10/04/2012 - Gilberto Maringoni - Carta Maior
Malogro do 11 de abril de 2002 marca uma novidade na América Latina. Nu
nca uma articulação envolvendo classes dominantes, Igreja Católica, mídia e Estados Unidos fracassara por aqui. Hoje, com a popularidede acima de 60%, Chávez é o favorito na disputa presidencial. Mas um drama pessoal ameaça se transformar em fator político determinante: a gravidade de seu quadro de saúde. Se a situação se agravar, não há substituto à altura. Não há uma Dilma do Chávez.

O artigo é de Gilberto Maringoni.

Aceitei e fiz as malas sem saber muito do país, além da generalidade superficial de quem l
ê o noticiário da mídia brasileira. Dias antes, Arnaldo Jabor havia saudado o golpe. Aparecera com aquele ar de amigo esperto nas telas da Globo, segurando uma taça de vinho numa mão e uma banana na outra. “Vamos brindar o fim de mais uma república bananeira”, ironizou, antes de fazer biquinho para saborear a bebida.

O Estado de S. Paulo foi mais direto. No editorial de sábado, 13 de abril tascou o seguinte: “O que ocorreu na Venezuela não foi um simples golpe de Estado que tirou do poder o coronel Hugo Chávez. Foi - assim como ocorreu no Brasil em 1964 - uma reação cívica a um governo que, eleito em pleito livre, em consequência do cansaço popular com partidos que já não tinham representação e se excediam na corrupção, se esmerou, uma vez no poder, em eliminar progressivamente todo e qualquer vestígio daquilo que se poderia chamar de institucionalidade democrática”.
Clima pesado
Em Caracas, o clima era mais pesado. Os jornais e os noticiários de TV praticamente diziam que Chávez era o responsável pelo golpe. Havia denúncias e mais denúncias, anúncios catastróficos sobre a reforma agrária e um rosário de torpedos verbais contra o presidente em todos os horários e canais. Mas os atendentes, camareiras, garçons, camelôs, balconistas, mendigos, cobradores de ônibus e lideranças de bairros estavam exultantes. “Intentaran sacar el presidente porque él és nuestro”, me falou baixinho a copeira do hotel onde fiquei.
A sensação nas ruas era semelhante. As marchas da oposição exibiam loiras oxigenadas, com blusas de oncinha, calça de couro e salto alto. Também se viam rapazes, marombados por intermináveis horas nas academias, descendo de Pajeros e Cherokees. A ala dos governistas era composta por mulatos, mestiços, desdentados e malvestidos. Visualmente, o panorama era de ricos contra pobres, quase uma imagem de manual de luta de classes.
O malogro
O malogro da ação se deu por três fatores:
1. Os golpistas não conseguiram maioria nas forças armad
as. A cúpula queria a saída de Chávez, mas a média oficialidade e os cabos e soldados não embarcaram na intentona. Na própria madrugada do dia 12, enquanto o presidente era detido, várias guarnições importantes começaram a se rebelar;
2. A formidável reação popular evidenciou a rarefeita legitimidade da nova situação e
3. O novo governo conheceu um acachapante isolamento internacional.
O fim da trapalh
ada ficará marcado como uma das mais belas e emocionantes páginas das lutas sociais de todo o mundo. O figurino continental desandou. Puxadas de tapetes com sólidos apoios entre o empresariado, a Igreja Católica, os militares e a embaixada dos Estados Unidos nunca foram revertidos de forma tão espetacular.

Qual o real significado das movimentações daqueles dias?
A oposição valia-se de um argumento semelhante ao do jornal O Estado de S. Paulo: não houve golpe, mas um levante cívico militar contra a baderna. Golpista seria Chávez, que liderou um fracassado levante militar em 1992. O presidente, de seu lado, não economizou palavras para demonstrar a aliança de Pedro Carmona com a Casa Branca, num quadro de radicalização internacional promovida pelo governo de George W. Bush, poucos meses após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Produto de uma crise

Um olhar superficial poderia classificar o surgimento de Chávez na cena política como a chegada de um salvador da Pátria. Ao longo dos anos, ele mostrou ser não apenas um dirigente capaz de recompor as bases institucionais da Venezuela, mas de tornar-se um fator de estabilidade política.
As classes dominantes locais e seus aliados internacionais somente muito mais t
arde perceberiam não estar diante de mais um governante que poderia ser apeado da cadeira presidencial a qualquer momento. O ex-militar tornou-se caudatário de algo mais profundo. Sua legitimidade expressa uma mudança na estrutura de classes do país, com a entrada em cena de multidões empobrecidas e desiludidas, com difusos anseios de mudança.

Seria muito difícil, nessas condições, o governo golpista se estabilizar. Se derrotasse a investida popular, Carmona teria de seguir lançando medidas draconianas para se manter.
Força e fraqueza
A força do governo é, contraditoriamente, a razão de sua fraqueza. O presidente é não só um líder, mas o principal e praticamente único garantidor da estabilidade política e social. É o porta-voz central de seu governo, assim como é o grande intelectual, formulador e estrategista das ações de Estado.
O câncer que acomete atualmente o presidente Hugo Chávez tem, assim, duas dimensões principais. É um drama pessoal. Não se conhece claramente sua extensão ou gravidade. E pode se tornar uma tragédia política. Se a situação se agravar, não há substituto à altura. Nenhum membro do governo ou das forças aliadas poderia conduzir o processo político local sem enfrentar sérias turbulências iniciais.
Não há uma Dilma do Chávez.
Dez anos depois do golpe, o presidente continua a manter índices de aprovação acima de 60%. Há fatores objetivos para alavancar tais indicadores: a vida melhorou na Venezuela. Os pobres comem mais, têm mais acesso à saúde, educação e serviços sociais essenciais. A sociedade segue violenta, mas a desigualdade se reduziu. Se tentarmos sintetizar esse período, podemos dizer que a grande diretriz oficial tem sido a de fortalecer o Estado e investir prioritariamente nas áreas sociais.
Os mandatos de Chávez têm sido marcados por enfrentamentos de variados tipos. Eles vão de tentativas de tirá-lo do poder a turbulências econômicas agravadas pela crise de 2008. A isso se somam dificuldades enfrentadas por um país quase sem indústrias, cuja economia baseia-se em grande parte na exportação de petróleo.
Chávez é o grande favorito para vencer as eleições pres
idenciais de outubro. Mas a vitória não representará o fim dos problemas. O presidente agora luta pela vida. Nas condições atuais da Venezuela, isso tem um significado político vasto, profundo e decisivo para o país.

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