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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Moratória para exploração de gás de xisto no país

19/11/2013 - ISA (Instituto Socioambiental) pede moratória para exploração de gás de xisto no país
- Raul do Valle - Blog do PPDS (Políticas Públicas e Direito Socioambiental)

Veja as considerações do ISA, apresentadas no processo de consulta pública, sobre a possibilidade de exploração de gás de xisto no próximo leilão de gás, que será realizado no dia 28/11 pelo governo federal.

18/11/2013 - Comentários e sugestões à Consulta Pública nº 30/2013, da Agência Nacional do Petróleo (*)
- do site do ISA (Instituto Sócioambiental)

Atendendo ao processo de consulta pública acerca da proposta de resolução que pretende regulamentar "a perfuração de poços seguida do emprego da técnica de Fraturamento Hidráulico Não Convencional" no país (Consulta  Pública  ANP no. 30/2013), o Instituto Socioambiental, organização da sociedade civil de interesse público - OSCIP - que trabalha na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos, vem oferecer as seguintes considerações.

A exploração de gás de xisto, mediante o emprego da técnica de fraturamento hidráulico não convencional (fracking em inglês), é uma atividade que vem suscitando enorme polêmica em todos os países nos quais vem sendo cogitada ou realizada, sobretudo devido aos enormes impactos ambientais a ela associados, razão pela qual alguns países europeus proibiram sua realização em território nacional, como é o caso da França.

Nos EUA, onde a técnica é empregada há quase uma década, há um crescente número de denúncias de contaminação de aquíferos e águas superficiais nas  redondezas dos poços em exploração, o que tem levado alguns estados a aprovarem regras para proibir seu alastramento.

É sabido que esse tipo de exploração tem grande probabilidade de contaminar a água, tanto subterrânea (principalmente) como superficial.

A tecnologia requer a utilização de enorme quantidade água (podendo ultrapassar 10.000 m3 em apenas um poço), na qual são misturadas dezenas de substâncias químicas cujo efeito sobre a saúde humana são ainda pouco conhecidos.

Recente estudo elaborado para a Comissão Europeia do Meio Ambiente diz explicitamente que o risco de contaminação de água é muito alto:

“The study found that there is a high risk of surface and groundwater contamination at various stages of the well-pad construction, hydraulic fracturing and gas production processes, and during well abandonment. Cumulative developments could further increase this risk”[1]

Os blocos a serem licitados encontram-se sobre os principais aquíferos brasileiros, com destaque para aqueles situados sobre o Aquífero Guarani (São Paulo/Paraná), que fornece água para boa parte da produção agrícola, industrial e abastecimento doméstico do país.

Considerando que as reservas de gás de xisto se encontram, em geral, abaixo das reservas de água, que isso aumenta o risco de contaminação durante a exploração, e que esta, se ocorrer, pode ser irreversível, chega-se à conclusão de que é, no mínimo, temerário se permitir a exploração desse tipo de gás sem antes uma avaliação e reflexão profunda por parte da sociedade brasileira acerca de seus custos e benefícios, o que não aconteceu até o momento, dado que o anúncio do leilão ocorreu pouco menos de um mês antes de sua realização.

Avaliações preliminares dão conta que os aqüíferos servem ao abastecimento para 30-40% da população do país, sobretudo em cidades de médio e pequeno porte, embora também sejam relacionadas várias capitais como, por  exemplo, Natal, Fortaleza, Belém, Maceió, Recife, Porto Velho e São Paulo, onde o abastecimento é feito, em alguma proporção, pelo recurso  subterrâneo.

No  Estado de São  Paulo, 70 % dos núcleos urbanos são abastecidos total ou parcialmente pelas águas subterrâneas, incluindo cidades de porte como Ribeirão Preto, Marília, Bauru e São José do Rio Preto.

No semi-árido nordestino, as comunidades rurais têm um importante manancial nas águas subterrâneas, assim como a irrigação no oeste da Chapada do Apodi, entre os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte [2].

Parte expressiva dos blocos que serão licitados se encontram na bacia do Paraná, justamente a região hidrográfica brasileira onde há a maior produção agrícola e, consequentemente, a maior área irrigada, com 2,1 milhões de hectares [3].
.
Estamos cientes de que o gás natural é uma fonte importante na matriz energética atual e de médio/longo prazo.

No contexto brasileiro, porém, não se justifica que sua exploração ameace os  reservatórios de água, pois nossa dependência desse combustível é mínima se comparada com a de países como os EUA ou Reino Unido, que acabaram enveredando para a exploração não convencional por ser ela uma alternativa ao uso do carvão mineral e petróleo importado do Oriente Médio.

Por essa razão nos juntamos às razões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e à Academia Brasileira de Ciência – ABC para solicitar a retirada da possibilidade de exploração de gás de xisto do 12o leilão e a aplicação de uma moratória do "fracking" por tempo indeterminado, até que tenhamos dados, informações e reflexão acumulados para decidir se, onde e em que condições permiti-la em território nacional.


Brasília, 18 de novembro de 2013.
Raul Silva Telles do Valle
Coordenador de Política e Direito Instituto Socioambiental

[1] “Support to the identification of potential risks for the environment and human health arising from hydrocarbons operations involving hydraulic fracturing in Europe”. Report for European Comission DG Environment. 2012, pg., pg. VIII

[2] Apud HIRATA, Ricardo et alii. Água Subterrânea: reserva estratégica ou emergencial?. Disponível em: http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-815.pdf

[3] Agência Nacional de Águas. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil 2013, pg.98. Disponível em: 
http://arquivos.ana.gov.br/institucional/spr/conjuntura/PDFs%20agregados/Conjuntura_2013_parte1_cap_1_ao_4-77mb.pdf

(*) Documento em pdf:
http://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/blog/pdfs/nota_xisto_isa.pdf

Fonte:
http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/nota-do-isa-sobre-a-exploracao-de-gas-de-xisto

sexta-feira, 22 de março de 2013

Luto e luta: hoje é o Dia Internacional da Água

22/03/2013 - por Zilda Ferreira (*)

O Brasil é o país mais rico em água do planeta. Mas, não tem políticas públicas adequadas que possam gerir esses recursos, em benefício do Estado e da população.

As dificuldades do povo, principalmente o mais carente, para ter acesso à água potável, em alguns municípios, mesmo em cima de aquíferos, denunciam essa má gestão dos recursos hídricos que  tem priorizado o mercado em detrimento do bem estar social.

A Resolução da ONU 64/292 determina como direito humano a água e o saneamento, mas ela não é cumprida. Por isso, não temos nada para comemorar, hoje, Dia Internacional da Água.

Para se ter ideia como a gestão das águas tem priorizado o mercado, basta viajar por este país.

Não se precisa de teoria e nem de uma literatura sobre o assunto, os dados e os fatos saltam aos olhos, principalmente onde o abastecimento é feito por concessões às empresas privadas.

A água é cara, quem não pode pagar não tem acesso, além da contaminação presente nela por falta de investimentos.

Na região Norte, durante um seminário de geologia, na UFPA (Universidade Federal do Pará), denunciou-se que em Manaus a água é a mais cara do país  A concessionária é uma empresa  francesa do grupo Suez e muitas pessoas pobres tiveram a água cortada por falta de pagamento.

Manaus fica na extremidade oeste do aquífero Alter do Chão, provavelmente, o maior do mundo em volume de água. 

Em Belém, segundo alguns estudantes presentes, estão tentando privatizar a água da cidade e por isso o abastecimento tem sido precário para que a ideia de privatização da empresa Cosanpa seja vendida como a tábua de salvação.

Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, situada sobre o aquífero Guarani, a concessionária pertence a grupos políticos, não identificados.

Lá, conhecemos uma senhora que, ganhando salário minimo pagava uma conta de água de R$ 100,00 (cem reais). Embora ela passasse o dia fora e suas duas crianças ficassem na creche.

O Nordeste brasileiro é detentor do maior volume de água represado, em regiões semi-áridas do mundo. São 37 bilhões de metros cúbicos estocados em cerca  de 70 mil represas de portes variados.

A água existe, mas falta aos nordestinos uma política coerente de distribuição desses volumes para o atendimento de necessidades básicas.

Estes dados constam de um depoimento recente de João Suassuna, um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

Em Santarém, Pará (foto), em plena região dos maiores rios do Brasil, às vezes, não é possível tomar banho, necessidade primordial em virtude do calor e da poeira, porque não há água nas torneiras.

Essa maravilhosa cidade, às margens do Tapajós, fica no coração do aquífero Alter do Chão (foto).

Durante a Rio+20, a água foi o assunto principal, até nas filas para pegar o ônibus para o Riocentro, onde acontecia a Conferência...

Um engenheiro sanitarista comentava com uma jornalista:
- No Rio Grande do Norte não há perigo de privatizar a água.
- Por que? indagou ela.
- O processo de fornecimento lá, fica caro, temos que buscar (bombear) água de longe. Além disso, temos vários programas sociais de abastecimentos às populações carente. Não dá lucro. Por isso, não há demanda por concessões para prestar esse  serviço, respondeu o sanitarista.

O mesmo não acontece no norte de Mato Grosso, onde cada município tem uma concessionária, a demanda é grande, mas todas pertencem ao mesmo grupo.

A água é abundante e o abastecimento é precário e oneroso à população, informou uma pesquisadora da Universidade do Amazonas, explicando que essa região fica na chamada Amazônia Legal.

A ONU lançou 2013 como o Ano Internacional da Cooperação pela Água.

O objetivo da iniciativa é incentivar o relacionamento social positivo das pessoas e comunidades, a partir da água como instrumento de relação.

A ideia é boa, mas a política brasileira de gestão das águas, que prioriza o mercado em detrimento da população não permite essa cooperação.

Dizem que a atual ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira (foto), não vai conseguir entregar toda a água do país, porque é demais.

Tampouco toda a
biodiversidade existente em nossas terras, sem dúvida a maior megabiodiversidade do  planeta..., não haveria tempo suficiente para isso.

Mas com o MMA ela vai acabar.

Aliás já começou o desmonte do ministério.

Nesta última terça feira, dia 19, ela propôs o fim do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), instituído pela Lei 6938/81, que revolucionou a política ambiental brasileira e gerou o Art. 225 da Constituição Federal.

Para quem não lembra, a ministra Izabella Teixeira foi, há mais de quinze anos, a Coordenadora do PDBG - Programa de Despoluição da Baia de Guanabara que, ao final, redundou em um notório fracasso a exalar até os dias de hoje, o cheiro fétido, que os moradores do Complexo da Maré tão bem conhecem, de tanta incompetência.

A política ambiental do país é um espelho da do Rio de Janeiro, onde desastres ambientais em cascata, fruto de duas décadas de gestão do mesmo grupo político mentor da atual ministra do Meio Ambiente, escancaram cenas como - mais uma vez - a da recente mortandade de quase 100 toneladas de peixes da lagoa Rodrigues de Freitas, na zona sul da cidade.

Algo semelhante ao terror que assombra os moradores da região serrana a cada anúncio de chuvas, com as vidas ceifadas a cada verão, como as praias e rios poluídos, cujas imagens percorrem o mundo sem revelar a extensão desse drama.

Como as agressões - do que ainda sobra -, seja à Mata Atlântica ou à Floresta da Tijuca.

Luto e luta para saudar o Dia Internacional da Água. Mas nada pra comemorar.

(*) Zilda Ferreira é jornalista e editora deste blog


Não deixe de ler:
- Privatização da Água: o 'fracasso' melhor financiado - Revista Fórum - original do Envolverde
- A luta pelo direito à água na Rio+20 - Zilda Ferreira
- A centralidade da água - Mônica Bruckman

E mais:
- Quem são os donos dessas águas? - Antonio Fernando Araujo
- Água não se nega a ninguém - Carlos Walter Gonçalves
- Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - Antonio Fernando Araujo

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 3/5

Águas Para Quem? Do interesse privado e do público
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas 


Embora tenhamos destacado inicialmente que documentos importantes recentes, como "O Nosso Futuro Comum" ou mesmo a Agenda XXI e a Carta da Terra, não contemplavam com a devida ênfase a problemática da água, é importante sublinhar que o tema havia merecido, ainda em 1977, uma Conferência patrocinada pela ONU – Conferência de Mar del Plata – que levou a que, em 1980, fosse instituído o Decênio Internacional de Água Potável e Saneamento Básico.

Uma leitura atenta das preocupações ali arroladas nos mostra que havia uma ênfase na ação dos governos na gestão da água e, sobretudo, na garantia do abastecimento por meio da construção de infra-estruturas – diques e barragens - para fins de ampliação das áreas a serem irrigadas e de energia para o desenvolvimento.

O documento da ONU analisado a seguir acusa a guinada ocorrida no debate recente acerca da água e, sobretudo, não deixa dúvidas sobre os interesses específicos que estariam, hoje, cultivando o discurso de escassez e da repentina descoberta da gravidade do problema da água na segunda metade dos anos 90.

Vejamos o diagnóstico que os técnicos da ONU fazem do sistema de gestão que ontem estimularam e que, hoje, criticam e se propõem superar. “A Comissão sobre o Desenvolvimento Sustentável (CDS) informou que muitos países carecem de legislação e de políticas apropriadas para a gestão e aproveitamento eficiente e eqüitativo dos recursos hídricos. Apesar disso, se está avançando no exame de legislações nacionais e promulgação de novas leis e regulamentos” (GEO-3: 156). Logo a seguir demonstram “preocupação acerca da crescente incapacidade dos serviços e organismos hidrológicos nacionais, especialmente nos países em desenvolvimento, para avaliar seus próprios recursos hídricos. Numerosos organismos têm sofrido redução em redes de observação e pessoal apesar do aumento da demanda de água. Tem sido posta em marcha uma série de medidas de intervenção, como o Sistema Mundial de Observação do Ciclo Hidrológico (WHYCOS, por sua sigla em inglês) que se implementou em várias regiões” (GEO-3: 156).

Como se pode observar também no caso da água, mais uma vez, é brandido, sem a menor cerimônia, o argumento da incapacidade dos governos dos países em desenvolvimento para avaliar seus próprios recursos hídricos, numa nova versão da velha colonialidade característica dos velhos modernizadores. Em nenhum momento, observe-se, há qualquer comentário sobre as políticas de ajuste estrutural recomendadas pelos próprios organismos multilaterais e que bem seriam as responsáveis pela “redução em redes de observação e pessoal apesar do aumento da demanda de água”, para ficarmos com as próprias palavras do documento.

Pouco a pouco o deslocamento político que se dá na segunda metade dos anos 90 vai tornando mais claros os interesses em jogo. “Muitos e diferentes tipos de organizações cumprem uma função no que concerne às decisões sobre políticas relativas a água, desde os governos nacionais até os grupos comunitários locais. De todo modo, no transcurso dos últimos decênios, se tem posto cada vez mais ênfase tanto em aumentar a participação e responsabilidade de pequenos grupos locais como em reconhecer que às comunidades corresponde jogar um papel preponderante nas políticas relativas a água (...)."

Assim, o Estado Nacional que, a princípio, já fora considerado como um entre os “muitos e diferentes tipos de organizações” é, logo a seguir, completamente descartado em benefício dos "pequenos grupos locais” e das “comunidades”. Assim, em nome dos pequenos, dos pobres e das comunidades, novos interesses procuram se legitimar ética, moral e, sobretudo, politicamente [8]. Para isso contam com entidades muito mais flexíveis que o Estado, como as Organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais.

É preciso levar-se em conta o contexto específico da América Latina para que entendamos a força que esse discurso adquire entre nós, sobretudo quando se sabe que, além da pobreza generalizada, a região exibe os maiores índices de desigualdades sociais do mundo.

Agregue-se a isso o fato de, nos anos 70 e 80, a região ter ficado submetida, salvo raras exceções, a regimes ditatoriais quase sempre sob tutela militar.

Anibal Quijano

Os apelos por justiça social e democracia vindos dos movimentos populares foram deslocados para políticas de corte neoliberal, onde a crítica ganhou destaque mais em direção à negação do Estado do que a um aprofundamento da democracia. Ao contrário, a liberalização aprofundou a crise histórica da democracia na América Latina, o que levou um dos mais importantes cientistas sociais da região, o peruano Anibal Quijano, a cunhar expressões como des-democratização e des-nacionalização para assinalar que o povo já não mais detém a prerrogativa da soberania.

O mais interessante de todo esse processo, e fundamental para compreendermos a crise atual, inclusive, com relação às novas e desastrosas políticas de gestão das águas, é que os mesmos organismos internacionais que apoiaram as políticas de Estado legitimando governos ditatoriais, todos desenvolvimentistas, de gravíssimas conseqüências socioambientais, são os mesmos organismos que no momento de democratização apoiam políticas que diminuem a importância do Estado e incentivam a iniciativa empresarial e das organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais.

Assim, esses novos gestores assestam uma dura crítica ao papel do Estado também na questão específica da gestão das águas dizendo que “os responsáveis pela planificação sempre supuseram que se satisfaria uma demanda em crescimento dominando ainda mais o ciclo da água mediante a construção de mais infra-estrutura” e que “a ênfase posta no abastecimento de água, combinado com uma débil aplicação dos regulamentos, limitou a eficácia da ordenação dos recursos hídricos especialmente nas regiões em desenvolvimento. Os responsáveis pela adoção de políticas agora mudaram as soluções (...) e entre essas medidas se contam melhorar a eficácia no aproveitamento da água, políticas de preços e o processo de privatização” (GEO-3: 151).

É interessante observar a desfaçatez desse discurso que parte de técnicos dos próprios organismos que antes desencadearam essas políticas. Sem nenhuma avaliação criteriosa dos próprios organismos de que fazem parte acabam, entretanto, por explicitar os princípios e os interesses em jogo, a saber:
1- dos gestores técnicos para “melhorar a eficácia no aproveitamento da água”;
2- do princípio da água como bem econômico com as “políticas de preços” e;
3- dos empresários interessados no “processo de privatização”. Não podiam ser mais claros.

À página 156-7 desse mesmo documento da ONU pode-se ler, como se fora a conclusão desejada, que “o setor privado começou recentemente a expandir suas funções na ordenação dos recursos hídricos. O decênio dos 90 foi testemunha de um rápido aumento no índice e grau de privatização dos sistemas de condução de água anteriormente administrados pelo Estado. As empresas privadas administradoras de água se ocupam cada vez mais de prestar serviços às cidades em expansão ao fazer-se encarregadas de organismos públicos para construir, possuir e operar parte ou inclusive todo o sistema municipal. Do mesmo modo, tem aumentado a preocupação com a garantia do acesso eqüitativo à água ao setor pobre da população, financiar projetos e compartilhar riscos da melhor maneira possível” (GEO-3: 156-7).

O mundo da água privatizada está sendo dominado amplamente por grandes corporações (ver mais abaixo) que vêm atuando no sentido de que um novo modelo de regulação seja conformado à escala global.

Salientemos que, até aqui, não há um modelo pronto de regulação até porque são muitas os problemas que vêm se apresentando.

Várias têm sido as propostas de privatização das águas, todas baseadas numa ampla desregulamentação pela abertura dos mercados e a supressão dos monopólios públicos, sob a pressão dos técnicos do Banco Mundial e do FMI, políticas essas que vão desde:
(1) privatização em sentido estrito, com a transferência pura e simples para o setor privado com a venda total ou parcial dos ativos;
(2) transformação de um organismo público em empresa pública autônoma, como bem é o caso da ANA – Agência Nacional da Água – no Brasil; ao
(3) PPP – Parceria Público Privado - modelo preferido pelo Banco Mundial.

As dificuldades para se estabelecer um sistema de regulação pode, ainda, ser visto na sucessão de entidades que, em pouco tempo, vêm se alternando no sentido de se chegar a um formato que possa garantir “a superação dos obstáculos aos investimentos em água[9]. Em 1994, por iniciativa de alguns governos (França, Holanda e Canadá entre outros) e de grandes empresas, com destaque à época para a Suez-Lyonnaise des Eaux uma das maiores do mundo do setor, foi criado o Conselho Mundial da Água.

Segundo nos informa Ricardo Petrella, em 1996 esse Conselho se atribuiu o objetivo de definir uma “visão global sobre a água" de longo prazo, que serviria de base a análises e propostas visando uma "política mundial de água".
Ricardo Petrella
Nos últimos anos tem sido o Banco Mundial o principal promotor do Conselho Mundial da Água que ensejou a criação da Parceria Mundial pela Água (GWP - Global Water Partnership) que tem como tarefa aproximar as autoridades públicas dos investidores privados. O GWP é presidido pelo Vice-presidente do Banco Mundial e como os trabalhos desse organismo não têm se mostrado plenamente satisfatórios criou-se, em agosto de 1998, outro órgão, a Comissão Mundial para a Água no Século XXI.

Embora não haja ainda uma modelo claro de regulação, um princípio vem sendo sistematicamente perseguido: o da liberalização, que acredita que a alocação ideal de recursos (bens e serviços materiais e imateriais) requer a total liberdade de acesso aos mercados local, nacional e, sobretudo, mundial [10].


Segundo Ricardo Petrella, “por ocasião da IV Conferência Geral da OMC em Doha, em novembro de 2001, sob a eficaz pressão do European Service Forum (Fórum Europeu de Serviços) – que reuniu as principais empresas européias, tais como Suez, Vivendi, bancos, seguradoras e telecomunicações –, os representantes da União Européia conseguiram fazer aprovar, algumas horas antes do fechamento oficial das negociações, um dispositivo autorizando a inclusão de “indústrias do meio ambiente” (que englobam os serviços de água) entre os setores que podem ser objeto de liberalização dentro do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços - AGCS”.

No capítulo sob título “Comércio e Meio Ambiente” aprovado nessa mesma reunião, pode-se ver no artigo 31, inciso 3, que se exige “a redução ou, conforme o caso, a eliminação dos obstáculos tarifários e não tarifários aos bens e serviços ambientais”, entre os quais, a água. Segundo essa lógica, qualquer tentativa de controle de exportação da água para fins comerciais passa a ser ilegal. O artigo 32 tem por objetivo impedir os países de apelarem para obstáculos não tarifários, como as leis de proteção ambiental [11]. Na Alca esse mesmo princípio vem sendo proposto pelos EUA. É com base nele que várias empresas vêm processando governos sempre que esses, alegando o interesse público, ferem os interesses comerciais das grandes corporações.

A Sun Belt, empresa estadunidense da Califórnia, processou o governo da Colúmbia Britânica, província do Canadá, que suspendera a exportação de água para os EUA pelas conseqüências que estava trazendo para abastecimento de sua própria população. A alegação da empresa é que o governo da Colúmbia Britânica violara os direitos dos investidores do Nafta e, por isso, reivindicava a indenização de US 220 milhões como reparo de seus prejuízos, no que foi bem sucedida judicialmente.

A empresa estadunidense Bechtel, expulsa da Bolívia no ano 2000 pelos péssimos serviços que prestara por sua subsidiária Águas del Tanuri, em Cochabamba, tentou processar o governo boliviano através de uma empresa especificamente criada para isso na Holanda. Na verdade, a Bechtel buscava se aproveitar de um Tratado bilateral entre os governos da Bolívia e da Holanda que estabelece fórum internacional para resolução de conflitos entre esses países. A tentativa não obteve êxito, pois o governo da Holanda cassou o registro de conveniência da empresa estadunidense. O exemplo, por si mesmo, revela os interesses contraditórios entre Estados Nacionais e o que as empresas visam, no caso, sobretudo, a rentabilidade dos seus negócios.

Observe-se que é um novo território, global, que está sendo instituído ensejando as condições para que se afirmem protagonistas que operam à escala global – os gestores globais, as grandes corporações transnacionais e grandes organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais. Cada vez mais, muitos dos técnicos dos próprios organismos nacionais são contratados em parceria com o Banco Mundial e outros organismos internacionais e, assim, órgãos que seriam de planejamento se tornam simplesmente de gestão, já que perdem o caráter estratégico inerente ao planejamento, haja vista ser esse definido à escala global, enfim, aquela escala em que operam as grandes corporações e, ainda, as grandes organizações (neoliberalmente bem denominadas) não-governamentais.

O fato de cada vez mais se falar de gestão não nos deve fazer esquecer a necessária relação entre planejamento e gestão, haja vista o primeiro, o planejamento, ser mais estratégico e político, e o segundo, a gestão, ser mais técnico-operacional. Cada vez mais o planejamento tem se deslocado para os organismos multilaterais.

Deve-se ter em conta que, além das resistências de todo tipo a essa política de novas formas de controle e gestão por meio da privatização e liberalização, há também interesses empresariais em disputa que ainda não conseguiram conformar claramente seus interesses divergentes.

Há, também, questões relativas à própria doutrina jurídica, até porque não há grande tradição de apropriação privada de recursos que são fluidos, líquidos, cujos limites não são tão claros e distintos, como é a terra, cuja tradição jurídica está ancorada no Direito Romano. As cercas não são aplicáveis ao ar e à água nem às fronteiras entre os Estados. Afinal, a água exige uma perspectiva que vá além da propriedade privada individual e nos chama a atenção, talvez melhor do que qualquer outro tema, para o caráter público, exigindo um sentido comum que vá além do individualismo possessivo tão cultivado e estimulado pela lógica de mercado.


Eis parte do grande desafio colocado pela problemática ambiental, haja vista apontar para questões que transcendem a propriedade privada, sobretudo quando nos coloca diante da queda de outros muros que se acreditavam ter sobrevivido sem maiores conseqüências à queda do muro de Berlim, em 1989. Afinal, questões como as da poluição do ar e da água que, como vemos, não se restringem à escala local ou regional, exigem referências de direito distintas do Direito Romano, direito sobretudo (dos proprietários e) da propriedade privada, e que foi pensado para a terra e não para a água e o ar (para não dizer da vida, conforme se pode ver no debate sobre a propriedade intelectual sobre material genético).

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.


[8] Não olvidemos que também eram os pobres que eram invocados pelos políticos então chamados de populistas e oligárquicos, com a ‘indústria da seca’ e da ‘bica d’água’.

[9] Aproprio-me, aqui, literalmente, do título de um painel do Congresso Anual de Desenvolvimento Econômico patrocinado pelo FMI e pelo Banco Mundial, onde estiveram reunidos representantes de governos de 84 países com corporações e instituições financeiras internacionais (Ver Maude Barlow em “O Ouro Azul” em http://www.canadians.org)./

[10] É o que vêm propondo não só os novos teóricos da justiça social e da democracia, como vários seguidores de John Rawls, mas também alguns intelectuais e cientistas progressistas, como o Prêmio Nobel de economia Amartya Sem, conforme nos diz Ricardo Petrella.

[11] Definiu-se, ainda, que cada Estado membro da OMC deve submeter as solicitações de liberalização que espera dos outros membros. As formuladas pela União Européia, até aqui, principalmente para o Canadá, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Egito e a África do Sul, insistem sobre a liberalização dos serviços de água (Ler ATTAC nº 338, do dia 7 de junho 2002 jornal@attac.org


[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Água Não Se Nega a Ninguém - Parte 2/5


Algumas razões da desordem ecológica vista a partir das águas
Carlos Walter Porto-Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes

O malthusianismo como se sabe exerce, ainda, uma forte influência no debate ambiental e, como já salientamos, faz parte de um discurso do medo, do pânico [3], em nome do que se tenta convencer os outros da validade de suas propostas, quase sempre, o controle da população.

Também com relação aos recursos hídricos, a mesma cantilena é aduzida como se os problemas derivassem do crescimento da população.

Entretanto, e aqui mais uma vez, a questão parece ser mais complexa do que esse reducionismo, até porque se a população mundial cresceu 3 vezes desde os anos 50, a demanda por água cresceu 6 vezes, segundo nos informa o diretor da Agência Nacional de Águas do Brasil, Sr. Jerson Kelman. No Canadá, entre 1972 e 1991, enquanto a população cresceu 3% o consumo de água cresceu 80%, segundo a ONU (GEO-3). Considerando-se o nível de vida da população canadense, os dados acima quando comparados com o crescimento da população mundial e a demanda global por água vemos claramente que é o crescimento exponencial de populações com o nível de vida europeu e norte americano que está aumentando a pressão sobre esse e outros recursos naturais de modo insustentável. Assim, a demanda por água cresce mais que o crescimento demográfico, indicando que devemos buscar em outro campo as razões do desequilíbrio hidrológico.

A urbanização se coloca como um componente importante dessa maior demanda por água. Um habitante urbano consome em média 3 vezes mais água do que um habitante rural assim como, já o vimos, a pegada ecológica, água incluída, entre os habitantes do primeiro mundo e os do terceiro mundo é extremamente desigual. Segundo Ricardo Petrella, "um cidadão alemão consome em média nove vezes mais água do que um cidadão na Índia” (entrevista à Agência Carta Maior durante o 1º Fórum Alternativo da Água em Florença - 2003).

Além disso, as cada vez maiores aglomerações urbanas exigem captação de água a distâncias cada vez maiores, para não nos referirmos à energia que por todo lado implica mudar o uso e o destino (e os destinatários, não nos esqueçamos) da água, não só quando é produzida enquanto hidrelétrica, como também nas termelétricas e nas usinas nucleares, onde a água é amplamente utilizada para fins de resfriamento das turbinas. Segundo a ONU, somente nos últimos 50 anos, entre 40 e 80 milhões de habitantes, quase sempre camponeses e populações originárias, foram atingidos por inundação de suas terras para fins de construção de diques e barragens (GEO-3: 151). Dos 227 maiores rios do mundo, 60% foram barrados por algum dique nesse mesmo período e, ainda em 1998, estavam sendo construídos nada menos que 349 diques com mais de 60 metros de altura em diferentes países do mundo, em grande parte financiados pelo Banco Mundial.

Roberto Melville e Claudia Cirelli nos dão uma boa caracterização de todo esse processo quando nos dizem que “os blocos capitalista e comunista em que estava dividido o mundo até pouco tempo tinham muitos pontos de controvérsia ideológica, mas ambos coincidiam em sua admiração pelo desenvolvimento técnico e competiam para mostrar avanços nesse terreno. Sob esta mentalidade, se empreenderam projetos em grande escala, com armazenamentos de água atrás de represas de concreto, com dispositivos para geração de energia, controle de inundações e derivados para a irrigação agrícola. Podemos assinalar alguns exemplos destas obras monumentais. Nos Estados Unidos, a represa Hoover no rio Colorado, ou a cadeia de represas construída na bacia do rio Tennessee. Na União Soviética, o projeto Dnipropertovsk na Ucrânia representou um vigoroso impulso para a industrialização socialista. Mais tarde, ambas potências difundiram seus modelos sociopolíticos e de desenvolvimento tecnológico em suas respectivas áreas de influência. No rio Nilo, a União Soviética fez replicar sua capacidade tecnológica na construção da represa de Assuan (no Egito). No México, com apoio financeiro internacional, a Comissão Federal de Eletricidade construiu a represa Chicoasén, uma das 10 maiores represas do mundo”. (Roberto Melville e Claudia Cirelli, La crisis dela água. In http://www.memoria.com.mx/, 9 de junio de 2000).

No Brasil, foi construído um complexo sistema nacional integrado de energia com base na construção de grandes hidrelétricas, que contou com apoio do Banco Mundial. Urubupungá, binacional Itaipu, Balbina, Tucuruí e Xingó são alguns dos grandes projetos com enorme impacto socioambiental por todo lado.

O crescimento da população urbana e da industrialização, com a conseqüente expansão da economia mercantil que lhe acompanha e impulsiona [4], estão impondo mudanças significativas no modo de organização do espaço em todo o mundo. As monoculturas passam a predominar nas paisagens rurais visando abastecer os centros urbanos tanto no interior dos diferentes países, como para garantir o fluxo de matéria entre os países, fluxo esse sobretudo dirigido aos países hegemônicos, sem o que os valores de uso concretos não podem ser produzidos e o usufruto da riqueza tangível, implicado num estilo de vida consumista tão ciosamente induzido pelos meios de comunicação de massas, possa ser praticado. Não sem razão, a irrigação e a captação de águas subterrâneas se generaliza, tanto para fins agrícolas como de abastecimento urbano-industrial, com o uso crescente em todo o mundo, sobretudo nos últimos 30 anos, de bombas a diesel e de poços artesianos. O problema da água, literalmente, se aprofunda.

Assim, numa outra escala geográfica, agora global, a lógica industrial volta a se encontrar com a água, relação essa que esteve presente já nos inícios da revolução industrial com a máquina a vapor (d’água). Ali, o carvão viera substituir a madeira no aquecimento da água, haja vista a escassez de madeira para esse fim. Pouco a pouco os motores foram se transformando e se tornando mais eficientes em termos energéticos sem, entretanto, deixar de consumir água. Afinal, maior eficiência energética implica maior capacidade de transformação da matéria e, com isso, maior consumo de água, maior dissipação de energia sob a forma de calor (2º princípio da termodinâmica) e, nas turbinas concretamente, maior necessidade de água para resfriamentos.

Assim, a maior eficiência que se obtém numa escala micro ao se generalizar torna possível a maior transformação global da matéria e, assim, acelera a transformação global da natureza do que o efeito estufa e as mudanças climáticas globais são uma demonstração, assim como a desordem ecológica global que vimos assinalando.

Assim, as soluções encontradas à escala micro para resfriar as turbinas, ou o termostato que desliga automaticamente a máquina quando atinge certo grau de aquecimento, não são transplantáveis para a escala do planeta como um todo e que pudesse amenizar o aquecimento global provocado pelo efeito estufa. Como se vê, a água flui por meio da agricultura, da indústria, do nosso estilo de vida e a pressão sobre seu uso está longe de ser explicada pelo crescimento da população, simplesmente, como quer a matriz malthusiana de pensamento.

Hoje, com o motor a diesel se busca água no subsolo e, com isso, introduz-se no nosso léxico cotidiano novas expressões como aqüíferos, já que as águas superficiais e mesmo os lençóis freáticos já não se mostram suficientes, pelo menos na hora e no lugar desejados.

Cada vez é maior o saque aos aqüíferos e, deste modo, introduz-se um componente novo na injustiça ambiental generalizada no mundo e em cada país com a expansão da racionalidade econômico-mercantil engendrada pelo capitalismo. Afinal, a captação de água à superfície era, de certa forma, mais democrática na medida que a água estava ao alcance de todos, literal e materialmente. Com a captação de águas nos subterrâneos os meios de produção, as bombas a diesel, se tornam sine qua non conditio e como nem todos dispõem desses meios a injustiça ambiental ganha novos contornos por meio do desigual acesso aos recursos hídricos.

Nos anos 90, na América do Norte 50% de todo o consumo dos habitantes foi obtido em águas subterrâneas, segundo a ONU (GEO-3). Na China também é cada vez maior a proporção de águas captadas subterraneamente.

Se, de um lado, com a irrigação podemos aumentar a área de terras para a agricultura é preciso considerar os vários lados dessa prática. Cerca de 20% dos solos irrigados no mundo estão hoje salinizados e, assim, impraticáveis para a agricultura (GEO-3). Em Madras na Índia, a captação de águas subterrâneas levou a um rebaixamento de tal ordem do lençol freático que a águas salgadas avançaram pelo subsolo cerca de 10 quilômetros continente adentro trazendo sérios problemas de abastecimento (ONU-GEO-3).

Consideremos, ainda, que essa expansão generalizada da economia mercantil vem avançando sobre áreas como manguezais e outros humedales, áreas riquíssimas do ponto de vista das cadeias alimentares da vida, assim como sobre áreas florestais que, como vimos com o exemplo da Amazônia, abrigam enorme quantidade de água nelas mesmas. Essas áreas, em particular as florestas tropicais, cumprem um papel importantíssimo para o equilíbrio climático global pela umidade que detém e, assim, contribuem para que as amplitudes térmicas, as diferenças entre as temperaturas máximas e as mínimas diárias e anuais, não aumentem ainda mais como vem ocorrendo, em grande parte pelo próprio desmatamento.

Relembremos que com a aplicação aos próprios meios de transportes do princípio da máquina a vapor, o deslocamento da matéria se tornou possível numa proporção que não mais dependia dos ventos e das calmarias, das marés e correntes marinhas, e tampouco dos braços escravos que moviam as embarcações com seus remos. Com isso, a injustiça ambiental se generaliza ainda mais, na medida que as matérias ao se deslocarem no sentido geográfico que as relações sociais e de poder determinam, escrevem uma geografia desigual dos proveitos e dos rejeitos. Afinal, a água circula não só pelos rios, pelo ar, com as massas de ar, ou pelos mares e correntes marinhas, mas também sob a forma social de mercadorias várias - tecidos, automóveis, matérias primas agrícolas e minerais - enfim, sob a forma de mercadorias tangíveis e, só assim, podemos entender o desequilíbrio hidrológico impulsionado pela lógica de mercado generalizada. Afinal, para se produzir um quilo de qualquer grão, seja de milho ou de soja, se demanda, com as atuais técnicas agrícolas, 1.000 litros de água! Um quilo de frango consome 2000 litros de água!


Fixemos a imagem de um caminhão frigorífico em plena Rodovia Transamazônica transportando frango produzido em Chapecó, Santa Catarina, para termos uma idéia do custo energético e hídrico desse frango para a sociedade brasileira e o planeta como um todo!

E isso para não falar do que significa para as populações locais dos lugares que importam esse frango que, por essa lógica, não servem nem para criar galinha! A racionalidade econômico mercantil não poderia ganhar um exemplo mais radical de ineficiência ambiental global.

Não olvidemos que quando exportamos frango para a Europa e Oriente Médio, e o fazemos até mesmo de avião, estamos exportando energia e água. Não é demais repetir: 1 quilo de frango consome 2.000 litros de água! Quando essas regiões exportadoras estiverem implicadas em algum stress hídrico, como soem estar cada vez mais, como recentemente esteve Santa Catarina no sul do Brasil, devemos ter em conta as limitações de qualquer especialista para dar conta dessa problemática que, embora se manifeste em cada local de modo específico está, na verdade, submetida a um processo global de desenvolvimento desigual mas combinado, como estamos vendo.

Basta se multiplicar por mil as milhões de toneladas de grãos de milho, de soja, de girassol para sabermos a quantidade de água que está sendo importada pelos países para onde as relações sociais e de poder dirigem o fluxo dessas matérias. O mesmo raciocínio pode ser feito com o alumínio, o papel, a celulose. As indústrias e plantações altamente consumidoras de água, ou que nela lançam muitos rejeitos, como são os casos das indústrias de papel e celulose ou de bauxita-alumínio (no caso do alumínio, para cada 1 tonelada de bauxita deixa-se no ambiente 15 toneladas de uma lama vermelha altamente poluidora), vêm se transferindo, desde os anos 70, para os países ricos em matérias brutas – energia, minerais, solos, Sol, água – de onde exportam o proveito e deixam os rejeitos.

A ideologia do desenvolvimento abençoa essa lógica, para o que muito vêm contribuindo os organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial e a OMC) com suas políticas de ajuste, fomento, ajuda e apoio.

Um exemplo concreto pode nos ajudar a fixar a tese central: a separação do minério de cobre numa jazida implica abandonar cerca de 99,5% da matéria revolvida como rejeito! Relembremos que, cada vez mais, trabalha-se com minerais raros e o nome traz em si mesmo a proporção do que é útil e do que é rejeito, afinal são raros! Separar os minerais raros exige água em proporções enormes e, assim, a revolução nas relações sociais e de poder implicada na nanotecnologia com sua desmaterialização e transmaterialização, implica mais água por todo lado. A água é por todo lado um meio amplamente usado e, diferentemente de qualquer commoditty, é insubstituível. Pode-se melhorar a eficiência de seu uso mas não se pode prescindir dela. Daí todo o significado de se considerar a vida como um outro estado da água e de tomar a sociedade com todas as suas contradições como parte do ciclo da água.

No Brasil, o avanço do agronegócio, sobretudo no Planalto Central com suas chapadas extensas e planas, não teria o sucesso econômico de curto prazo que vem obtendo não fossem desenvolvidas as técnicas de captação de água em grandes profundidades que tornaram possível agricultar aquelas regiões antes ocupadas pelos cerrados [5].

Quase sempre se vem destacando a inegável contribuição da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - no desenvolvimento de sementes e de todo um pacote tecnológico para a expansão do agronegócio nos cerrados. Recusemos aqui o mau raciocínio do ou isso ou aquilo, e chamemos a atenção para o fato de que sem a água, nenhum cultivo é possível e esse se constituía num dos principais fatores limitadores do cultivo nas chapadas do Planalto Central. O sucesso que vem obtendo esse modelo agrário-agrícola deverá ser melhor avaliado num tempo outro, médio e longo, e não somente sob a lógica do curto prazo para saldar a dívida eterna. O aumento de áreas abandonadas pelo cultivo por desequilíbrio ecológico, como formação de ravinas e voçorocas, perda de solos por erosão, são maus indícios da insustentabilidade desse modelo. Não olvidemos que os cerrados onde hoje reina o agronegócio herdaram as maiores reservas hídricas do Brasil, bastando observar que é de lá que partem importantes rios para diferentes bacias hidrográficas brasileiras.

No dizer de Guimarães Rosa [6], o cerrado é ‘uma caixa d’água’.

Um dos conflitos ambientais mais intensos vividos nessas regiões do Planalto Central está relacionado à questão da água não pela sua escassez, haja vista ser abundante, mas sim aos conflitos de classe por apropriação e expropriação de terras e de águas.

Ali, a água captada nas chapadas pelos pivôs centrais [7] rebaixa o lençol freático fazendo secar rios, lagoas, brejos e ‘pantamos’, onde toda uma rica e diversificada (agri)cultura camponesa se desenvolve historicamente.

O exemplo dos cerrados (savanas) do Planalto Central brasileiro é um caso emblemático das implicações socioambientais das demandas por água que se vem colocando em todo o mundo com a expansão da economia mercantil nesse período neoliberal. A água, como se infiltra em tudo – no ar, na terra, na agricultura, na indústria, na nossa casa, em nosso corpo - revela nossas contradições socioambientais talvez melhor que qualquer outro tema. Afinal, por todo lado onde há vida há água.

Atentemos, pois, que a vida deve ser entendida para além de sua dimensão estritamente biológica, posto que a água está presente na sociedade por todo lado – na agri-cultura, no artesanato e na indústria.

Nosso modo de comer, mesmo nas cidades, está em grande parte condicionado pelo modo como nossos alimentos são produzidos nos campos; nosso próprio abastecimento depende de barrar rios e mudar o destino e os destinatários da água (inclusive, para fins de energia).

A questão da água, vê-se, urbaniza o debate sobre o sistema agrário-agrícola e por meio da questão ambiental põe em xeque todo o estilo de vida alimentado por um modo de produção que o estimula para acumular riqueza virtual – dinheiro – e, com isso, pondo em risco a riqueza da água, da terra, do solo, da vida, na sua concretude.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[3] Explosão demográfica, bomba populacional, baby boom, eis alguma dessas expressões de um verdadeiro terrorismo demográfico.

[4] O espaço urbano é o locus por excelência da economia de mercado. Afinal, o ambiente urbano torna praticamente impossível a chamada economia natural, isto é, aquela que não requer a mediação mercantil. Assim, a economia gerada pelo expansão da população urbanizada introduz a mediação do ilimitado nas relações sociedade-natureza por meio do dinheiro. A tensão entre o simbólico, o dinheiro, e a materialidade do mundo se instaura enquanto questão ambiental.

[5] Jogou ainda um papel importante nesse avanço do agronegócio o fato dessas regiões de chapada estarem, até muito recentemente, nos anos 70, em grande parte com um uso extensivo para fins de pastagens para gado e para fins de extrativismo (de pequi, de baru, de fava d’anta, entre tantas espécies) num sistema de uso da terra que combinava uso familiar da terra, no fundo dos vales, com uso comum das chapadas conhecidas em muitos lugares como gerais [6]. O fato de serem terras de uso comum, gerais, muito facilitou a grilagem, quando não a concessão pelo Estado para os grandes empresários em detrimento dos camponeses, quilombolas e indígenas que, hoje, vêm se mobilizando para recuperar seus direitos a essas terras e aperfeiçoar seu modo de vida em condições menos limitadas do que as que vêm sendo submetidos. Afinal, na tradição do direito romano, terra que não tem um dono, não tem dono e, com isso, ignora-se as diferentes modalidades de apropriação coletiva, comunitária e de uso comum dos recursos naturais muito mais generalizadas no Brasil do que se tem admitido, como bem destacam Alfredo Wagner, Nazareno de Campos e Porto-Gonçalves entre outros.

[6] Uma leitura possível do título da obra maior de Guimarães Rosa – “Grande Sertões, Veredas” – dá conta dessa unidade na diversidade de paisagens que compõem os Cerrados: o Grande Sertão, os Gerais, sendo as chapadas, e Veredas onde os camponeses têm suas casas, as baixadas nos fundos de vales.

[7] - Inclusive com baixíssima eficiência no seu uso, haja vista o enorme desperdício que, avalia-se, em 70% a perda por evaporação.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]

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