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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os ucranianos não querem essa guerra

05/02/2014 - “A grande maioria dos ucranianos não quer esta nova guerra civil”
- Jean-Marie Pestiau - Correio da Cidadania

A Solidaire, semanário do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou Jean-Marie Chauvier [foto] para melhor compreender a situação atual da Ucrânia.

Ele é um jornalista e ensaísta belga, especialista em Ucrânia e ex-União Soviética. Conhecendo esses países e a língua russa há muito tempo, colabora hoje para o Le Monde Diplomatique e em diversos outros jornais e sites de internet.

- Quais são os problemas econômicos mais prementes enfrentados pela população ucraniana, principalmente os trabalhadores, os pequenos camponeses e os desempregados?

Jean-Marie Chauvier
Desde o desmembramento da União Soviética, em 1991, a Ucrânia passou de 51,4 milhões a 45 milhões de habitantes. Esta diminuição se explica por uma baixa taxa de natalidade e um aumento da mortalidade devido, em parte, ao desmantelamento dos serviços de saúde.

A emigração é muito forte; 6,6 milhões de ucranianos vivem atualmente no estrangeiro. Numerosas são as pessoas do leste da Ucrânia que foram trabalhar na Rússia, onde os salários são sensivelmente mais elevados, enquanto que aqueles do oeste se dirigiram em sua maioria para a Europa ocidental, por exemplo, para as serras da Andaluzia ou para o setor de construção civil em Portugal. A emigração faz entrar, anualmente, 3 bilhões de dólares na Ucrânia.

Enquanto o desemprego é oficialmente de 8% na Ucrânia, uma parte importante da população vive abaixo da linha da pobreza: 25%, segundo o governo, até 80% segundo outras estimativas. A extrema pobreza, acompanhada de subalimentação, é estimada entre 2% a 3% até 16%.

O salário médio é de U$ 332 dólares por mês, um dos mais baixos da Europa. As regiões mais pobres são as regiões rurais a oeste. As alocações de desemprego são baixas e limitadas no tempo.

Os problemas que mais pressionam acentuaram-se pelos riscos ligados à assinatura de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE) e à aplicação de medidas preconizadas pelo FMI.

Existe, portanto, a perspectiva de fechamento de empresas industriais, sobretudo no leste. Ou a recuperação, reestruturação e desmontagem das multinacionais.

No que diz respeito às terras férteis e à agricultura, vê-se no horizonte a ruína da produção local, que é assegurada atualmente pelos pequenos camponeses e pelas sociedades por ações herdeiras dos kolkhoses [foto] e a chegada de grande número de multinacionais da agro-alimentação.

A compra maciça de terras férteis se acelerará. Desse modo, Landkom, um grupo britânico, comprou 100.000 hectares (ha) de ricas terras e um fundo de reserva russo, Renaissance, comprou 300.000 hectares de terras (este número representa um quinto das terras agrícolas da Bélgica).

Para as multinacionais, há, portanto, bons pedaços a tomar: certas indústrias, os oleodutos e gasodutos, as terres férteis e a mão de obra qualficada.

Quais seriam as vantagens e desvantagem de uma aproximação com a União Europeia?

Jean-Marie Chauvier
Os ucranianos – a juventude antes de tudo – sonham com a UE, com a liberdade de viajar, com as ilusões de conforto, bons salários, prosperidade etc., a respeito dos quais os governos ocidentais especulam.

Mas, na realidade, não se trata da adesão da Ucrânia à UE. Não se trata da livre circulação de pessoas.

A UE propõe poucas coisas a não ser o desenvolvimento do livre comércio, da importação massiva de produtos ocidentais, da imposição de padrões europeus nos produtos suscetíveis de serem exportados para a UE, o que levanta temíveis obstáculos à exportação ucraniana.

A Rússia – em caso de acordo com a UE – ameaça fechar seu mercado aos produtos ucranianos. O mercado russo já está fechado.

Moscou ofereceu compensações como a redução de um terço do preço do petróleo, uma ajuda de 15 bilhões de dólares, união aduaneira com a própria, com o Cazaquistão, com a Armênia...

Putin [foto] tem um projeto euro-asiático que engloba a maior parte do antigo espaço soviético (inclusive os países bálticos), reforçando os laços com um projeto de coopeeração industrial com a Ucrânia e integrando as tecnologias em que a Ucrânia era performática desde os tempos da URSS: aeronáutica, satélites, armamento, construções navais, modernização dos complexos industriais.

É, evidentemente, a parte leste da Ucrânia que está mais interessada nessa perspectiva.

O senhor poderia nos explicar as diferenças regionais da Ucrânia?

Jean-Marie Chauvier
Não há um Estado-Nação homogêneo na Ucrânia. Há uma diversidade de Ucrânias. Há contradições entre as regiões. Há uma diversidade de história. 

Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm um berço comum: o Estado dos eslavos orientais (séculos 9 a 11), a capital Kiev, que é chamada “Rous”, “Rússia” ou “Ruthenia”.

Além disso, seus cursos se diferenciaram: línguas, religião, pertencimentos a Estados.

O oeste foi ligado muito tempo ao Grande Ducado da Lituânia, aos reinos poloneses, ao Império Austro-Húngaro.

Depois da revolução de 1917 e da guerra civil, nasceu a primeira formação nacional chamada “Ucrânia”, co-fundadora em 1922 da URSS.

A parte ocidental anexada notadamente pela Polônia foi “recuperada” entre 1939 e 1945, pois, ao território atual da Ucrânia, agregou-se ainda a Crimeia, em 1954.

O leste da Ucrânia é mais industrializado, mais operário, mais de língua russa, enquanto que o oeste é mais rural, camponês, língua ucraniana.

O leste é ortodoxo, ligado ao patriarcado de Moscou, enquanto que o oeste é ao mesmo tempo grego-uniate, católico e ortodoxo, ligado ao patriarcado de Kiev desde a independência em 1991.

A igreja uniate Católica, notadamente a oeste na Galícia, foi tradicionalmente germanófila, muitas vezes em conflitos com a igreja católica da Polônia.

O centro da Ucrânia, com Kiev, é uma mistura de correntes do leste e do oeste. Kiev é, muito majoritariamente, de língua russa, suas elites são pró-oposição e muito ligadas aos ultraliberais de Moscou.

A Ucrânia, portanto, foi dividida – historicamente, culturalmente, politicamente – entre o leste e o oeste, e não há sentido algum em jogar uma parte contra a outra, sob o risco de provocar a sua divisão, ou seja, a guerra civil, o que está, sem dúvida, no cálculo de alguns.

A força de provocar a ruptura, como fazem os ocidentais e seus soldadinhos atuais, pode bem chegar ao momento em que a UE e a OTAN obterão “sua parte”. Mas também a Rússia pegará a sua!

Não seria o primeiro país em que se haveria feito, deliberadamente, explodir. 

Ninguém deve ignorar também que a escolha europeia será igualmente militar: a OTAN seguirá e logo se colocará a questão da base russa de Sebastopol na Crimeia, majoritariamente russa e estrategicamente crucial para a presença militar no mar do Norte. [Negro]

Pode-se imaginar que Moscou não deixará instalar uma base norte-americana nesse lugar!

O que pensa da maneira pela qual o atual conflito está sendo apresentado pela nossa mídia?

Jean-Marie Chauvier
É um faroeste! Os bons “pró-europeus”, os maus “pró-russos”.

É maniqueísta, parcial, ignorante da realidade da Ucrânia. Na maior parte do tempo, os jornalistas entrevistam as pessoas que pensam como eles, que dizem o que os ocidentais têm vontade de ouvir, que falam inglês ou outras línguas ocidentais. E, ademais, existem mentiras por omissão.

Primeiro, houve uma notável ausência: o povo ucraniano, trabalhadores, camponeses, submetidos a choques de capitalismo, à destruição sistemática de todas as suas conquistas sociais, os poderes da máfia de todos os lados.

Há em seguida a ocultação ou a minimização de um fenômeno que se qualifica de nacionalista e que é, de fato, neofascista, ou seja, claramente nazista.

É principalmente (mas não unicamente) localizado no partido SVOBODA, seu chefe Oleg Tiagnibog [foto abaixo, a esquerda do senador norte-americano John McCain, a quem coube supervisionar a "Revolução Laranja", de 2004, a mesma de Ioulia [Julia] Timochenko, e que visava desestabilizar o país] e a região ocidental que corresponde à antiga “Galícia Oriental” polonesa. 

Quantas vezes tenho visto, escutado, lido na mídia, citações deste partido e de seu chefe como “opositores”, sem qualificação?

Fala-se de jovens simpáticos, “voluntários da autodefesa”, vindos de Lviv (Lwow, Lemberg) à Kiev, quando se trata de comandos formados pela extrema-direita nessa região (Galícia) que é a sua fortaleza.

Pesada é a responsabilidade daqueles – políticos, jornalistas – que jogam este jogo a favor de correntes xenófobas, russofóbicas, antissemitas, racistas, celebrando a memória do colaboracionismo nazista e da Waffen SS, do qual a Galícia (não toda a Ucrânia!) foi a pátria.

E enfim, a mídia omite as múltiplas redes financiadas pelo ocidente (EUA, UE, Alemanha) para a desestabilização do país, as intervenções diretas de personalidades políticas ocidentais.

Imaginemos a zona neutra em Bruxelas ocupada durante dois meses por dezenas de milhares de manifestantes, exigindo a demissão do rei e do governo, tomando de assalto o Palácio Real, e aclamando ministros russos, chineses ou iranianos na tribuna!

Imagina-se isto em Paris ou em Washington? É o que se passa em Kiev, na praça Maïdan.

Meu espanto aumenta a cada dia ao constatar a diferença entre as “informações” dadas por nossa mídia e as que posso coletar nas mídias ucranianas e russas. As violências neonazistas, as agressões antissemitas, as tomadas de assalto das administrações regionais: na nossa grande mídia, nada disso! Só se ouve um ponto de vista: os opositores de Maïdan. O resto da Ucrânia não existe!

Quais são os principais atores atuais? Quem são os manifestantes em Kiev e em outros lugares? O que é que os federaliza? Qual é a natureza do poder atual?

Jean-Marie Chauvier. A oligarquia industrial e financeira, beneficiária das privatizações, está dividida por grupos rivais entre a Rússia e o Ocidente. 

Viktor Ianoukovitch [foto] e seu Partido das Regiões representam os clãs (e a maior parte das populações) do leste e do sul.

O Partido das Regiões ganhou as eleições presidenciais e parlamentares no outono de 2013.

Há igualmente fortes disputas políticas no oeste, na Transcarpatia (também chamada Ucrânia subcarpática), uma região multiétnica que resiste ao nacionalismo.

Mas a crise atual, as hesitações e fraquezas do presidente podem lhe custar muito caro e desacreditar o seu partido.

O poder atual é altamente responsável pela crise social que favorece a extrema-direita e as enganadoras sirenes da UE e da OTAN. Poder impotente, de fato, defensor de uma parte da oligarquia, e não da “pátria” a que diz pertencer. Ele favoreceu a extensão da corrupção e das práticas mafiosas.

Diante dele, três formações políticas que têm sua base, sobretudo, no oeste e também no centro da Ucrânia.

Há, primeiramente, o Batkivschina, “Pátria”, cujo dirigente é Arseni Iatseniouk. Ele sucedeu Ioulia [Julia] Timochenko [foto], doente e prisioneira.

Em seguida, o partido Oudar (Partido Democrático das Reformas), cujo líder e fundador é o ex-boxeador Vitali Klitschko [foto abaixo].

É o queridinho de Angela Merkel e da UE. Os quadros do seu partido são formados pela fundação Adenauer.

Por fim, o partido neofascista Svoboda (“Liberdade”) dirigido por Oleg Tiagnibog.

O Svoboda filia-se diretamente à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) – fascista, o modelo de Mussolini –, fundado em 1929 na Galícia oriental, então sob o regime polonês.

Com a chegada de Adolf Hitler em 1933, tomou contato com o mote “nós nos serviremos da Alemanha para avançar nossas reinvidicações”.

As relações com os nazistas foram algumas vezes tumultuosas – porque Hitler não queria uma Ucrânia –, mas todos estavam firmemente unidos no seu objetivo comum de eliminar os comunistas e os judeus e de sujeitar os russos.

Os fascistas ucranianos opõem o caráter “europeu” da Ucrânia àquele “asiático” da Rússia.

Em 1939, Andriy Melnyk [foto] dirigia o OUN, com o apoio de Andriy Cheptytskyi, da Igreja Greco-católica (uniate), germanófila, “líder espiritual” da Galícia, que caiu em 1939 sob o regime soviético.

Em 1940, o radical Stepan Bandera abriu uma dissidência: seu OUN-b forma dois batalhões da Wehrmacht, Nachtigall e Roland, a fim de tomar parte na agressão da Alemanha e seus aliados contra a Rússia, no dia 22 de junho de 1941. Imediatamente, desata uma onda de pogroms.

Após muitos escrutínios, após a “revolução laranja” de 2004, a influência do Svoboda aumenta na Galícia e em todo o oeste da Ucrânia, compreendendo-se aí as grandes cidades com 20% a 30% dos votos. Para o conjunto da Ucrânia, o Svoboda conta com 10% dos votos. O Svoboda foi “ultrapassado” por grupos neonazistas ainda mais radicais do que ele.

As três formações políticas, Batkivschina, Oudar e Svoboda, apoiadas pelo ocidente, reclamam após dois meses a derrubada do governo e do presidente da República. Eles exigem novas eleições. O Svoboda os leva mais longe, organizando um golpe de Estado num nível local, lá nos lugares em que fez reinar seu regime de terror. O Svoboda proibiu o Partido das Regiões e o Partido Comunista ucraniano.

O Partido Comunista ucraniano chama à razão já há várias semanas.

Coletou mais de 3 milhões de assinaturas para exigir um referendo que deveria decidir se a Ucrânia quer um tratado de associação com a UE ou uma união aduaneira com a Rússia.

A situação insurrecional diz respeito não somente aos três partidos da oposição, mas também ao poder oferecido do país e do povo “de bandeja” aos diregentes da pseudo-oposição, aos grupos de extrema-direita neonazis, às organizações nacionalistas violentas, aos políticos estrangeiros que conclamam as pessoas a “radicalizar os protestos” e a “lutar até o fim”.

O PC destaca os problemas sociais. Ele tem a posição mais democrática entre os partidos políticos. Mas sua influência limita-se à parte leste e ao sul da Ucrânia.

Que papel jogam as grandes potências (EUA, União Europeia, Russia) no enfrentamento atual? O que buscam?

Jean-Marie Chauvier
Zbigniew Brzezinski, célebre e influente, geoestrategista estadunidense, de origem polonesa, traçou nos anos 1990 a estratégia estadunidense para comandar a Eurásia e instalar duravelmente a hegemonia do seu país, tendo a Ucrânia como elo essencial.

Para ele, havia os “bálcãs mundiais”, de um lado, a Eurásia e, do outro, o Oriente Médio.

Esta estratégia deu seus frutos na Ucrânia com a “revolução laranja” de 2004. Ela instalou uma rede tentacular de fundações estadunidenses – como Soros e a Fundação Nacional para a Democracia (NED) –, que remuneraram milhares de pessoas para “fazer progredir a democracia”. Em 2013-2014, a estratégia foi diferente.

Sobretudo, a Alemanha de Angela Merkel [foto] e a UE estão no comando, ajudados por políticos estadunidenses, como McCain.

Eles discursam para as massas a respeito de Maidan e de outros com uma grande irresponsabilidade: para atingir facilmente seu objetivo de atrair a Ucrânia para o campo euro-atlântico, donde a OTAN se apoia nos elementos mais antidemocráticos da sociedade ucraniana.

Mas este objetivo é irrealizável sem dividir a Ucrânia entre leste e oeste e com a Crimeia, que se juntará novamente à Russia, como sua população deseja.

O parlamento da Crimeia declarou: “não viveremos jamais sob um regime bandeirista (fascista)”.

E para Svoboda e outros fascistas, é a revanche de 1945 que eles vivem.

Eu creio que, apesar de tudo, o que a grande maioria dos ucranianos não quer é esta nova guerra civil nem a divisão do país, mas, sem dúvida, a sociedade está para ser reconstruída!

Para saber mais:
- Jean-Marie Chauvier, Euromaïdan ou a batalha da Ucrânia, 25/01/2014
http://www.mondialisation.ca/euroma... e Ucrânia: que posição?

Mais:
- A política antissocial revelada pelo Wikileaks

Viktor Pynzenyk [foto], antigo ministro das finanças e hoje membro do partido de oposição, ou OUAR, de Vitali Klitchko, explicou em 2010 ao embaixador dos EUA o que ele desejava para a Ucrânia:

“- Aumento da idade da aposentadoria entre dois e três anos;
- A limitação das pensões dos aposentados que trabalham;
- Triplicação do preço do gás de cozinha;
- Aumento de 40% no preço da eletricidade;
- Anulação da Resolução governamental que exige o consentimento dos sindicatos para aumentar o preço do gás;
- Anulação da Disposição Legislativa que proibe os fornecedores comunais de cortar as reservas ou de punir os consumidores em caso de não pagamento dos serviços comunais;
- A privatização de todas as minas de carvão;
- O aumento dos preços dos transportes, a anulação de todas os subsídios;
- A abolição das ajudas governamentais para os nascimentos, comida e livros escolares gratuitos (está escrito: as famílias devem pagar);
- Anulação de isenção de IVA sobre produtos farmacêuticos;
- Aumento da gasolina e aumento de 50% de impostos sobre os veículos;
- O pagamento de seguro desemprego, após um período mínimo de 6 meses trabalhados;
- O não aumento do salário mínimo vital (introduzindo, entretanto, pagamento suplementar aos necessitados)."

Fonte do Wikileaks: Cabo diplomático revelado por Wikileaks
http://www.cablegatesearch.net/cabl...;;q=elections+ukraine

Fonte do artigo:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9308:submanchete050214&catid=72:imagens-rolantes

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Nossa terra cada vez menos verde e amarela

06/02/2014 - Rogério Grassetto Teixeira da Cunha (*)
Correio da Cidadania

A coisa na área ambiental anda ruim, muito ruim. E poderá piorar neste ano. As razões para este pessimismo são muitas.

Como o fato de que o mostrengo da usina de Belo Monte, no rio Xingu, deve entrar em funcionamento em sua primeira etapa talvez já no final de 2014.

É neste ano que provavelmente acontecerá o remanejamento das famílias e a supressão da vegetação das ilhas e de boa parte das margens do Xingu ao longo do futuro lago.

O governo, fazem já dois anos, ou muito mais que isso, se contarmos toda a história das tentativas ao longo das últimas décadas, lançou-se de cabeça na insanidade de construir esta 
famigerada usina.

Não repetirei aqui toda a história de erros, ilegalidades e mentiras acumulados ao longo deste percurso, analisada extensamente nesta coluna por Rodolfo Salm.

Porém, agora, com a obra já bem encaminhada, percebi alguns setores da grande mídia mostrando algumas de suas nefastas consequências ou “preocupando-se” com problemas ambientais na região. 

Pode ser uma mera coincidência, claro, ou um viés pessoal meu, pois esporadicamente pipocaram aqui e ali algumas matérias mostrando os problemas da obra. Mas achei o “timing” no mínimo curioso (seria por causa da eleição, pergunto retoricamente?).

Em uma série de reportagens da rádio CBN (aqui e aqui), por exemplo, foi analisada a mineração na região amazônica, e mencionada a instalação da mineradora de ouro canadense Belo Sun na região de Altamira, próximo à nova usina, com um tênue espaço para os impactos da mineração na região.

Faz tempo que os ambientalistas chamam a atenção para o fato de que um dos principais motivos para a construção de hidrelétricas na Amazônia é fornecer energia barata para projetos de mineração, que vão ganhar cada vez mais espaço na Amazônia. É o amarelo do ouro de nossa bandeira, indo para fora do país, como desde sempre.

no site da Folha, um material muito bem produzido abre caminho para que a população desinformada do nosso “sul 
maravilha” conheça um pouco dos impactos da obra.

Só as fotos do canteiro de obras deixam, sob o ponto de vista da natureza, qualquer filme da série “Sexta-Feira 13” no chinelo.

Apesar disto tudo, a usina será ligada, a exploração mineral vai ocorrer na região e o desmatamento e degradação vão aumentar o volume de suas trombetas do apocalipse.

Aqui é o verde da nossa bandeira sendo dilapidado também.

Não é com nenhuma felicidade (muito pelo contrário) que diremos: nós avisamos. Nós, ambientalistas, sempre ressaltamos alguns dos reais motivos das obras: favorecer setores industriais eletro-intensivos e um modelo de ocupação na Amazônia que não irá beneficiar a população local (exceto com as costumeiras migalhas), mas sim grandes capitais externos e internos.

Ao fazermos isto, as reações de sempre: fomos taxados de contrários ao desenvolvimento, de jogarmos um bagre no colo de Lula, de estarmos na contramão do progresso etc. O velho e cansativo ramerrão. Mas este será um caso em que demonstrar estar-se certo trará muita tristeza e melancolia, não alegria.

O pessimismo do artigo advém também do fato de que a sanha dos barrageiros na Amazônia é imensa, e que seu desrespeito por tudo (regras, bom senso, ambiente, população local) é 
absoluto.

Sua gana agora volta-se contra o rio Tapajós, em uma região totalmente desabitada no coração da floresta.

Em ano eleitoral, quando a necessidade de mostrar serviço é maior, podemos esperar novos avanços sobre a Amazônia.

E também, escrevam aí, nos próximos anos veremos políticos e economistas defendendo aquilo que, quando do debate sobre a construção ou não de Belo Monte, foi “prometido” que não seria feito: a instalação de novas barragens rio Xingu acima.

Isto serviria para regularizar o fluxo do rio ao longo do ano e resolver a principal crítica técnica à obra, a de que a vazão baixa na época da seca diminui drasticamente seu potencial gerador de energia em boa parte do ano.

Cada vez mais aparecerão artigos nos jornalões e comentaristas dos grandes veículos defendendo esta ideia.

Isto porque a região amazônica é vista pelos barrageiros, pelos governos e pelas empreiteiras, que coincidentemente financiam campanhas e constroem barragens (ou seria o oposto? Nunca sei ao certo.), como a grande fronteira hidrelétrica do país.

Neste assunto, precisaríamos de um Bom Senso Ambiente Clube inspirado no Bom Senso Futebol Clube.

Mas a importância dada ao meio ambiente no Brasil é, infelizmente, infinitamente menor que ao futebol, embora os desmandos e tapetões guardem sórdida semelhança.

Um outro motivo para pessimismo é justamente o fato de tratar-se de ano eleitoral. E anos eleitorais não são mesmo época para se apertar a fiscalização.

Embora reconhecendo os avanços sociais nestes quase 12 anos de governo petista, também entendo que seu pior desempenho foi na área ambiental. E os governantes do partido serão cobrados duramente por isto pela história, que, com o passar dos anos, dará muito mais destaque a esta chaga do que ao belo show do assim chamado “mensalão”.

Parte deste desempenho ambiental pífio (ou melhor, nefasto) deve-se ao noivado e casamento de Lula com o setor do agronegócio, sendo que Dilma parece muito contente com a duradoura união. 

Alianças com líderes locais são melindrosas, e eles não devem ser provocados. De mais a mais, a atenção de boa parte da opinião pública estará voltada para mais um round do UFC PT x PSDB (embora a dupla Marina/Campos esteja doida para entrar no octógono e melar a disputa), o que provavelmente deixará brechas para os desmatadores.

E, para fechar a conta, ainda teremos o oba-oba da Copa dos estádios bilionários.

Provavelmente, ocorrerá mais outro oba-oba de manifestações acéfalas e genéricas (muitas delas ocas, como a maioria das de junho, ou manipuladas por este ou aquele esperto tentando tirar uma casquinha eleitoral).

Nelas, falar-se-á de quase tudo (principalmente de lemas pequeno-burgueses “contra a corrupção”), menos de meio ambiente, deixando os destruidores sempre muito à vontade.

Afinal, episódio recente da invasão do Instituto Royal em São Paulo demonstrou que a opinião pública se sensibiliza muito mais com algumas dezenas de cachorros beagle (sem entrar aqui no mérito da questão, apenas reconhecendo objetivamente o fato) do que pelos milhões (ou bilhões, se incluirmos na conta insetos e outras formas de vida menos “in”) de animais e plantas sacrificados todos os dias devido à destruição da maior floresta tropical do planeta que, não custa lembrar, tem girado em torno de 1200 a 2000 campos de futebol por dia nos últimos anos.

É isto aí, Amazônia, feliz 2013! Pois, na região, cada ano parece melhor que o que virá.

(*) Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é docente da Universidade Federal de Alfenas-MG e, apesar do pessimismo, lá no fundo tem sempre uma esperança.

Fonte:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9231:meioambiente060114&catid=28:ambiente-e-cidadania&Itemid=57

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Considere estes países


04/06/2012 - Escrito por Otaviano Helene
- original publicado no site Correio da Cidadania

O país A tem um sistema de ensino bastante orientado pelos e para testes aplicados periodicamente aos estudantes. Como o desempenho dos estudantes nesses testes é considerado fundamental, professores são premiados ou punidos em função dos resultados obtidos por seus alunos. Escolas podem ser entregues à eficiência da administração privada com o objetivo de melhorar o desempenho dos estudantes. Com a mesma finalidade, aulas de Artes, História e atividades físicas são reduzidas em favor das disciplinas incluídas nos testes. Esse país A aplica, entre investimentos públicos e privados, 7,4% do seu PIB em educação. E, ainda, as dificuldades econômicas desse país têm sido atribuídas aos professores, que preparam mal suas crianças e seus jovens. Por causa disso e considerando os resultados dos alunos, professores ineficientes devem ser descartados rapidamente e normas e leis que dificultam ou impedem isso devem ser (e têm sido) eliminadas.

No país B não há testes padronizados aplicados às crianças. Segundo um pesquisador acadêmico desse país, caso os professores fossem avaliados a partir de teste aplicados a seus alunos, eles simplesmente abandonariam a profissão “e não retornariam até que as autoridades abandonassem essa idéia maluca”. As escolas do país B são administradas apenas pelo setor público e professores e professoras são estáveis, sendo muito difícil removê-los de suas funções. Nesse país, os professores têm liberdade do que e de como ensinar, desde que os currículos nacionais sejam respeitados. Esse país aplica, no total, 7,0% do PIB em educação e sua renda per capita é cerca de 20% inferior à renda per capita do país A.

Como se saem os estudantes desses dois países quando submetidos aos testes padronizados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), (1), aplicados a estudantes de 15 anos de idade? Será que os estudantes do país A, mais rico e que tem suas escolas e professores orientados para os testes, se saem melhor? Não. Os estudantes do país B se saem melhor, até mesmo, muito melhor. Paradoxal?

Não. De fato, há aspectos fundamentais que explicam esse aparente paradoxo. Os países A e B são, respectivamente, os EUA e Finlândia (2) e os resultados obtidos no PISA aplicado em 2009 aparecem, resumidamente, na tabela 1. Os testes aplicados são em leitura, matemática e ciências e em cada um desses quesitos o desempenho dos estudantes é classificado em níveis de um a seis. Os valores que aparecem na tabela correspondem a médias simples dos resultados naquelas três áreas avaliadas. Todos os resultados mostram um desempenho significativamente melhor dos estudantes finlandeses. E além da média finlandesa ser significativamente superior à média estadunidense, aquele país tem um percentual muito menor de estudantes com desempenho muito baixo (abaixo do nível 1) e um percentual significativamente maior de estudantes classificados no nível mais alto (nível 6). E, mais ainda, e possivelmente refletindo a menor desigualdade de renda, a dispersão relativa das notas recebidas pelos estudantes finlandeses, de 16%, é menor do que a dispersão das notas dos estadunidenses, de 19%.

Tabela 1 – Resultados do PISA 2009 (médias simples dos resultados em leitura, matemática e ciências).

                     Porcentagem dos estudantes
                     Abaixo do nível 1      Nível 6      Média      Dispersão das notas (%)
Finlândia                 1,0                    3,3           544                    16
EUA                         4,3                    1,6           496                    19
 


O que pode explicar as diferenças entre os dois países?
Certamente, o modelo educacional dos dois países faz a grande diferença. Entretanto, tentou-se procurar explicações para a diferença de desempenho entre os dois países em várias causas, evitando culpar o estilo empresarial de administração escolar e baseado em avalições permanentes de estudantes e em premiações e punições aos professores com base no desempenho dos seus alunos e das escolas onde trabalham. Um dos argumentos foi baseado na maior homogeneidade étnica populacional da Finlândia, um argumento de viés racista. Entretanto, esse argumento não sobreviveu, uma vez que, entre os 65 países ou regiões participantes do PISA, havia países homogêneos e heterogêneos nos dois extremos da classificação. Ou seja, o desempenho não está correlacionado com a homogeneidade da população. Outro argumento baseou-se no tamanho relativo das duas populações, 314 milhões nos EUA e 5,4 milhões na Finlândia. Entretanto, esse argumento também não prosperou. Primeiro, porque, como no caso da heterogeneidade da população, há países populosos e não populosos distribuídos entre os de melhor e pior desempenho: não há uma correlação entre o tamanho do país e o desempenho de seus estudantes. Além disso, nos EUA, como em muitos países mais populosos, a educação é administrada autonomamente pelos estados e muitos deles têm populações bastante pequenas, menores do que a finlandesa.

As explicações estão em outros lugares. Uma delas é quanto às condições de trabalho dos professores. Embora em ambos os países os salários iniciais na carreira sejam aproximadamente os mesmo, após 15 anos de experiência, os professores finlandeses são mais bem pagos, existindo, portanto, alguma motivação de caráter econômico para se dedicar à profissão. Outro fator, ainda, é que na Finlândia há uma distribuição de renda bem mais homogênea que nos EUA e, portanto, rendas aproximadamente equivalentes nos dois países podem significar reconhecimentos sociais muito diferentes.

Outro aspecto diz respeito às condições (educativas e acadêmicas) de trabalho dos professores. Na Finlândia, idéias que incluem a cultura dos testes, dos vouchers (que permitem mercantilizar o acesso às escolas), do pagamento de professores por mérito medido pelo desempenho dos estudantes em testes padronizados e da competição e avaliação dos professores a partir do desempenho de seus alunos são totalmente rejeitadas. Provas são usadas apenas para informar aos professores o andamento do trabalho, jamais para classificar, punir ou recompensar alunos, escolas ou professores. Como a profissão é respeitada e há boas e agradáveis condições de trabalho, as instituições de formação de professores são bastante procuradas e formam excelentes profissionais.

Avaliações comparativas por meio de testes, prêmios e punições não fazem parte do panorama educacional finlandês. A responsabilidade e a liberdade de adaptar o ensino aos seus estudantes são práticas usuais das escolas, dos diretores e dos professores.


Investimentos públicos versus privados
E quanto ao financiamento? Afinal os EUA aplicam um percentual maior do seu PIB em educação, 7,4%, contra 7,0% na Finlândia. Há aqui outro paradoxo? Não. O financiamento da educação na Finlândia é quase totalmente público, com apenas 0,2% do PIB correspondendo a gastos privados. Nos EUA, os gastos privados chegam a 2,0% do PIB. Portanto, o gasto público anual por estudante em comparação com a renda per capita é mais alto na Finlândia do que nos EUA, como mostra a tabela 2. Aparentemente, a relevância dos investimentos por estudante parece estar relacionada não apenas ao valor total, mas, especialmente, à origem, pública ou privada da fonte.

(Vale a pena observar aqui que esse mesmo efeito da maior eficiência dos gastos públicos em relação aos privados existe também na área de saúde. Enquanto os EUA gastam em saúde, por pessoa, mais do que 15% de sua renda per capita, contra uma média da ordem de 9% a 10% nos países europeus mais avançados, os seus indicadores de saúde são piores. De fato, a mortalidade infantil nos EUA é mais do que 50% superior à dos países europeus mais avançados e a expectativa de vida é entre um e dois anos menor. Mais um paradoxo? Não. Novamente, a grande diferença é possivelmente devida ao fato de que mais do que a metade dos gastos nos EUA são privados, contra cerca da quinta parte nos outros países considerados. Parece, portanto, que, como em educação, os gastos privados em saúde são muito menos eficientes do que os gastos públicos no que diz respeito a se alcançarem os objetivos básicos que se esperaria.)

Tabela 2 – Investimentos públicos e privados em educação e investimentos públicos por estudante como percentual da renda per capita. (Fonte: UIS, Unesco Institute for Statistics)
                                                                                                                                              Finl   EUA
Investimentos públicos (% do PIB) ......................................................... 6,8   5,4
Investimentos privados (% do PIB) em instituições educacionais ................... 0,2   2,0
Investimentos públicos por estudante como porcentagem da renda/capita .... 29,6  21,7


Com quem devemos aprender?
A comparação entre os dois países, EUA e Finlândia, mostra que caminho tomar. Premiação e punição de professores e escolas baseadas no desempenho dos estudantes em testes padronizados, feitos à exaustão, não são boa idéia, até mesmo para se conseguir bom desempenho em testes padronizados! Professores muito bem formados, respeitados e com liberdade de trabalho são condições fundamentais para o bom funcionamento de um sistema educacional. Escolas administradas pelo setor público, por mais altissonante que possa parecer o discurso em favor de uma administração empresarial e eficiente, são melhores quando todas as demais condições são equivalentes. Respeito às necessidades dos estudantes, tanto individuais como coletivas, é outro caminho para se construir um bom sistema educacional. E, também, uma melhor distribuição de renda pode tanto contribuir para a qualidade de vida dos professores como para o desempenho dos estudantes.

Além dos fatores considerados, vários outros problemas afetam o sistema estadunidense de educação. Entre esses problemas estão: o fundamentalismo religioso, que interfere nos currículos das escolas; as limitações de recursos materiais e institucionais que impeçam que as desigualdades entrem nas escolas e afetem seu funcionamento; a existência de grandes contingentes populacionais marginalizados, em especial no que diz respeito a crianças vivendo em situação de pobreza; ensino superior pago, mesmo quando público, constituindo-se uma barreira a mais no caminho dos estudantes; tratamento negativamente diferenciado para crianças e jovens provenientes de famílias de imigrantes. Muitos desses fatores têm origem em princípios religiosos, políticos e ideológicos e como e com que intensidade cada um deles afeta negativamente o desenvolvimento educacional das crianças e jovens naquele país tem sido motivo de estudos acadêmicos.


Embora a comparação até aqui tenha sido apenas entre Finlândia e EUA, as conclusões se repetem quando examinamos outros países.

Por exemplo, entre quatro países latino-americanos similares em vários aspectos e cujas rendas per capita estão na faixa entre 9 e 12 mil dólares anuais (pelo critério PPC), Cuba, Venezuela, Brasil e Colômbia, os dois primeiros, menos afetados por políticas de avaliação quantitativa e por práticas liberais do tipo vauchers, mostram indicadores educacionais quantitativos e qualitativos melhores ou muito melhores do que os dois últimos.

Outros quatro países também similares quanto à renda per capita (próximas a 15 mil dólares) e demais características, Argentina, Uruguai, Chile e México, os dois primeiros, menos liberalizados e menos voltados a uma educação de resultados (nos testes), apresentam melhores desempenhos.

Cabe, assim, uma pergunta impertinente. Por que, apesar das evidências, imitamos, especialmente no estado de São Paulo, políticas e práticas educacionais e sociais que já se mostraram tão perniciosas em muitos países? Por que não aprendemos com aqueles que melhor acertam?

Notas:
(1) O PISA, Programme for International Student Assessment, é um teste padronizado, aplicado a cada três anos a estudantes de dezenas de países e que inclui avaliações de leitura, matemática e ciências.

(2) Parte das informações e das análises deste texto são baseadas no artigo Schools We Can Envy (Escolas que nós podemos invejar), escrito por Diane Ravitch e publicado no New York Review of Books em 8 de março de 2012. A autora ocupou cargos relativamente altos na Secretaria (equivalente ao nosso Ministério) de Educação dos EUA.
 
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