a paralisia das políticas públicas de acesso à terra e ao território para as comunidades e povos tradicionais.

Fique de olho!!!
Há um acelerado processo de reformas legais e políticas em curso no Brasil a fim de adequar ou legalizar o avanço do capital sobre terras e recursos, tais como:

• Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), aprovada através da Lei 12.187/2009 e do Decreto 7.390/2010, pretende garantir o cumprimento das metas voluntárias de redução de emissões, assumidas na COP 15, em Copenhague. Colocou em marcha acelerada as alterações não apenas das políticas ambientais, mas também de políticas para os diversos setores econômicos como agricultura, siderurgia, transportes, energia, trabalho, tecnologia, etc. Na prática se traduz em sérias flexibilizações dos marcos legais conquistados e em uma mudança de paradigma no trato da matéria sócio-ambiental no país, como fica claro com a criação do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), o Novo Código Florestal e a tramitação de novos projetos de lei descritos abaixo.

• Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), criado pela PNMC, será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, através da negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitados. É o pilar da chamada economia do carbono e principal “título verde”.

• Projeto de Lei 195/2011 sobre REDD+, de autoria da Deputada Rebecca Garcia (PP-AM). Prevê a criação do Certificado de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (CREDD), título mobiliário representativo de 1 tonelada de dióxido de carbono equivalente evitada (1tCO2e), criando direitos sobre o carbono ou a propriedade privada sobre o ar e a possibilidade de circulação da nova mercadoria da chamada “economia de baixo carbono”.

• Novo Código Florestal, já aprovado pelo Senado, flexibiliza as leis ambientais em curso no país, contém um capítulo dedicado aos incentivos ‘positivos’ onde autoriza a emissão de títulos de crédito representativos de 1 hectare de floresta nativa, chamados de Cota de Reserva Ambiental (CRA), que poderão ser comprados e vendidos tanto para compensar a Reserva Legal exigida por lei, como para serem negociadas em bolsas de valores no mercado financeiro.

• PL 792/2007 sobre Pagamentos por Serviços Ambientais, assim como presente no novo Código Florestal, pretende estabelecer a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais, que antecede um mercado nacional destes serviços. O PL pretende autorizar a comercialização de diversos componentes da biodiversidade, através de contratos privados ou públicos realizados entre comunidades fornecedoras de “serviços ambientais” e empresas poluidoras-compradoras de autorizações para continuar a gerar danos (“compensações ambientais”). O que não significa um incentivo econômico conferido por políticas públicas para quem sempre preservou, mas a comercialização dos componentes da biodiversidade e dos bens comuns.

Esta engenharia legal faz com que os povos, comunidades tradicionais e os camponeses, passem a ser identificados tão somente como “fornecedores de serviços ambientais”, seja com a captura de carbono através do mecanismo REDD+, até com o fornecimento de água ou de polinizadores. A assinatura de contratos de PSA, do modo como vem sendo tratado no Congresso Nacional, fazem com que o “fornecedor do serviço” ceda seus direitos de uso sobre a área contratada, autorizando o LIVRE ACESSO ao comprador-pagador por no mínimo 15 anos (servidão ambiental). Em troca do pagamento é autorizada a emissão de um título de carbono (CREDD) ou de outro título que represente a floresta nativa da área (CRA) ao comprador-pagador do “serviço ambiental”, para ser negociado na bolsa de valores. Foi dada a largada para a inserção do ar e das florestas no mercado financeiro, assim como para a apropriação dos territórios para as mãos do agronegócio e dos agentes de mercado.

Resistir é preciso
Diante deste quadro acelerado de liberalização de marcos legais e políticas públicas conquistadas historicamente pelas lutas sociais e pelo conjunto da população brasileira, as quais trazem o mercado financeiro como principal regulador das relações em sociedade, o Grupo Carta de Belém se opõe abertamente à:
• entrega às empresas e ao mercado financeiro do poder de decisão e de intervenção sobre os territórios, pretendidas com a acelerada modificação de marcos legais e políticas públicas, seja através de contratos de pagamentos por serviços ambientais, contidos no PL 792/2007, do mecanismo de REDD+ presente no PL 195/2011, e com a flexibilização do Código Florestal;
• transformação das propostas e demandas históricas
das populações, organizações e movimentos sociais em mecanismos de mercado;
• qualquer marco legal ou política que induza a compra e venda de direitos. O meio ambiente ecologicamente equilibrado, a alimentação nutricional adequada, o acesso à terra e ao território, o trabalho, a saúde e a educação são Direitos Humanos que devem ser acessados por todos e todas, por dever constitucional do Estado e não através da assinatura de contratos, por tempo determinado, com financiadores privados;
• financeirização e entrada da lógica do mercado de carbono em iniciativas de compromisso social com a igualdade e a justiça socioambiental, como a agroecologia, os sistemas agroflorestais e outras tecnologias sociais dos territórios dos povos, comunidades e do campesinato;
• modificação do texto do Código Florestal, cujo lobby para alteração foi financiado pelas principais empresas desmatadoras do país e pelos integrantes da bancada ruralista. As modificações do Código mostram a verdadeira face do projeto empresarial e do agronegócio, como um passo para a inclusão dos mecanismos de REDD+ e dos serviços ambientais para permitir ao agronegócio que lucre com o aumento das áreas desmatadas, abertas à produção de grãos e à pecuária, como também com a conservação e a recuperação de áreas degradadas (APPs e RLs);
• flexibilização dos diversos marcos legais, inclusive constitucionais, que significam retrocesso social e violação de direito humanos e dos direitos dos agricultores, povos e comunidades tradicionais, como é o caso da PEC 215, que pretende alterar a constituição para que seja de competência exclusiva do legislativo a possibilidade de titulação dos territórios indígenas, quilombolas e unidades de conservação; como também quanto as exigências ambientais de estudo e relatório de impacto ambiental; e do ataque à constitucionalidade do Decreto nº 4.887/03 que regula a titulação dos territórios quilombolas; dos direitos ao consentimento livre, prévio e informado;
• redução dos ecossistemas e das funções ambientais a uma categoria de mercado, como se a natureza e os grupos sociais que vivem nela e dela não tivessem outra razão de existência do que a de estar ao serviço do mesmo. Nos opomos a qualquer política de incentivo ou remuneração de serviços ambientais que traga a possibilidade de privatização dos bens comuns. Não aceitamos que a biodiversidade seja tratada de forma fragmentada a ponto de liberar seus componentes para serem comprados e vendidos, como querem fazer com o mercado de carbono, da água, polinização das abelhas, beleza cênica, entre outros;
• perda de autonomia das comunidades e povos sobre seus territórios e sobre o modo como interagem com os territórios, provocada pelos compromissos que vão assumir perante os financiadores dos “serviços” ambientais, porque é extremamente complicado dominar o aparato técnico e escapar das teias da burocracia. Esta lógica impõe um conhecimento científico-técnico em oposição aos saberes e ao modo de vida local, que passam a ser desvalorizados, ignorados, difamados e criminalizados;
• medidas legais e políticas que vem se materializando nos territórios como violência, com a imposição de normas que confrontam os costumes e as estratégias de sobrevivência das comunidades e povos. Isso vem gerando novas possibilidades de criminalização, mais expulsões e violência, como é o caso das políticas de crédito e seguro que rejeitam as sementes e mudas crioulas, ou ainda a sua venda pelas comunidades agricultoras. Exemplo disso é o não reconhecimento das tecnologias sociais de segurança e soberania alimentar, como é o caso dos bancos comunitários de sementes, ou ainda as barreiras impostas pela vigilância sanitária que criminalizam e impedem o escoamento da produção da agricultura familiar camponesa e dos povos e comunidades tradicionais;
• atual estagnação e retrocesso das políticas públicas estruturantes destinadas ao fortalecimento dos agricultores, povos indígenas e comunidades tradicionais sobre seus territórios e seus recursos naturais, como a política de reforma agrária, de titulação dos territórios indígenas e dos territórios quilombolas.

A complexidade do que está em jogo e a precária situação de sobrevivência na qual se encontram agricultores/as familiares e camponeses, agroextrativistas e povos indígenas, bem como dificuldades em acessar informação qualificada que desvende o tecnicismo das propostas salvadoras apresentadas, fazem com que estes, não raras vezes, aceitem o que lhes é apresentado como sendo a solução dos seus problemas.

O grupo Carta de Belém não ignora essas dificuldades, compreende a perversidade dos mecanismos de mercado e das formas de introduzi-los nos ajustes das políticas públicas e nas bases de nossas organizações. Questiona, sim, as políticas e propostas que colocam REDD+ e os contratos de pagamentos por serviços ambientais como verdadeiras soluções para a sobrevivência individual e coletiva, sem apresentar e debater outros caminhos, que, inclusive, já estão em curso, construídos nos próprios territórios como medidas eficazes de proteção e construção de direitos. A redução da existência dos agricultores/as familiares e camponeses, agroextrativistas e povos indígenas a “fornecedores de serviços climáticos e ambientais” constitui uma violência aos seus modos de vida e de reprodução social.

Em defesa dos bens comuns
Essas populações não somente pensam e cuidam da sua posse, do seu sistema de produção e/ou de extrativismo e de vida familiar, mas de todo o território, da comunidade, da Terra Indígena, das Resexs, da microbacia, do Pólo, etc., que é considerado como um bem comum, do qual se cuida coletivamente.

Por isso, suas estratégias não são unicamente individuais/familiares. Mas também coletivas: comunidades-povos-território são gestionados por normas internas, leis, acordos e políticas comunitárias, coletivamente construídas para garantir o uso sustentável indispensável à continuidade destes grupos com seus modos de vida e na sua diversidade sociocultural.

Essas estratégias de futuro são construídas por elas e com elas, apoiadas sobre saberes acumulados ao longo do tempo e possuem marcos jurídicos e políticas publicas capazes de sustentá-las quando há vontade política, compromisso dos governantes com o povo e não com as corporações. Tais estratégias dialogam e necessitam hoje de novos intercâmbios com a ciência e a tecnologia, mas quando esta ciência e tecnologias não estão a serviço da apropriação privada dos bens comuns, ignorando seus conhecimentos e técnicas populares.

Nas últimas décadas, organizações camponesas e de agricultores/as familiares, de agroextrativistas e de povos indígenas vêm construindo instrumentos coletivos para assegurar e consolidar seus territórios e seu modo de vida. Dentre estes se encontram a sistematização e atualização de suas técnicas em torno do manejo agroecológico, dos sistemas agroflorestais e extrativismo, manejo comunitário da água; como também dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos naturais, como os ofícios de cura das rezadeiras, benzedeiras, parteiras, etc.; a construção de sistemas comunitários de garantia da qualidade de seus produtos, alguns já reconhecidos em Lei, como os sistemas participativos de avaliação da conformidade (SPGs, previsto na Lei de Orgânicos); a construção das redes de bancos familiares e comunitários de sementes; dos sistemas de trocas de recursos genéticos e conhecimentos, das feiras, encontros e reuniões; assim como as formas de solidariedade comunitária com as trocas de trabalho e realização de mutirões e puxirões.

Povos, comunidades e populações indígenas, agroextrativistas, camponesas e de agricultores familiares cuidam de seus territórios como bens comuns, bens comuns que são antes de tudo deles, que não existiriam sem eles. Com a escassez de recursos naturais produzidos pelo modelo de produção e consumo e os impactos negativos irreversíveis sobre a natureza e o clima, os ecossistemas nos quais e dos quais estes povos e comunidades vivem tornam-se preciosos para o futuro da humanidade e são cobiçados pelo mercado mundial. E esses recursos, indiretamente, ligados aos seus modos de viver, produzir e se reproduzir, cuidando dos seus territórios, tornam-se úteis para o mercado.

Falar em “transição para uma economia verde” parece desconsiderar toda a cultura e amadurecimento social ao longo das décadas em torno de assuntos tão complexos como desenvolvimento econômico-social, uso sustentável e direitos humanos. Tal proposta economicista e de mercado não pode substituir ou se propor a ser a grande política salvacionista deste período de crises do capital, em detrimento de todos os outros instrumentos que vêm sendo construídos pelos povos em seu amadurecimento social na luta por direitos, sob pena de se empreender um grave retrocesso social, ambiental e inclusive econômico. Essas populações e povos cuidam da biodiversidade, das águas, dos solos, das florestas, dos cerrados e dos pantanais não porque recebem pagamento por serviços ambientais, mas porque esses cuidados decorrem do seu modo de viver e produzir. Antes de pagamentos por serviços ambientais, precisam de políticas públicas estruturantes que fortaleçam seus modos de viver e produzir, como alternativas concretas e que historicamente apresentam-se como sustentáveis e produtivas. O próprio Censo Agropecuário de 2006 demonstra isso ao apontar a agricultura familiar como responsável por garantir boa parte da segurança alimentar do país, como importante fornecedora de alimentos para o mercado interno, responsável por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, por exemplo.

As organizações reunidas em torno do Grupo Carta de Belém apontam como alternativas reais para as crises enfrentadas pela humanidade, o incentivo às políticas públicas estruturantes aos modos de vida e de produção dos setores que historicamente são responsáveis pela conservação, uso dos recursos naturais e da produção sustentável e que devem passar necessariamente:

• Por políticas públicas que promovam uma Reforma Agrária Sustentável, associada à política agrícola;
• Pelo reconhecimento dos seus saberes e de que a produção de alimentos saudáveis e sem agrotóxicos vem de um modo de produção específico, dos territórios da agricultura familiar e camponesa, devendo a política conferir valor real aos produtos oriundos da agricultura familiar e do extrativismo, como já é feito, embora que ainda modestamente, através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Para além da aquisição de alimentos e sementes, é necessário apoio efetivo à produção e comercialização da produção dos territórios;
• Pela estruturação de pesquisa participativa e assistência técnica contextualizada qualificada para recuperar e melhorar as técnicas, a qualidade e a quantidade da produção e do extrativismo; que reconhecem a agroecologia praticada pela agricultura familiar e camponesa não como um nicho de produção e de mercado, mas como caminho de futuro para a agricultura e alimentação;
• Por políticas que considerem os territórios como um sistema integrado, um modo de produção de vida, que reconheçam a posse definitiva das comunidades e povos sobre seus territórios; que garantam o acesso aos serviços essenciais de educação, saúde, moradia, cultura e serviços públicos.

Ao contrário dos pagamentos por serviços ambientais, e da estruturação de um novo mercado “verde” através de mais privatização de bens comuns, apontamos como alternativas reais o fortalecimento e empoderamento dos povos, comunidades tradicionais e populações indígenas, agroextrativistas, camponesas e de agricultores familiares na gestão e manejo de seus territórios e de suas tecnologias sociais em construção que, pragmaticamente, é o que vem garantindo não apenas a sobrevivência de seu modo de vida, como a conservação e a recuperação dos ecossistemas e a soberania alimentar dos brasileiros.

Em pé, continuamos em luta!
Organizações que participaram do Seminário e assinam o documento:

- ActionAid Brasil
- Amigos da Terra Brasil
- Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
- Articulação Nacional de Agroecologia/ANA
- ANA Amazônia- Articulação Pacari
- Associação Agroecológica TIJUPÁ
- ASPTA - Agricultura Familiar e Agroecologia
- Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária/CEAPAC
- Conselho Indigenista Missionário/CIMI
- Resex Renascer Tapajós-Arapiuns
- Central Única dos Trabalhadores/CUT
- FASE
- Federação das Entidades Comunitárias do Estado do Pará/FECAP
- Federação dos/as Trabalhadores/as Rurais da Agricultura Familiar/FETRAF
- Fórum da Amazônia Oriental/FAOR
- Fórum Carajás
- Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social
- Fundação Rureco
- Fundo Dema
- Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC
- Instituto Mais Democracia
- Instituto Terramar
- Jubileu Sul Brasil
- Justiça nos Trilhos
- Marcha Mundial das Mulheres/MMM
- Movimento Anti-capitalista da Amazônia/MACA
- Movimento de Mulheres Camponesas/MMC
- Movimento dos Pequenos Agricultores/MPA
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST
- Plataforma Dhesca
- Rede Brasileira de Justiça Ambiental/RBJA
- Rede Alerta contra o Deserto Verde
- Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais
- Sindicato dos Trabalhadores/as Rurais de Xapuri/AC
- Terra de Direitos
- União dos Estudantes de Santarém
- Via Campesina Brasil

O Grupo Carta de Belém é formado por Amigos da Terra Brasil, CUT, FASE, FETRAF, FAOR, Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, INESC, Jubileu Sul Brasil, Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, Terra de Direitos e Via Campesina Brasil

Parceria: Fundação Heinrich Böll
Apoio: Ford Foundation

sexta-feira, 23 de março de 2012

Grupo Carta de Belém lança documento


21/03/2012 - Grupo Carta de Belém lança documento sobre Redd e Pagamento por Serviços Ambientais - transcrito do site Brasil de Fato

Organizações e movimentos sociais alertam sobre riscos da mercantilização da natureza e apontam alternativas ao modelo vigente.



Mais de 30 organizações e movimentos sociais do Brasil, reunidas no Grupo Carta de Belém, lançaram no dia 19 o documento “Quem ganha e quem perde com o Redd e Pagamento por Serviços Ambientais?(Amanhã publicaremos aqui a íntegra desse documento)

Como o título indica, a publicação aborda os mecanismos que estão sendo regulamentados no país que podem gerar a mercantilização generalizada da natureza e tornar os agricultores familiares, povos indígenas e de comunidades tradicionais meros “fornecedores ou prestadores de serviços ambientais” para as grandes empresas poluidoras e agentes do desmatamento, como o agronegócio. A iniciativa é resultado do seminário “Redd+ e Pagamento por Serviços Ambientais x Bens Comuns”, realizado em novembro de 2011.

Segundo o estudo, há um processo de reformas legais e políticas que tramita em ritmo acelerado com a intenção de adequar ou legalizar o avanço do capital sobre terras e recursos. Exemplo prático desse movimento, de acordo com a publicação, é o novo Código Florestal e a Política Nacional sobre Mudança Climática. “Aquele que compra o 'título verde' não só fica autorizado a continuar produzindo degradação e poluição, como lucra com a especulação destes ”, afirma um trecho do documento.
novos ativos florestais no mercado financeiro

O documento também elenca alternativas ao modelo vigente de exploração da natureza, entre elas a efetivação de políticas públicas para Reforma Agrária Sustentável, vinculada à política agrícola; apoio efetivo à produção e comercialização da produção dos territórios, com incremento de ações como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), ainda aplicadas de forma limitada; como também a concretização de políticas que considerem os territórios como sistemas integrados, que garantam acesso aos serviços essenciais e reconheçam a posse definitiva das comunidades e povos sobre seus territórios.

Sobre o Grupo Carta de Belém

O Grupo Carta de Belém se constitui em 2009, a partir do seminário “Clima e Floresta – Redd e mecanismos de mercado como solução para a Amazônia?”, realizado em Belém (PA). Como resultado do evento, os participantes lançaram uma carta se manifestando contrários aos mecanismos de Redd (Redução por Emissões por Desmatamento e Degradação) como solução à crise climática.

Fazem parte da articulação a Terra de Direitos, Amigos da Terra Brasil, CUT, FASE, FETRAF, FAOR, Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, INESC, Jubileu Sul Brasil, Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e Via Campesina.

Original publicado no site Terra de Direitos, em 21/03/2012

quinta-feira, 22 de março de 2012

Parem com a apropriação da água!

Declaração da Via Campesina no Fórum Alternativo Mundial da Água 
22/03/2012
Via Campesina

Nós, organizações camponesas de diferentes países do mundo, membros da Via Campesina, reunidos de 12 a 17 de março de 2012, no Fórum Alternativo Mundial da Água, em Marselha, França, representados por delegados vindos da Turquia, Brasil, Bangladesh, Madagascar, Portugal, Itália, França e México, expressamos a nossa solidariedade aos afetados por catástrofes ambientais e, especialmente, aos que são vítimas da construção de represas, dos gases de xisto, da apropriação, da mercantilização e da escassez da água, das contaminações generalizadas, das repressões e dos assassinatos levados à prática contra os militantes defensores da água.
Reivindicamos que o direito pela água seja respeitado, dentro do princípio regulador da soberania alimentar. O direito à água é o respeito permanente ao ciclo da água, tomado integralmente. Afirmamos que a privatização e a mercantilização da água e de todo outro bem comum (sementes, terra, conhecimentos locais e tradicionais, etc.) são um crime contra a terra e a humanidade. Os grandes projetos de represas e de centrais hidroelétricas aprisionam e se apropriam da água, não tendo em conta nem necessidades, nem práticas tradicionais, nem a opinião das comunidades locais, além de debocharem da preservação do ecossistema.
As crises da água, da biodiversidade, as crises sociais, energéticas e financeiras encontram-se todas juntas e são as consequências do neoliberalismo e do modelo de agricultura industrial promovido pelas instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio), os tratados de livre comércio, o Conselho Mundial da Água, as multinacionais e a maioria dos governos.
A economia verde é uma falsa solução frente às mudanças climáticas e à escassez da água. A mercantilização da água, do carvão, da biodiversidade, os OGM, as nanotecnologias e a geoengenharia são as novas saídas e propostas do neoliberalismo para responder às crises. A evasão crescente continua enquanto estas respostas tecnicistas e mercantis são as principais responsáveis pelo caos ecológico e social que nos atinge.
O modelo de produção industrial, as monoculturas e a agroquímica têm contaminado nossas águas, pondo em perigo nossa saúde. Defendemos as práticas agroecológicas e a agricultura camponesa, que levam à prática a soberania alimentar e contribuem com a preservação e a utilização sustentável da água.
A água é um bem comum em benefício de todos os seres vivos, e deve ser submetida a um gerenciamento público, democrático, local e sustentável. Os conhecimentos locais e tradicionais de gerenciamento da água, que protegem e consideram o ecossistema em sua totalidade, existem desde sempre. Eles são testemunhas atemporais de sua eficácia. As políticas públicas e as leis sobre a água devem reconhecer e respeitar esses conhecimentos.
Pela soberania alimentar: Parem com a apropriação da água!
Marseille, França, 18 de Março de 2012.

(Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato)

Movimentos sociais contra privatização de água e saneamento

Por  Conceição Lemes em 21 de março de 2012 (23:55) da  FNU e Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, via site da CUT

O Dia 22 de março, Dia Mundial da Água, coloca para a sociedade brasileira a necessidade de se refletir sobre os desafios relacionados à água. E neste dia, a CUT, a FNU/CUT (Federação Nacional dos Urbanitários) e diversas entidades do movimento social, como MST e MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), vão realizar atos políticos e mobilizações de rua para reafirmar a água como bem público e um direito humano.

O Brasil, apesar de concentrar cerca de 12% das reservas de água doce do planeta, convive com uma distribuição desigual.  A maior quantidade de água está na região Norte do País, onde o número de habitantes é significativamente menor que na região Sudeste, onde a concentração populacional e muito maior.

A Região Metropolitana de São Paulo, onde vivem mais de 19 milhões de pessoas, enfrenta o que vem se convencionando chamar de estresse hídrico, obrigando a se buscar alternativas de abastecimento cada vez mais distantes, a custos elevados, para atender a demanda em médio prazo.

As águas dos principais rios estão comprometidas em razão da grande quantidade de esgotos depositados sem tratamento. Essa situação se repete em outros grandes centros urbanos brasileiros.

O País avançou nos últimos anos em relação à legislação e ao financiamento para o saneamento, porém, há muito a ser feito para garantir a universalização do acesso à água e ao saneamento em quantidade e qualidade adequadas para todos os brasileiros e brasileiras independente da sua capacidade de pagamento.
Somam-se a esses desafios o enfrentamento às investidas do setor privado para aumentar o controle da prestação dos serviços de água e saneamento no Brasil, que, aliás, vem ocorrendo também em outras partes do mundo.

Por outro lado, em diferentes partes do mundo, observa-se a resistência a essas investidas privatizantes. A cidade de Paris remunicipalizou os serviços de água e os italianos derrotaram, em recente referendo, a proposta de privatização de seu sistema de abastecimento e distribuição. Já Portugal se mobiliza para barrar a privatização através de um amplo movimento popular conduzido pelo movimento “Água é de Todos”.
No Brasil, a Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e a Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA), com apoio e participação de várias entidades da sociedade civil, lançaram, em novembro de 2011, uma campanha nacional contra as Parcerias Público Privadas – PPPs. A campanha é intitulada “Água Para o Brasil” e reúne um grande leque de entidades dos movimentos sociais, que neste 22 de março estarão nas ruas de todo o País, reafirmando a bandeira da água como bem público.

Lembramos, com destaque, o fato de a Organização das Nações Unidas (ONU) ter aprovado em 2010 resolução que garante a Água e o Saneamento como  direito humano fundamentais. Nesse caso, mesmo antes dos países garantirem em suas Constituições esse direito, os movimentos sociais internacionais estão iniciando outra batalha contra a intenção de países da União Europeia que objetivam alterar essa resolução que significou grande avanço na luta contra a privatização da água e do saneamento.

Mas ataques contra essa conquista foram demonstrados também no Fórum Mundial da Água ocorrido em Marselha, França, entre os dias 14 e 17 de março, pois a declaração final do encontro constituiu um retrocesso em relação à resolução da ONU. Esse evento, organizado pelas grandes multinacionais da água e pelo Banco Mundial, tem como principal objetivo ampliar a apropriação dos recursos hídricos do planeta, das mais variadas formas.

Por sua vez, o Fórum Mundial Alternativo da Água, também ocorrido em Marselha no mesmo período, reafirmou a necessidade de recuperar a água como fonte de vida e não de lucro e reforçou a importância das conquistas alcançadas nos últimos anos. Esse Fórum Alternativo foi organizado por movimentos sociais do mundo inteiro.

Por tudo isso, conclamamos a todos (as) a se envolver nas atividades e ações que tenham por objetivo a defesa do acesso à água e ao saneamento; a não privatização; a preservação dos mananciais; o consumo responsável da água e a gestão eficiente dos operadores de saneamento, sobretudo com a relação ao alto índice de perdas de água na operação dos serviços.

Guerra da Água é silenciosa, mas já está em curso

19/03/2012 - Eduardo Febbro - Carta Maior
Tradução: Katarina Peixoto

"A guerra da água é silenciosa, mas é uma realidade: conflito em Barcelona causado pelo aumento das tarifas, quase guerra na Patagônia chilena por causa da construção de enormes represas e da privatização de sistemas fluviais inteiros, antagonismos em Barcelona e em muitos países africanos pelas tarifas abusivas aplicadas pelas multinacionais. A pérola fica por conta da Coca Cola e de suas tentativas de garantir o controle em Chiapas, México, das reservas de água mais importantes do país." (Eduardo Febbro - de Paris)



- Quanto vale a vida? “Para começar, um bom copo de água”,

responde com ironia Jerôme, um dos participantes do Fórum Mundial Alternativo de Água (FAME) que se reuniu na França, paralelamente ao muito oficial Fórum Mundial da Água (FME). Duas “cúpulas” e duas posturas radicalmente opostas que expõem até o absurdo o antagonismo entre as multinacionais privadas da água e aqueles que militam por um acesso gratuito e igual a este recurso natural cuja propriedade é objeto de uma áspera disputa nos países do Sul. Basta apontar a identidade dos organizadores do Fórum Mundial da Água para entender o que está em jogo: o Fórum oficial foi organizado pelo Conselho Mundial da Água. Este organismo foi fundado pelas multinacionais da água Suez e Veolia e pelo Fundo Monetário Internacional, incansáveis defensores da privatização da água nos países do Sul.

O mercado que enxergam diante de si é colossal: um bilhão de seres humanos não tem acesso à água potável e cerca de três bilhões de seres humanos carecem de banheiro. O tema da água é estratégico e tem repercussões humanas muito profundas. Os especialistas calculam que, entre 1950 e 2025 ocorrerá uma diminuição de 71% nas reservas mundiais de água por habitante: 18 mil metros cúbicos em 1950 e 4.800 metros cúbicos em 2025. Cerca de 2.500 pessoas morrem por dia por não dispor de um acesso adequado à água potável. A metade delas é de crianças. Comparativamente, 100% da população de Nova York recebe água potável em suas casas. A porcentagem cai para 44% nos países em via de desenvolvimento e despenca para 16% na África Subsaariana.

As águas turvas dos negócios e as reivindicações límpidas da sociedade civil, que defende o princípio segundo qual a água é um assunto público e não privado e uma gestão racional dos recursos, chocam-se entre si sem conciliação possível. Um exemplo dos estragos causados pela privatização desse recurso natural é o das represas Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, a oeste do Amazonas, no Brasil. As duas represas têm um custo de 20 bilhões de dólares e, na sua construção, estão envolvidas a multinacional GDF-Suez e o banco espanhol Santander. A construção dessas imensas represas provocou o que Ronack Monabay, da ONG Amigos da Terra, chama de “um desarranjo global”. As obras desencadearam um êxodo interior dos índios que viviam na região. Eles foram se refugiar em outra área ocupada por garimpeiros em busca de ouro e terminaram enfrentando-se com eles.

Deslocamento de populações, inundação de terras agrícolas e de matas e esgotamento de espécies aquáticas são algumas das consequências nefastas dessas megaestruturas”, denuncia Ronack Monabay. As represas se Santo Antônio e Jirau ameaçam também várias populações indígenas ao longo do rio Madeira: os Karitiana, os Karipuna, os Uru-eu-Wau-Wau e os Katawixi. Outros grupos como os Parintintin, os Tenharim, os Pirahã, os Jiahui, os Torá, os Apurinã, os Mura, os Oro Ari, os Oro Bom, os Cassupá e os Salamãi também estão ameaçados. Nenhuma destas populações indígenas foi consultada sobre a viabilidade dos projetos. Eles foram impostos a elas, juntamente com todos os males que os acompanham.

O exemplo do Brasil é extensivo a outros projetos similares em Uganda ou Laos, onde as multinacionais da água semeiam a destruição. O direito à água para todos foi reconhecido pelas Nações Unidas em 2010. No entanto, esse reconhecimento está longe de ter se materializado em fatos. Emmanuel Poilane, diretor da Fundação France Libertés, criada por Danielle Miterrand, falecida esposa do também falecido presidente socialista François Miterrand, lembra de um dado revelador: “dos 193 países que integram a ONU, só 30 deles inscreveram esse direito na Constituição. Mas esses 30 países são todos do Sul”. O Norte quer água privada para encher os caixas de seus bancos e pouco importa o custo humano que a escassez de água pode causar às populações destes países.

A este respeito, Emmanuel Poilane recorda que “a cada três segundos morre uma criança por falta de água”. A própria existência do Fórum Mundial da Água, organizado por um Conselho Mundial da Água composto por multinacionais e pelo FMI é uma aberração. A batalha entre público e privado se deslocou inclusive para o Senado francês. No curso de um debate, um dos senadores socialistas lembrou que esse fórum não é uma instância das Nações Unidas, mas sim um lugar onde “se fazem negócios privilegiados entre as multinacionais. É urgente que a água seja objeto de uma reapropriação cidadã”. Não é o caso. As instâncias internacionais estão ausentes porque os lucros à vista são colossais. A gestão da água foi confiscada pelos interesses privados.

Brice Lalonde, coordenador da Rio+20, cúpula da ONU para o Meio Ambiente, prometeu que a água será “uma prioridade” da reunião que será realizada no Rio de Janeiro em junho. O responsável francês destaca neste sentido o paradoxo que atravessa este recurso natural: “a água é uma espécie de jogo entre o global e o local”. E neste jogo o poder global das multinacionais se impõe sobre os poderes locais.

As ONGs não perdem as esperanças e apostam na mobilização social para contrapor a influência das megacorporações. Neste contexto preciso, todos lembram o exemplo da Bolívia. Jacques Cambon, organizador do Fórum Alternativo Mundial da Água e membro da ONG Aquattac, recorda o protesto que ocorreu na cidade de Cochabamba: “dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se na rua em protesto contra o aumento da tarifa da água potável imposto pela multinacional norteamericana Bechtel”.

A guerra da água é silenciosa, mas existe: conflito em Barcelona causado pelo aumento das tarifas, quase guerra na Patagônia chilena por causa da construção de enormes represas e da privatização de sistemas fluviais inteiros, antagonismos em Barcelona e em muitos países africanos pelas tarifas abusivas aplicadas pelas multinacionais. A pérola fica por conta da Coca Cola e de suas tentativas de garantir o controle em Chiapas, México, das reservas de água mais importantes do país. Jacques Cambon está convencido de que “o problema do acesso à água é um problema de democracia. Enquanto não se garantir o acesso e a gestão da água sob supervisão de uma participação cidadã haverá guerras da água em todo o mundo”.

A senadora brasileira Katia Abreu (PSD), que também é presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), propôs durante o Fórum uma iniciativa para “proteger em escala mundial as zonas essenciais à preservação dos recursos de água”. As palavras, no entanto, se chocam com a dura realidade: a das multinacionais e a da própria natureza. A ONU apresentou na França um informe sobre o impacto da mudança climática na gestão da água: secas, inundações, transtornos nos padrões básicos de chuva, derretimento de geleiras, urbanização excessiva, globalização, hiperconsumo, crescimento demográfico e econômico. Cada um destes fatores, constitui, para as Nações Unidas, os desafios iminentes que exigem respostas da humanidade.

A margem de manobra é estreita. Nada indica que os tomadores de decisão estão dispostos a modificar o rumo de suas ações. A mudança climática colocou uma agenda que as multinacionais, os bancos e o sistema financeiro resistem a aceitar. Seguem destruindo, em benefício próprio e contra a humanidade. Ante a cegueira das multinacionais, a solidariedade internacional e o lançamento daquilo que se chamou na França de “um efeito mariposa” em torno da problemática da água são duas respostas possíveis para frear a seca mundial.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Por uma geopolítica da água: conheça o mapa dos conflitos

18/03/2005 - Francisco Carlos Teixeira* - blog Tempo Presente
Laboratório de Estudos do Tempo Presente - Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade do Brasil

"Os aspectos espetaculares das sucessivas crises do petróleo, com a escassez imediata e o aumento dos preços, fez com que grande parte da população mundial acreditasse que o esgotamento das reservas naturais do planeta era parte de uma questão energética, que poderia ser resolvida através do aporte tecnológico. De forma silenciosa, contudo, uma outra escassez avançava, sem ser vislumbrada em toda sua ameaça: a falta de água potável."
(Francisco Carlos Teixeira)


Pela própria natureza da Terra, a água doce, potável e de qualidade encontra-se distribuída de forma bastante desigual. As regiões setentrionais do planeta, embora com grandes rios – Danúbio, Reno, Volga, Lena – ou na América – o São Lourenço, Mississipi, Missouri – concentram grandes aglomerações demográficas, que consomem volumes crescentes de água potável. Além disso, a generalização da agricultura moderna – subsidiada com milhares e milhares de dólares, tanto na União Européia, quanto nos EUA – ampliou tremendamente o consumo de água. Muitas vezes, a riqueza produzida por tal agricultura subsidiada não paga os imensos gastos de armazenamento, dutos e limpeza investidos no processo de sua própria disponibilização.

Em quase todos os casos, as grandes reservas de água na Europa e nos EUA padecem de problemas que afetam sua qualidade. Na Europa, hoje, a água é um item de consumo semanal, constituindo-se item obrigatório nos supermercados. A grande poluição industrial – por exemplo, no Reno – ou a qualidade – no caso das águas calcáreas da França e da Alemanha – obrigaram a população a aceitar a água como mercadoria vendida em supermercados.

Nos EUA a expansão da agricultura subsidiada consome a maior parte da água potável, além da poluição que avança sobre grandes reservatórios, como nos Grandes Lagos. Além disso, a construção de cidades “artificiais”, muitas vezes em pleno deserto – como Las Vegas – implica numa pressão crescente sobre os reservatórios existentes.

Os grandes reservatórios encontram-se, ao contrário, nas áreas tropicais e subtropicais, quase sempre em função do regime de chuvas, a existência da floresta tropical úmida (the rain Forest, dizem os americanos) e aos grandes sistemas hídricos (tais como o Congo, o Amazonas, o Paraná-Paraguai ou os Grandes Lagos da África Central). Coincide aqui a existência de grandes reservas hídricas, com populações em expansão, forte conflitos étnicos e religiosos, além de escassez de recursos para a preservação, já que a maioria dos países da região encontram-se sob forte monitoramento financeira internacional visando a implantação de gestões neoliberais.

Assim, o pessoal técnico, as estações de tratamento, a reciclagem e a construção de mecanismos que evitem que o lixo contamine os aqüíferos entram, todos, na categoria de obras supérfluas, condenadas pelas medidas de manutenção de grandes saldos orçamentários.

De qualquer forma, o consumo da água multiplicou-se por seis no século 20, duas vezes a taxa do crescimento demográfico do planeta. Baseando-se em tais dados, calcula-se que em 2025 cerca de 3,5 bilhões de pessoas estarão sofrendo com a escassez de água.

Neste sentido, a água tornou-se uma questão de segurança e de defesa do Estado-Nação, devendo constar do planejamento estratégico de todos os países, em especial daqueles considerados “fontes hídricas”.


Água: o desenho da crise
Algumas regiões do planeta encontram-se, já hoje, em situação de escassez de água. Enquanto alguns simplesmente optaram, num primeiro momento, pela sua extrema mercantilização – como na União Européia –, outros procuram saídas políticas e científicas.

As regiões mais críticas hoje são China Popular, Índia, México e Chifre da África e confrontantes. Em tais regiões, os lençóis freáticos têm registrado uma queda de 1 metro por ano, acima da taxa natural de reposição, apontando para uma grave crise no horizonte de 20/25 anos. Em outras regiões, onde a água existe, mas em pequena quantidade, a questão reside na sua divisão, no seu acesso e garantia de fluxo constante.

Aqui as localidades mais atingidas são o Oriente Médio, Norte da África e mais uma vez o México. Algumas outras regiões, bastante ricas, expandiram sua população por cima da capacidade de abastecimento, produzindo poluição e escassez, como no caso de Taiwan, o cinturão renano europeu, a Austrália e as áreas centrais do Meio-oeste americano. Por fim, outras regiões possuem grandes aqüíferos, contudo a ausência de obras de infra-estrutura afeta sua distribuição e sua qualidade, como no Brasil, Indonésia ou Nigéria.

Uma questão paralela junta-se ao problema da escassez: de água de boa qualidade supõe energia, uso extenso de energia. As estações de filtragem e tratamento são grandes consumidoras de energia; as usinas de dessalinização – em Israel e no Golfo Pérsico – são caras e consumidoras de energia em alta escala; os dutos e sua adução, distribuindo água de regiões abundantes para regiões de escassez (como é o caso do Brasil), implicam em grandes gastos de energia.

Mesmo a purificação da água via vapor é, evidentemente, dependente do consumo de energia. Em alguns casos, a destruição de redes de transmissão de energia ou de estações de energia, como na Croácia entre 1991 e 1994, e no Iraque, em 1991 e atualmente, paralisou o fornecimento de água potável, levando a grandes explosões de pandemias, com elevadíssimas taxas de mortalidade infantil.

Assim, muitos países passaram a investir em energia nuclear, visando baratear o acesso à água de boa qualidade, como é o caso do Irã, Brasil ou Finlândia.

A Guerra da Água
Em alguns casos o acesso à água acabou por levar a conflitos abertos, outras vezes encontrava-se como elemento embutido em estratégias de Estados ao fazerem guerra aos seus vizinhos. O caso clássico é de Israel, onde a agricultura no deserto – fator fundamental de enraizamento de uma população desacostumada ao seu próprio país – implicava na multiplicação de colônias agrícolas, onde o padrão de vida (e logo o consumo de água) era mais elevado do que na maioria dos vizinhos. Assim, a garantia de controle dos aqüíferos – no Sul do Líbano, na bacia do Jordão – impunha-se como objetivo estratégico.

Porém, este não é o caso mais grave. Existem hoje no mundo cerca de 200 sistemas fluviais que cruzam a fronteira de dois ou mais países, além de 13 grandes rios que banham 4 ou mais países, compartilhados por 100 diferentes nações. As chances de conflito na gestão de tais recursos são bastante elevadas. Muitos desses sistemas são utilizados até a sua exaustão, e muitos já não atendem mais às necessidades dos consumidores da ponta final. O rio Amarelo, na China, o Ganges, na Índia, o Nilo, na África, e o São Francisco, no Brasil, estão notoriamente abaixo de suas marcas históricas e o aumento do consumo pode exaurí-los em um espaço de 10 anos.

No Norte da África, a escassez de água cria duas formas distintas de tensões:
- tensões internacionais entre Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia pelo uso de reservas e do lençol freático, tendo na Tunísia seu epicentro;
- tensões internas entre setores sociais e econômicos em disputa pela água.

O setor hoteleiro – bastante desenvolvido pela Tunísia e Marrocos – é acusado de oferecer água em abundância aos turistas, enquanto a massa da população sofre a penúria. Enquanto isso, acusam a agricultura marroquina, tunisiana e argelina de gastar água numa atividade de baixíssima remuneração.

Ainda no Norte da África, Egito, Sudão e Abissínia discutem o regime do Nilo e as formas de aproveitamento, gerando crises cíclicas de relacionamento.

No Oriente Médio – além do caso de Israel – a Turquia ameaça o controle das fontes do Eufrates, colocando a Síria e o Iraque em clara situação de dependência e alto risco.

Na América do Norte, o aproveitamento do Rio Bravo (ou Grande), na fronteira dos EUA com o México é uma fonte constante de atritos, com os desvios crescentes para a irrigação e o abastecimento das cidades e da agricultura norte-americanas.

Na Ásia Central, o controle do Tibet/Pamir, de onde provêm as fontes dos rios que correm para a China, Paquistão e Índia agudizam os conflitos na Cachemira, Nepal e Tibet.

Na África do Sul, a situação da Namíbia é crítica, enquanto todo o Sahel (a franja entre o Shara e a savana semi-árida africana) ameaça alguns milhões de pessoas com a fome. Ali, Chad, Mali, Niger e Líbia enfrentam-se constantemente, visando o controle de lagos e oásis do deserto.

A irrupção das crises
Esta geopolítica da escassez da água pode levar muito rapidamente a agudização do quadro, desembocando em graves conflitos inter-estatais. Devemos ter claro em mente que a questão da água não se encontra divorciada da chamada “questão ecológica”, e muitas das medidas referentes à preservação ambiental são de caráter preservacionista também em relação à água e de suas reservas. Assim, uma“guerra da água” seria também uma “guerra pela ecologia”.

Os cenários mais claros de crise apontam para as seguintes situação de crise envolvendo a questão do multi-uso das reservas: a região do Nilo; o ace sso às águas do Eufrates; o controle dos mananciais na Ásia Central; o controle da terras altas chuvosas em Ruanda e na Somália; o controle das terras chuvosas no Quênia e Zimbábue; o controle de lagos e oásis no Sahel; a disputa pela Planície de Poljie, entre Croácia e Sérvia.

Estes são os pontos mais críticos numa geopolítica atual da água. Entretanto, a continuidade do efeito estufa e uma possibilidade de fracasso dos mecanismos preservacionistas em escala mundial poderão acirrar a questão.

Assim, os países considerados “reservas hídricas” não estariam a salvo de expedições visando a internacionalização de seus recursos, que seriam declarados “bens coletivos da humanidade”.


* Francisco Teixeira é professor titutar de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Leia também:
"A Entrega da Água", do jornalista Laerte Braga, em:
http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/07/a-entrega-da-agua_30.html
e
"Quem são os donos dessas águas? Encontro com Mario Farias", do engenheiro Antonio Fernando Araujo, em:
http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/07/quem-sao-os-donos-dessas-aguas.html