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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Wikileaks relata operações ilegais do DEA com PF brasileira durante ditadura


Agência Pública (*)
Agência de combate às drogas dos EUA realizou prisões e deportações ilegais, além de torturas, participando da Operação Condor
         No dia 17 de outubro de 1973, o embaixador norte-americano no Brasil, John Crimmins, escreveu um telegrama confidencial urgente ao Departamento de Estado chefiado por Henry Kissinger. A aflição do embaixador é evidente ao se referir à inesperada chegada ao país de uma equipe de inspeção do GAO (US Government Accountability Office) – agência ligada ao Congresso norte-americano, criada em 1921 e ainda em atividade – com a missão de investigar a adequação e legalidade das atividades das agências federais financiadas pelo contribuinte dos EUA. Inicialmente marcada para o dia 3 de novembro, a antecipação da visita – que desembarcaria na noite do mesmo dia 17 no Brasil – deixou o embaixador em polvorosa. O objetivo da missão era auditar o programa anti-drogas desenvolvido pela DEA – Drug Enforcement Administration – no país.
         O documento faz parte de um novo projeto do Wikileaks, o PlusD, que agrega 1,7 milhão de textos diplomáticos entre 1973 a 1976, chamados de "Kissinger Cables" – em razão de serem da mesma época em que Henry Kissinger dirigia a política externa norte-americana – e 250 mil de 2003 a 2010, no vazamento mais famoso da organização, o "Cablegate".
         O projeto é uma parceria com 18 veículos internacionais, incluindo as agências de notícias Associated Press e France Presse e os jornais La Repubblica, da Itália, La Jornada, do México, Página 12, da Argentina e a Agência Pública, no Brasil.
         Criada pelo presidente Richard Nixon em julho de 1973, com 1.470 agentes e orçamento de 75 milhões de dólares, para unificar o combate internacional anti-drogas, hoje a DEA tem 5 mil agentes e um orçamento anual de 2 bilhões de dólares. Embora mantivesse escritórios em nove países e representantes nas missões diplomáticas norte-americanas ao redor do mundo (ainda hoje a DEA tem escritórios na embaixada em Brasília e no consulado de São Paulo), desde 1969, quando ainda atendia pelo nome de BNDD (Bureau of Narcotics and Dangerous Drugs), a missão da DEA sempre foi “lidar com o problema das drogas, em ascensão, nos Estados Unidos”. Sua relação com os outros países, ao menos oficialmente, não previa o combate às drogas em cada um deles; o objetivo era impedi-las de chegar à população norte-americana.
         Por que então Crimmins estava tão preocupado com a chegada inesperada da equipe de auditoria ao Brasil? Ele explica no mesmo telegrama a Henry Kissinger: “Os oficiais da embaixada pedem instruções sobre quais os documentos dos arquivos da DEA e do Departamento do Estado, relativos a drogas, devem ser liberados para a equipe do GAO”, escreveu. “Especificamente pedimos orientação sobre os seguintes assuntos: a) os planos de ação anti-drogas, levando em conta que nem toda a estratégia sugerida nesses documentos foi aprovada pelo Comitê Interagências (Interagency Commitee) em Washington; b) tortura e abuso durante o interrogatório de prisioneiros; c) o centro de inteligência da Polícia Federal; d) os arquivos de informantes, incluindo os registros de pagamentos; e) operações confidenciais e telegramas de inteligência; f) operações clandestinas, incluindo a transferência de Toscanino do Uruguai ao Brasil; g) documentos de planejamento das alfândegas brasileiras e do departamento de polícia federal”, detalha.
         A resposta de Kissinger não consta da base de dados do National Archives (NARA) reunidos na Biblioteca de Documentos Diplomáticos do WikiLeaks, mas a julgar por outros documentos, havia sim motivos para se preocupar. Pelo menos em relação ao único caso específico ali referido: a transferência de Toscanino do Uruguai para o Brasil.
         Quatro meses antes da chegada dos auditores do GAO ao Brasil, Francisco Toscanino, cidadão italiano, foi condenado junto com mais cinco réus pelo tribunal de júri de Nova York, em junho de 1973, por “conspiração para tráfico de drogas”. De acordo com uma testemunha presa, que estava colaborando com a polícia em sistema de delação premiada, Toscanino, que morava no Uruguai, estava indicando compradores, em solo americano, para uma carga de heroína enviada de navio e parcialmente flagrada por agentes infiltrados da DEA nos Estados Unidos.
            Seqüestrado, torturado e extraditado
         Em maio de 1974, porém, Toscanino entrou com recurso na Segunda Instância da Corte de Apelação dos Estados Unidos, alegando que sua prisão havia sido ilegal, de acordo com a legislação norte-americana, por ter se baseado em monitoramento eletrônico irregular no Uruguai. Mais do que isso: ele foi sequestrado no Uruguai e torturado no Brasil antes de ser extraditado aos EUA sem comunicação prévia a autoridades italianas.
         Os detalhes estarrecedores dessa história, reproduzidos no documento da corte parecerão estranhamente familiares aos que conhecem as ações da Operação Condor – a articulação da repressão política nesse mesmo período entre ditaduras militares na América Latina. Com exceção, talvez, da preocupação em não deixar marcas de tortura.
         “No dia 6 de janeiro de 1973, Toscanino foi tirado de sua casa em Montevidéu por um telefonema, que partiu dos arredores ou do endereço de Hugo Campos Hermedia [na verdade, Hugo Campos Hermida]. Hermedia era – e ainda é – membro da polícia em Montevidéu. Mas, segundo a alegação de Toscanino, Hermedia estava atuando ultra vires [encoberto] como agente pago do governo norte-americano. A chamada telefônica levou Toscanino e sua mulher, grávida de 7 meses, a uma área próxima de um boliche abandonado em Montevidéu. Quando chegaram lá, Hermedia e seis assistentes sequestraram Toscanino na frente da mulher aterrorizada, deixando-o inconsciente com uma coronhada e o jogando na traseira do carro. Depois, Toscanino – vendado e amarrado – foi levado à fronteira do Brasil por uma rota tortuosa”.
         Segue o documento: “Em um certo momento durante a longa viagem até a fronteira brasileira houve uma discussão entre os captores de Toscanino sobre a necessidade de trocar as placas do carro para evitar sua descoberta pelas autoridades uruguaias. Em outro ponto, o carro estancou subitamente e ordenaram que Toscanino saísse. Ele foi levado para um lugar isolado, onde o mandaram deitar sem se mexer ou atirariam nele. Embora a venda o impedisse de ver, Toscanino conseguia sentir a pressão do revólver em sua cabeça e ouvir os ruídos do que parecia ser um comboio militar uruguaio. Quando o barulho se afastou, Toscanino foi colocado em outro carro e levado à fronteira.
         Houve combinações e, mais uma vez, com a conivência dos Estados Unidos, o carro foi tomado por um grupo de brasileiros que levaram Francisco Toscanino (…) “Sob custódia dos brasileiros, Toscanino foi conduzido a Porto Alegre onde permaneceu incomunicável por 11 horas. Seus pedidos de comunicação com o consulado italiano e com a família foram negados. Também não lhe deram comida nem água. Mais tarde, no mesmo dia, Toscanino foi levado à Brasília, onde por 17 dias foi incessantemente torturado e interrogado.
         Durante todo esse tempo, o governo dos Estados Unidos e a promotoria de Nova York, responsável pelo processo, tinham ciência – e inclusive recebiam relatórios – do desenrolar da investigação. Além disso, durante o período de tortura e interrogatório um membro do Bureau of Narcotics and Dangerous Drugs, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, estava presente em um ou mais intervalos e, na verdade, chegou a participar de partes do interrogatório. Os captores de Toscanino o privaram de sono e de qualquer forma de alimentação durante dias. A nutrição se dava por via intervenosa apenas para mantê-lo vivo. 
         Assim como relatam nossos soldados que voltaram da Coréia e da China, Toscanino era forçado a andar para baixo e para cima por sete ou oito horas ininterruptas. Quando ele não conseguia mais ficar em pé, era chutado e espancado de forma a não deixar marcas. Se não respondia às perguntas, seus dedos eram esmagados com grampos de metal. Jogavam álcool em seus olhos e nariz, e outros fluidos eram introduzidos em seu ânus. Inacreditavelmente, os agentes do governo norte-americano prenderam eletrodos nos lóbulos de suas orelhas, dedos e genitais e deram choques elétricos o deixando inconsciente por períodos que não consegue precisar mas, novamente, sem deixar marcas.”
         “Finalmente, no dia 25 de janeiro de 1973, Toscanino foi levado ao Rio de Janeiro onde foi drogado por agentes brasileiros e norte-americanos e colocado no vôo 202 da Pan American Airways (…). Acordou nos Estados Unidos no dia 26 de janeiro, quando foi oficialmente preso dentro do avião e levado imediatamente a Thomas Puccio, assistente do procurador-geral dos Estados Unidos. Em nenhum momento durante a captura de Toscanino o governo norte-americano sequer tentou a via legal. Agiu do início ao fim de maneira ilegal, embarcando deliberadamente em um esquema criminoso de violação de leis de três países diferentes”.
            O “Fleury uruguaio”
         Hugo Campos Hermida era uma espécie de Fleury uruguaio. Embora a ditadura naquele país só tenha se instalado em junho de 1973, portanto quando Toscanino já havia sido condenado nos EUA, Hermida era o chefe da chamada Brigada Gamma, um esquadrão da morte uruguaio que matava desde traficantes até tupamaros – os guerrilheiros de esquerda que atuavam antes do golpe final. Hermida também foi treinado nos Estados Unidos – inclusive pela DEA, como mostram outros documentos do projeto PlusD.
         Oficialmente, era chefe da Brigada de Narcóticos da Dirección Nacional de Información e Inteligencia (DNII), organismo criado em colaboração com os Estados Unidos no Uruguai. O jornal La República, do Uruguai, levantou documentos no Arquivo do Terror, no Paraguai, que comprovaram a participação de Hermida no “ninho da Condor”, a Automotores Orletti, em Buenos Aires, um centro de tortura que tinha como fachada uma oficina mecânica.
         Do lado brasileiro, o diretor do Departamento de Polícia Federal – também montada e armada pelos norte-americanos desde os primórdios – era o general Nilo Caneppa Silva, mais conhecido por suas assinaturas na censura de jornais, peças de teatro e filmes – já que essa também era uma atribuição oficial do órgão na ditadura, assim como o combate ao tráfico de drogas nas fronteiras. O general Caneppa foi promovido a coronel assim que a ditadura militar se instalou, e a general-de-brigada em 1971, no governo Médici, mesmo ano em que passou a chefiar o DPF em Brasília.
         A operação de sequestro no Uruguai e tortura no Brasil do traficante Toscanino não aparece nos telegramas diplomáticos até maio de 1974, quando o italiano entrou com recurso na corte de apelações norte-americana. A partir daí, há um troca frenética de telegramas entre as embaixadas do Brasil e de Buenos Aires com o Departamento do Estado porque a Justiça norte-americana havia requisitado toda a documentação envolvendo o caso Toscanino em virtude da apelação – embora boa parte dela tenha continuado escondida, como comprovam os telegramas desse período constantes no PlusD. O general Nilo Caneppa, porém, era considerado peça-chave pelos Estados Unidos, como mostra um telegrama de 25 de abril de 1973.
         “O tempo do general Caneppa como diretor do Departamento de Polícia Federal encerra-se no meio de maio. Para assegurar a conclusão dos ótimos resultados obtidos pela equipe americana de analistas designados para trabalhar com a polícia federal brasileira no desenho do Centro de Inteligência de Narcóticos, pedimos que essa equipe venha ao Brasil antes de maio”, diz o relato assinado pelo antecessor de Crimmins, William Rountree. O mesmo embaixador já havia demonstrado seu apreço por Caneppa que dele “se aproximou pessoalmente para requisitar material audiovisual em português para os cursos de treinamento permanentes do BNDD (antecessor da DEA) em São Paulo”, segundo outro telegrama do PlusD, esse de 8 de maio de 1973, que recomendou: “Tendo em vista a cooperação do DPF em expulsar traficantes internacionais para os Estados Unidos em casos passados, e o mandato constitucional da DPF para dirigir os esforços para suprimir os traficantes de drogas, e as necessidades de treinamento dos brasileiros, a embaixada recomenda que o BNDD envie os filmes e slides para uso do escritório do BNDD em Brasília, que vai distribuir para as agências brasileiras. Esse gesto, além de ser um investimento útil de dinheiro e material, vai ajudar a estreitar ainda mais os laços entre o DPF e o BNDD”.
            O general tático
         No relatório confidencial sobre a temida visita dos auditores do  GAO, porém, enviado pelo embaixador Crimmins ao Departamento de Estado americano em 13 de dezembro de 1973, o entusiasmo dos americanos havia arrefecido com a substituição de Caneppa por um general considerado mais “tático” ( “operations-minded”) – o general Antonio Bandeira, tristemente famoso pelas primeiras operações de repressão na guerrilha do Araguaia tanto pelo lado dos guerrilheiros – que passaram a ser torturados também em Brasília depois que ele assumiu a Polícia Federal – como dos militares, pelo fracasso em vencer os 70 jovens do PC do B nas matas do Pará.
         Ainda assim, os norte-americanos ressaltam sua gratidão por operações realizadas pela DPF chefiada por Caneppa nesse mesmo telegrama, que também relembra a temida visita do GAO dois meses antes. Segundo o telegrama, os auditores haviam feito apenas uma “investigação difusa” sobre as atividades da DEA no país: “Embora GAO não tenha problemas com a premissa do programa anti-drogas de desenvolver a competência brasileira no combate aos narcóticos, a curto prazo eles estão mais interessados em impedir o fluxo de drogas para os Estados Unidos. O coordenador do programa de narcóticos ressaltou, então, o sucesso da cooperação EUA-Brasil na Operação Springboard [nos portos, em conjunto com a Marinha Americana] e na apreensão no Mormac-Altair”.
         Como relatam os jornais da época, o Mormac-Altair era um navio americano onde, em operação conjunta dos americanos e brasileiros, foi capturada uma carga de 60 quilos de heroína em outubro de 1972. Traficantes franceses que moravam no Paraguai e no Brasil foram então extraditados para os Estados Unidos pela Polícia Federal brasileira, sem avisar as autoridades francesas, como aconteceu no caso Toscanino, sempre com o general Caneppa à frente das operações.
         Segue o telegrama de Crimmins a Kissinger: “GAO estava interessado na possibilidade do Brasil assumir a liderança entre as nações latino-americanas no hemisfério Sul. O coordenador explicou que o Brasil se esforçava para melhorar a cooperação e a coordenação entre os órgãos policiais em outras nações latino-americanas. No entanto, as diferenças entre os sistemas hispânicos e lusitano, e a intensa rivalidade com a Argentina tornava difícil essa liderança”.
         “A GAO também levantou a questão – baseada na investigação dos arquivos sobre as trocas de informação entre as agências de Washington durante a Operação Springboard, quando a embaixada relatava preocupações e queixas sobre o antigo chefe da Polícia Federal, General Caneppa [não se sabe a que se referem essas queixas, que teriam sido feitas por Rountree, uma vez que a atuação da PF sob Caneppa foi elogiada no parágrafo anterior e no telegrama enviado por Rountree transcrito acima, mas os militares brasileiros consideravam Caneppa “mole”, enquanto Bandeira era da “linha dura”].
         O coordenador explicou que não há mais problemas similares com o atual chefe, o general Bandeira. Bandeira é mais operations-minded  e parece satisfeito com o nível de troca de informações embora, sem dúvida, um aprimoramento possa ser feito nesse campo. A equipe do GAO fez diversas perguntas sobre extradição e expulsão de traficantes e pareceu satisfeita com nossas explicações de que não há problemas do gênero no Brasil. O coordenador teve a impressão de que essa era a mais alta prioridade da equipe do GAO.
         “A ideia do Centro de Inteligência de Drogas veio à tona também nessa visita, baseada no material que eles já tinham recebido. O conteúdo politicamente sensível desse assunto foi então explicado à equipe do GAO (…).” Quando o telegrama foi enviado, Juan Perón havia reassumido o poder na Argentina depois de um período de 18 anos de exílio, interrompendo a colaboração entre as polícias do Cone Sul. Os americanos – assim como a ditadura brasileira – nunca confiaram em Perón; depois que ele morreu, em 1974, e foi substituído pela mulher, Isabelita, os militares instituíram a “guerra suja” que matou mais de 30 mil pessoas, incluindo peronistas.
         Ao final do telegrama, Crimmins revela que, embora não conste da documentação do NARA, havia recebido – e cumprido – as instruções de Kissinger depois do telegrama enviado na chegada inesperada da missão da GAO: “Nenhuma cópia de outros documentos além dos definidos por Washington foram disponibilizados para a equipe do GAO”.
            Condor
         Tanto Bandeira quanto Caneppa aparecem nas listas de torturadores da ditadura, feitas a partir de documentos e denúncias de presos políticos, como “coniventes”, pelo fato de terem comandado operações que resultaram em tortura e desaparecimento de presos sem, no entanto, ter sido flagrados com “a mão na massa”, para usar uma expressão suave.
         Suas ligações com as operações do DEA no Cone Sul, como demonstra o telegrama acima, porém, podem implicá-los – e aos Estados Unidos – em crimes internacionais em investigações posteriores, como já aconteceu no caso do general Caneppa, e não apenas nos casos Mormac-Altair e Toscanino.
         No final do ano passado, o repórter Wagner William publicou na revista Brasileiros a reportagem “O primeiro vôo do Condor”, relatando aquela que seria a primeira ação da operação clandestina que uniu as ditaduras militares do Cone Sul: o sequestro do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, opositor da ditadura, em Buenos Aires e sua extradição para um centro de torturas no Rio de Janeiro, descrita no Informe 338, de 19 de dezembro de 1970, pelo adido militar na Embaixada do Brasil: o então coronel Nilo Caneppa.
         O documento, obtido pelo jornal Página 12, é considerado pelo presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, o gaúcho Jair Krischke, um dos maiores investigadores da Operação Condor, como o primeiro documento da articulação clandestina e a prova de que foi o Brasil que liderou ao menos a sua formação.
         O repórter Wagner William teve acesso aos diários do coronel Jefferson e contou em detalhes como o coronel, seu filho e sobrinho foram interceptados em dezembro de 1970 quando viajavam do Uruguai, onde se exilaram depois do golpe, ao Chile, onde o coronel assumiria o cargo de assessor militar para a Associação Latino-Americana de Livre Comércio a convite do então presidente do Chile, Salvador Allende. Allende se suicidaria depois do golpe liderado pelo general Pinochet e articulado pelos Estados Unidos em 1973.
         Para evitar a perseguição policial – os homens de Hermida o seguiam todo o tempo no exílio, como faziam com todos os brasileiros inimigos da ditadura, como relatou em 2003, depois de ser preso no Rio Grande do Sul por assalto a banco e tráfico de armas, o ex-policial Mario Neira Barreto, codinome Tenente Tamuz, que também pertencia à Brigada Gamma –, Jefferson planejara ir de Montevidéu a Colônia do Sacramento de carro, atravessar o rio da Prata pela balsa até Buenos Aires, de onde seguiria para Mendoza e cruzaria os Alpes para o Chile.
         Avisado pelos uruguaios, porém, o adido militar brasileiro na Argentina – Caneppa – pediu a cooperação da Direção da Coordenação Federal, o órgão de inteligência da Polícia Federal Argentina, para prender os três brasileiros, descrevendo sua aparência em detalhes. Escondido no porto, Caneppa assistiu quando o carro de Jefferson foi interceptado por dois agentes armados que saltaram de um carro preto com chapa do governo argentino anunciando: “É uma operação de rotina. Houve uma denúncia de transporte de drogas”.
         Embora não houvesse nada no carro além de uma arma do coronel Jefferson, que apresentou seus documentos de identificação militar, os três foram levados para a coordenação da Polícia Federal argentina, encapuzados, algemados e presos no porão enquanto o subcomissário anunciava ao adido militar brasileiro o sucesso da operação. Caneppa vai pessoalmente ao prédio, acompanhado de outro militar brasileiro, adido da Aeronáutica na embaixada, onde Jefferson, seu filho e o sobrinho foram interrogados sobre o sequestro do cônsul brasileiro, Aloysio Gomide, pelos tupamaros uruguaios e sobre sua ligação com líderes peronistas argentinos.
         Os três foram torturados – o coronel Jefferson com choques elétricos nos pés, nas pernas e nos genitais e cera de vela quente no ânus. Caneppa e o outro militar brasileiro, na sala ao lado, examinavam o material apreendido no carro de Jefferson – livros, cartas e documentos de identidade – quando um tenente-coronel do Exército argentino se apresentou e pediu desculpas pela ausência do coronel Cáceres, diretor da PF argentina, perguntando em seguida o que deveria fazer com os detidos. Caneppa queria que fossem enviados ao Brasil, e em 26 horas o presidente argentino, fantoche dos militares, assinou um decreto de extradição. De lá foram transportados discretamente por uma aeronave militar para o Centro de Informação e Segurança (CISA) no Rio de Janeiro.
         O coronel Jefferson foi torturado dias a fio e ficou preso por seis anos. Ao sair da cadeia, em 1977, continuou a ser perseguido até 1979 quando foi beneficiado pela lei da anistia. Os militares, porém, em um ato excepcional, anularam sua anistia e ele teve que partir para o exílio, primeiro na Venezuela, depois na França, de onde só retornou em 1985, com o fim da ditadura militar.
         Vítima da primeira ação da famigerada Operação Condor, o coronel Jefferson foi preso sob a acusação de tráfico de drogas pela Polícia Federal argentina sob as ordens do general Caneppa. O mesmo que dirigia a Polícia Federal brasileira quando o traficante Toscanino foi sequestrado por Hermida no Uruguai e entregue para ser torturado em Brasília de onde foi extraditado, em uma operação inteiramente coordenada pela DEA.
         O coronel Caneppa foi promovido a general e assumiu a direção da Polícia Federal meses depois. Em 1972, recebeu a Medalha do Pacificador – a maior honraria do Exército, destinada aos “revolucionários” de 1964. O general Bandeira mereceu a mesma honraria. Até hoje a DEA mantém escritórios no Brasil, dentro da embaixada brasileira e dos consulados. Procurada pela Pública para saber sobre suas atividades atuais no país, a DEA encaminhou a reportagem à assessoria de imprensa da embaixada norte-americana, que não respondeu aos pedidos de informação até a publicação dessa reportagem.
Fonte Brasil de Fato  9/04/2013  ( Agência Pública)

terça-feira, 26 de março de 2013

Surge um herói nos EUA - A rara coragem de Bradley Manning - Parte 3/3

04/03/2013 - Declaração de Bradley Manning ao tribunal em 28/02/2013
- em Fort Meade, MD, EUA, por Alexa O'Brien (Blog Second Sight)
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu para a Redecastorphoto

Nota dos tradutores: Esta declaração foi lida pelo soldado Bradley E. Manning em audiência na qual se declarou “culpado” numa acusação principal e em nove outras ofensas menores incluídas na acusação. Declarou-se “inocente” em 12 outras especificações.

Essa transcrição (não revista, não oficial) foi feita pela jornalista independente Alexa O'Brien, durante a audiência para ouvir o acusado [orig. Article 39(a) session of United States v. Pfc. Bradley Manning], dia 28/2/2013, em Fort Meade (foto), MD, USA], e publicada originalmente em seu blog. Ver aqui




Nota complementar dos tradutores: dia seguinte (29/2/2013), a jornalista Alexa O'Brien (foto) publicou versão atualizada da transcrição, na qual completa as pendências [perdas de palavras] dessa primeira versão. A versão atualizada do original pode ser encontrada no mesmo endereço acima.

Dada a urgência de distribuir o mais rapidamente possível esta tradução, não repassamos para cá aquelas atualizações, que não são essenciais e poderão, adiante, a qualquer momento, ser incorporadas à tradução.

Ao final, link da "Declaração de Bradley Manning ao tribunal Parte 2/3"

Prossegue Bradley E. Manning em sua declaração

Na casa de minha tia, entrei numa conversa IRC e disse que tinha informação que precisava ser partilhada para o mundo. Escrevi que a informação ajudaria a documentar o verdadeiro custo das guerras no Iraque e no Afeganistão.

Um dos indivíduos na mesma IRC pediu que eu descrevesse a informação. Mas, antes de eu ter tempo de descrever a informação, outra pessoa enviou o link para o sistema de envio de material para a página da Organização WikiLeaks.

Antes de desligar minha conexão IRC, refleti mais uma vez e considerei minhas alternativas. No fim, senti que a coisa certa a fazer era distribuir os arquivos de SigActs.

Dia 3/2/2010, visitei o website da Organização WikiLeaks pelo meu computador e cliquei no link para enviar documentos. Em seguida, encontrei o link para enviar informação online e escolhi enviar os arquivos de “atividades significativas” SigActs via o onion router, TOR, rede anônima com link especial.

TOR é um sistema que visa a garantir o anonimato online. O software encaminha o tráfego por internet através de uma rede de servidores e outros clientes TOR, para ocultar a localização e a identidade do usuário.

Eu conhecia bem o TOR e já o tinha instalado antes num computador, para poder monitorar, anonimamente, as redes sociais de milícias que operam no Iraque central.

Segui os passos e anexei os arquivos de dados compactados das “atividades significativas”, SigActs, de CIDNE-I e CIDNE-A. Anexei um arquivo de texto que redigi quando pensava em enviar os documentos ao Washington Post, linhas gerais de orientação. Escrevi:

...arquivo já limpo de qualquer informação sobre identidade da fonte. Vocês talvez precisem examinar essa informação – talvez 90 a 100 dias para planejar o melhor modo de divulgar quantidade tão grande de dados e proteger a fonte desses dados. Esses são, provavelmente, os documentos mais significativos de nosso tempo, para afastar o nevoeiro da guerra e revelar a real natureza da guerra assimétrica do século 21. Tenham um bom dia.

Depois de enviar, deixei o cartão SD numa câmera na casa de minha tia, para o caso de precisar dele no futuro. Voltei ao serviço, depois da licença, dia 11/2/2010.

Apesar de a informação ainda não ter sido publicada pela Organização WikiLeaks, senti uma sensação de alívio por os arquivos já estarem com eles. Senti que havia feito algo que me permitia ter a consciência tranquila sobre o que vi e li sobre o que estava acontecendo todos os dias, no Iraque e no Afeganistão.

Fatos relacionados ao armazenamento não autorizado e à divulgação de “10 Reykjavik 13
Tomei conhecimento dos telegramas diplomáticos, pela primeira vez, durante meu treinamento AIT.

Adiante, soube da existência do portal do Departamento de Defesa (DoD) Net-centric Diplomacy NCD. Fui informado pelo Capitão Steven Lim, da Equipe S2 da Brigada de Combate 2/10 [orig. 2/10 Brigade Combat Team S2].

O Capitão Lim distribuiu e-mail para toda a seção, para os demais analistas e oficial, no final de dezembro de 2009, informando o link da SIPRnet para o portal, e instruções para que todos olhássemos os telegramas lá arquivados e para que os incorporássemos ao produto no qual trabalhávamos.

Pouco depois disso, também observei que os telegramas diplomáticos estavam sendo incorporados em produtos que vinham do nível superior das Forças Armadas dos EUA no Iraque (US-I).

Seguindo ordens do Capitão Lim, para que me familiarizasse com aqueles conteúdos, li praticamente todos os telegramas publicados concernentes ao Iraque. Passei também a consultar o banco de dados e ler outros telegramas, ao acaso, que atraíssem minha curiosidade.

Foi por essa época – entre o início e meados de janeiro de 2010 – que comecei a procurar informações, nos bancos de dados, sobre a Islândia.

A Islândia me interessou, por causa de conversas que eu vira no canal da Organização WikiLeaks no IRC, em que se falava de uma questão chamada “Icesave” [aprox. “salve a Islândia”].

Naquele momento, eu não conhecia bem a questão, mas parecia ser assunto extremamente importante para os que participavam daquela conversa. Então, decidi investigar e fazer algumas pesquisas sobre a Islândia e saber mais.

Naquele momento, não descobri mais nada nas discussões sobre “Icesave”, nem direta nem indiretamente. Fiz então uma pesquisa nas fontes abertas sobre “Icesave”.

Soube então que a Islândia estava envolvida numa disputa com o Reino Unido e a Holanda em torno do colapso financeiro de um ou mais de um bancos islandeses. Segundo matéria que li num canal aberto, grande parte da discussão travava-se em torno de o Reino Unido usar legislação antiterror contra a Islândia, para congelar o acesso da Islândia às garantias que os depositantes do Reino Unido que haviam perdido dinheiro esperavam receber.

Pouco depois de ter retornado de minha licença de meio de serviço, voltei ao portal Net Centric Diplomacy à procura de informação sobre a Islândia e “Icesave”, porque o tópico continuava a ser discutido no canal da Organização WikiLeaks no IRC; Para minha surpresa, encontrei, dia 14/2/2010, o telegrama “10 Reykjavik 13”, no qual havia referência direta à questão “Icesave”.

O telegrama do dia 13/1/2010 tinha mais de duas páginas. Li o telegrama e rapidamente concluí que, na essência, a Islândia estava sendo vítima de abuso diplomático [orig. Iceland was essentially being bullied diplomatically], por duas grandes potências europeias.

Vi que a Islândia estava ficando sem alternativas e havia procurado os EUA, em busca de ajuda. Apesar do discreto pedido de ajuda, não sugeria que estivéssemos fazendo qualquer coisa para ajudar a Islândia.

No meu modo de ver, parecia que não nos estávamos envolvendo por não haver qualquer benefício geopolítico de longo prazo naquele envolvimento.

Depois de digerir os conteúdos [do telegrama] “10 Reykjavik 13” considerei se seria o caso de enviar o telegrama para a Organização WikiLeaks. Até aquele momento, a Organização WikiLeaks ainda não publicara, nem acusara o recebimento dos arquivos CIDNE-I [Iraque] e CIDNE-A [Afganistão].

Ainda sem saber que os arquivos SigActs já eram, então, prioridade para a Organização WikiLeaks, decidi que o telegrama era importante. Senti que aquele telegrama, se publicado, permitiria corrigir algo que estava sendo mal feito.

Gravei a informação [orig. I burned the information] num CD, dia 15/2/2010, levei o CD para o alojamento [orig. my CHU] e salvei-o para o meu laptop pessoal.

Como da primeira vez, naveguei pela página da Organização WikiLeaks usando uma conexão TOR e enviei o documento pela mesma via não identificável.

Para minha surpresa, a Organização WikiLeaks publicou, no prazo de poucas horas, o telegrama “10 Reykjavik 13”, o que provava que o formulário de envio funcionara e que eles tinham de ter recebido o arquivos das “atividades significativas” [SigAct].

Fatos relacionados ao armazenamento não autorizado e divulgação do vídeo da equipe em veículo aéreo armado, datado de 12/7/2007
Em meados de fevereiro de 2010, em reunião dos analistas da 2ª Equipe da Brigada de Combate, da 10ª Divisão de Montanha, a então especialista, Jihrleah W. Showman, discutiu um vídeo que ela havia encontrado no drive “T”.

No vídeo (foto), viam-se vários indivíduos atacados por uma equipe de veículo aéreo armado.

De início, o vídeo não me pareceu muito especial, semelhante a incontáveis outros vídeos do mesmo tipo de pornografia de guerra [orig. war porn type videos] que eu via, com cenas de combate.

Mas o áudio, a gravação das falas da tripulação do veículo aéreo armado, e o ataque, que se via no mesmo vídeo, contra um furgão desarmado, perturbaram-me muito.

Showman e alguns outros poucos analistas e oficiais no T-SCIF comentaram o vídeo e discutiram se a tripulação violara ou não alguma lei ou regulamento, no segundo ataque [ao furgão desarmado], mas afastei-me dessa discussão e, em vez disso, fiz algumas pesquisas sobre o evento. Queria saber o que realmente acontecera, e se havia alguma informação de contexto datada do mesmo dia, 12/7/2007.

Usando Google, pesquisei sobre o evento, por data e por localização em geral. Encontrei várias notícias sobre dois empregados da Agência Reuters que haviam sido mortos durante a ação da equipe aérea armada.

Outra matéria explicava que a Agência Reuters solicitara cópia do vídeo, nos termos da Lei de Proteção à Liberdade de Informação [orig. Freedom of Information Act, FOIA].

A Reuters desejava assistir ao vídeo para entender o que acontecera e aprimorar suas práticas de segurança em zonas de combate.

Porta-voz da Reuters citado dissera que o vídeo poderia ajudar a impedir que se repetissem tragédias semelhantes; e que a divulgação imediata do vídeo era absoluta e urgentemente necessária.

Apesar da solicitação nos termos da lei FOIA, o mesmo noticiário dizia que o CENTCOM respondera à Agência Reuters que não sabia quando poderia considerar o pedido feito nos termos da lei FOIA e que o vídeo talvez já nem existisse. Noutra matéria, um ano adiante, dizia que a Reuters reiterara o pedido, mas ainda não recebera qualquer resposta formal ou escrita, como exige a lei FOIA.

O fato de, nem o CENTCOM, nem as Forças Multinacionais no Iraque [orig. Multi National Forces Iraq, MNF-I] terem voluntariamente entregue o vídeo perturbou-me ainda mais.

Era claro para mim que o evento acontecera porque a tripulação do veículo aéreo armado tomara erradamente os empregados da Reuters como ameaça potencial e que as pessoas no furgão apenas tentavam dar socorro aos feridos.

As pessoas no furgão não eram ameaça, meros “bons samaritanos”. O aspecto mais alarmante do vídeo, contudo, na minha opinião, é uma sanha de sangue, que parece deliciosa para a tripulação do veículo armado.

A tripulação desumanizou os indivíduos que atacaram e parece não dar qualquer valor à vida; a tripulação fala deles como [cito] “filhos-da-puta mortos” e todos se congratulam, uns com os outros, pela capacidade de matar grande número de pessoas.

Num certo ponto do vídeo, há alguém, no chão, que tenta rastejar para salvar-se. Já está gravemente ferido. Em vez de chamar socorro médico para a locação, um dos elementos da equipe do veículo aéreo armado fala [pede verbalmente] que o ferido saque uma arma, para que haja motivo para matá-lo. Para mim, é como uma criança torturando formigas com uma lupa.

Embora triste pela falta de consideração com a vida humana, na tripulação daquele veículo aéreo armado, muito me perturbou a resposta à descoberta de que havia crianças feridas na cena.

No vídeo, vê-se que o furgão tenta aproximar-se para socorrer os feridos. Em resposta, a tripulação do veículo aéreo armado – porque dizem que os indivíduos são ameaças, eles repetem o pedido de autorização para atirar contra o furgão; recebem a autorização e atiram pelo menos seis vezes contra o furgão.

Pouco depois do segundo tiroteio, uma unidade mecanizada de infantaria chega à cena. Em poucos minutos, a tripulação do veículo aéreo armado é informada de que havia crianças no furgão, que foram feridas; nem assim a tripulação do veículo aéreo armado dá qualquer sinal de remorso. Em vez disso, tratam logo de diminuir a gravidade da ação deles, dizendo [cito] “Ora... A culpa é deles, que trazem crianças para o combate”.

A tripulação do veículo aéreo armado fala sem qualquer simpatia ou solidariedade pelas crianças ou seus pais. Adiante, de modo extremamente perturbador, a equipe do veículo armado verbaliza sua satisfação ao ver um dos veículos em campo passar por cima de um cadáver – ou de um dos cadáveres.

Na sequência de minhas pesquisas, encontrei um artigo sobre o livro The Good Soldiers [Os bons soldados], escrito por David Finkel, do Washington Post.

Eu seu livro, o sr. Finkel escreve sobre o ataque de veículos aéreos armados. Lendo um excerto online em Google Books, acompanhei o relato que o sr. Finkel apresenta sobre o evento registrado naquele vídeo. E percebi imediatamente que o sr. Finkel citava, acho que in verbatim, a comunicação de áudio da tripulação do veículo aéreo armado que se ouve no vídeo.

Não tenho dúvida alguma de que o sr. Finkel teve acesso a uma cópia daquele vídeo, durante o tempo em que permaneceu como jornalista incorporado. Mas não gostei de como o sr. Finkel narra o incidente.

Quem leia o que escreveu acreditará que o ataque teria sido justificado como algum tipo de “revide” por ataque anterior que teria levado à morte de um soldado.

O sr. Finkel conclui sua reportagem discutindo como um soldado encontra ainda um indivíduo vivo depois do ataque. Escreve que o soldado encontra o sobrevivente que lhe faz um gesto com dois dedos juntos, método comum, no Oriente Médio, para comunicar que são amigos. Mas, em vez de ajudar o ferido, o soldado faz um gesto obsceno, com o dedo médio esticado.

O indivíduo teria morrido pouco tempo depois. Ao ler isso, só posso pensar que esse ferido tentara ajudar outros e, em seguida, viu-se em situação de que ele mesmo precisava de ajuda. Para piorar, no último momento da vida, ainda tenta manifestar um gesto de amizade – para receber, de resposta, aquele bem conhecido gesto de oposição e inimizade.

Minha avaliação foi que tudo aquilo é uma terrível confusão, e fiquei pensando o que significava tudo aquilo e como tudo isso se encaixava. Tudo isso pesou muito, sobre mim, emocionalmente.

Salvei uma cópia do vídeo na minha estação de trabalho. Pesquisei todas as regras e regulamentos e anexos dos regulamentos de combate, e um mapa de fluxo de 2007 – e um livreto não secreto de Regras de Engajamento de 2006.

Dia 15/2/2010, gravei todos esses documentos num CD; na mesma ocasião, gravei também o telegrama “10 Reykjavik 13” num CD. E, também na mesma ocasião, passei o vídeo e a informação sobre regras de combate e engajamento para o meu laptop pessoal, no meu alojamento na CHU.

Planejava conservar essa informação ali até ser transferido, no verão de 2010. Meu plano era entregar tudo aquilo ao escritório da Reuters em Londres, para ajudá-los a impedir que eventos daquele tipo voltassem a acontecer no futuro.

Mas, depois que a Organização WikiLeaks publicou o telegrama “10 Reykjavik 13”, alterei meus planos.

Decidi entregar a eles também o vídeo e as regras de combate e engajamento, para que a Agência Reuters recebesse aquela informação antes de eu ser transferido do Iraque.

Dia 21/2/2010, como disse acima, usei o formulário de envio de documentos na página da Organização WikiLeaks e enviei essa documentação.

A Organização WikiLeaks distribuiu o vídeo no dia 5/4/2010. Depois da divulgação, passei a me preocupar com o impacto do vídeo e com como seria recebido pelo público em geral.

Eu esperava que o público ficasse tão alarmado quanto eu com a conduta da tripulação do veículo aéreo armado. Queria que o público norte-americano soubesse que nem todos no Iraque e no Afeganistão são alvos a serem neutralizados, e que há ali pessoas que lutam para sobreviver naquele ambiente de panela de pressão que nós chamamos de “guerra assimétrica”.

Depois da divulgação, senti-me encorajado pela resposta do público em geral que assistira ao vídeo da tripulação do veículo aéreo armado. Como eu esperava, outros se sentiram tão perturbados quanto eu – se não mais perturbados que eu – com o que o vídeo mostrava.

Nesse ponto, comecei a ler matérias que diziam que o Departamento de Defesa e o CENTCOM não podiam confirmar a autenticidade do vídeo. E um dos meus supervisores, a capitã Casey Fulton, declarou que não acreditava que o vídeo fosse autêntico. Para responder a ela, decidi tomar providências para impedir que a autenticidade do vídeo pudesse ser novamente contestada.

Dia 25/2/2010, enviei por e-mail, para a capitã Fulton, o endereço do vídeo, exatamente de onde estava arquivado em nosso drive “T”, e uma cópia do vídeo publicado pela Organização WikiLeaks, que eu recolhera de um jornal de fonte aberta, para que ela comparasse os vídeos.

Nessa época, gravei em outro CD o vídeo da equipe do veículo aéreo armado. Para que parecesse autêntico, colei no CD uma etiqueta de documento secreto protegido, na qual escrevi “Reuters FOIA REQ” [requisitado pela Reuters, nos termos da lei FOIA].

Coloquei o CD gravado num dos estojos para transporte de CD pessoais junto com CDs “Starting Out in Arabic”. Meu plano era enviar o CD por correio, para a Agência Reuters, depois que fôssemos realocados, para que eles tivessem em arquivo uma cópia indiscutivelmente autêntica.

Quase imediatamente depois de despachar o vídeo da equipe do veículo aéreo armado e dos documentos de leis de guerra, avisei as pessoas do canal IRC da Organização WikiLeaks para que esperassem envio de material muito importante.

Recebi resposta de um indivíduo going by the handle of “ox” – de início, nossas conversações eram genéricas, mas com o tempo, à medida que nossas conversações progrediam, concluí que essa pessoa seria elemento importante da Organização WikiLeaks.

Dadas as regras de absoluto anonimato na Organização WikiLeaks, jamais trocamos qualquer informação de identificação.

Mas acho provável que fosse o sr. Julian Assange (foto) [pronunciado com três sílabas], sr. Daniel Schmidt, ou alguma espécie de representante procurador do sr. Assange e Schmidt.

Com a comunicação já transferida do IRC para o cliente Jabber, dei ao [meu interlocutor] “ox” e depois à “pressassociation” [aprox. “associação-de-imprensa”] o nome de Nathaniel Frank no meu livro de endereços, autor de um livro que li em 2009.

Depois de algum tempo, desenvolvi o que me parecia ser um relacionamento de amizade com “Nathaniel”. Nossos interesses comuns em tecnologia de informação e em política tornavam muito agradáveis as nossas conversas. Conversávamos bem frequentemente. Às vezes durante uma hora ou mais. Eu sempre esperava ansioso pelas conversas com “Nathaniel”, depois do trabalho.

O anonimato assegurado pelo TOR e pelo cliente Jabber e a política da Organização WikiLeaks permitiam que eu me sentisse eu mesmo, livre das preocupações impostas pelos rótulos e percepções sociais que tão frequentemente tanto pesam sobre mim na vida real. Na vida real, fazia-me falta uma amizade mais próxima com as pessoas que também trabalhavam na seção S2.

Na minha seção, a seção S2, apoiava batalhões e a equipe de combate da 2ª Brigada, em geral, como um todo. Por exemplo, não mantinha qualquer relacionamento sequer com meu companheiro de quarto, porque era visível o desconforto dele ante minha orientação sexual como ele a percebia.

Ao longo de alguns meses seguintes, mantive contato frequente com "Nathaniel". Conversávamos quase diariamente e tive a impressão de que estávamos desenvolvendo uma amizade.

Nossas conversas giravam em torno de muitos tópicos e eu gostava da capacidade de conversar sobre quase qualquer assunto, não só das publicações nas quais a Organização WikiLeaks estava trabalhando.

Em retrospectiva, vejo que essas dinâmicas eram artificiais, mais valorizadas por mim, que por "Nathaniel". Para mim, aquelas conversas eram uma oportunidade de escapar das imensas pressões e ansiedade que eu sentia, e que só aumentaram ao longo do meu tempo de serviço.

Minha impressão era que, por mais que eu me esforçasse cada vez mais para enquadrar-me no trabalho, mais me afastava dos meus pares e mais perdia o respeito, a confiança e o apoio de que eu precisava.

Fatos relacionados ao armazenamento não autorizado e à divulgação de documentos sobre detidos pela Polícia Federal Iraquiana [orig. Iraqi Federal Police or FP]; os Relatórios de Avaliação dos Detentos [orig.Detainee Assessment Briefs]; e o relatório do Centro de Contrainteligência do Exército dos EUA [orig. United States Army Counter Intelligence Center, USACIC]
Dia 27/2/2010, foi recebido um relatório de um batalhão subordinado. O documento relatava evento no qual a Polícia Federal (PF) detivera 15 indivíduos por imprimirem literatura anti-iraquiana.

Dia 2/3/2010, recebi instruções de um oficial de seção S3 na Equipe de Combate da 2ª Brigada, Centro de Operação Tática (TOC) da Divisão de Montanha, para investigar o assunto e definir quem eram [cito] “os bandidos”; e que importância tinha o evento para a Polícia Federal do Iraque.

Durante minhas pesquisas, descobri que nenhum dos presos tinha registro de qualquer outra atividade ou ação anti-Iraque, ou era suspeito de participação ou contato com milícias terroristas de qualquer tipo.

Algumas horas depois, recebi várias [playlist? fotos] da cena – daquele batalhão subordinado. Haviam sido acidentalmente enviados para uma oficial de outra equipe da S2, e ela repassou as listas para mim.

Havia ali fotos dos indivíduos, caixas de papel para imprimir não usado e cópias confiscadas do material final impresso ou de documento impresso; e uma cópia, de alta resolução do próprio material impresso. Imprimi uma cópia da imagem em alta resolução – laminada, para facilitar o uso e a transmissão. Andei até o TOC e entreguei a cópia laminada à nossa intérprete categoria 2.

Ela revisou a informação e, hora e meia depois entregou um primeiro rascunho da primeira transcrição em inglês à seção S2. Li a transcrição e a reli com a intérprete; perguntei-lhe o que seria aquele conteúdo, na avaliação dela. Ela disse que não era difícil transcrever verbatim, porque eu tratara a imagem e a laminara. Disse também que a natureza geral do documento era benigna. O documento, como eu já desconfiara que fosse, não passava de uma crítica acadêmica contra o então Primeiro-Ministro do Iraque, Nouri al-Maliki.

Dava detalhes da corrupção que havia dentro do governo do Gabinete de al-Maliki; e do impacto financeiro dessa corrupção sobre o povo iraquiano. Tendo descoberto essa discrepância entre o relatório da Polícia Federal e a transcrição que nossa intérprete fizera, passei adiante o resultado do meu trabalho para a cúpula dos meus oficiais comandantes, e para o centro em campo, NCOIC.

Meu superior, na cadeia de comando e o capitão que estava no front informaram-me que não precisavam daquela informação e que não queriam voltar a receber informação sobre o assunto. Disseram que eu [cito] “esquecesse”; e que só os ajudasse e a Polícia Federal a descobrir onde estariam escondidas outras daquelas lojas de impressão que produziam [cito] “literatura anti-Iraque”.

Não acreditei no que ouvia. Voltei ao T-SCIF e falei, reclamando, a outros analistas e à minha seção no NCOIC, sobre o que havia acontecido. Alguns deram sinal de solidariedade ou simpatia. Mas ninguém quis fazer coisa alguma.

Sou do tipo de gente que gosta de saber e entender como as coisas funcionam. E, como analista, implica que sempre quero entender como as coisas realmente acontecem ou são.

Diferente de outros analistas, na minha seção e em outras seções na Equipe da 2ª Brigada de Combate, não me bastava arranhar a superfície e oferecer avaliações “enlatadas” ou cobertas de confeitos de bolo. Eu sempre queria saber como uma coisa era o que era, e se haveria algo a fazer para corrigir ou mitigar uma situação.

Eu sabia que, se continuasse a ajudar a Polícia Federal de Bagdá a identificar os opositores políticos do Primeiro-Ministro al-Maliki, aquelas pessoas seriam presas e postas sob custódia da Polícia Federal de Bagdá, muito provavelmente, torturados, e “sumiriam” de vista por longo tempo – ou para sempre.

Em vez de auxiliar a Unidade Especial da Polícia Federal de Bagdá, decidir levar a informação e expô-la na Organização WikiLeaks, na esperança de que, antes da então próxima eleição de 7/3/2010, elas gerassem alguma imprensa imediata sobre a questão e de impedir que aquela unidade da Polícia Federal continuasse a atacar os opositores políticos de al-Maliki.

Dia 4/3/2010, salvei num CD os relatórios, as fotos e a imagem em alta resolução do panfleto e os rascunhos à mão da transcrição que a intérprete fizera. Levei o CD para o meu alojamento (CHU) e copiei os dados para o meu computador pessoal.

Diferente das outras vezes, em vez de enviar a informação pelo formulário de envio que havia na website da Organização WikiLeaks, fiz uma conexão de Secure File Transfer Protocol (SFTP) para uma caixa de recepção de arquivos operada pela Organização WikiLeaks.

Na caixa havia uma pasta na qual pude carregar diretamente a informação, salvando os arquivos nesse diretório. Assim, qualquer um podia entrar na mesma pasta, com acesso pelo servidor, e ver e baixar o que ali encontrasse. Depois de carregar esses arquivos na página da Organização WikiLeaks, dia 5/3/210, avisei “Nathaniel”, pelo Jabber. Embora simpático, ele disse que a Organização WikiLeaks precisava de mais informação para confirmar o evento, para publicá-lo ou atrair o interesse da imprensa internacional.

Tentei fornecer essas especificações, mas, para meu desapontamento, a Organização WikiLeaks optou por não publicar essa informação. Ao mesmo tempo, comecei a analisar informação do Comando Sul dos EUA, SOUTHCOM, e da Força Tarefa Conjunta Guantánamo, Cuba (JTF-GTMO).

Ocorreu-me o pensamento de que – embora pouco provável –, não me surpreenderia se os indivíduos detidos pela Polícia Federal de Bagdá acabassem sob custódia da Força Tarefa Conjunta Guantánamo.

Enquanto ia digerindo a informação sobre a Força Tarefa Conjunta Guantánamo, rapidamente descobri os DABs – Detainee Assessment Briefs [Resumos de Avaliação de Detentos]. Já vira o documento antes, em 2009, mas não pensara muito sobre eles. Dessa vez, contudo, estava mais curioso na nova pesquisa e voltei a encontrá-lo.

Os Resumos de Avaliação de Detentos eram redigidos em formato padrão de memorando do Departamento de Defesa e dirigidos ao comandante do Comando Sul dos EUA (US SOUTHCOM). Cada memorando dava informações básica e de cenário sobre um detido, em algum momento, pela Força Tarefa Conjunta Guantánamo.

Sempre me interessara a questão da eficácia moral das nossas ações em torno da Força Tarefa Conjunta Guantánamo. Por outro lado, sempre entendi a necessidade de deter e interrogar indivíduos cujo objetivo fosse causar dano aos EUA e nossos aliados, e sabia que era isso o que procurávamos fazer na Força Tarefa Conjunta Guantánamo.

Mas, quanto mais me ia informando sobre o tópico, mais me convencia de que estávamos mantendo presos por tempo indefinido número cada vez maior de indivíduos que acreditávamos inocentes ou que eram, sim, inocentes, soldados de grau bem inferior, que não contavam com boa informação de inteligência e que, se continuassem no teatro original, logo seriam libertados.

Lembro também que no início de 2009 o então recém eleito presidente Barack Obama, declarou que fecharia a Força Tarefa Conjunta Guantánamo e que a prisão comprometia nossa posição de liderança e diminuía [cito] “nossa autoridade moral”.

Depois de me familiarizar com os Resumos de Avaliação de Detentos, concordo com o presidente. Lendo os Resumos de Avaliação de Detentos, observei que não eram produtos analíticos; continham apenas resumos recortados de relatórios intermediários de inteligência, quase todos antigos ou não considerados sigilosos.

Nenhum dos Resumos de Avaliação de Detentos trazia nomes das fontes ou citações de relatórios de interrogatórios táticos [orig. tactical interrogation reports, TIRs]. Dado que os Resumos de Avaliação de Detentos estavam sendo enviados para o comandante do US SOUTHCOM, avaliei que visavam a gerar informação de contexto, muito ampla, para cada um dos detentos; que não eram avaliação detalhada de coisa alguma.

Além do modo como os Resumos de Avaliação de Detentos eram redigidos, reconheci que já eram velhos de no mínimo sete anos; e falavam de detentos que já haviam sido libertados da Força Tarefa Conjunta Guantánamo. Baseado nisso, determinei que os Resumos de Avaliação de Detentos não tinham importância alguma, nem do ponto de vista da inteligência, nem do ponto de vista da segurança nacional.

Dia 7/3/2010, em conversa com “Nathaniel”, perguntei a ele se achava que os Resumos de Avaliação de Detentos tivessem alguma utilidade para alguém.

"Nathaniel" sugeriu que, apesar de não crer que tivessem qualquer significado político, acreditava que poderiam ser úteis para construir um relato histórico do que realmente acontecera na Força Tarefa Conjunta Guantánamo. Disse também que achava que os Resumos de Avaliação de Detentos poderiam ser úteis para os advogados dos presos atuais ou mais antigos que haviam passado pela Força Tarefa Conjunta Guantánamo.

Depois dessa discussão, decidir baixar todos os dados. Usei um aplicativo chamado Wget para baixar os Resumos de Avaliação de Detentos. Baixei Wget do laptop da NIPRnet no T-SCIF, como outros programas. Salvei num CD e guardei o executável no diretório “Meus Documentos” sob meu perfil de usuário na estação de trabalho D6-A da rede SIPRnet.

Dia 7/3/2010, tomei a lista de links para os Resumos de Avaliação de Detentos, e Wget baixou-os sequencialmente. Gravei os dados num CD e levei para o meu alojamento, onde os copiei para o meu computador pessoal. Dia 8/3/2010, combinei, num mesmo arquivo IP comprimido, os Resumos de Avaliação de Detentos e os relatórios do Centro de Contrainteligência do Exército dos EUA sobre a Organização WikiLeaks. Arquivos Zip contém muitos arquivos que são comprimidos para reduzir-lhes o tamanho.

Depois de criar o arquivo zip, carreguei-o na caixa de receber arquivos pelo Secure File Transfer Protocol. Depois de os arquivos estarem enviados, avisei “Nathaniel” de que a informação estava no diretório “x”, assim nomeado para que eu o usasse. Antes, naquele dia, já havia enviado para a Organização WikiLeaks o relatório USACIC.

Como já disse, eu já havia revisado o relatório inúmeras vezes, e, apesar de ter salvado o documento antes na estação de trabalho, não conseguia localizá-lo. Depois que reencontrei, baixei também para a minha estação de trabalho e salvei-o no mesmo CD, com os Resumos de Avaliação de Detentos de que falei acima.

Embora eu tivesse livre acesso a quantidade enorme de informação, decidi que não tinha mais nada a enviar à Organização WikiLeaks, depois de enviar os Resumos de Avaliação de Detentos e o relatório do Centro de Contra-insurgência dos EUA (USACIC).

Até ali, havia feito as seguintes remessas: arquivos CIDNE-I e CIDNE-A das “atividades significativas” (SigActs); o telegrama “Reykjavik 13” do Departamento de Estado; o vídeo de 12/7/2007 do ataque pelo veículo aéreo armado e os documentos das leis de guerra de 2006-2007; o relatório de SigAct e documentos de apoio sobre os 15 indivíduos presos pela Polícia Federal da Bagdá; os Resumos de Avaliação de Detentos do Comando Sul dos EUA e da Força Tarefa Conjunta Guantánamo; um relatório Centro de Contra-insurgência dos EUA (USACIC) sobre a página de WikiLeaks e a Organização WikiLeaks.

Nas primeiras semanas seguintes, não enviei qualquer informação adicional à Organização WikiLeaks. Continuava a conversar com “Nathaniel” através do Jabber cliente e pelo canal IRC da Organização WikiLeaks. Embora tenha parado de enviar documentos à Organização WikiLeaks, ninguém da OW ou associado à OW jamais me pressionou para repassar mais informação.

Todas as decisões que tomei, de enviar documentos e informação à Organização WikiLeaks e à página daquela organização foram decisões exclusivamente minhas – e assumo plena responsabilidade pelas minhas ações.

Fatos relacionados à revelação não autorizada de outros documentos do Governo
Dia 22/3/2010, baixei dois documentos. Encontrei-os durante minhas tarefas rotineiras, como analista. O treinamento e a orientação de meus superiores sempre insistiram em que eu examinasse a maior quantidade possível de informação.

Nesse trabalho, adquiri a habilidade para ver conexões que poderiam escapar a muitos outros. Várias vezes, durante o mês de março, acessei informação de uma entidade do Governo. Li inúmeros documentos de um setor interno, naquela entidade do Governo. O conteúdo de dois desses documentos me perturbaram enormemente. Foi difícil, para mim, acreditar no que aquele setor estava fazendo.

Dia 22/3/2010, baixei os dois documentos que me pareceram perturbadores. Comprimi ambos num arquivo zip, de nome blah.zip e gravei-o num CD. Levei o CD para o meu alojamento CHU e salvei o arquivo no meu computador pessoal.

E carreguei a informação na página da Organização WikiLeaks usando os formulários lá indicados.

Fatos relacionados ao armazenamento não autorizado e à divulgação dos Telegramas da Net Centric Diplomacy, do Departamento de Estado
No final de março de 2010, recebi aviso pelo Jabber, de “Nathaniel”, de que a página da Organização WikiLeaks publicaria em breve o vídeo do ataque do veículo aéreo armado. “Nathaniel” dizia que estariam muito ocupados e que a frequência e a intensidade de nossas conversas pelo Jabber diminuiriam significativamente. Durante esse tempo, só tive o trabalho, para me distrair.

Li mais telegramas diplomáticos publicados da Net Centric Diplomacy do Departamento de Estado. Insaciável curioso, e interessado em geopolítica, aqueles telegramas me fascinaram. Li, não só os telegramas sobre o Iraque, mas também sobre outros países e eventos que achei interessantes.

Quando mais lia, mais fascinado ficava com o modo como lidáramos com outras nações e organizações. Também não conseguia parar de pensar nos negócios ali documentados, feitos por trás das cortinas; e da atividade aparentemente criminosa que não parece que seja típica ou recomendável para o líder de facto do mundo livre.

Até esse ponto, durante todo meu tempo de serviço, enfrentei problemas e dificuldades no trabalho. De todos os documentos de distribuí, os telegramas foram o único caso em relação ao qual não tive certeza absoluta de que não poderiam causar dano aos EUA. Pesquisei os telegramas publicados mediante a Net Centric Diplomacy, e procurei pesquisar também como funcionavam, em geral, os telegramas do Departamento de Estado.

Queria saber, especialmente, como a Net Centric Diplomacy publicava cada telegrama na SIRPnet. Como parte da minha pesquisa em veículos de fonte aberta, encontrei um documento publicado pelo Departamento de Estado na sua página oficial na Internet.

O documento dava orientação sobre as marcações no cabeçalho dos telegramas individuais e instruções sobre a distribuição de cada telegrama. Aprendi rapidamente que as marcações de cabeçalho detalhavam a sensibilidade dos telegramas do Departamento de Estado. Por exemplo, NODIS ou “No Distribution” [não distribuir] era usado nas mensagens de mais alta sensibilidade e que só eram distribuídas para as autoridades autorizadas.

A distribuição para SIPDIS ou “SIPRnet distribution” [só para a rede SIPRnet] só se aplicava a gravação de outra mensagem de informação que se considerasse adequada para distribuição para grande número de indivíduos. Se a orientação do Departamento de Estado para um telegrama contivesse a [perdi uma palavra] SIPDIS [perdi uma palavra] no cabeçalho, o telegrama não incluía outras marcas que indicassem que a distribuição era limitada.

A marca SIPDIS no cabeçalho só aparecia em informação que só podia ser partilhada com outro destinatário que tivesse acesso à SIPRnet. Eu sabia que milhares, no pessoal militar, no Departamento da Defesa, no Departamento de Estado e em outras agências civis tinha fácil acesso àqueles arquivos. O fato de que a marca SIPDIS no cabeçalho indicasse distribuição ampla fazia sentido para mim, porque a vasta maioria dos telegramas da rede Net Centric Diplomacy não eram secretos.

Quanto mais eu lia os telegramas, mais me firmava na conclusão de que aquele era o tipo de informação que tinha de se tornar pública.

Li certa vez e usei como citação uma frase sobre diplomacia aberta escrita depois da 1ª Guerra Mundial, de como o mundo seria lugar melhor, se os estados evitassem os pactos e os negócios secretos com e contra uns e outros.

Pensei que aqueles telegramas eram exemplo perfeito da necessidade de uma diplomacia mais aberta. Considerados todos os telegramas do Departamento de Estado que li, a maioria dos telegramas não eram secretos e todos os telegramas tinham a marcas SIPDIS no cabeçalho.

Tinha certeza de que a divulgação daqueles telegramas não causaria dano algum os EUA, mas entendia que os telegramas talvez criassem embaraços, porque manifestam opiniões bem claras e declarações feitas pelas costas de outras nações e organizações.

Em vários sentidos, aqueles telegramas são um catálogo de diz-que-dizes e intrigas. Entendia que a divulgação dessa informação talvez fizesse a infelicidade de alguns dentro do Departamento de Estado e de outras entidades do governo.

Dia 22/3/2010, comecei a baixar uma cópia dos telegramas SIPDIS, usando o programa Wget, descrito acima.

Usei possibilidades do aplicativo Wget para baixar os telegramas da rede Net Centric Diplomacy, enquanto fazia outras coisas. Enquanto trabalhava nas minhas tarefas diárias, os telegramas da Net Centric Diplomacy foram baixados entre os dias 28/3/2010 e 9/4/2010. Depois de baixados, salvei os telegramas num CD.

Os telegramas iam das primeiras datas na rede Net Centric Diplomacy até 28/2/2010. Levei o CD para meu alojamento CHU, no dia 10/4/2010. Passei os telegramas para o meu computador pessoal e comprimi todos os arquivos usando o algoritmo de compressão bzip2 descrito acima, e enviei-os para a Organização WikiLeaks pela caixa já descrita acima.

Dia 3/5/2010, usei Wget para baixar e atualizar o arquivo de telegramas até os meses de março 2010 e abril 2010 e salvei a informação num CD. Levei o CD para meu alojamento CHU e salvei para o meu computador.

Depois, percebi que o arquivo se corrompera, durante a transferência. Pretendia re-salvar outra cópia desses telegramas, mas dia 8/5/2010 fui removido da T-SCIF, depois de uma altercação.

Fatos relacionados ao armazenamento e distribuição não autorizada de investigações e vídeos de Garani, província Farah, Afeganistão, 15-6
[OBS. O soldado Manning declarou-se “não culpado” na especificação 11, acusação II, caso do vídeo Garani, de que o governo o acusa. Mais, sobre isso em: “Cracking the First Amendment: USG builds conspiracy into the trial of Bradley Manning”].

No final de março de 2010, descobri um US CENTCOM diretamente sobre um ataque aéreo de 2009 no Afeganistão. Estava pesquisando CENTCOM, à procura de material que me servisse, como analista. Como disse acima, era serviço que eu e outros oficiais fazíamos muito frequentemente.

Revisei o incidente e o que acontecera. O ataque aéreo aconteceu na Vila de Garani na província de Farah, no noroeste do Afeganistão. O evento recebeu cobertura de mídia em todo o mundo, em notícias que falavam de 100-150 civis afegãos – a maioria mulheres e crianças – mortos acidentalmente durante o ataque aéreo.

Depois de ler o relatório e [perdi a palavra] anexos, comecei a revisar o incidente, que me parecia similar ao de 12/7/2007, com o veículo aéreo armado no Iraque. Mas esse evento era notavelmente diferente, porque envolvera número muito maior de indivíduos, veículo aéreo maior e munição muito mais pesada. E as conclusões do relatório são ainda mais perturbadoras do que as do outro incidente, de julho de 2007.

Não vi coisa alguma no relatório 15-6 ou nos anexos que fosse informação sensível. E a investigação e conclusões eram – o que os envolvidos deveriam ter feito e como evitar que evento daquele tipo volte a acontecer.

Depois de investigar o relatório e seus anexos, baixei a investigação 15-6, apresentações em PowerPoint e vários outros documentos de apoio para o meu computador D6-A na minha estação de trabalho. Também baixei três arquivos zipados que continham os vídeos do incidente. Gravei essa informação num CD e transferi para o meu computador pessoal no meu alojamento CHU.

Mais tarde, ou no dia seguinte, carreguei a informação na página da Organização WikiLeaks, dessa vez usando uma nova versão de formulário para enviar dados na página da Organização WikiLeaks.

Diferente das vezes anteriores em que usei o formulário acima referido, não ativei o anonimizador TOR.

Meritíssima juíza, assim concluo minha declaração e os fatos para essa audiência.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/03/declaracao-de-bradley-manning-ao_5167.html

Postagens anteriores:
- Surge um herói nos EUA - A rara coragem de Bradley Manning - Parte 1/3 - Marjorie Cohn
- Surge um herói nos EUA - A rara coragem de Bradley Manning - Parte 2/3 - Alexa O'Brien

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.