Mostrando postagens com marcador África. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador África. Mostrar todas as postagens

domingo, 22 de dezembro de 2013

Duas aventuras pan-europeias: na África e na Ucrânia

15/12/2013 - Duas aventuras pan-europeias: Asterix em Bangui e a roleta russa da Santa Aliança
- Rui Peralta, Luanda - Página Global

I - São famosas as intervenções francesas em África.
Apenas relembrando as dos últimos tempos temos: a Costa do Marfim (utilizando veículos da ONU, para retirar do poder um presidente incômodo aos interesses franceses e o Mali (em curso).

Por apurar, ainda, o papel da França no genocídio de Ruanda e no presente a intervenção francesa na Republica Centro-Africana (será que caçarão o “mau da fita”, Abdallah Hamat?).

Têm também no seu historial pós-invasão uma série de “eleições”, “legitimando” os governos neocoloniais nascidos das suas intervenções.

A lista das “obras” da França no continente africano é vasta: insegurança alimentar, subnutrição, carências sanitárias, exploração dos recursos naturais, neocolonização, criação de governos fantoches (e sua manutenção no poder) e militarização do continente são apenas alguns itens de tão vasta lista.

A França decidiu exercer a sua faceta de poder colonial em África, de forma aberta e “transparente”.

E tal como acontecia com os regimes coloniais no inicio da expansão europeia em África (a colonização era legitimada por bula papal) a França legitima os governos fantoches no continente através da “qualidade democrática” dos seus funcionários autóctones (assim foi na RDC [República Democrática do Congo], Mali e Costa do Marfim, por exemplo, sempre com o histórico balão de ensaio senegalês por detrás, colhendo as lições do “frére” Senghor).

A intervenção francesa na Republica Centro Africana tem alguns personagens que vale a pena mencionar.

Abdallah Hamat é um desses personagens típicos que pululam pelo continente.

Autodesignado general ascendeu à ribalta como lugar-tenente de Michel Djotodia, coordenando ações militares decisivas para a expulsão do presidente François Bozizé.

Acusado de vários homicídios, Hamat ficou no centro do tabuleiro com um ataque que comandou no passado dia 10 de novembro, ação que aparenta ter um cunho religioso.

Uma vez mais a “ameaça islâmica fundamentalista” serve para tapar peneiras e na Republica Centro Africana não foi necessário fomentar núcleos da al-Qaeda para justificar a invasão: bastou a figura do Hamat - o que reduz substancialmente os custos da intervenção – para o Conselho de Segurança da ONU autorizar que soldados franceses e da União Africana (sempre por arrasto, esta figura pateticamente apática da UA).

O cenário é confuso. As milícias SELEKA, islâmicas, apoiantes de Michel Djotodia, que em março foram decisivas para depor François Bozizé são comandadas pelo tal Hamat e controlavam Bangui, a capital. Do outro lado estão as milícias cristãs designadas por “antibakala” leais a Bozizé.      

O problema é que os franceses, chegados ao terreno, defrontaram a SELEKA, mas devido aos ataques sucessivos dos leais a Bozizé á capital, acabaram também por envolver-se em combates com as milícias cristãs.

Quanto ao presidente interino, Michel Djotodia [foto], quando em setembro anunciou a dissolução da SELEKA – seus apoiantes – viu rebentar uma onda de violência na capital, levada a cabo por milicianos islâmicos que não aceitavam a dissolução, perdendo o controlo da situação.  

O contingente da UA que se encontra no país, em missão de paz, é composto por 2 mil e 500 soldados, com a típica desorganização dos contingentes da UA e as limitações de financiamento que caracterizam estas intervenções africanas.

Este contingente deverá ser enquadrado em força de Paz da ONU, em Julho de 2014, quando o Conselho de Segurança se reunir para reavaliar a situação na Republica Centro Africana, caso a instabilidade persista. Neste caso a MISCA (a força de paz da UA na Republica Centro Africana), será reforçada com mais mil efectivos.

Desta forma a ONU poupa dinheiro, passando as despesas para a UA, deixando todos os parceiros contentes: a UA porque desta forma vê a sua politica de “resolução africana para os assuntos africanos” (leia-se: soluções que transformar-se-ão em parte do problema a medio prazo) e o Ocidente poupa dinheiro e limpa as mãos do assunto, deixando-as livres para o caso de uma intervenção futura, quando o descalabro da UA for irremediável e a terra já estiver queimada, podendo então fazer o que muito bem apetecer, pois tudo estará justificado.  

Em 1997, o país foi palco de uma missão similar, mas a França cansou-se de sustentar a prolongada estadia, acabando por reduzir as operações ao mínimo, criando, desta forma, as condições necessárias para uma intervenção mais direta, como aconteceu agora.

É evidente que os resultados são, como sempre, sentidos pelas populações de forma dramática: cerca de 160 mil refugiados, 240 mil desalojados e largas centenas de mortos.

É o preço que os Povos pagam pelas soluções neocolonialistas (Será que já estão a preparar um programa de recuperação “afrocapitalista” para a Republica Centro-Africana?

De certeza que as elites que se escondem por detrás da falsa “acumulação primitiva” – leia-se: esbanjamento do presente e anulação do futuro – já devem ter uma das suas sábias e pragmáticas soluções na manga).

II - Anteriormente com Sarkozy e atualmente com Hollande, a França alterou procedimentos e mecanismos da sua política externa.
Encabeçou as potências ocidentais na agressão á Líbia e impôs a linha mais dura do ocidente em relação á intervenção na Síria.

Transformados em “falcões” os franceses intervieram unilateralmente no Mali e François Hollande foi recebido como herói gaulês em Israel [foto], aplaudido pelos profetas da desgraça que impõem os seus delírios ao povo hebraico.

O mesmo Hollande acabou de enviar tropas para a Republica Centro Africana, para “restaurar a ordem” (será que os lideres gauleses tentam substituir a milenária “Pax Romana” por uma mais atualizada e eficaz “Pax Gauloise”?

Esta é a mesma França que no início do presente século XXI foi ridicularizada pelo Congresso dos USA, devido á sua recusa em seguir a intervenção norte-americana no Iraque e que renunciou publicamente à “Francafrique”, considerando-o um “comportamento inapropriado”.

Então como explicar esta viragem na política externa francesa?

A explicação tem vertentes internas e externas.

Nos factores internos é de salientar um movimento migratório, provocado pela História colonial francesa: o grande número de cidadãos islâmicos, na sua maioria pobres, ou usufruindo de baixos rendimentos, com muitos dos jovens islâmicos franceses – sentindo-se sem perspectivas e sofrendo com um problema de identidade, devido á sua condição proletária - a serem atraídos pela extrema-direita islâmica.

Ainda que esta viragem na politica externa seja sentida em todo a região pan-europeia, ela foi particularmente forte na França, evocando uma reação politica interna, em que deve também ser salientado a xenofobia da extrema-direita francesa (Frente Nacional) e de uma tendência que se faz sentir na esquerda politica e no “centro-esquerda”, como a representada pelo ministro do Interior, Manuel Valls, do Partido Socialista, cuja principal atividade é reprimir a migração ilegal e em particular as comunidades islâmicas.

Esta política, cujo lema é “Responsabilidade de Proteger”, percorre todo o espectro político francês, da direita á esquerda, principalmente nos sectores pantanosos do “centro” (“centro-direita” e “centro-esquerda”).

Uma das suas figuras principais é Bernard Kouchner [foto], fundador dos Médicos sem Fronteiras (MSF), que foi primeiro-ministro de Sarkozy.

Outro dos seus arautos é Bernard-Henri Levy [foto abaixo], que foi conselheiro de Sarkozy, função que continua a exercer para Hollande.

No entanto é nas dinâmicas externas que poderemos encontrar um fator de maior importância, para entender o que se passou com esta viragem, aparente, da política externa francesa.

Desde 1945 que a França luta para manter-se como figura de maior relevo no cenário mundial. Neste esforço a França teve que contornar um obstáculo: USA.

Para Charles de Gaulle a preocupação primordial era a França reassumir o seu papel mundial e reafirmar-se nas arenas internacionais.

De Gaulle tentou de muitas formas, desde a aproximação com a União Soviética, o seu distanciamento em relação á NATO [OTAN], a sua forte relação com Israel (principalmente na guerra da Argélia), num momento em que as relações de forças na ONU impulsionavam uma direção oposta (foi a França que armou Israel, no ataque conjunto franco-britânico-israelita ao Canal do Suez, em 1956).

O vínculo especial com Israel terminou em 1962, depois da independência da Argélia e a França demonstrou-se mais preocupada em renovar as suas relações (e influencia) com as ex-colônias do Norte de África.

Esta política não foi apenas uma política gaullista, tendo sido assimilada por muitos socialistas franceses e por muitos sectores não gaullistas á esquerda e á direita do espectro politico francês.

A Grã-Bretanha e os USA sempre foram (desde a Segunda Guerra Mundial) os dois grandes fantasmas da política externa francesa, dois concorrentes poderosos, que viam na França um parceiro difícil de controlar e excessivamente espicaçado por uma competição desenfreada pelos lugares cimeiros da política internacional.

A crise econômica internacional, que afeta com particular dureza as economias capitalistas do Ocidente levou a uma cartelização dos interesses do capitalismo, provocando uma estratégia imperialista de concertação em torno de interesses geoeconômicos comuns.

Neste novo cartel a França assume o lugar de “falcão”, desempenhando com graciosidade o papel de “polícia mau”, assumindo a “linha dura” no combate ao “inimigo islâmico”.

É assim, que depois de um longo interregno (desde 1962) que Israel volta a ver a França como o seu melhor amigo (ainda que este não seja um amigo tão poderoso como os USA).
       
Existe no entanto um fator que não permite que a França assuma o seu “destino napoleônico” (esse complexo imperial da burguesia francesa desde a sua ascensão a força dominante na sociedade francesa): o caótico cenário geopolítico da atualidade.

Na Ásia Ocidental (Médio-Oriente) existem potências regionais imprevisíveis, que impedem a França de jogar, aqui, um papel primordial. Muito menos a Ásia Oriental (apesar do peso histórico da França por essas zonas) é um cenário favorável para as elites francesas passearem as suas plumas pós-modernistas.

Resta a África, o único continente onde a França pode reassumir um papel central, aparecendo lado a lado (mas um pouco mais á frente) dos USA e da Grã-Bretanha (graças não apenas à cartelização de interesses, como também ao fator migratório, que permite aos franceses terem agentes provocadores mais baratos e conhecedores do terreno).

E a França aproveita a oportunidade oferecida, continuando a cantar os “Enfants de la Patrie”, mesmo que sejam “enfants terribles”, filhos bastardos de uma França madrasta.

III - A região pan-europeia pode ser dividida em dois polos geopolíticos e geoeconômicos concorrentes.


Uma área aparentemente integrada a vários níveis (U.E.) constituída por um núcleo monetário – a Eurolândia – e uma outra adversa ao atual projeto europeu e dominada pela Rússia.

Esta ultima região pan-europeia (e também meta-europeia, uma vez que abrange vastos territórios não só da Eurásia, mas também da Ásia Oriental) com uma forte tradição autocrática é de difícil sedução para os seus vizinhos europeus (principalmente para as classes médias) que anseiam por se integrar na U.E.

Este conflito entre a Rússia e a U.E. passa na atualidade por um período de alta conflitualidade na Ucrânia.

Apesar da proximidade cultural e histórica entre ucranianos e russos (sem esquecer a existência na Ucrânia Ocidental de uma minoria histórica russófoba) a Rússia não apresenta qualquer atrativo para as classes médias ucranianas, que procuram afirmar-se na sociedade ucraniana.

Esta classe média (maioritariamente média-baixa) vê na U.E. a possibilidade de maior enriquecimento, assim como no Ocidente uma panaceia para os seus problemas centrais (como ficou patente na “Revolução Laranja”) e olha para Oriente com algum receio e incerteza.  

Este receio das classes médias ucranianas em relação aos seus vizinhos tem, obviamente, o respaldo dos setores da burguesia ucraniana (as classes médias caracterizam-se por um comportamento acéfalo, que obedece a dois inputs fundamentais: a vontade de enriquecer e o medo de empobrecer) que apenas poderão assumir um papel preponderante e de domínio total se diluírem-se no seio da Europa Ocidental (esta é uma questão histórica para a burguesia ucraniana e que marca fases decisivas na História da país).

Os dois modelos concorrentes de capitalismo na região pan-europeia (um modelo liberal que hesita entre a incerteza da liberalização total e as indecisões neokeynesianas, no lado da U.E. e o modelo russo de desenvolvimento, assente no capitalismo de estado, tendencialmente oligárquico, consequência do socialismo real e do caos reinante durante o período de transição para o capitalismo) confrontam-se na Ucrânia em função destes fatores de dinâmica interna, mas também de importantes fatores de dinâmica externa, de raiz geopolítica e geoeconômica. [foto: Júlia Timochenko, magnata ucraniana com Vladimir Putin, da Rússia]

A Ucrânia é uma fase atual (como o foi a Geórgia num passado recente) da longa batalha travada entre a U.E. e a Rússia.

O Ocidente (NATO e U.E.) tenta evitar a todo o custo a consolidação geopolítica da Federação Russa – e geoeconômica, afirmando o controle da “rota do gás” por parte da Rússia – e a Rússia, que volta em “pleno” (politica e economicamente) ao palco global, tenta reafirmar-se como potência.    
Com a dissolução da URSS em 1991 e posterior separação da Ucrânia, as relações entre os dois países tem-se constituído por acordos mais ou menos instáveis em matéria de gás ou da presença da frota do Mar Negro nos portos da Crimeia.

A atual estratégia ocidental atua sobre o sector energético e abrange uma miríade de formas que vão desde as rotas alternativas aos gasodutos russos até às medidas anti monopólio contra a GAZPROM, tudo montado a partir de Bruxelas.

Estas constantes pressões ocidentais, com repercussões negativas sobre a Ucrânia, levaram a Rússia a aumentar a sua exportação de gás para o Oriente – China, Japão e Coreia.

A Rússia apresenta-se segura dos seus objetivos.

Tem obtido vitórias plausíveis na política externa, com a desmontagem do cartel OTAN / Estados do Golfo, formado para destroçar a Síria e mais recentemente com o acordo estabelecido entre a comunidade internacional e o Irã sobre o programa nuclear iraniano.

Esta atitude de conforto e de confiança por parte dos russos contrasta com a atitude beligerante e arruaceira da U.E.

A Alemanha continua amarrada ao seu papel na Revolução Laranja, apoiando diretamente duas das forças politicas que organizaram os protestos (através da Fundação Konrad Adenauer, da CDU), advertindo o Presidente ucraniano [Victor Yanukovitch - foto acima] contra o uso da violência e qualifica o sistema judicial ucraniano de “justiça seletiva”, ao referir o caso de Júlia Timochenko [ao lado], a magnata pró-Ocidente (uma das figuras de proa da Revolução Laranja, que pouco tempo depois atolou-se em escândalos de corrupção) enquanto Guido Westerwelle o (ainda) ministro das relações exteriores do gabinete germânico passeia-se pelas manifestações de Kiev, por entre as bandeiras do SVOBODA [abaixo], um partido antissemita da extrema-direita ucraniana.

Para além da Alemanha, a Polônia e a Suécia, através dos respectivos ministros das relações exteriores, expressaram o seu apoio aos manifestantes ucranianos pró U.E. e o primeiro-ministro polaco chegou a intervir em comícios e encontros realizados em Kiev.

Estarão os líderes da U.E a entrarem num processo de senilidade acentuada que já os fazem esquecer princípio básicos do direito internacional, como o da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados?

Ou será que foram tomados pelo “amigo alemão” (Alzheimer)?

IV - Mas, sobre os acontecimentos na Ucrânia, existe um aspecto que não é referido em qualquer meio de comunicação social: o estabelecimento da “Profunda e Completa Área de Livre Comércio” (DCFTA- Deep and Complete Free Trade Area).
O que é a DCFTA?

Para respondermos a esta questão, vejamos um pormenor crucial da balança comercial ucraniana (e que permitirá uma melhor compreensão deste mecanismo): a Ucrânia exporta cerca de 15 mil milhões de euros para a U.E. e importa desta, cerca de 24 mil milhões de euros.

Ora, o DCFTA contribuirá para uma maior integração econômica com o mercado interno da U.E. através da adoção de medidas legislativas por parte dos ucranianos.

Isto inclui a eliminação de todos os obstáculos ao comércio, serviços e ao fluxo de investimentos (em particular com os investimentos no setor energético).

Uma vez que a Ucrânia incorporou-se ao Acervo Comunitário Europeu a U.E. concede-lhe acesso a todos os mercados internos europeus.

Por enquanto, como o DCFTA ainda não entrou em vigor, as taxas aduaneiras e outras barreiras alfandegárias ou fiscalmente mais vastas, ainda fazem-se sentir nos custos das operações e transações entre a U.E. e a Ucrânia (mesmo que sejam mais baixas e existam algumas isenções), mas quando o DCFTA estiver em vigor os operadores econômicos pouparão cerca de 750 mil milhões de euros por ano, em taxas, impostos e direitos.

Dadas as disparidades (evidentes nos números acima apontados, da balança comercial ucraniana) – e para dar uma ideia mais vasta do atual panorama o poder econômico da U.E é 40 vezes superior ao da Ucrânia e o quantitativo de investimentos europeus é 11 vezes superior – não é difícil imaginar que percentagem dos 750 milhões de euros em poupanças, gerados pelo DCFTA, pertence à U.E. e qual a que é pertença da Ucrânia e aos quais é necessário adicionar os números da liberalização dos investimentos, uma mais-valia incalculável para os investidores da U.E., se atendermos a que os investimentos da U.E. na Ucrânia, na área de infraestrutura (transporte, energia, meio ambiente e equipamentos sociais) estarão cobertos por financiamentos adicionais destinados a cobrir eventuais necessidades de tesouraria.

O que na verdade está a acontecer com a DCFTA é a completa assimilação jurídica da Ucrânia por parte da U.E. (fornecedora, com 40 vezes mais capacidade de capitalização e 11 vezes mais capacidade de investimento).

O principal propósito das leis e dos regulamentos comunitários da U.E. tem como pano de fundo a eliminação dos mecanismos institucionais que possam proteger os mercados nacionais dos estados membros da U.E., abrindo-os completamente a condições alienígenas para os quais estes mercados não se encontram preparados, ou perante os quais não têm qualquer mecanismo orgânico ou interno de defesa.

Por fim uma outra questão é abordada no DCFTA: a mobilidade.

O máximo de mobilidade (livre-circulação) de mercadorias, serviços, bens e capitais, mas um extraordinário vazio sobre uma mobilidade que é fundamental para um efetivo desenvolvimento e fortalecimento da Ucrânia: a livre-circulação de pessoas, sob a forma de mão-de-obra.

Para a economia ucraniana é importante o fator migratório, no sentido de abarcar mão-de- obra tecnicamente especializada, mas também no sentido de fazer escoar a mão-de-obra excedente para a U.E., ao mesmo tempo que permitiria uma maior abertura do ensino médio e superior através do intercâmbio com instituições da U.E., novas especializações, melhor qualidade de ensino, etc.

Mas a profundidade do DCFTA limita-se à livre circulação de capitais, bens, serviços e mercadorias.

As pessoas (o fator humano) ficam de fora, ou com “livre-circulação” de um sentido apenas.

Claro que falar em questões que deveriam ser abrangidas por estes acordos, como a globalização da Segurança Social, através de mecanismos de capitalização global de fundos internacionais, regionais, ou intercontinentais, está completamente fora de questão.

Livre circulação de Capitais, serviços e mercadorias, sim! Livre circulação de pessoas e políticas sociais (mesmo através da capitalização de fundos), não!

V - Pelo conjunto de fatores (internos e externos) acima descritos seria lógico prever que os protestos na Ucrânia contra a decisão do governo de Victor Yanikóvich de não assinar o Acordo de Associação com a União Europeia (com mais de mil e quinhentas páginas, do qual o DCFTA é um anexo) assumiram formas violentas, em escalada de intensidade.

E isto acontece porque estamos perante uma operação de desestabilização, em que as dinâmicas internas (o descontentamento das classes médias e as aspirações das burguesias – financeira, comercial, industrial e agrária – da Ucrânia) foram doutamente explorados e cruzados com as dinâmicas externas.

O auge da intensidade dos conflitos foi atingido no dia 1 de dezembro, com a ocupação de edifícios públicos por parte dos manifestantes.

No dia anterior a BERKUT – o corpo especial da polícia ucraniana – dispersara violentamente uma manifestação pacífica em Maidan, na Praça da Independência.

Os protestos alargaram-se a grande parte do território, com especial incidência em Kiev e na Ucrânia Ocidental (tradicionalmente um bastião pró-ocidental) mas também em Dnipropetrovsk, na Ucrânia Oriental.

O modelo proposto pelo Acordo de Associação com a U.E. choca com a adesão ao projeto russo da União Euroasiática, que engloba também o Cazaquistão e a Bielo-Rússia.

Este projeto, a longo prazo representa uma saída de estabilidade para a débil economia ucraniana, mas que não é viável para a burguesia ucraniana (que será asfixiada e subordinada ao Estado) e muito menos para as classes médias (que passarão por um breve processo de proletarização, que elas tanto temem).

Para as camadas mais desfavorecidas da população e para os setores administrativos (acadêmicos, elite administrativa, elite tecnocrática) esta representa uma forma de escapar à deterioração das condições de vida e adquirem (principalmente os trabalhadores assalariados da industria e trabalhadores agrícolas) uma posição de maior importância na sociedade ucraniana, sendo algumas das suas reivindicações satisfeitas.

De um modo geral e pesando vantagens e desvantagens, a União Euroasiática representa um reforço da soberania nacional e popular da Ucrânia e uma integração mais efetiva nos mercados globais, pois não se encontrará sujeita aos ditames das obrigações impostas á regionalização europeia, que transformariam a Ucrânia numa economia periférica, produtora de grão e de carvão e fornecedora de mão-de-obra barata.

Por outro lado a União Euroasiática representa também uma forma da Ucrânia rentabilizar a sua dependência em relação ao gás russo (baixando o custo e ampliando os créditos a juro mais baixo, por exemplo, ou assumindo uma parceria para a reexportação – adquirindo vantagens nos mercados europeus - com a GAZPROM).

É bom não esquecer que mais de 60% das exportações ucranianas vão para o mercado russo, pelo que a União Euroasiática representaria um importante polo de desenvolvimento para o setor exportador ucraniano, diminuindo desta forma o peso e o impacto das importações.

As elites ocidentais, pan-europeias, do capitalismo contemporâneo, obrigadas – contra vontade - à cartelização, sofrem de um problema que advém dos tempos recentes das “economias de casino”: viciaram-se no jogo.

E se ao Sul, os jogos africanos são mais rentáveis do que nunca, a Leste iniciaram-se os jogos euroasiáticos…

Vinde, Senhores! A adrenalina de vasto mercado espera-vos… (embora na Eurásia, dos gauleses, nem murmúrios).    

Fontes:
Böröcz, József  - The European Union and Global Social Change: A Critical Geopolitical-Economic Analysis Rutger University Press, New Jersey, 2009
Ferrero, Àngel - Ucrania: la bisagra entre Rusia y la !Unión Europea estalla en protestas http://www.sinpermiso.info
Böröcz, József -  http://www.criticatac.ro/lefteast/ukraine-eu-dependency/
Oakford, Samuel - http://www.ipsnoticias.net/2013/12/onu-al-margen-del-caos-en-republica-centroafricana/
Poch, Rafael - http://blogs.lavanguardia.com/berlin/?p=520
Wallerstein, Immanuel - http://www.jornada.unam.mx/2013/12/08/  
http://www.guinguinbali.com
http://www.rebelion.org

Fonte do artigo:
http://paginaglobal.blogspot.pt/2013/12/duas-aventuras-pan-europeias-asterix-em.html

Leia também:
- Líderes europeus rejeitam apoio a missões militares francesas na África - Correio do Brasil

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Mali: rejeitemos esse desafio à civilização


Bandeira francesa junto a soldados do Exército do Mali. Foto: AFP

Por Antonio Negri*

A intervenção francesa no Mali reflete uma crise política que tende a generalizar-se na África saariana e subsaariana depois da “Primavera Árabe” do Magreb. “Manifesta-se o lado perigoso da Primavera Árabe”, escreve em manchete o New York Times, e acrescenta: “tinha razão o coronel Kadafi, quando previa que, se ele caísse, o pessoal de Bin Laden chegaria por terra e mar para ocupar as margens do Mediterrâneo”.

Mas, é isso que, realmente, impulsiona à rebelião os novos guerrilheiros nos desertos do Norte da África, ou são impulsionados por miséria cada vez mais feroz e pela lógica sempre destrutiva dos governos da ex-Françáfrica? As zonas rurais dos países do Sahel permaneceram, apesar delas mesmas, nos últimos anos, em situação de miséria profunda, que alimenta o êxodo da população e a desestabilização das grandes cidades. Frente a isso, as estatísticas macroeconômicas mostram a existência de um “falso” desenvolvimento vinculado à atual corrida pela extração de minérios em direção àqueles territórios ricos desses recursos: o Mali, por exemplo, é o terceiro produtor mundial de ouro, rico em urânio, e prevê-se que seja também muito rico em hidrocarbonetos.

O jihadismo entra nesses territórios não pelo fanatismo de alguns e não os submete a partir da ‘barbárie terrorista’ (como dizem à opinião pública ocidental), mas, sim, porque nesses países as instituições continuam a dissolver-se, dada a fragilidade econômica e civil. Por isso, o êxito dos “invasores” que não são invasores está praticamente garantido.

O Mali é só mais um país do Sahel – os demais também estão em situação crítica semelhante. A dúvida sobre o aprofundamento da crise em cada um deles depende só de alguns fatores casuais que ainda contêm o desabamento recém iniciado do “dominó”. No Mali, que em certo momento foi “vitrine da democracia”, o governo estava em crise há bastante tempo, asfixiado pela corrupção, por repetidos golpes de Estado e pela rebelião popular dos tuaregues no norte. Os tuaregues querem a independência do Azawad (vasta região desértica do norte do Mali). Essa revolta encontrou ocasião de triunfar porque, com a queda do governo do coronel Kadafi, muitos tuaregues voltaram ao seu país natal com armas (em grande e sofisticada quantidade) e equipamentos (logísticas regionais e alianças com parte do exército maliense). Deve-se ter em mente que a intervenção francesa (e da OTAN) na Líbia produziu naquele país a implosão de mil facções locais, ideológicas, étnicas, as quais, depois de Kadafi, ficaram sem qualquer autoridade capaz de ostentar força legítima.

A rebelião tuaregue armada encontrou, além disso, apoio forte e provavelmente decisivo em grupos salafistas e jihadistas que já em 2002, ao terminar a guerra civil argelina, haviam instalado os fundamentos da al-Qaeda no Magreb. Há cerca de dez anos, esses grupos vinham construindo (aproveitando a “indústria dos sequestros” e o apoio aos “traficantes’ ilegais que operam nesse amplo território) bases e redes de apoio à guerrilha. O perigo era evidente. Há três, quatro anos, está em andamento uma cooperação bilateral França-EUA para combater o que alguns chamam de “eixo Kandahar-Dakar”. Recentemente, o New York Times revelou que o Departamento de Estado investira cerca de 500 milhões de dólares nessa região, nessa estratégia de antiterrorismo. Já no início de 2012, o comando norte-americano na África, AFRICOM, deu-se conta de que boa parte das tropas malienses adestradas pelos norte-americanos haviam-se unido à revolução no norte do país.

Agora, vimos a intervenção francesa, em resposta a pedido urgente do governo de Bamako (ou do que resta dele) formalmente apoiado por extensa coalizão de países africanos e governos europeus. Mas a guerra francesa já parece estender-se como mancha de azeite para grande número de países vizinhos. O que se viu acontecer na Argélia na última semana, quando a gentil intervenção daquele governo e de seu exército já produziu centenas de assassinatos, é só o começo desse amargo desenvolvimento.

Por enquanto, consolam-se a imprensa e a opinião pública francesa com a crença de que não se trataria de guerra de usura (como a guerra no Iraque ou no Afeganistão) cujos protagonistas movem-se “entre as populações”; tratar-se-ia de guerra clássica no puro deserto, guerra de posições e de movimentos. As coisas não demorarão a mudar muito. Talvez os franceses, com as tropas de outros países africanos (que permanecerão sob comando dos franceses, enquanto os EUA continuarem reticentes e resistirem a envolver-se na mudança) consigam a vitória em campo. Mas em seguida... como governar no deserto, em situação de paz que não é paz, numa “guerra nômade” que começa, em quadro de histeria frente a eventuais ataques terroristas na França continental e, sobretudo, em face da memória da vergonha colonial e do despotismo pós-colonial mantido pela potência francesa? Mas, sobretudo, como considerar, na situação atual e em situação de pós-guerra – aspectos que nos permitimos chamar “aspectos bons” da Primavera Árabe, ou, melhor dizendo, daquela “Primavera Africana” que parecia estar começando a apontar também no Sahel?

É inútil – e vale a pena repetir – culpar o extremismo de um islamismo salafista radical, quando se está sufocando a única alternativa verdadeira que realmente teria chances de concretizar-se: o amadurecimento – já iniciado nesses territórios – de elites jovens, democráticas, anticapitalistas. É necessário atacar as causas socioeconômicas dessa crise.

Se se ouvem os especialistas, dizem que, para desenvolver um programa de reconstrução e de desenvolvimento, seria necessário intervir nesses territórios nos setores agrícolas, de reflorestamento, de criação de animais, na melhoria de estradas e do transporte, no acesso à água, na promoção da energia solar e eólica, etc. E logo reiniciar os programas de produção de algodão e de cereais nessas regiões... Em resumo: tudo. Por fim e especialmente, “as populações devem beneficiar-se da renda da mineração; do ouro, para começar, primeiro produto de exportação”.

Não é solução, de fato, cômica? E na risada não aparece, evidente, o cinismo, no mínimo hipócrita, que há em tanto insistir na mesma execrável sede de dinheiro que arrasta esses governos liberais a combater terroristas pelas impiedosas terras desérticas do Sahara e do Sahel como se fossem trunfos a distribuir entre os inimigos (porque é muito difícil identificar quem é terrorista e quem é camponês pobre ou proletário metropolitano agora sublevados). Ainda mais: não lhes parecem lágrimas de crocodilo – e na Itália todos as confundem – as lágrimas que nossos democratas tanto choram?

Pesado fardo de nossa civilização, que nos obriga a intervir! Sagrada obrigação da soberania, dessa vez exercida em nome da Europa! Atenção! Até os EUA já pararam de repetir essas estupidezes, depois das terríveis derrotas no Oriente Médio! Reconheçamos, isso sim, que só modificando radicalmente nossa consciência política, só rompendo radicalmente com formas de governos harmônicas e funcionais em relação ao capital, poderemos voltar a nos orientar corretamente.

No marco da globalização, não se pode raciocinar como raciocinam os Parlamentos nos países da Europa e o Parlamento Europeu, com homens e “mídia ou imprensa-empresa” votando a favor da intervenção francesa (e foi particularmente odiosa, em Estrasburgo, a atitude belicosa dos Verdes europeus).

Gilles Kepel – talvez o maior especialista em temas árabes conhecido no Ocidente – destaca que “o que está em jogo no Mali é um desafio à civilização na época da globalização. O Sahel é, ao mesmo tempo, vítima por excelência e lugar da incandescência”.

Acrescentamos: a resistência e a guerrilha anti-imperialista naquele desesperado local despossuído e devastado são luta anticapitalista. Não gostaremos de ter de reconhecer que os islâmicos têm razão.

*sociólogo e ativista político italiano, é autor, com Michael Hardt, de Império (Record, 2001). Tradução: Vila Vudu.

Leia ainda:
- Não à intervenção colonial no Mali
- Journal du Mali: O Mali, a França e os extremistas

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Journal du Mali: O Mali, a França e os extremistas


Por Tariq Ramadan*
O mundo observa, e a classe política francesa parece unanimemente de acordo quanto ao início de uma intervenção militar ao norte do Mali contra os “islamistas”, “jihadistas”, “extremistas”. Nada a criticar por o governo ter-se engajado sozinho, mas a decisão de iniciar ação militar foi considerada “justa”. O presidente francês, François Hollande (acima), que parecia perdido no coração de governo confuso e desorientado, aplica belo polimento ao brasão e reconstrói para si a imagem de homem de Estado, de chefe de guerra, que quer “destruir o inimigo”, “impedi-lo de avançar”. E assim a França vê luzir no norte do Mali, afinal, a imagem de um presidente firme, forte, determinado, instalado em Paris.

É preciso começar pelo começo e assumir posição clara. A ideologia e as práticas das redes, grupos e grupúsculos de salafistas jihadistas e extremistas devem ser condenadas com absoluta firmeza. O modo como compreendem o Islã, o modo odioso como instrumentalizam a religião é abominável, os castigos físicos e corporais são absolutamente inaceitáveis.

Mais uma vez, a consciência muçulmana contemporânea internacional deve manifestar-se alto e forte para dizer e repetir que aquela compreensão e aquela aplicação do Islã são traição, são horrendas, são vergonhosas. Os primeiros a oporem-se àquilo têm de ser os muçulmanos, pessoalmente, e as sociedades majoritariamente muçulmanas. Politicamente, intelectualmente e com toda a força da consciência e do coração, sem restrições, sem concessões.

A essa firme posição de princípio, é preciso acrescentar a análise geoestratégica, e não confundir a clara posição moral, de um lado; com uma posição política ingênua, binária, simplista. Ser contra os extremistas jihadistas não implica, não, de modo algum, aceitar sem protesto a política francesa naquela região.

A expressão “estão conosco ou estão contra nós” de George W. Bush é falsa nos fundamentos e perigosa tanto na substância como nas consequências. Por trás do engajamento “nobre” da França ao lado dos povos africanos ameaçados, há algumas questões que têm de ser expostas e explicadas com clareza.

O ocidente em geral e a França em particular esqueceram aqueles povos durante décadas, sob ditaduras na Tunísia, no Egito e na Líbia, antes de porem-se a entoar loas a “revoluções”, à “primavera árabe” e à liberdade. Na Líbia, a intervenção humanitária encobriu aspectos sombrios, odores de interesses petroleiros e econômicos mal dissimulados, quando não declarados.

Poucos meses adiante, a França intervém no Norte do Mali para o bem do povo, com a única intenção declarada de proteger aquele país “amigo” do perigo dos extremistas aliados a rebeldes tuaregues. É o que dizem. Em todas as exposições políticas e midiáticas dos fatos, faltam dados econômicos e geoestratégicos – o que é grave. Nada se diz da história longa, nem da história recente, das alianças da França com vários e sucessivos governos do Mali. Tudo se passa como se a França não fizesse outra coisa além de exprimir solidariedades políticas gratuitas aos povos, generosamente, sem outra intenção ou projeto.

De fato, nos bastidores dos recentes tumultos políticos jamais deixou de haver o dedo da França, que interveio, que pressionou, que descartou os atores malineses que a perturbavam (fossem políticos ou militares), que fez alianças úteis, que participou de reuniões do governo e também de reuniões em territórios tribais, em espaços civis e militares. Amadou Toumani Touré, derrubado por um golpe de Estado dia 22/3/2012, foi enormemente fragilizado e acabou isolado após a queda do coronel Kadafi.

Parece ter pago o preço político que lhe foi imposto por suas políticas favoráveis ao Norte e por suas ideias sobre a atribuição de futuros mercados de exploração do petróleo. Os laços (várias vezes difíceis) entre a França e a organização separatista “Movimento Nacional para a Libertação do Azawad” (MNLA) não são segredo; aqueles laços levaram a que se instalasse uma fratura entre o sul e o norte do Mali, bem útil para os que se programavam para explorar riquezas minerais muito promissoras. A presença da Al-Qaeda no Magreb Islâmico e a aliança que fez com as tribos tuaregues no Norte são já há três anos, e ainda mais agora, como se vê, fatores que explicam também, mas nada explicam sozinhos, a presença militar francesa na região – a qual foi afinal oficializada depois de declarada “a guerra”, há poucos dias.

O governo francês e os executivos da transnacionais de petróleo e gás sempre minimizaram o mais possível as descobertas de recursos minerais na região do Sahel entre a Mauritânia, o Mali, o Niger e a Argélia. Em certo momento, falou-se de um “milagre malinês”. Mas fato é que os dados são bem mais conhecidos e comprovados do que fazem crer as “declarações”.

Jean François Arrighi de Casanova, diretor da Total francesa para o norte da África, não hesitou em falar de “um novo Eldorado”, ante a descoberta de gigantescas jazidas de petróleo e gás. Há naquela área nada menos que cinco bacias muito promissoras. A bacia de Touadenni, na fronteira com a Mauritânia, já revelou a importância de seus recursos. A essa se acrescentam as bacias de Tamesna e de Lullemeden (na fronteira com o Niger), a bacia de Nara (perto de Mopti) e a bacia de Gao.

A Autoridade para Pesquisa de Petróleo [orig. Autorité pour la Recherche Pétrolière (AUREP)] confirma o potencial do subsolo do norte do Mali (essencialmente, são reservas de gás e petróleo). O Mali, a Mauritânia, a Argélia e o Niger são os primeiros afetados e – com a queda do coronel Kadafi – as perspectivas de exploração abriram-se para empresas francesas (à frente delas, a Total), italianas (ENI) e argelinas (Sipex, filial de Sonatrach) que já investiram mais de 100 milhões de dólares (segundo estimativas) em estudos e sondagens, apesar das dificuldades devidas à aridez da região e à segurança precária.

O amigo povo malinês vale bem que a França o defenda, seu sangue, sua liberdade e sua dignidade, sobretudo se se sabe que, acessoriamente, o trabalho implicará farta sobremesa em gás e petróleo. Os recursos minerais do norte do Mali não são fantasia, nem são miragem. Miragem é, isso sim, a descolonização.

Ninguém pode negar a existência de grupos extremistas violentos e radicalizados que constroem e disseminam compreensão pervertida e inaceitável do Islã. É verdade e já o dissemos: é necessário condená-los. É preciso ver e mostrar que esses grupos adotam estratégias políticas contraditórias, além da muito suspeita tendência a aparecerem e se instalarem exatamente onde haja recursos minerais em disputa. Lá estavam, no Afeganistão (numa área imensamente rica de petróleo, gás, ouro, lítio...) e agora, outra vez... Não se entende por que os “loucos” extremistas aparecem agora instalados no Sahel malinês, para ali aplicar sua “xaria” desumana e tão pouco islâmica. No Sahel desértico!

É preciso dizer e repetir, para que não reste qualquer dúvida. Não se contesta que esses grupúsculos de islamistas existam. Mas é preciso explicar inúmeros detalhes de como seus grupos podem ter sido infiltrados (os serviços de informação USAmericanos, e também os europeus, já admitiram o uso de táticas de infiltração e de agentes provocadores ou instigadores). Os pontos onde os grupos islamistas instalaram-se e seus métodos de operação podem bem ter sido orientados, induzidos. Já se viu acontecer durante o governo de George W.Bush, vê-se agora outra vez no Mali, o quanto “terroristas” podem ser úteis.

Um chefe malinês falou de seus problemas, em nossa mais recente visita à região: “Temos ordem de exterminá-los, de destruí-los, mesmo que estejam desarmados. Não fazer prisioneiros! Fazemos de tudo para enlouquecê-los e empurrá-los para o radicalismo”. Espantosa estratégia de guerra!

O jornal Le Canard Enchaîné noticia que o aliado francês, o Qatar, teria assinado um acordo com a empresa Total – para as explorações no Sahel – e, paradoxalmente, daria também apoio logístico e financeiro a grupos radicais, como os “insurgentes do MNLA (independentistas e laicos) e os movimentos Ansar Dine, AQIM e MUJAO”. Caso tudo isso seja comprovado... haveria aí alguma contradição descabida? Ou seria modo de estimular a ação dos pirômanos extremistas, até o ponto em que se torne necessário, urgente, inadiável chamar os bombeiros (franceses)?

Uma divisão de funções, tão eficaz quanto cínica.

O mundo observa, e a recente captura de reféns na Argélia mobilizará ainda mais fortemente sentimentos nacionais em apoio à operação militar. Reféns americanos, ingleses, noruegueses, etc. e tudo em solo da Argélia: o contexto extravasa da França. O povo do Mali rejubila-se, na maioria, muitos não são ingênuos: a França amiga é mais amiga sempre de seus interesses; e o seu modo de intervir seletivamente (na Líbia ou no Mali, mas não na Síria ou na Palestina) nada tem de novidade. A política enviesada da “France-Afrique” acabou, nos dizem, e as colonizações políticas e/ou econômicas já são cinza; raiou a liberdade; “soou a hora da dignidade das nações e da democracia”! É indispensável, pois, aderir beatamente a essa hipocrisia generalizada.

É preciso denunciar os extremismos, condenar ações extremistas e a instrumentalização da religião e das culturas, mas chega afinal o dia quando se tem também de olhar cara a cara as responsabilidades. Olhar cara a cara a responsabilidade dos Estados africanos e árabes que esquecem os princípios elementares da autonomia e da responsabilidade política (além do respeito e da dignidade de seus povos). Olhar cara a cara as elites africanas e árabes, e nós todos, que somos tão altamente incapazes de propor uma visão clara da independência política, econômica e cultural. Olhar cara a cara os povos que se deixam arrastar por emoções populares e miragens de “potências amigas”. Olhar cara a cara nós mesmos, todos, políticos, intelectuais e cidadãos preocupados com manter a dignidade e a justiça nos países do Sul. É preciso olhar firmemente o espelho da nossa responsabilidade decisiva quanto ao que se passa sob nossos olhos.

A “destruição” dos extremistas jihadistas do norte do Mali não é nem promessa, nem garantia de liberdade para o povo do Mali; é, isso sim, no longo prazo, uma forma, sofisticada, de nova alienação. Contudo, nunca como hoje as forças de resistência dos países do “Sul Global” (com os movimentos políticos e engajados do norte), nunca como hoje, dizíamos, essas forças encontraram melhor oportunidade para abrir novos horizontes e abrir novas trilhas da direção da própria liberdade.

Nada se vê hoje além dessa euforia, a celebração, ou então o silêncio, a ação libertadora da França e da “comunidade internacional” que unanimemente apoia a França. Como se o Oriente Médio e a África tivessem aceito ser submissos ante os últimos cartuchos lançados por esse ocidente que agoniza, ferido por suas dívidas, suas dúvidas e as crises econômicas, políticas e identitárias que o atravessam.

O melhor serviço que a África pode prestar a ela mesma, e ao ocidente, é não curvar-se à nostalgia e aos delírios de poder do ocidente, mas resistir-lhes com dignidade, com coerência, em nome dos valores que o próprio ocidente e a própria França defendem quase tanto quanto traem, diariamente, sob o peso de suas políticas de mentira e hipocrisia, na América Latina, na África, como na Ásia.

O norte do Mali é revelador. Ali se vê em ação o que mais medo nos deve causar: um povo que canta sua liberdade política à qual aparece associado um novo desenvolvimento econômico. E há políticos ou intelectuais africanos ou árabes que aplaudem o que veem (conscientes ou inconscientes, ingênuos, arrivistas ou interesseiros).

A hipocrisia e a covardia dos interesseiros espelha a hipocrisia e a manipulação das “grandes potências”.
*via 'redecastorphoto', com tradução do coletivo Vila Vudu

Leia também:
Não à intervenção colonial no Mali

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Não à intervenção colonial no Mali


A França abusa do imperialismo mais desenfreado. Após realizar com os britânicos o massacre 'terceirizado' - e regado a bombas de urânio empobrecido - à Líbia de Kadafi em 2011, agora volta sua artilharia contra o Mali. Está prestes a fazer o mesmo com a Argélia. Para proteger interesses de seu país no noroeste africano, sobretudo ativos ambientais e commodities explorados por multinacionais francesas nas ex-colônias, o presidente François Hollande não poupa esforços e tem com isso garantido alta aprovação de seu eleitorado, o mesmo que meses após levá-lo ao Palácio do Eliseu (maio de 2012) demonstrava crescente insatisfação com o governo. Para atacar e invadir o Mali, Hollande tem contado com a preciosa ajuda da Itália do eterno 'premiê interino' Mario Monti.

O secretário de Relações Internacionais do Partido dos Comunistas Italianos (PdCI), Fausto Sorini, distribuiu nota repudiando a intervenção colonial francesa no Mali e o envolvimento da Itália nessa ação de guerra.


Via Rede Democrática*

"Somos totalmente contrários à intervenção militar francesa no Mali e à decisão do governo italiano de dar apoio “logístico” às operações bélicas e ao envio de militares ao terreno. 

A decisão assumida pelo presidente “socialista” Hollande (que tinha avalizado a decisão de Sarkozy de fazer a guera contra a Líbia) se alinha com as tradições de intervencionismo neoimperialista das classes dominantes francesas e desmente uma vocação progressista que de maneira muito apressada e incauta foi-lhe atribuída por amplos setores da esquerda italiana e europeia.

Associamo-nos à crítica clara feita ao presidente Hollande pelos comunistas franceses e pela Frente de Esquerda. A intervenção militar francesa não corresponde de nenhum modo à orientação do Conselho de Segurança da ONU e se destina a estender, e não resolver, as agudas contradições e a conflitualidade política de que a região é um ponto culminante (como se vê pelos enfrentamentos militares que também estão ligados à captura de centenas de reféns e ao massacre que se seguiu: o episódio que já envolveu a Argélia, agora com o risco de estender-se a outros países circunvizinhos, como o Niger).

O Mali é objeto de uma guerra civil onde, ao Norte do país, atuam componentes islâmcos radicais, que são uma consequência da desestabilização regional provocada pela guera contra a Líbia de Kadaff, e que foram alimentados pelo recente golpe no Mali que dividiu o país e radicalizou as facções em luta.

Nesta situação, a ONU autorizou uma intervenção pacificadora de capacetes azuis compostos exclusivamente de contingentes interafricanos; ao contrário, a intervenção unilateral francesa – que já recebeu o apoio da OTAN – se insere arbitrariamente em tal contexto com finalidades meramente neocoloniais, a retomada do controle da região e das riquezas (ouro, pedras preciosas, petróleo, urânio) de que o Mali é ditado.

O ex-presidente francês gaulista Valéry Giscard d'Estaing, em uma entrevista concedida em 13 de janeiro ao Le Monde, denuncia os riscos da intervenção e afirma que quer “pôr-se em guarda contra uma evolução da ação francesa no Mali, que seria de tipo neocolonialista”. Também os principais jornais argelinos acusam Hollande de reacender antigas veleidades coloniais da França.

A decisão do governo italiano de dar apoio político e militar “logístico” à intervenção francesa – governo demissionário que deveria estar encarregado apenas da administração! - viola o artigo 11º da Constituição, que repudia a guerra como instrumento de solução das controvérsias internacionais. É grave que não só o Pólo da Liberdade [direita] e o polo centrista, mas também a direção do Partido Democrático [centro-esquerda] – consultados por Monti [primeiro-ministro demissionário] – tenha avalizado a escolha do governo, enquanto não se vê até agora nenhuma dissociação clara em relação a Grillo [ministro das relações Exteriores].

Um motivo a mais para convencer a opinião pública que se inspira nos valores da paz da nossa Constituição de quanto é importante dar força política – e uma consistente presença no Parlamento – às forças comunistas, de esquerda e democráticas que hoje se agrupam na chapa de Ingroia. Esta lista eleitoral deverá, a partir deste acontecimento, dar impulso a uma consolidação política e programática à própria orientação contrária à guerra e por uma política externa de paz na Itália, no espírito e na lera da nossa Constituição."
*traduzido do italiano pela redação do Vermelho

Relacionadas:
-Conselho Mundial da Paz: Repúdio à intervenção militar francesa no Mali
-Argélia: Paris diz que sequestro em campo de gás foi 'ato de guerra'
-Operação francesa no Mali marca virada na presidência de Hollande

quinta-feira, 31 de maio de 2012

A urgência da união sul-americana

19/05/2012 - Mauro Santayana (*)
extraído do site Carta Maior

A América do Sul terá que unir-se com urgência, para que não se torne território aberto à disputa feroz pelos seus recursos naturais, no futuro que se apressa a chegar. Ao lado da África, a América Latina sempre foi vista como um território de todos, menos de seus próprios habitantes.
(Mauro Santayana)

Não há mais espaço para a dúvida: a América do Sul terá que unir-se com urgência, para que não se torne território aberto à disputa feroz pelos seus recursos naturais, no futuro que se apressa a chegar. Ao lado da África, a América Latina sempre foi vista como um território de todos, menos de seus próprios habitantes. Em nome da Fé e da Civilização, espanhóis e portugueses, holandeses e franceses, aqui chegaram para ocupar e dominar as civilizações existentes, como as andinas.

Nesse aspecto, o Brasil é uma exceção importante: os indígenas brasileiros ainda se encontravam no neolítico, ao contrário dos habitantes da cordilheira, senhores de uma cultura respeitável. Isso parece pouco, mas não é. Dos europeus que tentaram a conquista, os ibéricos tiveram mais êxito, não só na América do Sul, mas também em grande parte da América do Norte, até a chegada em massa dos seus rivais britânicos. O que nos interessa, no entanto, é esse continente em suas razões geográficas, políticas, econômicas e culturais. E não “subcontinente”, como muitos insistem em nos considerar.

Geograficamente, nós constituímos uma realidade própria. Ainda que o istmo do Canadá una o Hemisfério Ocidental, e que grande parte da América do Sul política se encontre ao norte do Equador, e nela considerável parcela do Brasil, da Colômbia à Terra do Fogo somos uma realidade geográfica e histórica bem identificada. Sempre foi do interesse dos colonizadores que vivêssemos, brasileiros e hispano-americanos, bem separados uns dos outros.

Mesmo durante os 60 anos em que as coroas de Portugal e da Espanha estiveram unidas, a administração colonial se manteve separada e os contatos se limitavam às autoridades. Nossos povos não se conheciam, a não ser nos raros pontos fronteiriços.

Ao desdenhar os nossos povos, o arrogante Kissinger disse que nada de importante ocorreu no Hemisfério Sul. Ele, em sua visão preconceituosa e imperialista, se esqueceu de que a descoberta e conquista da América foram o fato mais importante de toda a História do Ocidente.

Essa importância começa com a viagem de Colombo, em 1492, mais arriscada do que a ida do homem à Lua. Os astronautas que desceram no satélite da Terra foram precedidos de sondas e exaustivos cálculos matemáticos; da metalurgia de novas ligas metálicas para as aeronaves, de todos os cuidados. Os navegantes do fim do século XV só contavam com sua coragem a fim de vencer o Mar Oceano em frágeis caravelas.

Devemos a Napoleão o surgimento da América do Sul como realidade política. Antes dele e da invasão da Península Ibérica por suas tropas, a América do Sul era assunto britânico, por intermédio de Lisboa e de Madri. A vitória de Waterloo confirmou a presença britânica no continente até a Primeira Guerra Mundial.

Éramos, segundo Hegel, em seu Curso de Filosofia da História, entre 1818 e 1822, uma região em constantes rebeliões chefiadas por caudilhos militares, enquanto a América do Norte, sob a razão protestante, anunciava uma nova civilização. Mas insinuava certo otimismo:

“A América é, portanto, a terra do porvir, onde, nos tempos futuros se manifestará, talvez, no antagonismo da América do Norte com a América do Sul, o ponto de gravidade da História Universal. É uma terra de sonho para todos aqueles que se encontram cansados do bric-à-brac da Velha Europa. Napoleão teria dito: Esta velha Europa me entedia.” 

E continua: “A América deve se separar do solo sobre o qual se passou, até agora, a história universal”.

Estamos no momento exato de separar-nos da velha Europa, coisa que os Estados Unidos só serão capazes de fazer quando os hispano-americanos se tornarem a etnia predominante naquele país.

A hora é, portanto, da América do Sul. E o primeiro movimento necessário nessa direção é o fortalecimento do Mercosul.

Roberto Requião
Essa constatação foi a tônica do primeiro encontro sobre “Crise, Estado e Desenvolvimento: Desafios e Perspectivas para a América do Sul”, promovido pela Representação Brasileira no Parlasul, por iniciativa do Senador Roberto Requião, sexta-feira passada [18/05/12], no Senado, de que participaram o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Alto Representante Brasileiro no Mercosul, o Professor Carlos Lessa e este colunista. Temos que nos apressar, e negociar com o espírito de solidariedade efetiva, a quebra de barreiras internas no continente, base necessária aos acordos políticos.

Samuel Pinheiro Guimarães
 Nesse sentido, é interessante a proposta ousada da Argentina, de estabelecimento de uma tarifa comum, de 35% por cento, para a entrada de produtos estrangeiros no Mercosul, e abolição total das tarifas no espaço do acordo aduaneiro.

A História mostra – e o exemplo mais importante é o da Alemanha – que a união política necessita de uma união aduaneira prévia. Ainda em 1834, a Prússia iniciou esse processo de união aduaneira (Zollverein) com os numerosos estados alemães, o que possibilitou a união política quase 50 anos depois.

Carlos Lessa
Mas uma união aduaneira exige mais do que interesses econômicos, para se tornar uma união política. Exige certa identidade étnica, espírito de solidariedade e semelhante visão do mundo, o que ocorria na Alemanha, antes e depois de Bismarck, e que não existe na Europa de hoje. Temos, na América do Sul, não obstante a identidade cultural própria de nossos povos, certa identidade étnica, história mais ou menos comum de países que foram colônias, continuidade geográfica e espírito de solidariedade.
Mauro Santayana

Pressionados pela crise que provocaram, os governantes dos países nórdicos sentem-se tentados a nova aventura de conquista, econômica, política e, se for preciso, militar, da América do Sul. Pelo que fizeram e estão fazendo nos países produtores de petróleo, podemos prever o que se encontram dispostos a fazer em busca das matérias primas e dos nossos territórios que cobiçam. Para que não sejamos dominados neste século, como advertia Perón em 1945, temos que nos unir, logo, sem tergiversações menores, e respeitando-nos como povos rigorosamente iguais.

O problema, mais do que ideológico, é geopolítico. É o do nosso espaço, que eles consideram vital para eles. Nosso dever, na História, é o de resistir e construir nova forma de convívio, criador e solidário, no espaço que ocupamos há meio milênio.

(*) Colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.