Por Zilda Ferreira*
Imagine no país mais rico em água do planeta, em cima do rio e em baixo das Cataratas do Iguaçu, você só poder beber água mineralizada da Coca-Cola a R$ 3,50, contra-indicada às pessoas que têm problemas de saúde. Não é lógico. É um desrespeito à Resolução da ONU 64/292, que estabelece como Direito Humano Água e Saneamento. Essa resolução foi aprovada em julho de 2010, a partir de moção da delegação boliviana
Enquanto caminhava, na trilha de quase um quilômetro que contorna as Cataratas, observava água fresca minando das pedras, mas com um aviso: era imprópria ao consumo. A sede aumentava. Antes de chegar à Foz do Iguaçu, uma colega sugeriu que solicitasse à assessoria do Parque Nacional do Iguaçu uma visita. Argumentei que estava voltando à terra natal, pois nasci próximo dessa região, em Santo Inácio, e não pretendia ter nenhum compromisso, era apenas uma turista.
O meu orgulho de ser paranaense e minha esperança de que meu estado ainda preservava alguns de seus tesouros, como as Cataratas, morriam um pouco. Entregaram tudo. O esplendor do lugar era um sonho, mas em seguida vinha o pesadelo, nada daquela beleza era mais nossa. O Parque Nacional do Iguaçu atualmente é administrado por cinco concessionárias, sendo a principal Cataratas S/A. E a Coca-Cola reina em Foz do Iguaçu. Não encontrei água, nem no hotel, a não ser da Coca-Cola.
Á noite fui convidada para ir a Puerto Iguazú, Argentina, na Tríplice Fronteira. Passamos no "Ice Bar", onde pude beber uma água mineral de verdade, mas a 15 pesos uma garrafinha, mais caro do que uma grande compota de belos pêssegos amarelos e do que meio quilo de excelentes azeitonas, na feirinha da fronteira. Me lembrei do livro de cabeceira 'O Ouro Azul - Como as grandes corporações estão se apoderando da água doce do planeta', de Maude Barlow e Tony Clarke. Jantei e não conseguia mais ser apenas turista.
No dia seguinte parti para Toledo, onde ia encontrar Moema Viezzer, autora de 'Se Me Deixam Falar - Domitila', sobre a ativista boliviana Domitila Chungara. Moema me havia convidado para o 'Tinkuniche' (em guarani, Nosso Encontro), que seria uma conversa sobre os problemas indígenas da região da Tríplice Fronteira. Moema e o marido, o historiador e antropólogo Marcelo Grondin, foram me buscar no hotel para que eu conhecesse a cidade. Estava impressionada com a limpeza e a riqueza do lugar - Toledo é uma cidade próspera, centro universitário e cultural do oeste do Paraná. Passamos por um belo lago e continuamos a circular, quando de repente veio um cheiro insuportável. Depois de explicar o porquê desse odor, o senhor Grondin informou que já havia enviado várias reclamações às autoridades do município. Ele sugeriu que eu reclamasse também, pois encontraria várias autoridades no 'tinkuyninche'.
Estávamos todos reunidos, aguardando a chegados das lideranças indígenas na Secretaria de Cultura, quando me apresentaram o irmão do prefeito e alguns vereadores. Aproveitei para perguntar o porquê do odor insuportável no final da tarde do dia anterior. Assessores tentaram me explicar que estavam tomando providências, mas lembrando que em Toledo fica a sede de produção e o laboratório da Sadia. E que na região há mais cabeças de suínos do que gente. Um vereador do PV argumentou que providências para sanar o problema já foram tomadas e que uma empresa francesa foi contratada para tratamento dos resíduos. Repliquei – excelente marketing ambiental.
A reunião com os índios começara. Havia lideranças principalmente das fronteiras, onde os problemas parecem mais graves, porque a maioria dos índios não tem documentos e por isso não podem provar a nacionalidade. Os índios voltaram a lembrar que 33 aldeias foram para debaixo d'água em Itaipu e que do lado paraguaio a situação é mais grave. Além dos índios brasileiros e paraguaios havia também representantes do Equador e mapuches do Chile.
Mas o que emocionou no encontro foi o depoimento de Marcelo Grondin, um verdadeiro intelectual orgânico. Grondin amou tanto os índios bolivianos que abriu mão da nacionalidade canadense para ter a boliviana. Além disso, criou o Método Quechua, língua dos Incas e o Método Aymara, língua da etnia de Evo Morales. Depois, foi perseguido pelo governo Hugo Banzer, que lhe tirou a nacionalidade, foi exilado no México e voltou ao Canadá como imigrante para reaver sua nacionalidade. Quando acabou a ditadura Banzer, voltou a ser boliviano. Grondin é um estudioso da história do líder Tupaj Katari, da revolução indígena boliviana de 1779/1781. Para Marcelo Grondin a maior conquista do Continente ainda é tomada do poder pelos povos originários bolivianos, por via democrática: a eleição do presidente Evo Morales, em 2005.
Desinformação e desrespeito ao direito à água
Viajar pelo país e constatar o império da Coca-Cola de norte a sul é desolador. Até mesmo a Fundação Amazonas Sustentável, criada pelo governo amazonense em 2007 e responsável por implantar a tal Bolsa Floresta - para serviços ambientais -, tem como um dos presidentes de seu Conselho um executivo da multinacional. Além da Coca-Cola, as concessionárias estrangeiras de água reinam por todo o Brasil, sem o menor respeito à Resolução 64/292. Não por acaso as nações hegemônicas odeiam o presidente Morales. Além de ter proposto a resolução, a Bolívia expulsou a Coca-Cola e as concessionárias de água.
A relatora especial da ONU para o Direito Humano à Água e Saneamento, Catarina Albuquerque, enviou uma carta aos países participantes da Rio+20, em junho de 2012, pedindo a garantia do Direito Humano à Água no documento final da Conferência. Porém, essa garantia não consta em nenhum documento divulgado para conhecimento público.
Essa foi a grande batalha travada durante a Rio+20. Canadá, Reino Unido e a delegação da União Européia tentaram enfraquecer e derrubar essa Resolução. Os interesses são incalculáveis. Imagine que Vivendi e Suez, duas empresas francesas, controlam quase 70% do mercado de água do mundo - a Europa é o continente mais pobre em água do planeta.
Mas o que não se pode compreender é que na Semana Internacional da Água, em 2013, uma revista do porte de Carta Capital e um veículo da mídia brasileira especializada como a Folha do Meio Ambiente, mesmo trazendo matérias de quatro páginas, não tenham mencionado o Direito Humano à Água em uma linha sequer. Ao não fazer qualquer referência ao direito da população a água potável e saneamento básico, a mídia deixa de cumprir seu papel de informar e conscientizar sobre essa prerrogativa inalienável.
Na volta a Foz do Iguaçu, sentei ao lado de uma jovem mestranda em Tenologias Ambientais na UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Ela contou que pretende trabalhar na área de saneamento, por ser este um mercado em expansão. Logo lhe perguntei se conhecia a Resolução 64/292. Disse que não e, para justificar, explicou que não estudava legislação e sim tecnologias. Para minha surpresa, o único lugar público onde encontrei água de graça, no Paraná, foi nesse ônibus que me levava de volta a Foz do Iguaçu, onde pegaria o avião para o Rio de Janeiro.
*em visita à terra
natal, que não conhecia,
durante a segunda
quinzena de outubro
de 2013
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