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domingo, 2 de março de 2014

Carnaval na Criméia

28/02/2014 - Pepe Escobar - Asia Times Online
– The Roving Eye - “Carnival in Crimea”
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu - Redecastorphoto

Mapa político da Ucrânia e principais cidades e fronteiras - ao sul, a península da Crimeia

O tempo não espera por ninguém, mas, parece, esperará pela Crimeia.

O presidente do Parlamento da Crimeia, Vladimir Konstantinov, confirmou que haverá um referendo, que decidirá sobre maior autonomia em relação à Ucrânia, dia 25 de maio.

Até lá, a Crimeia permanecerá tão quente e fumegante quanto o carnaval no Rio – porque na Crimeia tudo tem a ver, sempre, com Sebastopol, o porto de atracação da Frota Russa do Mar Negro.

Se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é um touro, esse é o pano vermelho mãe de todos os panos vermelhos.

Ainda que você esteja tentando afogar todas as suas mágoas no nirvana movido a álcool e pulando para suar todos os seus problemas no carnaval no Rio – ou em Nova Orleans, ou Veneza, ou Trinidad e Tobago – mesmo assim seu cérebro registrou que o sonho mais molhado dos sonhos molhados da OTAN é instalar um governo fantoche do ocidente na Ucrânia, para despachar de lá, de sua base em Sebastopol, a marinha russa.

O arrendamento negociado do porto é vigente até 2042. Já há rumores e ameaças de que o arrendamento será cancelado.

Mapa da Crimeia com suas cidades principais e a vizinhança da Rússia

A península da Crimeia é habitada por maioria absoluta de falantes de russo. Pouquíssimos ucranianos vivem ali. Em 1954, o ucraniano Nikita Krushchev – aquele, o que bateu o sapato na mesa, na Assembleia Geral da ONU [1] – precisou só de 15 minutos para dar a Crimeia de presente à Ucrânia (então, parte da União Soviética). Na Rússia, a Crimeia é vista como russa. Nada mudará esse fato.

Ainda não estamos diante de uma nova Guerra da Crimeia – ainda não. Só um pouco. O sonho molhado da OTAN é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é fazê-lo acontecer: tipo pôr fim para sempre à rotina de a frota russa deixar Sebastopol pelo Mar Negro, pelo Bósforo, e assim chegar a Tartus, o porto mediterrâneo da Síria. Assim sendo, sim, sim, trata-se tanto de Crimeia, quanto de Síria.

Mapa Étnico linguístico-cultural da Ucrânia atual

A nova revolução ucraniana cor de laranja, de tangerina, de Campari, de Aperol Spritz ou de Tequila Sunrise parece, até aqui, ser resposta às preces da OTAN. Mas ainda há estrada longa e sinuosa a percorrer, antes de a OTAN conseguir reencenar os anos 1850s e produzir o remix da Guerra da Crimeia original.

No futuro à vista e previsível, seremos afogados num mar branco de platitudes. Como o El Supremo do Pentágono, Chuck Hagel [caricatura], “avisando” a Rússia que fique longe do torvelinho, enquanto ministros da Defesa da OTAN lançam toda a pilha indispensável de declarações, em nenhuma das quais se lê “garantindo integral apoio” à nova liderança, e paus mandados da imprensa-empresa universal repetem sem parar que não se trata de Nova Guerra Fria, para tranquilizar a população. [2]

Dancem conforme a minha estratégia, otários

Onde está HL Mencken, quando se precisa dele? Ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando a capacidade de mentir do sistema Pentágono/OTAN/CIA/Departamento de Estado dos EUA. 

Especialmente agora, quando a política para a Ucrânia do governo Obama parece ter sido subalugada à turma da neoconservadora Victoria "Foda-se a União EuropeiaNuland, casada com Robert Kagan, neoconservador queridinho de Dábliu Bush.

Como Immanuel Wallerstein já observou, Nuland, Kagan e a gangue neoconservadora estão tão aterrorizados ante a possibilidade de a Rússia dominar” quanto ante o surgimento de uma aliança geoestratégica que pode emergir lentamente, e bastante possível, entre a Alemanha (com a França como parceiro júnior) e a Rússia. 

Significaria o coração da União Europeia constituindo um contrapoder, de oposição ao abalado e oscilante poder norte-americano.

E, como atual encarnação do abalado poder norte-americano, o governo Obama é, sim, um fenômeno. 

Agora, estão perdidos no pântano que eles próprios inventaram, do tal “pivô”. Que pivô vem primeiro? Aquele na direção da China? Mas, nesse caso, temos de pivotear-nos, antes, para o Irã – para pôr fim à ação dispersiva, lá, no Oriente Médio. Ou quem sabe...? Talvez não.

Ouçam essa, a melhor, do secretário de Estado John Kerry [foto fantasia abaixo], sobre o Irã:

"Tomamos a iniciativa e lideramos o esforço para tentar ver se antes de irmos à guerra realmente poderia haver uma solução pacífica."

Quer dizer então que já não se trata de acordo nuclear a ser alcançado, talvez, em 2014. Nada disso. Agora se trata de “antes de irmos à guerra”. Trata-se de bombardear um possível acordo, para que o Império possa bombardear mais um país – outra vez. Ou, talvez, não passa de sonho molhado fornecido pelos patrões dos fantoches Likudniks.

O grande Michael Hudson especulou que um “xadrez multidimensional” poderia estar “guiando os movimentos dos EUA na Ucrânia”

Nada disso. Está mais para “se não podemos nos pivotear para a China – ainda – e se a pivotagem para o Irã vai falhar (porque desejamos que falhe), podemos nos pivotear para algum outro lugar...” 

Oh yes, tem aquele maldito país que nos impediu de bombardear a Síria; chamado “Rússia”. E tudo isso sobre o comando ilustrado de Victoria Foda-se a União Europeia” Nuland. Onde está um neo-Aristófanes, para escrever a história dessas comédias?

E ninguém jamais esqueça a imprensa-empresa. A CNN já começou a “Amanpourear” [ref. a Christiane Amanpour [foto]; equivale aos verbos “Jaborizar (derivado de Jabor)” ou “Waackear (der. de Waack)”, em português do Brasil (NTs)] sobre o Acordo de Budapeste – e só fazem repetir que a Rússia tem de ficar fora da Ucrânia.

Visivelmente, uma horda de produtores, todos com “índices” de audiência desabados, sequer se deram o trabalho de ler o Acordo de Budapeste, o qual, como o professor Francis Boyle da Universidade de Illinois lembrou "determina, isso sim, que EUA, Rússia, Ucrânia e Grã-Bretanha têm de reunir-se imediatamente, para “consulta” conjunta – e que a reunião tem de ser feita no nível de ministros de Relações Exteriores, pelo menos”.

Assim sendo, então... Quem paga as contas?

O novo primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, é – e o que mais seria?! – um tecnocrata reformador”, expressão em código para “fantoche do ocidente”. [3]

Ucrânia está convertida em caso perdido (rebentado). A moeda caiu 20% desde o início de 2014. Milhões de desempregados europeus sabem que a União Europeia não tem dinheiro para resgatar o país (talvez os ucranianos devam pedir algumas dicas ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi).

Em termos do Oleogasodutostão, a Ucrânia é apêndice da Rússia; o gás que transita pela Ucrânia para mercados europeus é gás russo. E a indústria ucraniana depende do mercado russo.

Examinemos mais de perto os bolsos dos novos “revolucionários” cor de Aperol Spritz. Todos os meses, a conta de gás natural importado da Rússia fica em torno de US$ 1 bilhão. Em janeiro, o país teve de despender também US$ 1,1 bilhão para pagar dívidas. As reservas em moeda estrangeira caíram, de US$ 20,4 bilhões, para US$ 17,8 bilhões. A Ucrânia tem de pagar, como 
pagamento mínimo da dívida, nada menos de $17 bilhões  em 2014. E tiveram até de cancelar um lançamento de $2 bilhões de eurobonds, semana passada.

Francamente: o presidente Vladimir Putin – codinome “Vlad, A Marreta” – deve estar rindo feito o gato de Cheshire [4] [imagem].

Pode simplesmente cancelar o significativo desconto de 33% no preço do gás natural importado, que deu a Kiev, no final do ano passado. 

Rumores insistentes já dizem –desesperançados – que os revolucionários da revolução cor de Aperol Spritz não terão dinheiro para pagar aposentadorias e salários dos funcionários públicos.

Em junho, vence uma dívida monstro, em mãos de vários credores (no total, cerca de US$ 1 bilhão). Depois disso, a coisa é mais sinistra, desolada e escura que o norte da Sibéria no inverno.

A oferta dos EUA, de $1 bilhão, é piada. E tudo isso, depois que a estratégia de “Foda-se a União Europeia” de Victoria Nuland torpedeou um governo ucraniano de transição – transição, por falar dela, negociada pela União Europeia – que teria mantido os russos a bordo, e o dinheiro deles.

Sem a Rússia, a Ucrânia dependerá totalmente do ocidente para pagar as próprias contas, para nem falar de tentar evitar o calote de todas as dívidas. O total alcança vertiginosos $30 bilhões, até o final de 2014.

Diferente do Egito, a Ucrânia não pode telefonar para a Casa de Saud e pedir cataratas de petrodólares. Aquele empréstimo de US$ 15 bilhões que a Rússia ofereceu recentemente chegaria em boa hora – mas Moscou tem de receber algo em troca.

A ideia de que Vladimir Putin [imagem por Maurício Porto] ordenará ataque militar contra a Ucrânia explica-se pelo quociente subzoológico de inteligência da imprensa-empresa nos EUA.

Vlad, A Marreta” só precisa assistir ao circo – o ocidente batendo cabeça para ver se arranja aqueles bilhões a serem desperdiçados num caso perdido (rebentado).

Ou ao Fundo Monetário Internacional e aquela conversa sinistra de mais um monstruoso “ajuste estrutural” para mandar a população da Ucrânia de volta ao Paleolítico, de vez.

A Crimeia pode até encenar seu próprio carnaval adiado, votando não só para ter mais autonomia, mas, também, para livrar-se do tal caso perdido (rebentado). Nesse caso, Putin receberá a Crimeia de presente, grátis – à moda Krushchev. Não é mau negócio.

E tudo graças àquela oh! tão estratééégica pivoteação contra a Rússia, com o “Foda-se a União Europeia”.
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Notas de rodapé
- Khrushchev e o sapato 
[1] A foto da primeira página do New York Times do dia 12/10/1960 mostrava Khrushchev com um sapato na mão e a manchete “Rússia novamente ameaça o mundo. Dessa vez, com o sapato do líder”. 
Mas, pouco depois, pessoas presentes à Assembleia Geral da ONU que se realizara na véspera corrigiram a notícia e a manchete: Khrushchev não batera com o sapato no púlpito principal, mas na própria mesa; e não para ameaçar alguém, apenas para chamar a atenção.

Sergei Khrushchev conta
Quando Nikita Sergeevich entrou no salão, estava cercado de jornalistas; um deles pisou no seu calcanhar e arrancou-lhe o sapato. Khrushchev, bastante gordo, não quis expor-se ao ridículo de procurar o próprio sapato e calçá-lo ali, em pé, à vista das câmeras. Andou então diretamente para sua mesa e sentou-se; o sapato, embrulhado num guardanapo, foi trazido por alguém e posto sobre a mesa.
Naquele momento, um delegado filipino disse que a União Soviética havia engolido’ a Europa Oriental, “privando-a de seus direitos civis e políticos”. A frase causou tumulto e protestos na sala. Um delegado romeno saltou em pé e pôs-se a gritar contra o diplomata filipino. Nesse ponto, Khrushchev quis intervir na discussão, mas o delegado irlandês, que presidia a discussão, não o viu. Khrushchev acenou com uma mão, depois com a outra. Sem resultado, ele pegou o sapato que ainda estava sobre a mesa e o agitou no ar. Ainda sem resultado, ele bateu o sapato, com força, na mesa. O irlandês afinal olhou na direção dele e o viu

[2] 26/2/2014, Daily Telegraph em: “US and Britain say Ucrânia is not a battleground between East and West”.

[3] 27/2/2014, Voice of America, em: “Biden: U.S. Supports Ucrânia's New Government” 

[4] Cheshire Cat com a banda Blinck 182 com letra mostrada no vídeo (em inglês) a seguir:


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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.

Livros:
− Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007. 
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/02/pepe-escobar-carnaval-na-crimeia.html

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os ucranianos não querem essa guerra

05/02/2014 - “A grande maioria dos ucranianos não quer esta nova guerra civil”
- Jean-Marie Pestiau - Correio da Cidadania

A Solidaire, semanário do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou Jean-Marie Chauvier [foto] para melhor compreender a situação atual da Ucrânia.

Ele é um jornalista e ensaísta belga, especialista em Ucrânia e ex-União Soviética. Conhecendo esses países e a língua russa há muito tempo, colabora hoje para o Le Monde Diplomatique e em diversos outros jornais e sites de internet.

- Quais são os problemas econômicos mais prementes enfrentados pela população ucraniana, principalmente os trabalhadores, os pequenos camponeses e os desempregados?

Jean-Marie Chauvier
Desde o desmembramento da União Soviética, em 1991, a Ucrânia passou de 51,4 milhões a 45 milhões de habitantes. Esta diminuição se explica por uma baixa taxa de natalidade e um aumento da mortalidade devido, em parte, ao desmantelamento dos serviços de saúde.

A emigração é muito forte; 6,6 milhões de ucranianos vivem atualmente no estrangeiro. Numerosas são as pessoas do leste da Ucrânia que foram trabalhar na Rússia, onde os salários são sensivelmente mais elevados, enquanto que aqueles do oeste se dirigiram em sua maioria para a Europa ocidental, por exemplo, para as serras da Andaluzia ou para o setor de construção civil em Portugal. A emigração faz entrar, anualmente, 3 bilhões de dólares na Ucrânia.

Enquanto o desemprego é oficialmente de 8% na Ucrânia, uma parte importante da população vive abaixo da linha da pobreza: 25%, segundo o governo, até 80% segundo outras estimativas. A extrema pobreza, acompanhada de subalimentação, é estimada entre 2% a 3% até 16%.

O salário médio é de U$ 332 dólares por mês, um dos mais baixos da Europa. As regiões mais pobres são as regiões rurais a oeste. As alocações de desemprego são baixas e limitadas no tempo.

Os problemas que mais pressionam acentuaram-se pelos riscos ligados à assinatura de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE) e à aplicação de medidas preconizadas pelo FMI.

Existe, portanto, a perspectiva de fechamento de empresas industriais, sobretudo no leste. Ou a recuperação, reestruturação e desmontagem das multinacionais.

No que diz respeito às terras férteis e à agricultura, vê-se no horizonte a ruína da produção local, que é assegurada atualmente pelos pequenos camponeses e pelas sociedades por ações herdeiras dos kolkhoses [foto] e a chegada de grande número de multinacionais da agro-alimentação.

A compra maciça de terras férteis se acelerará. Desse modo, Landkom, um grupo britânico, comprou 100.000 hectares (ha) de ricas terras e um fundo de reserva russo, Renaissance, comprou 300.000 hectares de terras (este número representa um quinto das terras agrícolas da Bélgica).

Para as multinacionais, há, portanto, bons pedaços a tomar: certas indústrias, os oleodutos e gasodutos, as terres férteis e a mão de obra qualficada.

Quais seriam as vantagens e desvantagem de uma aproximação com a União Europeia?

Jean-Marie Chauvier
Os ucranianos – a juventude antes de tudo – sonham com a UE, com a liberdade de viajar, com as ilusões de conforto, bons salários, prosperidade etc., a respeito dos quais os governos ocidentais especulam.

Mas, na realidade, não se trata da adesão da Ucrânia à UE. Não se trata da livre circulação de pessoas.

A UE propõe poucas coisas a não ser o desenvolvimento do livre comércio, da importação massiva de produtos ocidentais, da imposição de padrões europeus nos produtos suscetíveis de serem exportados para a UE, o que levanta temíveis obstáculos à exportação ucraniana.

A Rússia – em caso de acordo com a UE – ameaça fechar seu mercado aos produtos ucranianos. O mercado russo já está fechado.

Moscou ofereceu compensações como a redução de um terço do preço do petróleo, uma ajuda de 15 bilhões de dólares, união aduaneira com a própria, com o Cazaquistão, com a Armênia...

Putin [foto] tem um projeto euro-asiático que engloba a maior parte do antigo espaço soviético (inclusive os países bálticos), reforçando os laços com um projeto de coopeeração industrial com a Ucrânia e integrando as tecnologias em que a Ucrânia era performática desde os tempos da URSS: aeronáutica, satélites, armamento, construções navais, modernização dos complexos industriais.

É, evidentemente, a parte leste da Ucrânia que está mais interessada nessa perspectiva.

O senhor poderia nos explicar as diferenças regionais da Ucrânia?

Jean-Marie Chauvier
Não há um Estado-Nação homogêneo na Ucrânia. Há uma diversidade de Ucrânias. Há contradições entre as regiões. Há uma diversidade de história. 

Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm um berço comum: o Estado dos eslavos orientais (séculos 9 a 11), a capital Kiev, que é chamada “Rous”, “Rússia” ou “Ruthenia”.

Além disso, seus cursos se diferenciaram: línguas, religião, pertencimentos a Estados.

O oeste foi ligado muito tempo ao Grande Ducado da Lituânia, aos reinos poloneses, ao Império Austro-Húngaro.

Depois da revolução de 1917 e da guerra civil, nasceu a primeira formação nacional chamada “Ucrânia”, co-fundadora em 1922 da URSS.

A parte ocidental anexada notadamente pela Polônia foi “recuperada” entre 1939 e 1945, pois, ao território atual da Ucrânia, agregou-se ainda a Crimeia, em 1954.

O leste da Ucrânia é mais industrializado, mais operário, mais de língua russa, enquanto que o oeste é mais rural, camponês, língua ucraniana.

O leste é ortodoxo, ligado ao patriarcado de Moscou, enquanto que o oeste é ao mesmo tempo grego-uniate, católico e ortodoxo, ligado ao patriarcado de Kiev desde a independência em 1991.

A igreja uniate Católica, notadamente a oeste na Galícia, foi tradicionalmente germanófila, muitas vezes em conflitos com a igreja católica da Polônia.

O centro da Ucrânia, com Kiev, é uma mistura de correntes do leste e do oeste. Kiev é, muito majoritariamente, de língua russa, suas elites são pró-oposição e muito ligadas aos ultraliberais de Moscou.

A Ucrânia, portanto, foi dividida – historicamente, culturalmente, politicamente – entre o leste e o oeste, e não há sentido algum em jogar uma parte contra a outra, sob o risco de provocar a sua divisão, ou seja, a guerra civil, o que está, sem dúvida, no cálculo de alguns.

A força de provocar a ruptura, como fazem os ocidentais e seus soldadinhos atuais, pode bem chegar ao momento em que a UE e a OTAN obterão “sua parte”. Mas também a Rússia pegará a sua!

Não seria o primeiro país em que se haveria feito, deliberadamente, explodir. 

Ninguém deve ignorar também que a escolha europeia será igualmente militar: a OTAN seguirá e logo se colocará a questão da base russa de Sebastopol na Crimeia, majoritariamente russa e estrategicamente crucial para a presença militar no mar do Norte. [Negro]

Pode-se imaginar que Moscou não deixará instalar uma base norte-americana nesse lugar!

O que pensa da maneira pela qual o atual conflito está sendo apresentado pela nossa mídia?

Jean-Marie Chauvier
É um faroeste! Os bons “pró-europeus”, os maus “pró-russos”.

É maniqueísta, parcial, ignorante da realidade da Ucrânia. Na maior parte do tempo, os jornalistas entrevistam as pessoas que pensam como eles, que dizem o que os ocidentais têm vontade de ouvir, que falam inglês ou outras línguas ocidentais. E, ademais, existem mentiras por omissão.

Primeiro, houve uma notável ausência: o povo ucraniano, trabalhadores, camponeses, submetidos a choques de capitalismo, à destruição sistemática de todas as suas conquistas sociais, os poderes da máfia de todos os lados.

Há em seguida a ocultação ou a minimização de um fenômeno que se qualifica de nacionalista e que é, de fato, neofascista, ou seja, claramente nazista.

É principalmente (mas não unicamente) localizado no partido SVOBODA, seu chefe Oleg Tiagnibog [foto abaixo, a esquerda do senador norte-americano John McCain, a quem coube supervisionar a "Revolução Laranja", de 2004, a mesma de Ioulia [Julia] Timochenko, e que visava desestabilizar o país] e a região ocidental que corresponde à antiga “Galícia Oriental” polonesa. 

Quantas vezes tenho visto, escutado, lido na mídia, citações deste partido e de seu chefe como “opositores”, sem qualificação?

Fala-se de jovens simpáticos, “voluntários da autodefesa”, vindos de Lviv (Lwow, Lemberg) à Kiev, quando se trata de comandos formados pela extrema-direita nessa região (Galícia) que é a sua fortaleza.

Pesada é a responsabilidade daqueles – políticos, jornalistas – que jogam este jogo a favor de correntes xenófobas, russofóbicas, antissemitas, racistas, celebrando a memória do colaboracionismo nazista e da Waffen SS, do qual a Galícia (não toda a Ucrânia!) foi a pátria.

E enfim, a mídia omite as múltiplas redes financiadas pelo ocidente (EUA, UE, Alemanha) para a desestabilização do país, as intervenções diretas de personalidades políticas ocidentais.

Imaginemos a zona neutra em Bruxelas ocupada durante dois meses por dezenas de milhares de manifestantes, exigindo a demissão do rei e do governo, tomando de assalto o Palácio Real, e aclamando ministros russos, chineses ou iranianos na tribuna!

Imagina-se isto em Paris ou em Washington? É o que se passa em Kiev, na praça Maïdan.

Meu espanto aumenta a cada dia ao constatar a diferença entre as “informações” dadas por nossa mídia e as que posso coletar nas mídias ucranianas e russas. As violências neonazistas, as agressões antissemitas, as tomadas de assalto das administrações regionais: na nossa grande mídia, nada disso! Só se ouve um ponto de vista: os opositores de Maïdan. O resto da Ucrânia não existe!

Quais são os principais atores atuais? Quem são os manifestantes em Kiev e em outros lugares? O que é que os federaliza? Qual é a natureza do poder atual?

Jean-Marie Chauvier. A oligarquia industrial e financeira, beneficiária das privatizações, está dividida por grupos rivais entre a Rússia e o Ocidente. 

Viktor Ianoukovitch [foto] e seu Partido das Regiões representam os clãs (e a maior parte das populações) do leste e do sul.

O Partido das Regiões ganhou as eleições presidenciais e parlamentares no outono de 2013.

Há igualmente fortes disputas políticas no oeste, na Transcarpatia (também chamada Ucrânia subcarpática), uma região multiétnica que resiste ao nacionalismo.

Mas a crise atual, as hesitações e fraquezas do presidente podem lhe custar muito caro e desacreditar o seu partido.

O poder atual é altamente responsável pela crise social que favorece a extrema-direita e as enganadoras sirenes da UE e da OTAN. Poder impotente, de fato, defensor de uma parte da oligarquia, e não da “pátria” a que diz pertencer. Ele favoreceu a extensão da corrupção e das práticas mafiosas.

Diante dele, três formações políticas que têm sua base, sobretudo, no oeste e também no centro da Ucrânia.

Há, primeiramente, o Batkivschina, “Pátria”, cujo dirigente é Arseni Iatseniouk. Ele sucedeu Ioulia [Julia] Timochenko [foto], doente e prisioneira.

Em seguida, o partido Oudar (Partido Democrático das Reformas), cujo líder e fundador é o ex-boxeador Vitali Klitschko [foto abaixo].

É o queridinho de Angela Merkel e da UE. Os quadros do seu partido são formados pela fundação Adenauer.

Por fim, o partido neofascista Svoboda (“Liberdade”) dirigido por Oleg Tiagnibog.

O Svoboda filia-se diretamente à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) – fascista, o modelo de Mussolini –, fundado em 1929 na Galícia oriental, então sob o regime polonês.

Com a chegada de Adolf Hitler em 1933, tomou contato com o mote “nós nos serviremos da Alemanha para avançar nossas reinvidicações”.

As relações com os nazistas foram algumas vezes tumultuosas – porque Hitler não queria uma Ucrânia –, mas todos estavam firmemente unidos no seu objetivo comum de eliminar os comunistas e os judeus e de sujeitar os russos.

Os fascistas ucranianos opõem o caráter “europeu” da Ucrânia àquele “asiático” da Rússia.

Em 1939, Andriy Melnyk [foto] dirigia o OUN, com o apoio de Andriy Cheptytskyi, da Igreja Greco-católica (uniate), germanófila, “líder espiritual” da Galícia, que caiu em 1939 sob o regime soviético.

Em 1940, o radical Stepan Bandera abriu uma dissidência: seu OUN-b forma dois batalhões da Wehrmacht, Nachtigall e Roland, a fim de tomar parte na agressão da Alemanha e seus aliados contra a Rússia, no dia 22 de junho de 1941. Imediatamente, desata uma onda de pogroms.

Após muitos escrutínios, após a “revolução laranja” de 2004, a influência do Svoboda aumenta na Galícia e em todo o oeste da Ucrânia, compreendendo-se aí as grandes cidades com 20% a 30% dos votos. Para o conjunto da Ucrânia, o Svoboda conta com 10% dos votos. O Svoboda foi “ultrapassado” por grupos neonazistas ainda mais radicais do que ele.

As três formações políticas, Batkivschina, Oudar e Svoboda, apoiadas pelo ocidente, reclamam após dois meses a derrubada do governo e do presidente da República. Eles exigem novas eleições. O Svoboda os leva mais longe, organizando um golpe de Estado num nível local, lá nos lugares em que fez reinar seu regime de terror. O Svoboda proibiu o Partido das Regiões e o Partido Comunista ucraniano.

O Partido Comunista ucraniano chama à razão já há várias semanas.

Coletou mais de 3 milhões de assinaturas para exigir um referendo que deveria decidir se a Ucrânia quer um tratado de associação com a UE ou uma união aduaneira com a Rússia.

A situação insurrecional diz respeito não somente aos três partidos da oposição, mas também ao poder oferecido do país e do povo “de bandeja” aos diregentes da pseudo-oposição, aos grupos de extrema-direita neonazis, às organizações nacionalistas violentas, aos políticos estrangeiros que conclamam as pessoas a “radicalizar os protestos” e a “lutar até o fim”.

O PC destaca os problemas sociais. Ele tem a posição mais democrática entre os partidos políticos. Mas sua influência limita-se à parte leste e ao sul da Ucrânia.

Que papel jogam as grandes potências (EUA, União Europeia, Russia) no enfrentamento atual? O que buscam?

Jean-Marie Chauvier
Zbigniew Brzezinski, célebre e influente, geoestrategista estadunidense, de origem polonesa, traçou nos anos 1990 a estratégia estadunidense para comandar a Eurásia e instalar duravelmente a hegemonia do seu país, tendo a Ucrânia como elo essencial.

Para ele, havia os “bálcãs mundiais”, de um lado, a Eurásia e, do outro, o Oriente Médio.

Esta estratégia deu seus frutos na Ucrânia com a “revolução laranja” de 2004. Ela instalou uma rede tentacular de fundações estadunidenses – como Soros e a Fundação Nacional para a Democracia (NED) –, que remuneraram milhares de pessoas para “fazer progredir a democracia”. Em 2013-2014, a estratégia foi diferente.

Sobretudo, a Alemanha de Angela Merkel [foto] e a UE estão no comando, ajudados por políticos estadunidenses, como McCain.

Eles discursam para as massas a respeito de Maidan e de outros com uma grande irresponsabilidade: para atingir facilmente seu objetivo de atrair a Ucrânia para o campo euro-atlântico, donde a OTAN se apoia nos elementos mais antidemocráticos da sociedade ucraniana.

Mas este objetivo é irrealizável sem dividir a Ucrânia entre leste e oeste e com a Crimeia, que se juntará novamente à Russia, como sua população deseja.

O parlamento da Crimeia declarou: “não viveremos jamais sob um regime bandeirista (fascista)”.

E para Svoboda e outros fascistas, é a revanche de 1945 que eles vivem.

Eu creio que, apesar de tudo, o que a grande maioria dos ucranianos não quer é esta nova guerra civil nem a divisão do país, mas, sem dúvida, a sociedade está para ser reconstruída!

Para saber mais:
- Jean-Marie Chauvier, Euromaïdan ou a batalha da Ucrânia, 25/01/2014
http://www.mondialisation.ca/euroma... e Ucrânia: que posição?

Mais:
- A política antissocial revelada pelo Wikileaks

Viktor Pynzenyk [foto], antigo ministro das finanças e hoje membro do partido de oposição, ou OUAR, de Vitali Klitchko, explicou em 2010 ao embaixador dos EUA o que ele desejava para a Ucrânia:

“- Aumento da idade da aposentadoria entre dois e três anos;
- A limitação das pensões dos aposentados que trabalham;
- Triplicação do preço do gás de cozinha;
- Aumento de 40% no preço da eletricidade;
- Anulação da Resolução governamental que exige o consentimento dos sindicatos para aumentar o preço do gás;
- Anulação da Disposição Legislativa que proibe os fornecedores comunais de cortar as reservas ou de punir os consumidores em caso de não pagamento dos serviços comunais;
- A privatização de todas as minas de carvão;
- O aumento dos preços dos transportes, a anulação de todas os subsídios;
- A abolição das ajudas governamentais para os nascimentos, comida e livros escolares gratuitos (está escrito: as famílias devem pagar);
- Anulação de isenção de IVA sobre produtos farmacêuticos;
- Aumento da gasolina e aumento de 50% de impostos sobre os veículos;
- O pagamento de seguro desemprego, após um período mínimo de 6 meses trabalhados;
- O não aumento do salário mínimo vital (introduzindo, entretanto, pagamento suplementar aos necessitados)."

Fonte do Wikileaks: Cabo diplomático revelado por Wikileaks
http://www.cablegatesearch.net/cabl...;;q=elections+ukraine

Fonte do artigo:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9308:submanchete050214&catid=72:imagens-rolantes

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.