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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os ucranianos não querem essa guerra

05/02/2014 - “A grande maioria dos ucranianos não quer esta nova guerra civil”
- Jean-Marie Pestiau - Correio da Cidadania

A Solidaire, semanário do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou Jean-Marie Chauvier [foto] para melhor compreender a situação atual da Ucrânia.

Ele é um jornalista e ensaísta belga, especialista em Ucrânia e ex-União Soviética. Conhecendo esses países e a língua russa há muito tempo, colabora hoje para o Le Monde Diplomatique e em diversos outros jornais e sites de internet.

- Quais são os problemas econômicos mais prementes enfrentados pela população ucraniana, principalmente os trabalhadores, os pequenos camponeses e os desempregados?

Jean-Marie Chauvier
Desde o desmembramento da União Soviética, em 1991, a Ucrânia passou de 51,4 milhões a 45 milhões de habitantes. Esta diminuição se explica por uma baixa taxa de natalidade e um aumento da mortalidade devido, em parte, ao desmantelamento dos serviços de saúde.

A emigração é muito forte; 6,6 milhões de ucranianos vivem atualmente no estrangeiro. Numerosas são as pessoas do leste da Ucrânia que foram trabalhar na Rússia, onde os salários são sensivelmente mais elevados, enquanto que aqueles do oeste se dirigiram em sua maioria para a Europa ocidental, por exemplo, para as serras da Andaluzia ou para o setor de construção civil em Portugal. A emigração faz entrar, anualmente, 3 bilhões de dólares na Ucrânia.

Enquanto o desemprego é oficialmente de 8% na Ucrânia, uma parte importante da população vive abaixo da linha da pobreza: 25%, segundo o governo, até 80% segundo outras estimativas. A extrema pobreza, acompanhada de subalimentação, é estimada entre 2% a 3% até 16%.

O salário médio é de U$ 332 dólares por mês, um dos mais baixos da Europa. As regiões mais pobres são as regiões rurais a oeste. As alocações de desemprego são baixas e limitadas no tempo.

Os problemas que mais pressionam acentuaram-se pelos riscos ligados à assinatura de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE) e à aplicação de medidas preconizadas pelo FMI.

Existe, portanto, a perspectiva de fechamento de empresas industriais, sobretudo no leste. Ou a recuperação, reestruturação e desmontagem das multinacionais.

No que diz respeito às terras férteis e à agricultura, vê-se no horizonte a ruína da produção local, que é assegurada atualmente pelos pequenos camponeses e pelas sociedades por ações herdeiras dos kolkhoses [foto] e a chegada de grande número de multinacionais da agro-alimentação.

A compra maciça de terras férteis se acelerará. Desse modo, Landkom, um grupo britânico, comprou 100.000 hectares (ha) de ricas terras e um fundo de reserva russo, Renaissance, comprou 300.000 hectares de terras (este número representa um quinto das terras agrícolas da Bélgica).

Para as multinacionais, há, portanto, bons pedaços a tomar: certas indústrias, os oleodutos e gasodutos, as terres férteis e a mão de obra qualficada.

Quais seriam as vantagens e desvantagem de uma aproximação com a União Europeia?

Jean-Marie Chauvier
Os ucranianos – a juventude antes de tudo – sonham com a UE, com a liberdade de viajar, com as ilusões de conforto, bons salários, prosperidade etc., a respeito dos quais os governos ocidentais especulam.

Mas, na realidade, não se trata da adesão da Ucrânia à UE. Não se trata da livre circulação de pessoas.

A UE propõe poucas coisas a não ser o desenvolvimento do livre comércio, da importação massiva de produtos ocidentais, da imposição de padrões europeus nos produtos suscetíveis de serem exportados para a UE, o que levanta temíveis obstáculos à exportação ucraniana.

A Rússia – em caso de acordo com a UE – ameaça fechar seu mercado aos produtos ucranianos. O mercado russo já está fechado.

Moscou ofereceu compensações como a redução de um terço do preço do petróleo, uma ajuda de 15 bilhões de dólares, união aduaneira com a própria, com o Cazaquistão, com a Armênia...

Putin [foto] tem um projeto euro-asiático que engloba a maior parte do antigo espaço soviético (inclusive os países bálticos), reforçando os laços com um projeto de coopeeração industrial com a Ucrânia e integrando as tecnologias em que a Ucrânia era performática desde os tempos da URSS: aeronáutica, satélites, armamento, construções navais, modernização dos complexos industriais.

É, evidentemente, a parte leste da Ucrânia que está mais interessada nessa perspectiva.

O senhor poderia nos explicar as diferenças regionais da Ucrânia?

Jean-Marie Chauvier
Não há um Estado-Nação homogêneo na Ucrânia. Há uma diversidade de Ucrânias. Há contradições entre as regiões. Há uma diversidade de história. 

Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm um berço comum: o Estado dos eslavos orientais (séculos 9 a 11), a capital Kiev, que é chamada “Rous”, “Rússia” ou “Ruthenia”.

Além disso, seus cursos se diferenciaram: línguas, religião, pertencimentos a Estados.

O oeste foi ligado muito tempo ao Grande Ducado da Lituânia, aos reinos poloneses, ao Império Austro-Húngaro.

Depois da revolução de 1917 e da guerra civil, nasceu a primeira formação nacional chamada “Ucrânia”, co-fundadora em 1922 da URSS.

A parte ocidental anexada notadamente pela Polônia foi “recuperada” entre 1939 e 1945, pois, ao território atual da Ucrânia, agregou-se ainda a Crimeia, em 1954.

O leste da Ucrânia é mais industrializado, mais operário, mais de língua russa, enquanto que o oeste é mais rural, camponês, língua ucraniana.

O leste é ortodoxo, ligado ao patriarcado de Moscou, enquanto que o oeste é ao mesmo tempo grego-uniate, católico e ortodoxo, ligado ao patriarcado de Kiev desde a independência em 1991.

A igreja uniate Católica, notadamente a oeste na Galícia, foi tradicionalmente germanófila, muitas vezes em conflitos com a igreja católica da Polônia.

O centro da Ucrânia, com Kiev, é uma mistura de correntes do leste e do oeste. Kiev é, muito majoritariamente, de língua russa, suas elites são pró-oposição e muito ligadas aos ultraliberais de Moscou.

A Ucrânia, portanto, foi dividida – historicamente, culturalmente, politicamente – entre o leste e o oeste, e não há sentido algum em jogar uma parte contra a outra, sob o risco de provocar a sua divisão, ou seja, a guerra civil, o que está, sem dúvida, no cálculo de alguns.

A força de provocar a ruptura, como fazem os ocidentais e seus soldadinhos atuais, pode bem chegar ao momento em que a UE e a OTAN obterão “sua parte”. Mas também a Rússia pegará a sua!

Não seria o primeiro país em que se haveria feito, deliberadamente, explodir. 

Ninguém deve ignorar também que a escolha europeia será igualmente militar: a OTAN seguirá e logo se colocará a questão da base russa de Sebastopol na Crimeia, majoritariamente russa e estrategicamente crucial para a presença militar no mar do Norte. [Negro]

Pode-se imaginar que Moscou não deixará instalar uma base norte-americana nesse lugar!

O que pensa da maneira pela qual o atual conflito está sendo apresentado pela nossa mídia?

Jean-Marie Chauvier
É um faroeste! Os bons “pró-europeus”, os maus “pró-russos”.

É maniqueísta, parcial, ignorante da realidade da Ucrânia. Na maior parte do tempo, os jornalistas entrevistam as pessoas que pensam como eles, que dizem o que os ocidentais têm vontade de ouvir, que falam inglês ou outras línguas ocidentais. E, ademais, existem mentiras por omissão.

Primeiro, houve uma notável ausência: o povo ucraniano, trabalhadores, camponeses, submetidos a choques de capitalismo, à destruição sistemática de todas as suas conquistas sociais, os poderes da máfia de todos os lados.

Há em seguida a ocultação ou a minimização de um fenômeno que se qualifica de nacionalista e que é, de fato, neofascista, ou seja, claramente nazista.

É principalmente (mas não unicamente) localizado no partido SVOBODA, seu chefe Oleg Tiagnibog [foto abaixo, a esquerda do senador norte-americano John McCain, a quem coube supervisionar a "Revolução Laranja", de 2004, a mesma de Ioulia [Julia] Timochenko, e que visava desestabilizar o país] e a região ocidental que corresponde à antiga “Galícia Oriental” polonesa. 

Quantas vezes tenho visto, escutado, lido na mídia, citações deste partido e de seu chefe como “opositores”, sem qualificação?

Fala-se de jovens simpáticos, “voluntários da autodefesa”, vindos de Lviv (Lwow, Lemberg) à Kiev, quando se trata de comandos formados pela extrema-direita nessa região (Galícia) que é a sua fortaleza.

Pesada é a responsabilidade daqueles – políticos, jornalistas – que jogam este jogo a favor de correntes xenófobas, russofóbicas, antissemitas, racistas, celebrando a memória do colaboracionismo nazista e da Waffen SS, do qual a Galícia (não toda a Ucrânia!) foi a pátria.

E enfim, a mídia omite as múltiplas redes financiadas pelo ocidente (EUA, UE, Alemanha) para a desestabilização do país, as intervenções diretas de personalidades políticas ocidentais.

Imaginemos a zona neutra em Bruxelas ocupada durante dois meses por dezenas de milhares de manifestantes, exigindo a demissão do rei e do governo, tomando de assalto o Palácio Real, e aclamando ministros russos, chineses ou iranianos na tribuna!

Imagina-se isto em Paris ou em Washington? É o que se passa em Kiev, na praça Maïdan.

Meu espanto aumenta a cada dia ao constatar a diferença entre as “informações” dadas por nossa mídia e as que posso coletar nas mídias ucranianas e russas. As violências neonazistas, as agressões antissemitas, as tomadas de assalto das administrações regionais: na nossa grande mídia, nada disso! Só se ouve um ponto de vista: os opositores de Maïdan. O resto da Ucrânia não existe!

Quais são os principais atores atuais? Quem são os manifestantes em Kiev e em outros lugares? O que é que os federaliza? Qual é a natureza do poder atual?

Jean-Marie Chauvier. A oligarquia industrial e financeira, beneficiária das privatizações, está dividida por grupos rivais entre a Rússia e o Ocidente. 

Viktor Ianoukovitch [foto] e seu Partido das Regiões representam os clãs (e a maior parte das populações) do leste e do sul.

O Partido das Regiões ganhou as eleições presidenciais e parlamentares no outono de 2013.

Há igualmente fortes disputas políticas no oeste, na Transcarpatia (também chamada Ucrânia subcarpática), uma região multiétnica que resiste ao nacionalismo.

Mas a crise atual, as hesitações e fraquezas do presidente podem lhe custar muito caro e desacreditar o seu partido.

O poder atual é altamente responsável pela crise social que favorece a extrema-direita e as enganadoras sirenes da UE e da OTAN. Poder impotente, de fato, defensor de uma parte da oligarquia, e não da “pátria” a que diz pertencer. Ele favoreceu a extensão da corrupção e das práticas mafiosas.

Diante dele, três formações políticas que têm sua base, sobretudo, no oeste e também no centro da Ucrânia.

Há, primeiramente, o Batkivschina, “Pátria”, cujo dirigente é Arseni Iatseniouk. Ele sucedeu Ioulia [Julia] Timochenko [foto], doente e prisioneira.

Em seguida, o partido Oudar (Partido Democrático das Reformas), cujo líder e fundador é o ex-boxeador Vitali Klitschko [foto abaixo].

É o queridinho de Angela Merkel e da UE. Os quadros do seu partido são formados pela fundação Adenauer.

Por fim, o partido neofascista Svoboda (“Liberdade”) dirigido por Oleg Tiagnibog.

O Svoboda filia-se diretamente à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) – fascista, o modelo de Mussolini –, fundado em 1929 na Galícia oriental, então sob o regime polonês.

Com a chegada de Adolf Hitler em 1933, tomou contato com o mote “nós nos serviremos da Alemanha para avançar nossas reinvidicações”.

As relações com os nazistas foram algumas vezes tumultuosas – porque Hitler não queria uma Ucrânia –, mas todos estavam firmemente unidos no seu objetivo comum de eliminar os comunistas e os judeus e de sujeitar os russos.

Os fascistas ucranianos opõem o caráter “europeu” da Ucrânia àquele “asiático” da Rússia.

Em 1939, Andriy Melnyk [foto] dirigia o OUN, com o apoio de Andriy Cheptytskyi, da Igreja Greco-católica (uniate), germanófila, “líder espiritual” da Galícia, que caiu em 1939 sob o regime soviético.

Em 1940, o radical Stepan Bandera abriu uma dissidência: seu OUN-b forma dois batalhões da Wehrmacht, Nachtigall e Roland, a fim de tomar parte na agressão da Alemanha e seus aliados contra a Rússia, no dia 22 de junho de 1941. Imediatamente, desata uma onda de pogroms.

Após muitos escrutínios, após a “revolução laranja” de 2004, a influência do Svoboda aumenta na Galícia e em todo o oeste da Ucrânia, compreendendo-se aí as grandes cidades com 20% a 30% dos votos. Para o conjunto da Ucrânia, o Svoboda conta com 10% dos votos. O Svoboda foi “ultrapassado” por grupos neonazistas ainda mais radicais do que ele.

As três formações políticas, Batkivschina, Oudar e Svoboda, apoiadas pelo ocidente, reclamam após dois meses a derrubada do governo e do presidente da República. Eles exigem novas eleições. O Svoboda os leva mais longe, organizando um golpe de Estado num nível local, lá nos lugares em que fez reinar seu regime de terror. O Svoboda proibiu o Partido das Regiões e o Partido Comunista ucraniano.

O Partido Comunista ucraniano chama à razão já há várias semanas.

Coletou mais de 3 milhões de assinaturas para exigir um referendo que deveria decidir se a Ucrânia quer um tratado de associação com a UE ou uma união aduaneira com a Rússia.

A situação insurrecional diz respeito não somente aos três partidos da oposição, mas também ao poder oferecido do país e do povo “de bandeja” aos diregentes da pseudo-oposição, aos grupos de extrema-direita neonazis, às organizações nacionalistas violentas, aos políticos estrangeiros que conclamam as pessoas a “radicalizar os protestos” e a “lutar até o fim”.

O PC destaca os problemas sociais. Ele tem a posição mais democrática entre os partidos políticos. Mas sua influência limita-se à parte leste e ao sul da Ucrânia.

Que papel jogam as grandes potências (EUA, União Europeia, Russia) no enfrentamento atual? O que buscam?

Jean-Marie Chauvier
Zbigniew Brzezinski, célebre e influente, geoestrategista estadunidense, de origem polonesa, traçou nos anos 1990 a estratégia estadunidense para comandar a Eurásia e instalar duravelmente a hegemonia do seu país, tendo a Ucrânia como elo essencial.

Para ele, havia os “bálcãs mundiais”, de um lado, a Eurásia e, do outro, o Oriente Médio.

Esta estratégia deu seus frutos na Ucrânia com a “revolução laranja” de 2004. Ela instalou uma rede tentacular de fundações estadunidenses – como Soros e a Fundação Nacional para a Democracia (NED) –, que remuneraram milhares de pessoas para “fazer progredir a democracia”. Em 2013-2014, a estratégia foi diferente.

Sobretudo, a Alemanha de Angela Merkel [foto] e a UE estão no comando, ajudados por políticos estadunidenses, como McCain.

Eles discursam para as massas a respeito de Maidan e de outros com uma grande irresponsabilidade: para atingir facilmente seu objetivo de atrair a Ucrânia para o campo euro-atlântico, donde a OTAN se apoia nos elementos mais antidemocráticos da sociedade ucraniana.

Mas este objetivo é irrealizável sem dividir a Ucrânia entre leste e oeste e com a Crimeia, que se juntará novamente à Russia, como sua população deseja.

O parlamento da Crimeia declarou: “não viveremos jamais sob um regime bandeirista (fascista)”.

E para Svoboda e outros fascistas, é a revanche de 1945 que eles vivem.

Eu creio que, apesar de tudo, o que a grande maioria dos ucranianos não quer é esta nova guerra civil nem a divisão do país, mas, sem dúvida, a sociedade está para ser reconstruída!

Para saber mais:
- Jean-Marie Chauvier, Euromaïdan ou a batalha da Ucrânia, 25/01/2014
http://www.mondialisation.ca/euroma... e Ucrânia: que posição?

Mais:
- A política antissocial revelada pelo Wikileaks

Viktor Pynzenyk [foto], antigo ministro das finanças e hoje membro do partido de oposição, ou OUAR, de Vitali Klitchko, explicou em 2010 ao embaixador dos EUA o que ele desejava para a Ucrânia:

“- Aumento da idade da aposentadoria entre dois e três anos;
- A limitação das pensões dos aposentados que trabalham;
- Triplicação do preço do gás de cozinha;
- Aumento de 40% no preço da eletricidade;
- Anulação da Resolução governamental que exige o consentimento dos sindicatos para aumentar o preço do gás;
- Anulação da Disposição Legislativa que proibe os fornecedores comunais de cortar as reservas ou de punir os consumidores em caso de não pagamento dos serviços comunais;
- A privatização de todas as minas de carvão;
- O aumento dos preços dos transportes, a anulação de todas os subsídios;
- A abolição das ajudas governamentais para os nascimentos, comida e livros escolares gratuitos (está escrito: as famílias devem pagar);
- Anulação de isenção de IVA sobre produtos farmacêuticos;
- Aumento da gasolina e aumento de 50% de impostos sobre os veículos;
- O pagamento de seguro desemprego, após um período mínimo de 6 meses trabalhados;
- O não aumento do salário mínimo vital (introduzindo, entretanto, pagamento suplementar aos necessitados)."

Fonte do Wikileaks: Cabo diplomático revelado por Wikileaks
http://www.cablegatesearch.net/cabl...;;q=elections+ukraine

Fonte do artigo:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9308:submanchete050214&catid=72:imagens-rolantes

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Duas aventuras pan-europeias: na África e na Ucrânia

15/12/2013 - Duas aventuras pan-europeias: Asterix em Bangui e a roleta russa da Santa Aliança
- Rui Peralta, Luanda - Página Global

I - São famosas as intervenções francesas em África.
Apenas relembrando as dos últimos tempos temos: a Costa do Marfim (utilizando veículos da ONU, para retirar do poder um presidente incômodo aos interesses franceses e o Mali (em curso).

Por apurar, ainda, o papel da França no genocídio de Ruanda e no presente a intervenção francesa na Republica Centro-Africana (será que caçarão o “mau da fita”, Abdallah Hamat?).

Têm também no seu historial pós-invasão uma série de “eleições”, “legitimando” os governos neocoloniais nascidos das suas intervenções.

A lista das “obras” da França no continente africano é vasta: insegurança alimentar, subnutrição, carências sanitárias, exploração dos recursos naturais, neocolonização, criação de governos fantoches (e sua manutenção no poder) e militarização do continente são apenas alguns itens de tão vasta lista.

A França decidiu exercer a sua faceta de poder colonial em África, de forma aberta e “transparente”.

E tal como acontecia com os regimes coloniais no inicio da expansão europeia em África (a colonização era legitimada por bula papal) a França legitima os governos fantoches no continente através da “qualidade democrática” dos seus funcionários autóctones (assim foi na RDC [República Democrática do Congo], Mali e Costa do Marfim, por exemplo, sempre com o histórico balão de ensaio senegalês por detrás, colhendo as lições do “frére” Senghor).

A intervenção francesa na Republica Centro Africana tem alguns personagens que vale a pena mencionar.

Abdallah Hamat é um desses personagens típicos que pululam pelo continente.

Autodesignado general ascendeu à ribalta como lugar-tenente de Michel Djotodia, coordenando ações militares decisivas para a expulsão do presidente François Bozizé.

Acusado de vários homicídios, Hamat ficou no centro do tabuleiro com um ataque que comandou no passado dia 10 de novembro, ação que aparenta ter um cunho religioso.

Uma vez mais a “ameaça islâmica fundamentalista” serve para tapar peneiras e na Republica Centro Africana não foi necessário fomentar núcleos da al-Qaeda para justificar a invasão: bastou a figura do Hamat - o que reduz substancialmente os custos da intervenção – para o Conselho de Segurança da ONU autorizar que soldados franceses e da União Africana (sempre por arrasto, esta figura pateticamente apática da UA).

O cenário é confuso. As milícias SELEKA, islâmicas, apoiantes de Michel Djotodia, que em março foram decisivas para depor François Bozizé são comandadas pelo tal Hamat e controlavam Bangui, a capital. Do outro lado estão as milícias cristãs designadas por “antibakala” leais a Bozizé.      

O problema é que os franceses, chegados ao terreno, defrontaram a SELEKA, mas devido aos ataques sucessivos dos leais a Bozizé á capital, acabaram também por envolver-se em combates com as milícias cristãs.

Quanto ao presidente interino, Michel Djotodia [foto], quando em setembro anunciou a dissolução da SELEKA – seus apoiantes – viu rebentar uma onda de violência na capital, levada a cabo por milicianos islâmicos que não aceitavam a dissolução, perdendo o controlo da situação.  

O contingente da UA que se encontra no país, em missão de paz, é composto por 2 mil e 500 soldados, com a típica desorganização dos contingentes da UA e as limitações de financiamento que caracterizam estas intervenções africanas.

Este contingente deverá ser enquadrado em força de Paz da ONU, em Julho de 2014, quando o Conselho de Segurança se reunir para reavaliar a situação na Republica Centro Africana, caso a instabilidade persista. Neste caso a MISCA (a força de paz da UA na Republica Centro Africana), será reforçada com mais mil efectivos.

Desta forma a ONU poupa dinheiro, passando as despesas para a UA, deixando todos os parceiros contentes: a UA porque desta forma vê a sua politica de “resolução africana para os assuntos africanos” (leia-se: soluções que transformar-se-ão em parte do problema a medio prazo) e o Ocidente poupa dinheiro e limpa as mãos do assunto, deixando-as livres para o caso de uma intervenção futura, quando o descalabro da UA for irremediável e a terra já estiver queimada, podendo então fazer o que muito bem apetecer, pois tudo estará justificado.  

Em 1997, o país foi palco de uma missão similar, mas a França cansou-se de sustentar a prolongada estadia, acabando por reduzir as operações ao mínimo, criando, desta forma, as condições necessárias para uma intervenção mais direta, como aconteceu agora.

É evidente que os resultados são, como sempre, sentidos pelas populações de forma dramática: cerca de 160 mil refugiados, 240 mil desalojados e largas centenas de mortos.

É o preço que os Povos pagam pelas soluções neocolonialistas (Será que já estão a preparar um programa de recuperação “afrocapitalista” para a Republica Centro-Africana?

De certeza que as elites que se escondem por detrás da falsa “acumulação primitiva” – leia-se: esbanjamento do presente e anulação do futuro – já devem ter uma das suas sábias e pragmáticas soluções na manga).

II - Anteriormente com Sarkozy e atualmente com Hollande, a França alterou procedimentos e mecanismos da sua política externa.
Encabeçou as potências ocidentais na agressão á Líbia e impôs a linha mais dura do ocidente em relação á intervenção na Síria.

Transformados em “falcões” os franceses intervieram unilateralmente no Mali e François Hollande foi recebido como herói gaulês em Israel [foto], aplaudido pelos profetas da desgraça que impõem os seus delírios ao povo hebraico.

O mesmo Hollande acabou de enviar tropas para a Republica Centro Africana, para “restaurar a ordem” (será que os lideres gauleses tentam substituir a milenária “Pax Romana” por uma mais atualizada e eficaz “Pax Gauloise”?

Esta é a mesma França que no início do presente século XXI foi ridicularizada pelo Congresso dos USA, devido á sua recusa em seguir a intervenção norte-americana no Iraque e que renunciou publicamente à “Francafrique”, considerando-o um “comportamento inapropriado”.

Então como explicar esta viragem na política externa francesa?

A explicação tem vertentes internas e externas.

Nos factores internos é de salientar um movimento migratório, provocado pela História colonial francesa: o grande número de cidadãos islâmicos, na sua maioria pobres, ou usufruindo de baixos rendimentos, com muitos dos jovens islâmicos franceses – sentindo-se sem perspectivas e sofrendo com um problema de identidade, devido á sua condição proletária - a serem atraídos pela extrema-direita islâmica.

Ainda que esta viragem na politica externa seja sentida em todo a região pan-europeia, ela foi particularmente forte na França, evocando uma reação politica interna, em que deve também ser salientado a xenofobia da extrema-direita francesa (Frente Nacional) e de uma tendência que se faz sentir na esquerda politica e no “centro-esquerda”, como a representada pelo ministro do Interior, Manuel Valls, do Partido Socialista, cuja principal atividade é reprimir a migração ilegal e em particular as comunidades islâmicas.

Esta política, cujo lema é “Responsabilidade de Proteger”, percorre todo o espectro político francês, da direita á esquerda, principalmente nos sectores pantanosos do “centro” (“centro-direita” e “centro-esquerda”).

Uma das suas figuras principais é Bernard Kouchner [foto], fundador dos Médicos sem Fronteiras (MSF), que foi primeiro-ministro de Sarkozy.

Outro dos seus arautos é Bernard-Henri Levy [foto abaixo], que foi conselheiro de Sarkozy, função que continua a exercer para Hollande.

No entanto é nas dinâmicas externas que poderemos encontrar um fator de maior importância, para entender o que se passou com esta viragem, aparente, da política externa francesa.

Desde 1945 que a França luta para manter-se como figura de maior relevo no cenário mundial. Neste esforço a França teve que contornar um obstáculo: USA.

Para Charles de Gaulle a preocupação primordial era a França reassumir o seu papel mundial e reafirmar-se nas arenas internacionais.

De Gaulle tentou de muitas formas, desde a aproximação com a União Soviética, o seu distanciamento em relação á NATO [OTAN], a sua forte relação com Israel (principalmente na guerra da Argélia), num momento em que as relações de forças na ONU impulsionavam uma direção oposta (foi a França que armou Israel, no ataque conjunto franco-britânico-israelita ao Canal do Suez, em 1956).

O vínculo especial com Israel terminou em 1962, depois da independência da Argélia e a França demonstrou-se mais preocupada em renovar as suas relações (e influencia) com as ex-colônias do Norte de África.

Esta política não foi apenas uma política gaullista, tendo sido assimilada por muitos socialistas franceses e por muitos sectores não gaullistas á esquerda e á direita do espectro politico francês.

A Grã-Bretanha e os USA sempre foram (desde a Segunda Guerra Mundial) os dois grandes fantasmas da política externa francesa, dois concorrentes poderosos, que viam na França um parceiro difícil de controlar e excessivamente espicaçado por uma competição desenfreada pelos lugares cimeiros da política internacional.

A crise econômica internacional, que afeta com particular dureza as economias capitalistas do Ocidente levou a uma cartelização dos interesses do capitalismo, provocando uma estratégia imperialista de concertação em torno de interesses geoeconômicos comuns.

Neste novo cartel a França assume o lugar de “falcão”, desempenhando com graciosidade o papel de “polícia mau”, assumindo a “linha dura” no combate ao “inimigo islâmico”.

É assim, que depois de um longo interregno (desde 1962) que Israel volta a ver a França como o seu melhor amigo (ainda que este não seja um amigo tão poderoso como os USA).
       
Existe no entanto um fator que não permite que a França assuma o seu “destino napoleônico” (esse complexo imperial da burguesia francesa desde a sua ascensão a força dominante na sociedade francesa): o caótico cenário geopolítico da atualidade.

Na Ásia Ocidental (Médio-Oriente) existem potências regionais imprevisíveis, que impedem a França de jogar, aqui, um papel primordial. Muito menos a Ásia Oriental (apesar do peso histórico da França por essas zonas) é um cenário favorável para as elites francesas passearem as suas plumas pós-modernistas.

Resta a África, o único continente onde a França pode reassumir um papel central, aparecendo lado a lado (mas um pouco mais á frente) dos USA e da Grã-Bretanha (graças não apenas à cartelização de interesses, como também ao fator migratório, que permite aos franceses terem agentes provocadores mais baratos e conhecedores do terreno).

E a França aproveita a oportunidade oferecida, continuando a cantar os “Enfants de la Patrie”, mesmo que sejam “enfants terribles”, filhos bastardos de uma França madrasta.

III - A região pan-europeia pode ser dividida em dois polos geopolíticos e geoeconômicos concorrentes.


Uma área aparentemente integrada a vários níveis (U.E.) constituída por um núcleo monetário – a Eurolândia – e uma outra adversa ao atual projeto europeu e dominada pela Rússia.

Esta ultima região pan-europeia (e também meta-europeia, uma vez que abrange vastos territórios não só da Eurásia, mas também da Ásia Oriental) com uma forte tradição autocrática é de difícil sedução para os seus vizinhos europeus (principalmente para as classes médias) que anseiam por se integrar na U.E.

Este conflito entre a Rússia e a U.E. passa na atualidade por um período de alta conflitualidade na Ucrânia.

Apesar da proximidade cultural e histórica entre ucranianos e russos (sem esquecer a existência na Ucrânia Ocidental de uma minoria histórica russófoba) a Rússia não apresenta qualquer atrativo para as classes médias ucranianas, que procuram afirmar-se na sociedade ucraniana.

Esta classe média (maioritariamente média-baixa) vê na U.E. a possibilidade de maior enriquecimento, assim como no Ocidente uma panaceia para os seus problemas centrais (como ficou patente na “Revolução Laranja”) e olha para Oriente com algum receio e incerteza.  

Este receio das classes médias ucranianas em relação aos seus vizinhos tem, obviamente, o respaldo dos setores da burguesia ucraniana (as classes médias caracterizam-se por um comportamento acéfalo, que obedece a dois inputs fundamentais: a vontade de enriquecer e o medo de empobrecer) que apenas poderão assumir um papel preponderante e de domínio total se diluírem-se no seio da Europa Ocidental (esta é uma questão histórica para a burguesia ucraniana e que marca fases decisivas na História da país).

Os dois modelos concorrentes de capitalismo na região pan-europeia (um modelo liberal que hesita entre a incerteza da liberalização total e as indecisões neokeynesianas, no lado da U.E. e o modelo russo de desenvolvimento, assente no capitalismo de estado, tendencialmente oligárquico, consequência do socialismo real e do caos reinante durante o período de transição para o capitalismo) confrontam-se na Ucrânia em função destes fatores de dinâmica interna, mas também de importantes fatores de dinâmica externa, de raiz geopolítica e geoeconômica. [foto: Júlia Timochenko, magnata ucraniana com Vladimir Putin, da Rússia]

A Ucrânia é uma fase atual (como o foi a Geórgia num passado recente) da longa batalha travada entre a U.E. e a Rússia.

O Ocidente (NATO e U.E.) tenta evitar a todo o custo a consolidação geopolítica da Federação Russa – e geoeconômica, afirmando o controle da “rota do gás” por parte da Rússia – e a Rússia, que volta em “pleno” (politica e economicamente) ao palco global, tenta reafirmar-se como potência.    
Com a dissolução da URSS em 1991 e posterior separação da Ucrânia, as relações entre os dois países tem-se constituído por acordos mais ou menos instáveis em matéria de gás ou da presença da frota do Mar Negro nos portos da Crimeia.

A atual estratégia ocidental atua sobre o sector energético e abrange uma miríade de formas que vão desde as rotas alternativas aos gasodutos russos até às medidas anti monopólio contra a GAZPROM, tudo montado a partir de Bruxelas.

Estas constantes pressões ocidentais, com repercussões negativas sobre a Ucrânia, levaram a Rússia a aumentar a sua exportação de gás para o Oriente – China, Japão e Coreia.

A Rússia apresenta-se segura dos seus objetivos.

Tem obtido vitórias plausíveis na política externa, com a desmontagem do cartel OTAN / Estados do Golfo, formado para destroçar a Síria e mais recentemente com o acordo estabelecido entre a comunidade internacional e o Irã sobre o programa nuclear iraniano.

Esta atitude de conforto e de confiança por parte dos russos contrasta com a atitude beligerante e arruaceira da U.E.

A Alemanha continua amarrada ao seu papel na Revolução Laranja, apoiando diretamente duas das forças politicas que organizaram os protestos (através da Fundação Konrad Adenauer, da CDU), advertindo o Presidente ucraniano [Victor Yanukovitch - foto acima] contra o uso da violência e qualifica o sistema judicial ucraniano de “justiça seletiva”, ao referir o caso de Júlia Timochenko [ao lado], a magnata pró-Ocidente (uma das figuras de proa da Revolução Laranja, que pouco tempo depois atolou-se em escândalos de corrupção) enquanto Guido Westerwelle o (ainda) ministro das relações exteriores do gabinete germânico passeia-se pelas manifestações de Kiev, por entre as bandeiras do SVOBODA [abaixo], um partido antissemita da extrema-direita ucraniana.

Para além da Alemanha, a Polônia e a Suécia, através dos respectivos ministros das relações exteriores, expressaram o seu apoio aos manifestantes ucranianos pró U.E. e o primeiro-ministro polaco chegou a intervir em comícios e encontros realizados em Kiev.

Estarão os líderes da U.E a entrarem num processo de senilidade acentuada que já os fazem esquecer princípio básicos do direito internacional, como o da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados?

Ou será que foram tomados pelo “amigo alemão” (Alzheimer)?

IV - Mas, sobre os acontecimentos na Ucrânia, existe um aspecto que não é referido em qualquer meio de comunicação social: o estabelecimento da “Profunda e Completa Área de Livre Comércio” (DCFTA- Deep and Complete Free Trade Area).
O que é a DCFTA?

Para respondermos a esta questão, vejamos um pormenor crucial da balança comercial ucraniana (e que permitirá uma melhor compreensão deste mecanismo): a Ucrânia exporta cerca de 15 mil milhões de euros para a U.E. e importa desta, cerca de 24 mil milhões de euros.

Ora, o DCFTA contribuirá para uma maior integração econômica com o mercado interno da U.E. através da adoção de medidas legislativas por parte dos ucranianos.

Isto inclui a eliminação de todos os obstáculos ao comércio, serviços e ao fluxo de investimentos (em particular com os investimentos no setor energético).

Uma vez que a Ucrânia incorporou-se ao Acervo Comunitário Europeu a U.E. concede-lhe acesso a todos os mercados internos europeus.

Por enquanto, como o DCFTA ainda não entrou em vigor, as taxas aduaneiras e outras barreiras alfandegárias ou fiscalmente mais vastas, ainda fazem-se sentir nos custos das operações e transações entre a U.E. e a Ucrânia (mesmo que sejam mais baixas e existam algumas isenções), mas quando o DCFTA estiver em vigor os operadores econômicos pouparão cerca de 750 mil milhões de euros por ano, em taxas, impostos e direitos.

Dadas as disparidades (evidentes nos números acima apontados, da balança comercial ucraniana) – e para dar uma ideia mais vasta do atual panorama o poder econômico da U.E é 40 vezes superior ao da Ucrânia e o quantitativo de investimentos europeus é 11 vezes superior – não é difícil imaginar que percentagem dos 750 milhões de euros em poupanças, gerados pelo DCFTA, pertence à U.E. e qual a que é pertença da Ucrânia e aos quais é necessário adicionar os números da liberalização dos investimentos, uma mais-valia incalculável para os investidores da U.E., se atendermos a que os investimentos da U.E. na Ucrânia, na área de infraestrutura (transporte, energia, meio ambiente e equipamentos sociais) estarão cobertos por financiamentos adicionais destinados a cobrir eventuais necessidades de tesouraria.

O que na verdade está a acontecer com a DCFTA é a completa assimilação jurídica da Ucrânia por parte da U.E. (fornecedora, com 40 vezes mais capacidade de capitalização e 11 vezes mais capacidade de investimento).

O principal propósito das leis e dos regulamentos comunitários da U.E. tem como pano de fundo a eliminação dos mecanismos institucionais que possam proteger os mercados nacionais dos estados membros da U.E., abrindo-os completamente a condições alienígenas para os quais estes mercados não se encontram preparados, ou perante os quais não têm qualquer mecanismo orgânico ou interno de defesa.

Por fim uma outra questão é abordada no DCFTA: a mobilidade.

O máximo de mobilidade (livre-circulação) de mercadorias, serviços, bens e capitais, mas um extraordinário vazio sobre uma mobilidade que é fundamental para um efetivo desenvolvimento e fortalecimento da Ucrânia: a livre-circulação de pessoas, sob a forma de mão-de-obra.

Para a economia ucraniana é importante o fator migratório, no sentido de abarcar mão-de- obra tecnicamente especializada, mas também no sentido de fazer escoar a mão-de-obra excedente para a U.E., ao mesmo tempo que permitiria uma maior abertura do ensino médio e superior através do intercâmbio com instituições da U.E., novas especializações, melhor qualidade de ensino, etc.

Mas a profundidade do DCFTA limita-se à livre circulação de capitais, bens, serviços e mercadorias.

As pessoas (o fator humano) ficam de fora, ou com “livre-circulação” de um sentido apenas.

Claro que falar em questões que deveriam ser abrangidas por estes acordos, como a globalização da Segurança Social, através de mecanismos de capitalização global de fundos internacionais, regionais, ou intercontinentais, está completamente fora de questão.

Livre circulação de Capitais, serviços e mercadorias, sim! Livre circulação de pessoas e políticas sociais (mesmo através da capitalização de fundos), não!

V - Pelo conjunto de fatores (internos e externos) acima descritos seria lógico prever que os protestos na Ucrânia contra a decisão do governo de Victor Yanikóvich de não assinar o Acordo de Associação com a União Europeia (com mais de mil e quinhentas páginas, do qual o DCFTA é um anexo) assumiram formas violentas, em escalada de intensidade.

E isto acontece porque estamos perante uma operação de desestabilização, em que as dinâmicas internas (o descontentamento das classes médias e as aspirações das burguesias – financeira, comercial, industrial e agrária – da Ucrânia) foram doutamente explorados e cruzados com as dinâmicas externas.

O auge da intensidade dos conflitos foi atingido no dia 1 de dezembro, com a ocupação de edifícios públicos por parte dos manifestantes.

No dia anterior a BERKUT – o corpo especial da polícia ucraniana – dispersara violentamente uma manifestação pacífica em Maidan, na Praça da Independência.

Os protestos alargaram-se a grande parte do território, com especial incidência em Kiev e na Ucrânia Ocidental (tradicionalmente um bastião pró-ocidental) mas também em Dnipropetrovsk, na Ucrânia Oriental.

O modelo proposto pelo Acordo de Associação com a U.E. choca com a adesão ao projeto russo da União Euroasiática, que engloba também o Cazaquistão e a Bielo-Rússia.

Este projeto, a longo prazo representa uma saída de estabilidade para a débil economia ucraniana, mas que não é viável para a burguesia ucraniana (que será asfixiada e subordinada ao Estado) e muito menos para as classes médias (que passarão por um breve processo de proletarização, que elas tanto temem).

Para as camadas mais desfavorecidas da população e para os setores administrativos (acadêmicos, elite administrativa, elite tecnocrática) esta representa uma forma de escapar à deterioração das condições de vida e adquirem (principalmente os trabalhadores assalariados da industria e trabalhadores agrícolas) uma posição de maior importância na sociedade ucraniana, sendo algumas das suas reivindicações satisfeitas.

De um modo geral e pesando vantagens e desvantagens, a União Euroasiática representa um reforço da soberania nacional e popular da Ucrânia e uma integração mais efetiva nos mercados globais, pois não se encontrará sujeita aos ditames das obrigações impostas á regionalização europeia, que transformariam a Ucrânia numa economia periférica, produtora de grão e de carvão e fornecedora de mão-de-obra barata.

Por outro lado a União Euroasiática representa também uma forma da Ucrânia rentabilizar a sua dependência em relação ao gás russo (baixando o custo e ampliando os créditos a juro mais baixo, por exemplo, ou assumindo uma parceria para a reexportação – adquirindo vantagens nos mercados europeus - com a GAZPROM).

É bom não esquecer que mais de 60% das exportações ucranianas vão para o mercado russo, pelo que a União Euroasiática representaria um importante polo de desenvolvimento para o setor exportador ucraniano, diminuindo desta forma o peso e o impacto das importações.

As elites ocidentais, pan-europeias, do capitalismo contemporâneo, obrigadas – contra vontade - à cartelização, sofrem de um problema que advém dos tempos recentes das “economias de casino”: viciaram-se no jogo.

E se ao Sul, os jogos africanos são mais rentáveis do que nunca, a Leste iniciaram-se os jogos euroasiáticos…

Vinde, Senhores! A adrenalina de vasto mercado espera-vos… (embora na Eurásia, dos gauleses, nem murmúrios).    

Fontes:
Böröcz, József  - The European Union and Global Social Change: A Critical Geopolitical-Economic Analysis Rutger University Press, New Jersey, 2009
Ferrero, Àngel - Ucrania: la bisagra entre Rusia y la !Unión Europea estalla en protestas http://www.sinpermiso.info
Böröcz, József -  http://www.criticatac.ro/lefteast/ukraine-eu-dependency/
Oakford, Samuel - http://www.ipsnoticias.net/2013/12/onu-al-margen-del-caos-en-republica-centroafricana/
Poch, Rafael - http://blogs.lavanguardia.com/berlin/?p=520
Wallerstein, Immanuel - http://www.jornada.unam.mx/2013/12/08/  
http://www.guinguinbali.com
http://www.rebelion.org

Fonte do artigo:
http://paginaglobal.blogspot.pt/2013/12/duas-aventuras-pan-europeias-asterix-em.html

Leia também:
- Líderes europeus rejeitam apoio a missões militares francesas na África - Correio do Brasil