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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Assange sepultou George Orwell



por Carlos Vieira*

A interatividade da internet, sua aparente anarquia e desgoverno acabaram por inviabilizar regimes totalitários ao estilo Orwell. O mundo interligado torna quase impossível enganar poucos durante algum tempo, o que dirá de muitos durante um longo período.
130 300x225 E Assange sepultou George OrwellQuando li 1984, de George Orwell, faltava pouco para o título do livro, mas muita gente achava que o autor, um comunista de carteirinha e um pessimista idem, só tinha antecipado um pouco a data sobre a ideia cáustica e terrível que fazia do nosso futuro. Um futuro dominado pela tecnologia, vigiado por câmeras em toda a parte e controlado por um Estado autoritário que tudo via e ouvia. Não haveria privacidade alguma, o sexo sem fins de procriação seria considerado crime grave e os cidadãos viveriam uma opressão só possível graças a um regime de quase lavagem cerebral coletiva.
Passados 26 anos da data emblemática do livro e mais de 60 da época em que o inglês Eric Arthur Blair (Orwell era pseudônimo) escreveu pouco antes de morrer a sua sombria e profética obra-prima, vivemos num mundo em que uma das frases mais lidas em diversas línguas é “Sorria, você está sendo filmado”. Câmeras vigiam praças, estradas, esquinas, lojas, escritórios, garagens e diversos ambientes. Isso se ficarmos apenas pelas aparentes, já que das ocultas é melhor nem falar, não vá a paranoia tecer das suas. Além disso, um dos programas mais famosos replicados em todo o mundo transformou o Big Brother, o principal personagem de 1984, num popular programa de televisão que de literatura só tem mesmo uma referência ao passado do apresentador da versão brasileira.
De fato, pode-se dizer que parte do que Orwell anteviu estava mesmo certo. É verdade também que a privacidade das pessoas é hoje um artigo cada vez mais raro e que, a cada dia que passa, fica mais difícil manter em segredo qualquer assunto por menor que seja. Mas as semelhanças param por aí. Na maioria das vezes, são as próprias pessoas que fazem questão de expor suas vidas, seja em reality shows de toda a sorte, em blogs que se tornaram verdadeiros diários abertos à bisbilhotice virtual; seja nas redes sociais ou até mesmo por meio de webcams ligadas dentro de casa exibindo cada minuto de suas existências.
A internet sem dono, com diversos pontos interligados e onde a informação trafega não por um comando central, mas buscando novas conexões sempre que algum caminho é interrompido, foi o começo do fim para a imagem orwelliana de mundo – uma realidade onde o aparato de comunicação era unilateral, vendo, ouvindo e falando apenas o que o Ministério da Verdade queria. A interatividade da internet, sua aparente anarquia e desgoverno acabaram por inviabilizar regimes totalitários ao estilo Orwell. O mundo interligado torna quase impossível enganar poucos durante algum tempo, o que dirá de muitos durante um longo período.
Mas isso era apenas o começo. O acesso ilimitado e rápido a todas as fontes de informação está ajudando a moldar uma sociedade baseada na transparência. Governança corporativa tornou-se um termo importante não só nas empresas, mas também nos governos e em organismos não governamentais. Caminhamos cada vez mais para uma sociedade que exige coerência na execução das políticas baseadas em princípios humanitários e transparência na prestação de contas. Mesmo assim, o fantasma de Orwell e seu horrível futuro descrito em 1984 ainda assustavam muita gente, sobretudo aqueles mais assombrados com teorias conspiratórias.
Essas nuvens, porém, dissiparam-se completamente com o recente fenômeno Julien Assange, o australiano do Wikileaks que praticamente sozinho desafiou o maior império do planeta, pondo a nu as vísceras da sua correspondência diplomática. Cyberterrorista ou um David Paladino da Verdade contra o Golias da Hipocrisia Mundial? Na verdade, pouco importa. O que, de fato é importante em todo esse episódio é que ele é um marco na história da relação dos homens com seus governantes. Um momento em que fica claro que as megaestruturas corporativas, sejam elas empresas ou governos, não passam de tigres de papel compostos por gente como nós – ou melhor, pior do que nós.
E é aí que percebemos o quanto Orwell estava errado. Ao invés de um governo que ouve e vê a todos esmagando os direitos individuais de quem não reza conforme a cartilha do Grande Irmão, temos, de um lado, uma multidão de microcelebridades expondo de livre vontade a sua privacidade e, de outro, governos impotentes diante da ação de pequenas organizações que, pulverizadas por uma rede mundial, expõem para todos as mazelas das autoridades, tal qual um implacável Big Brother que tudo vê e – pior – tudo revela. Descanse em paz, Eric Arthur Blair…

* Carlos Vieira é jornalista, colunista do Economia Interativa.
** Publicado originalmente no site Economia Interativa.
Extraído do site  Envolverde

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Wikileaks: O 1º preso político global da internet e a Intifada eletrônica

Geek - pessoa excêntrica ou performática obcecada com tecnologia, eletrônica, jogos eletrônicos ou de tabuleiro e outros; nerd pró-ativo (fontes: Dicionário "American Webster" e Wikipédia)

Idelber Avelar, de O Biscoito Fino e a Massa
Julian Assange é o primeiro geek caçado globalmente: pela superpotência militar, por seus estados satélite e pelas principais polícias do mundo. É um australiano cuja atividade na internet catupultou-o de volta à vida real com outra cidadania, a de uma espécie de palestino sem passaporte ou entrada em nenhum lugar. Ele não é o primeiro a ser caçado pelo poder por suas atividades na rede, mas é o primeiro a sofrê-lo de um jeito tentacular, planetário e inescapável. Enquanto que os blogueiros censurados do Irã seriam recebidos como heróis nos EUA para o inevitável espetáculo de propaganda, Assange teve todos os seus direitos mais elementares suspensos globalmente, de tal forma que tornou-se o sujeito mundialmente inospedável, o primeiro, salvo engano, a experimentar essa condição só por ter feito algo na internet. Acrescenta mais ironia, note-se, o fato de que ele fez o mais simples que se pode fazer na rede: publicar arquivos ".txt", palavras, puro texto, telegramas que ele não obteve, lembremos, de forma ilegal.

Assange é o criminoso sem crime. Ao longo dos dias que antecederam sua entrega à polícia britânica, os aparatos estatal-político-militar-jurídico dos EUA e estados satélite batiam cabeças, procurando algo de que Assange pudesse ser acusado. Se os telegramas foram vazados por outrem, se tudo o que faz o Wikileaks é publicar, se está garantido o sigilo da fonte e se os documentos são de evidente interesse público, a única punição passível, por traição, espionagem ou coisa mais leve que fosse, caberia exclusivamente a quem vazou. O Wikileaks só publica. Ele se apropria do que a digitalização torna possível, a reprodutibilidade infinita dos arquivos, e do que a internet torna possível, a circulação global da hospedagem dessas reproduções. Atuando de forma estritamente legal, ele testa o limite da liberdade de expressão da democracia moderna com a publicação de segredos desconfortáveis para o poder. Nesse teste, os EUA (Departamento de Estado, Justiça, Democratas, Republicanos, grande mídia, senso comum) deixaram claro: não se aplica a Primeira Emenda, liberdade de expressão ou coisa que o valha. Uniram-se todos, como em 2003 contra as “armas de destruição em massa” do Iraque. Foi cerco e caça geral a Assange, implacável.

Wikileaks é um relato de inédita hibridez, para o qual ainda não há gênero. Leva algo de todos: épica, ficção científica, policial, novela bizantina, tragédia, farsa e comédia, pelo menos. Quem vem acompanhando a história saberá da pitada de cada uma dessas formas literárias na sua composição. O que me chama a atenção no relato é que lhe falta a característica essencial de um desses gêneros: é um policial sem crime, uma ficção científica sem tecnologia futura, uma novela bizantina sem peregrinação, comédia sem final feliz, tragédia sem herói de estatura trágica, épica sem batalha, farsa sem a mínima graça. Kafka e Orwell, tão diferentes entre si, talvez sejam os dois melhores modelos literários para entender o Wikileaks.

Como em Kafka, o crime de Assange não é uma entidade com existência positiva, para a qual você possa apontar. Assange é um personagem que vem direto d'O Processo, romance no qual K. será sempre culpado por uma razão das mais simples: seu crime é não lembrar-se de qual foi seu crime. Essa é a fórmula genial que encontra Kafka para instalar a culpa de K. como inescapável: o processo se instala contra a memória.

O Advogado-Geral da União do governo Obama, que aceitou não levar à Justiça um núcleo que planejou ilegalmente bombardeios a populações de milhões, levou à morte centenas de milhares, torturou milhares, esse mesmo Advogado-Geral que topou esquecer-se desses singelos crimes e não processá-los, peregrinava pateticamente nos últimos dias em busca de uma lei, um farrapo de artigo em algum lugar que lhe permitisse processar Julian Assange. O melhor que conseguiram foi um apelo ao Ato de Espionagem de 1917, feito em época de guerra global declarada (coisa em que os EUA, evidentemente, não estão) e já detonado várias vezes - mais ilustremente no caso Watergate - pela Suprema Corte. Mais