terça-feira, 15 de maio de 2012

Água Não Se Nega a Ninguém - Parte 1/5


A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Carlos Walter Porto-Gonçalves*

Introdução
A disputa pela apropriação e controle da água vem se acentuando nos últimos anos, mais precisamente, na segunda metade dos anos 90.


Se tomarmos tanto O Nosso Futuro Comum, Relatório da Comissão Brundtland, assim como os diversos documentos e tratados saídos da Rio 92, inclusive a Agenda XXI e a Carta da Terra, para ficarmos com as referências mais importantes do campo ambiental nos últimos 20 anos, chega a ser surpreendente o tratamento extremamente tímido que a água merece se comparamos com o destaque que vem merecendo na última década, a ponto de ser apontada como a razão maior das guerras futuras.

Apesar desse súbito interesse recente pela água isso não quer dizer que o tema já não fosse um problema sentido há muito tempo por parcelas significativas da população, sobretudo entre os mais pobres. Uma rápida mirada sobre o cancioneiro popular brasileiro já seria o bastante para sabermos disso – "Lata d’água na cabeça/ Lá vai Maria/ Lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa/ Pela mão leva a criança/ Lá vai Maria".

Tudo parece indicar que enquanto a água foi um problema somente para as maiorias mais pobres da população o assunto se manteve sem o devido destaque. Ou, quando foi considerado um tema politicamente relevante, o foi numa perspectiva de instrumentalização da miséria alheia como no caso das oligarquias latifundiárias do semi-árido brasileiro com a famosa ‘indústria da seca’, assim como, também nas cidades, não foram poucos os ‘políticos de bica d’água’ que, populisticamente, se constituíram por meio da miséria dos sem-água, parte, na verdade, de um quadro geral dos sem-direitos.

Hoje a questão da água não se apresenta mais como um problema localizado manipulado seja por oligarquias latifundiárias regionais ou por políticos populistas.

Esses antigos protagonistas que durante tanto tempo manejaram a escassez de água intermediando secas e bicas estão sendo substituídos no controle e gestão desse recurso por novos e outros protagonistas. Entretanto, o mesmo discurso da escassez vem sendo brandido acentuando a gravidade da questão, agora à escala global. O fato de agora se manipular um discurso com pretensões de cientificidade e que invoca o uso racional dos recursos por meio de uma gestão técnica nos dá, na verdade, indícios de quem são alguns dos novos protagonistas que estão se apresentando, no caso, os gestores com formação técnica e científica.


A Nova Invenção da Escassez
O novo discurso da escassez nos diz que embora o planeta tenha 3 de suas 4 partes de água, 97% dessa área é coberta pelos oceanos e mares e, por ser salgada, não está disponível para consumo humano; que, dos 3% restantes, cerca de 2/3 estão em estado sólido nas geleiras e calotas polares e, assim, também indisponíveis para consumo humano; deste modo, menos de 1% da água total do planeta seria potável, num discurso de escassez de tal forma elaborado que, ao final, o leitor já está com sede.

Essa estatística, ao tentar dar precisão científica ao discurso da escassez, comete erros primários do próprio ponto de vista científico de onde procura retirar sua legitimidade. Afinal, a água doce que circula e que está disponível para consumo humano e ainda permite toda sorte de vida que o planeta conhece é, em grande parte, fruto da evaporação dos mares e oceanos - cerca de 505.000 Km3, ou seja, uma camada de 1,4 metros de espessura evapora anualmente dos oceanos e mares que, embora sejam salgados, não transmitem o sal na evaporação.

Informe-se, ainda, que 80% dessa água evaporada dos oceanos e mares precipita-se sobre suas próprias superfícies. P.H. Gleyck (Gleyck, 1993) avalia que dos 119.000 Km3 de chuvas que caem sobre os continentes, 72.000 Km3 se evaporam dos lagos, das lagoas, dos rios, dos solos e das plantas (evapotranspiração) e, assim, 47.000 Km3 anualmente escoam das terras para o mar “das quais mais da metade ocorrem na Ásia e na América do Sul, e uma grande proporção, em um só rio, o Amazonas, que leva mais de 6.000 Km3 de água por ano” aos oceanos (GEO 3: 150).

Assim, a água disponível para a vida é, pelo menos desde o recuo da última glaciação entre 12.000 e 18.000 anos atrás, a mesma desde então até os nossos dias, com pequenas variações. [1] Se maior não é a quantidade de água potável é porque, na verdade, maior não pode ser, a não ser, como indicamos, pela regressão das calotas polares e dos glaciares fruto de mudanças climáticas planetárias produzidas por causas complexas e, muito recentemente em termos da história do planeta, pela matriz energética fossilista pós-revolução industrial.

Assim, por um desses caminhos tortuosos por meio dos quais a vida e a história transcorrem temos, hoje, uma quantidade maior de água doce sob a forma líquida em virtude do efeito estufa e o conseqüente aumento do aquecimento global do planeta com o derretimento das calotas polares e glaciares.

ÁGUA QUE CIRCULA NA ATMOSFERA POR EVAPORAÇÃO DOS CONTINENTES (Em Km3)
Europa – 5.320 ( 7,1%)
Ásia – 18.100 (24,4%)
África – 17.700 (23,8%)
América do Norte – 10.100 (13,6%)
América do Sul – 16.200 (21,8%)
Oceania – 4.570 ( 6,1%)
Antártida – 2.310 ( 3,1%)

Conforme se vê a Ásia, a África e a América do Sul contribuem com exatos 70% da água que circula por evaporação por todo o planeta cuja função é fundamental para o equilíbrio climático global.

Fonte: Elaborado por LEMTO a partir dos dados da ONU - GEO 3

Todavia, apesar desse aumento da água doce disponível estamos diante de um aumento da escassez de água em certas regiões com a ampliação significativa de áreas submetidas a processos de desertificação, conforme a ONU vem acusando. Vimos observando, ainda, uma incidência cada vez maior de chuvas torrenciais e de secas pronunciadas, com calamidades extremas como inundações e incêndios florestais que não mais atingem somente as populações mais pobres e mais expostas a riscos ambientais maiores, mas também áreas nobres com suas mansões sendo queimadas, seja na Califórnia, seja no Mediterrâneo, com incêndios incontrolados cada vez mais freqüentes em função de elevações térmicas acompanhadas de baixíssimos índices de umidade relativa do ar.

Tudo indica que estamos imersos num complexo processo de desordem ecológica que, mesmo diante de maior quantidade de água doce disponível sob a forma líquida, está produzindo um aumento da área desertificada e do número de localidades submetidas a stress hídrico, inclusive em muitas das grandes cidades do mundo. Enfim, é de uma desordem ecológica global que estamos falando e não simplesmente de escassez de água, como vem sendo destacado.

Entretanto, é preciso sublinhar que embora estejamos diante de uma desordem ecológica global, particularmente visível quando abordado a partir da água, seus efeitos estão longe de serem distribuídos igualmente pelos diferentes segmentos e classes sociais, pelas diferentes regiões e países do mundo, assim como estão muito desigualmente distribuídos os meios para lidar com a questão.

Não bastassem esses efeitos há um outro, pouco debatido mas de efeitos igualmente graves, que diz respeito ao fato de que outras diferentes formas de lidar com a água desenvolvidas por diferentes povos e culturas em situações muito próprias, estão impossibilitadas de serem exercidas até porque essa desordem ecológica de caráter global produz desequilíbrios locais de novo tipo, cujas dinâmicas hídricas estão longe de constituir um padrão que possa servir de referência para as práticas culturais.

Esse problema vem sendo acusado por populações camponesas em diferentes regiões e lugares no Brasil, que não mais conseguem fazer as previsões de tempo com a mesma precisão que faziam há não mais do que 30 anos atrás (anos 70). Assim, diferentes culturas e, com elas, diferentes modos de se relacionar com a natureza também vão sendo extintos e, com eles, todo um enorme acervo de conhecimentos diversos de como lidar com as dinâmicas naturais. [2] 


A atual disputa pelo controle e gestão da água (ver link adiante e nota do blog ao final: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19777 ), parte da crise ambiental, revela, também, a crise da racionalidade instrumental hegemônica na ciência da sociedade moderno-colonial. No caso da água, a própria natureza líquida da matéria parece escapar àqueles que tentam aprisioná-la às especialidades com que nossa departamentalizada universidade forma, conforma e deforma seus profissionais. A água, afinal, não cabe naquela simplificação típica dos livros didáticos, e que comanda o imaginário dos cientistas, em que uma superfície líquida submetida à radiação solar transforma-se em vapor e, depois, em nuvens que se condensam e precipitam, dando origem a rios e lagos e outros superfícies líquidas que submetidas à radiação solar ... , enfim, o ciclo da água.

Ciclo abstrato, até porque ignora que aquele que desenha o ciclo da água, assim como aquele que está desaprendendo o que, assim, não é o ciclo da água, são seres humanos que, eles mesmos, enquanto seres vivos que são, contém em seus corpos, em média, mais de 70% de água. Quando transpiramos ou fazemos xixi estamos imersos no ciclo da água. O ciclo da água não é externo a cada um de nós, passando por nossas veias materialmente e não só literalmente – nosso sangue é, em 83%, água. E não só: quando nos sentamos à mesa para comer deveríamos saber que o cereal, a fruta e o legume não só contém em si mesmos água, como também todo o processo de sua produção agrícola envolveu um elevado consumo de água.

A agricultura é responsável pelo consumo de 70% da água de superfície no planeta! Assim, é todo o sistema agrário-agrícola que está implicado no ‘ciclo da água’! O mesmo pode ser dito dos pratos de cerâmica ou de metal, dos talheres de aço inoxidável ou de alumínio que para serem produzidos exigem um elevadíssimo consumo de água, além de lançarem resíduos líquidos em altíssima proporção no ambiente como rejeito. Em todo o mundo a indústria é responsável pelo consumo de 20% da água superficial. Todo o sistema industrial se inscreve, assim, como parte do ‘ciclo da água’ e, deste modo, vai se mostrando toda a complexidade da relação sociedade-natureza implicada no ciclo da água, muito longe dos especialistas formados no simplificador paradigma atomístico-individualista-reducionista que, embora seja visto como parte da solução é, também, parte do problema (Gonçalves, 1989).


Deste modo, o sistema agrário agrícola e todo o sistema industrial se inscrevem como parte do ciclo da água e se desequilíbrio há com relação à água ele deve ser buscado na complexas relações sociedade-natureza que manifesta também no sistema hídrico suas próprias contradições.

É sempre bom lembrar que a água é fluxo, movimento, circulação. Portanto, por ela e com ela flui a vida e, assim, o ser vivo não se relaciona com a água: ele é água. É como se a vida fosse um outro estado da matéria água, além do líquido, do sólido e do gasoso – estado vivo. Os cerca de 8 milhões de quilômetros quadrados relativamente contínuos de floresta ombrófila, em grande parte fechada, no Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Güianas, Peru, Suriname e Venezuela com seus 350 toneladas de biomassa por hectare em média é, em 70%, água e, assim, se constitui num verdadeiro ‘oceano verde’ de cuja evapotranspiração depende o clima, a vida e os povos de extensas áreas da América Central e do Sul, do Caribe e da América do Norte e do mundo inteiro.

Deste modo, a água não pode ser tratada de modo isolado, como a racionalidade instrumental predominante em nossa comunidade científica vem tratando de modo especializado, como se fosse um problema de especialistas. A água tem que ser pensada enquanto território, isto é, enquanto inscrição da sociedade na natureza com todas as suas contradições implicadas no processo de apropriação da natureza pelos homens e mulheres por meio das relações sociais e de poder.

O ciclo da água não é externo à sociedade, ele a contém com todas as suas contradições.

Assim, a crise ambiental, vista a partir da água, também revela o caráter de crise da sociedade, assim como de suas formas de conhecimento.


(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

 [1] Aliás, a água doce disponível sob a forma líquida depende, fundamentalmente:
(1) da radiação solar exercendo o trabalho de evaporação-condensação-precipitação e da sua distribuição segundo as latitudes;
(2) da conformação geológica e pedogenética que condiciona o armazenamento nos aqüíferos e lençóis freáticos e;
(3) do relevo, que condiciona o escoamento, configurando as bacias hidrográficas que, por sua vez, ensejam dinâmicas hídricas locais e regionais.
Sublinhe-se que essas dinâmicas hídricas locais e regionais estão imbricadas na dinâmica global do planeta que, por sua vez, está condicionada não só pela radiação solar mas, também, por mudanças climáticas globais que, cada vez mais, contam entre suas causas não mais aquelas exclusivamente naturais – vide o efeito estufa e a atual mudança climática global.

[2] - Aqui também perda de diversidade ecológica e diversidade cultural parecem caminhar juntas.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas)  e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuiçoes e das universidades brasileiras.]