25/11/2013 - Geni, por Roberto Amaral - Carta Capital
José Genoino, preso, algemado e torturado após a guerrilha do Araguaia. "Naquela hora eu pensava na minha família que esperava ter um filho doutor para ajudá-los"
(José Genoíno, sobre o momento da prisão em Xambioá)
É este ser humano que, para gáudio de seus torturadores, sofre o mais escandaloso linchamento moral a que um homem público brasileiro jamais foi submetido.
‘Nenhuma boa ideia merece um cadáver’.
(Héctor Erazo, escritor colombiano)
De sua vida conheço pouco. O suficiente, porém, para respeitá-lo e nutrir profundo desprezo pelos que tentam depredar sua história e sua honra.
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Maria Laís e Sebastião Guimarães, pais de José Genoíno |
Filho de camponês no interior do interior do Ceará [foto], em pleno semiárido nordestino, conheceu na carne, cedo, as forças telúricas que o sertanejo pobre precisa arregimentar para sobreviver.
Menino ainda, trabalharia com o pai como “
cassaco” nas frentes de trabalho do DNOCS, carregando pedra e abrindo à força da enxada estradas de terra, pretexto para dar sobrevida aos flagelados da seca de 1958.
O salário era pago em alimentos e querosene para o lampião.
Pelas mãos de um pároco entusiasmado pela Teoria da Libertação (por onde andará o Padre Salmito?), do qual fora coroinha, deixa a roça para lutar na cidade grande por melhores oportunidades de sobrevivência digna.
Refaz a trajetória atávica de tantos antepassados.
Em Fortaleza, trabalha e estuda à noite em colégios públicos, ingressa na Faculdade de Direito (quando seria aluno de Paulo Bonavides) e é conquistado pelo movimento estudantil, pelo qual se destaca para conhecer a primeira prisão de sua vida severina (severíssima, saberia anos depois): na primeira incursão em defesa da democracia, em uma passeata contra o golpe de 1964 – golpe, relembre-se, maquinado nos quartéis e nos altos círculos do empresariado com destaque para os grandes capitães da grande imprensa brasileira, daquele de então e de hoje.
Golpe que, não sabia, naquela altura, o perseguiria até hoje.
Quatro anos passados, ainda universitário, é preso no Congresso da UNE em Ibiúna (1968), no interior de São Paulo.
Solto, tem a prisão preventiva decretada; sem alternativa, ingressa na clandestinidade e vai travar como lhe permitem as circunstâncias sua luta na resistência à ditadura.
Não sei o que, naquela altura, faziam seus algozes de hoje.
Da luta de massa, ele transita para a resistência armada.
Em junho de 1970, filiado ao PCdoB, ingressa na guerrilha do Araguaia.
Conhece o inferno e descobrirá que sua vida severina era uma quase-morte.
Preso em 1972 pelo Exército Brasileiro, vê-se, clandestino, incógnito, à mercê da humilhação, da ofensa, da degradação física e moral, a ignomínia da tortura a mais insidiosa, implacável, fria, bestial e científica, na qual o pau-de-arara, a
“cadeira do dragão” (choques elétricos), o sufocamento, os
“telefones” (pancadas nos ouvidos) e os pontapés eram o vestibular do inimaginável em termos de perversão e perversidade.
Foi torturado ainda no Araguaia (e como o foi!), em Brasília e em São Paulo.
Preso clandestino, incógnito, verdadeiro sequestrado, sem conhecimento da autoridade judiciária, inteiramente à disposição de seus algozes, sem o amparo sequer da lei de proteção aos animais, invocada nos idos do Estado Novo pelo apóstolo Sobral Pinto na defesa de Prestes. Só não padeceu onde não esteve.
Conheci-o no final dos anos 80 (só em 1977 ele recobraria a liberdade), chefiando eu a assessoria da bancada do PSB na Constituinte liderada pelo inesquecível e saudoso Jamil Haddad, ele um dos mais destacados deputados do PT.
Ex-guerrilheiro, líder radical do Partido Revolucionário Comunista (então uma fração dentro do PT), revela-se conciliador e articulador habilidoso, um dos costuradores de muitas das conquistas que a esquerda brasileira logrou trazer para a “
Constituição cidadã”.
Torturado por militares, poucos como ele, porém, tanto lutariam pela aproximação entre civis e militares.
Eu o reveria, corajoso, dedicado, na jornada do
impeachment contra o ex-presidente Collor, e continuaria acompanhando sua vida parlamentar, voltada à liberdade, à democracia e à defesa da soberania nacional.
Distanciava-se do marxismo-leninismo, mas permanecia obcecado pela justiça social, caminhando do esquerdismo para concepções socialdemocratas avançadas. Para o bem das esquerdas em geral, cultivava a crítica de nossas organizações.
No primeiro governo Lula é eleito presidente do PT, em substituição a José Dirceu, e por artes e maquinações que desconheço termina envolvido no chamado escândalo do “
mensalão”.
Sempre alegando inocência, foi acusado, julgado, condenado e apresentou-se à execução da pena.
É este ser humano (sim, ser humano!) que, para gáudio de seus torturadores impunes, sofre o mais escandaloso, brutal, injusto linchamento moral a que um homem público brasileiro jamais foi submetido.
Não discuto sua culpa nem o mérito da pena após tão longo e tumultuado julgamento, e sei que sua biografia não absolve os erros do presente.
Digo que o linchamento não é pena capitulada em nosso Código Penal.
Mais do que o justo clamor da opinião pública ferida em seus brios, cansada de tanta impunidade selecionada e sedenta de punição, vejo, na sua execração, uma difusa
vendetta.
Mais que os erros que lhe são imputados (dessa ainda não suficientemente esclarecida aventura do “
mensalão”), pesa sobre sua imagem de hoje a sombra do guerrilheiro do passado.
É a este que se pune. A biografia agrava a pena.
Os que não puderam matá-lo (como fizeram com Rubens Paiva, Stuart Angel, Mário Alves, Manuel Fiel Filho, Pedro Pomar, Bérgson Gurjão, Joaquim Câmara, Marighela, Herzog e tantos e tantos heróis), os que foram derrotados com a redemocratização, os que perderam todas as eleições, querem a revanche e avançam covardemente sobre o carcará sem asas, já sem garras, já sem fôlego.
No momento em que escrevo, a presa é um homem abatido, um cardiopata com uma aorta artificial, lutando contra crises de pressão arterial.
É o cadáver atrasado que, impacientes, reclamam.
É nesse homem que batem, um prisioneiro da Justiça, cumprindo pena como devem cumprir todos os condenados.
Quem ganha com isso? Que benefícios aufere nossa sociedade com a prática de tratar o oponente político como inimigo, e inimigo a ser abatido, destruído, dilacerado?
Estranhos tempos. Estranha história.
Maluf caminha lampeiro pelos gabinetes da Corte e o torturador Brilhante Ustra saboreia a aposentadoria que a impunidade lhe facultou.
Mas José Genoino Neto, um homem pobre após quase sete mandatos de deputado federal, cumpre pena por corrupção.
Estranhos tempos. Estranha história.
Nesta hora sombria, estendo a mão ao homem José Genoino Neto e nego-a aos que lhe jogam pedras, como na Geni de Chico Buarque.
Desprezo os linchadores, como desprezo os que se omitem diante de sua dor.
Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/politica/geni-545.html
Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.