domingo, 20 de maio de 2012

Carlos Fuentes: escrever para ser

16/05/2012 - por Eric Nepomuceno
Extraído do site Carta Maior

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos.

Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.

Fuentes acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro do ser humano.

Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade.

O artigo é de Eric Nepomuceno.


O escritor mexicano Carlos Fuentes, ao centro, à esq. o peruano Mario Vargas Llosa e à dir. o colombiano Gabriel García Márzquez (El País)

Vejo algumas fotos em preto e branco. E me detenho em uma, feita em algum dia incerto da Barcelona daqueles anos 70, mostrando um Vargas Llosa alto e sorridente, um Carlos Fuentes um tanto formal, e um Gabriel García Márquez cabeludo e com bigodes que parecem desenhados a carvão. Fuentes ainda fumava: na mão esquerda, posta fraternalmente sobre o ombro de García Márquez, aparece o cigarro. Ali estão eles: Vargas Llosa aparece à esquerda, Fuentes está no centro, García Márquez à direita. Exatamente o avesso do que a vida reservaria aos três, ou do que os três fariam de suas vidas.

Na foto, os três são jovens, e parecem confiantes, e ocupam o inverso do espaço que o tempo e a realidade se encarregariam de colocar em seus devidos lugares: quem à direita, ao centro, à esquerda.

Volta e meia imagino como terá sido ser jovem, ou melhor, ser um jovem Fuentes, um jovem Mario Vargas, um jovem García Márquez naqueles anos de turbilhão. Uma vez perguntei isso a Fuentes. Estávamos em São Paulo, caminhávamos ao léu com Silvia Lemus, sua mulher, para cima e para baixo por aquelas paralelas da rua Augusta, e ele me contava coisas. Dizia assim:

 "É que a gente era muito jovem, e acreditávamos nas mesmas coisas, e tínhamos uma confiança enorme no futuro".

Insistia: sua amizade com García Márquez, que vinha de 1961, era a qualquer prova. E acabei sendo testemunha disso, dessa verdade.

E lembro que algum tempo depois, coisa de ano ou ano e meio, ao entrar num restaurante italiano em Buenos Aires, topei com ele e com Silvia. E ele, como sempre de uma elegância sem fim – e, atenção: estou me referindo à elegância como postura diante da vida –, quis continuar uma conversa que eu nem lembrava qual era.


Argentino Julio Cortázar, escritor, Carlos Fuentes
e o cineasta espanhol Luis Buñuel

Era a conversa sobre nossos respectivos anos jovens. Disse ele, lembrando de Vargas Llosa, de García Márquez, de Cortázar: "A vida segue, e às vezes, nos separa. Bom mesmo é quando você consegue discordar de tudo e fazer com que nada separe os afetos, a amizade".

Tentou isso a vida inteira. Às vezes – com Cortázar, com García Márquez –, conseguiu. Aliás, sem maiores esforços.

Quando me refiro a ele como um homem elegante, me refiro a um pensamento que conseguia ser ao mesmo tempo ágil e contido, que não se limitava às barreiras que muitas vezes nos impomos a nós mesmos. Acreditava no que acreditava.

Acreditava no futuro.


No futuro da América Latina, no futuro do ser humano.


Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade.

E escrevia assim: acreditando.

Não há dois livros dele que sejam iguais. Porque, em seu ofício, Carlos Fuentes era como na vida: sempre disposto a recomeçar, a reinventar. Sua obra é desigual, porque ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós em nosso dia-a-dia.

A única coisa que se manteve sempre em cada palavra, cada frase que desenhou, foi a fé no futuro. Jamais acreditou em limites e fronteiras, quando escrevia. E nem quando vivia.

Qualquer um que tenha a palavra escrita como matéria prima, e a memória como guia dos tempos, saberá descobrir no autor de "A região mais transparente", ou "A morte de Artemio Cruz", ou de "Terra Nostra", de "Gringo Viejo", um eterno contemporâneo, um companheiro de viagem, um parceiro de sonhos e ousadias. E uma testemunha de desesperanças e esperanças, de tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não fomos.

Fuentes dizia que, mais do que pela obra dos grandes historiadores, dos grandes sociólogos, dos grandes antropólogos – e ele foi amigo de vários dos grandes –, a verdadeira história nossa era escrita por escritores.

Lembro bem da vez em que ele disse que escrever literatura não era um ato natural: era como dizer que a realidade, não é suficiente. Que precisa de outra realidade, a da imaginação. E que isso era perigoso. Assim viveu, assim escreveu.

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.

Eu perdi um amigo distante. Que teve uma vida coalhada de dramas tenebrosos – a ele e a Silvia foi reservada a pior das dores de um ser humano, a de enterrar seus filhos – e conseguiu continuar caminhando. E sorrindo.

Lembro de Carlos Fuentes como alguém que não se deixou abater. Que não deixou de sorrir e de acreditar.

 Certa vez, ele me disse que escrevia para continuar sendo. E, assim, foi.

sábado, 19 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 5/5 - Final

A Guerra da Água
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público
Parte 4/5: A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática

Estamos, na verdade, imersos numa guerra mundial envolvendo a água, mas não uma guerra no estilo clássico, com exércitos se enfrentando ou com bombardeios.

Não, a guerra pelo controle e gestão da água vem sendo disputada na Organização Mundial do Comércio, discutidas no Fórum Econômico de Davos, nas reuniões do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional onde se decide um novo "código das águas" que quer torná-la uma mercadoria e, para isso, é preciso primeiro privar os homens e mulheres comuns do acesso a ela.

Sem privatização não há mercantilização no sentido capitalista.

Mas as decisões feitas nesses fóruns da globalização do dinheiro não podem prescindir da materialidade concreta da água para mover a agricultura, a indústria, as cidades, a vida.

Assim, há que concretamente se apropriar da água nos lugares onde ela está e onde soem estar as populações com outros usos da água para a vida. Assim, como as guerras não se ganham com bombardeios, embora gere pânico e horror, há que se fazer presente no território de onde a água não pode ser abstraída porque ela atravessa toda a sociedade e seus lugares. Daí, em todo lugar onde se tenta se apropriar da água há resistência.


Jerson Kelman
A guerra global pelo controle da água tem especificidades ligadas à sua própria natureza. A água não é uma commoditty como se vem tratando tudo a partir momento em que se torna hegemônica essa mentalidade mercantil, liberal e privatista. Observemos o que diz Jerson Kelman, [ex] diretor da ANA [Agência Nacional de Águas]: “A água bruta não é uma commodity, como o petróleo, uma vez que não existe um mercado disposto a consumir grandes quantidades de água a um preço que compense os custos de transporte. Nem tampouco se prevê o surgimento desse mercado porque a maior parte do consumo de água doce do mundo se consome na irrigação."

"Para que se tenha uma idéia de quanta água é necessária para produzir alimentos, posso dar o seguinte exemplo: para produzir um quilo de milho são necessários mil litros de água. Um quilo de frango, cerca de dois mil litros. Vamos imaginar uma pessoa com pouca criatividade culinária que coma diariamente 200 g de frango e 800 g de milho. É só fazer as contas para concluir que essa pessoa come cerca de 1200 litros de água por dia, uma quantidade de água 500 vezes maior do que a que bebe. Naturalmente, esse cidadão não poderia pagar pela água que come o mesmo que paga pela água que bebe."

"(...) Uma coisa é o comércio internacional de água mineral, que pode atingir altíssimos preços unitários, mas que ocorre em escala relativamente modesta, apenas para atender às necessidades de beber. Outra coisa seria o comércio a granel de água bruta, como insumo agrícola. Devido à grande quantidade consumida per capita, não seria sustentável que os preços unitários fossem muito elevados. E como custa muito caro transportar água, o que faz mais sentido é exportar alimentos, e não água. Esta é, aliás, a grande vocação do Brasil” (EA, ano 12, no. 01, janeiros/abril de 2003: pág. 12). 

Lester Brown
Assim como Lester Brown já havia assinalado, as diferentes lucratividades possíveis com a mesma quantidade de água, maior na indústria que na agricultura, por exemplo, vemos aqui a que pode levar esse mesmo raciocínio – água para exportação se sobrepondo à água para consumo humano direto e, tudo indica, serão os conflitos sociais que advirão entre a lógica privatista e liberal e a de uso comum que decidirão as novas regulações da água.

Assim, vê-se como está sendo decidida a guerra global da água. Os governos, como salientou acima Maude Barlow, diminuem as tarifas para serem competitivos e o preço da água necessária para produzir commodities é subestimado, até porque seria impossível exportar, caso o preço fosse unificado. O que se revela, com isso, é todo o limite de regras universais com que o discurso liberal-econômico procura se revestir e, ainda, como a natureza continua transferindo uma riqueza, no caso a água, sem a qual a produção não seria possível, haja vista o preço que seria necessário pagar, caso tivesse que incorporar a água plenamente utilizada ao valor final da commodity.

Maude Barlow
A análise da água requer, o tempo todo, que se a considere na sua geograficidade, isto é, na inscrição concreta da sociedade na sua geografia, com as suas diferentes escalas local, regional, nacional e mundial imbricadas num processo complexo de articulação ecológico e político. Só assim se explica a transferência dos países ricos em capital para os países ricos em água de várias atividades altamente consumidoras, como assinalamos para as indústrias de papel e celulose e de alumínio.

A desordem ecológica global está, na verdade, associada ao processo que deslocou completamente a relação entre lugar de extração, de transformação e produção da matéria e o lugar de consumo com a revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) industrial. Com a maior eficácia energética foi possível explorar minerais em proporções ínfimas quanto à sua concentração nas diferentes jazidas existentes na geografia do planeta, assim como na sua natureza nanométrica. Os rejeitos ou foram deixados nos locais onde as pessoas valem menos – nunca é demais lembrar o racismo subjacente ao sistema-mundo moderno-colonial – e os produtos foram e são levados limpos para os lugares e pessoas que podiam e podem gozar os proveitos, diz-se a qualidade de vida, desde que não se incluam os custos dos seus rejeitos nem se lembre aos bem-nascidos dessa mosca pousando em sua sopa, parodiando Raul Seixas, que é a injustiça ambiental em que se ancora seu modo de vida. 

Boaventura de Sousa Santos
Dada a importância do tema da água é fundamental que ouçamos a observação de Boaventura de Sousa Santos que, rompendo com a colonialidade do saber e do poder, nos convida a que não desperdicemos as múltiplas experiências que a humanidade nos legou e que o primeiro-mundismo não nos deixa enxergar.

Diferentes instituições foram criadas por diferentes povos ao longo da história (e suas geografias) estabelecendo regras as mais variadas de uso da água. Os povos árabes e arabizados detém a esse respeito uma grande tradição de convivência com a água em áreas desérticas e semi-áridas. Os espanhóis são herdeiros de muitas dessas regras para lidar com la sequía e suas lições podem ser aprendidas em Yerma de Garcia Lorca.

Aziz Ab’Saber

Os sertanejos do nordeste brasileiro desenvolveram toda uma sabedoria que vai da previsão do tempo, que mereceu, inclusive, a atenção da NASA pelo seu elevado índice de precisão, ao aproveitamento máximo do mínimo de água com que têm que se haver diante da irregularidade das precipitações, com suas culturas de vazante, conforme destaca o geógrafo Aziz Ab’Saber.

Os chineses, hindus, os maias e os aztecas, que chegaram a ser chamadas pelos historiadores de civilizações do regadio, têm tradições que merecem ser estudadas, agora que a água parece convocar a todos a buscar novas formas de gestão e controle. Portanto, caso não se queira desperdiçar, mais uma vez, por preconceito, a diversidade de experiências que a humanidade desenvolveu, como é característico do etnocentrismo ocidental, não nos faltará inspiração para buscarmos soluções, sublinhe-se, no plural.

Tudo indica que o planeta como um todo começa a dizer, tanto ecológica como politicamente, que o local já não é isolável, tal como o foi durante o período áureo do colonialismo e do imperialismo clássicos.

O desafio ambiental nos conclama à solidariedade e a pensar para além do individualismo fóbico.

E como não há instituições que não sejam instituídas, é bom prestarmos atenção aos sujeitos instituintes que estão pondo esse-mundo-que-aí-está em xeque e que apontam, com sua lutas, que um outro mundo não só é possível, como necessário.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 4/5

A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público

1- A Transnacionalização e a Maior Concentração de Capital no Campo dos Recursos Hídricos


A liberalização e a mercantilização vem ensejando uma nova dinâmica à "conquista da água".

Trata-se, segundo Ricardo Petrella, “da integração entre todos os setores no contexto da luta pela sobrevivência e pela hegemonia no seio do oligopólio mundial. Cada um desses setores - água potável, água engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos – têm, no momento, seus protagonistas, suas especialidades, seus mercados, seus conflitos”.

A Nestlé e a Danone, por exemplo, são as duas maiores empresas do mundo em água mineral engarrafada e junto com a Coca-Cola e a Pepsi-Cola tornaram-se concorrentes das empresas de tratamento de água graças ao desenvolvimento e comercialização nas empresas e residências de uma água dita de síntese, purificada, apresentada como mais sadia do que a das torneiras.

As empresas francesas Vivendi Universal, com faturamento de cerca de 12,2 bilhões de dólares em 2001, e a Suez-Lyonaise des Euax, com faturamento de 9 bilhões de dólares no mesmo ano, vêm disputando ou se associando, conforme o caso, para ter o controle da água potável das torneiras com a gigante alemã RWE (e sua filial inglesa Thames Water), com a Biwwater, a Saur-Bouygues, a estadunidense Bechtel, Wessex Water (Enrom).

Segundo Franck Poupeau analista do Le Monde, “no mercado da água, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há quinze anos. Os sucessos da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos dez anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter”.

A lógica mercantil capitalista, por seu turno, vem mudando o destino da água, assim como os seus destinatários.

É o que se pode ver durante a crise provocada pela seca de 1995 no norte do México, quando o governo cortou o fornecimento de água para camponeses e fazendeiros locais, para garantir o abastecimento para as indústrias controladas em sua maioria por capitais estrangeiros (Barlow, M. in Ouro Azul – consultar http://www.canadians.org)/

Lester Brown também vem assinalando o desvio de água obedecendo à lógica da lucratividade. É ele quem nos oferece cálculos que nos dizem que, na Índia, uma tonelada de água pode gerar um lucro de US $ 200 na agricultura e de US$ 10.000 na indústria. Não deve nos causar surpresa, portanto, quando, aceita essa lógica de mercantilizar a água, se beneficie a água para o destino (e o destinatário) industrial, aliás como vem ocorrendo nos EUA, conforme o próprio Lester Brown, que nos informa que fazendeiros estão preferindo vender a água para industriais pois assim obtém maior lucro! Como observou um morador de Novo México após a água de sua comunidade ser desviada para o uso da indústria de tecnologia de ponta: “A água flui morro acima para o dinheiro”. (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org/).

Pode-se dizer, em benefício da dúvida quanto às boas intenções dos que estão propondo essas políticas, que esses são efeitos não desejados da sua aplicação. Todavia, são efeitos reais cujas conseqüências estão sendo, sobretudo, de agravar a injustiça ambiental. Afinal, a admissibilidade de que usemos a quantificação para efetuarmos cálculos mercantis, tão bem ancorada nos fundamentos da ciência ocidental moderna (e colonial), ao se abstrair da materialidade concreta do mundo deixa escapar as relações mundanas que não se deixam aprisionar por essa lógica matemático-mercantil e, assim, a lei da oferta e da procura que funciona tão bem no papel não se mostra desse modo no mundo das coisas tangíveis e o capitalismo realmente existente não se mostra, sobretudo quando se o considera sob o prisma ambiental, um bom alocador de recursos. Até porque a alocação de recursos naturais não depende da dinâmica societária e quando essa dinâmica se inscreve nessa alocação de recursos deveria tomar em conta, sempre, que está imersa em sistemas complexos que não se deixam aprisionar por lógicas lineares, mesmo que multivariadas.

Ricardo Petrella captou a importância do que significa, na verdade, esse processo de apropriação privada desse recurso que flui por todos os seres vivos quando nos diz: “A privatização das águas é, na verdade, a aceitação da privatização de um poder político.

(...) Dessa forma a iniciativa privada se transforma no detentor do poder político real, ou seja do poder de decidir sobre a alocação e distribuição da água”.

(Ricardo Petrella em entrevista concedida à Agência Carta Maior, durante o 1° Fórum Alternativo Mundial da Água em Florença).

2- A QUALIDADE DOS SERVIÇOS – aumento da injustiça ambiental e dos conflitos
O discurso da qualidade foi um dos principais argumentos invocados para toda a política de liberalização e privatização dos serviços de abastecimento e tratamento de água, cuja melhoria e ampliação estaria o Estado impossibilitado de fazer por falta de recursos para investimentos.

Entretanto, longe da tão apregoada superioridade da gestão privada, a Suez, a Vivendi, a Thames Water (RWE) e a Wessex Water (Enrom) foram classificadas pela Agência de Proteção Ambiental do Reino Unido entre as cinco maiores empresas poluidoras em 3 anos consecutivos (1999, 2000 e 2001). Em Buenos Aires, onde a Suez é gestora das concessões, 95 % das águas residuais da cidade é vertida no Rio da Prata, provocando danos ambientais cujos reparos são pagos com recursos públicos.

Em várias localidades os conflitos vêm se acentuando em virtude da má qualidade dos serviços e do aumento do preços das tarifas. Segundo Franck Poupeau, do Le Monde, “as multinacionais da água (...) em alguns casos foram obrigadas a retirar-se de países da América do Sul e a pedir indenização junto a instâncias internacionais. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de 'desobediência civil' contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por conta da deterioração da qualidade da água e do aumento em mais de 100% das tarifas.

A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993. Mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto, de 104%, em média, provocou o protesto dos consumidores da província: Os primeiros a se organizarem foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidadezinhas formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.”

O governo da província começou por apresentar um pedido de sanções contra a empresa após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. "Diante do boicote de pagamento, primeiramente a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Então, passou a atacar os consumidores de Tucumán junto ao ICSID (International Center for Settlement of Investment Disputes), organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos” (Poupeau, F. Le Monde).

Também em La Paz, o bairro mais pobre da cidade, El Alto, que teve papel destacado no movimento que, em outubro de 2003, derrubou o governo de Gonzalo de Lozada, nos dá uma clara demonstração das conseqüências de se estabelecer uma regra universal de regulação que desconsidera as práticas de gestão comunais, muitas das quais, ali, originárias da cultura Aymará e Quéchua. Com a privatização retirou-se daquelas populações o controle dos seus recursos com o conseqüente aumento dos preços impedindo-se, assim, o acesso dos mais pobres à água. Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pela empresa francesa Lyonaise des Eaux, através do Consórcio Águas del Illimani, seus preços aumentaram 600% (de 2 bolivianos para 12) e o preço pela instalação que era de 730 bolivianos antes da privatização passou a 1.100 bolivianos e a água abundante não está acessível para a população.

Em 2000, em Cochabamba (Bolívia) ocorreu um conflito intenso que ficou conhecido como a Guerra da Água e que ensejou, assim, como em Tucumán, na Argentina, novas formas de gestão democrática com ampla participação protagônica da população, ali conhecido como Cabildo Abierto (Ver Revista no. 2 do Observatório Social da América Latina).

Cabe, nesse caso, destacar um componente original do affair Cochabamba, onde o Consórcio liderado pela empresa estadunidense Bechtel obteve a concessão mediante um expediente jurídico inusitado: uma cláusula de confidencialidade! É surpreendente que uma concessão pública seja feita com um expediente que proíba sua divulgação! Até aqui, conhecia-se o argumento da razão de Estado para se garantir o sigilo de algumas informações e decisões que se considerava estratégicas para o Estado. Entretanto, uma cláusula de confidencialidade para não revelar os termos de uma concessão de exploração de serviços de água, mostra o quanto não se pode transportar para o espaço público as regras da empresa privada, onde o direito do proprietário está protegido e acima do interesse público [12].

Caberia destacar, ainda, no Brasil, o caso do Riachão afluente do rio Pacuí na bacia do São Francisco no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, onde a falta de água vem se agravando com a implantação de pivôs centrais por parte de grandes proprietários irrigantes. Na região, o conflito vem se acentuando pela expansão de várias monoculturas empresariais, seja de eucaliptos, pinnus alba e pinnus elliotis para fazer carvão vegetal ou matéria prima para a indústria de celulose. Nessa mesma região, o movimento camponês lançou no município de Manga, em 1996, um tipo de manifestação que desde então se repete em todo o país - a Romaria das Águas. O movimento ganhou uma radicalidade tal que lançou mão de uma manifestação até ali inusitada – a greve de sede. Lembremos que na greve de fome o manifestante se mantém vivo muitos dias se alimentando de água, o que não acontece na greve de sede. A importância da água não podia se manifestar de modo mais contundente!

As resistências à mercantilização e à privatização da água vêm se tornando cada vez mais freqüentes em todo mundo. Em vários casos o processo foi interrompido: Cochabamba e La Paz (Bolívia), Montreal, Vancouver e Moncton (Canadá), em Nova Orleans, na Costa Rica, na África do Sul, em várias regiões da Índia, da Bélgica, em várias municipalidades da França que voltaram a ter serviços públicos de água administradas diretamente pelo Estado ou por meio de autogestão, como em Cochabamba, Bolívia. Vários conflitos foram registrados ainda nas Filipinas, no Senegal, em Mali, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, em Burkina-Fasso, em Gana e na Itália [13].

Cresce por todo o lado por meio das lutas pela reapropriação pública da água a compreensão de quais são os verdadeiros interesses que vêm se movendo em torno do atual debate por novas formas de gestão e controle da água. “As empresas multinacionais de água estão conseguindo cada vez mais o controle das águas do mundo. Os organismos financeiros internacionais seguem fomentando a expansão internacional dessas empresas e os acordos internacionais de livre comércio lhes permitirão exercer ainda maior influência no setor da água. Não obstante, essas empresas sempre têm posto seus interesses de lucro privado acima das necessidades da população e os organismos financeiros internacionais e as instituições que regem o comércio até agora não tem garantido que as privatizações da água não prejudiquem aos povos e ao ambiente” (Amigos da Terra - “Sed de Ganancias”. Consultar o sítio http://www.foei.org/).


Vender água no mercado aberto não atende as necessidades de pessoas sedentas e pobres”, nos diz a canadense Maude Barlow. “Pelo contrário, a água privatizada é entregue àqueles que podem pagar por ela, tais como cidades e indivíduos ricos e indústrias que usam água intensivamente, como as de tecnologia de ponta e agricultura". (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org)./

As denúncias em relação à privatização da água referem-se, quase sempre, às conseqüências socioambientais decorrentes da integração das economias locais a um mercado que se quer nacional e mundialmente unificado o que, cada vez mais, vem implicando não somente uma orientação da produção para o comércio exterior, mas também a intensificação da exploração dos recursos naturais. Maude Barlow mostrou como “os países reduzem as taxas locais e as normas de proteção ambiental para permanecer competitivos. (...) Os governos ficam, então, com uma capacidade fiscal reduzida para recuperar as águas poluídas e construir infra-estruturas para proteger a água; ao mesmo tempo, torna-se mais difícil regulamentarem a prevenção de poluições posteriores.”

[12] Sublinhemos, de passagem, que grande parte do problema ambiental se deve exatamente ao segredo comercial que protege o proprietário de não revelar as substâncias e os processos com que opera expondo, antes de tudo, o trabalhador a conviver com substâncias que, depois, são lançadas como resíduos sólidos, líquidos e gasosos no ambiente. A falta de democracia no interior das empresas, nas fábricas e fazendas é, de fato, o maior dos empecilhos para que o ambiente seja cuidado desde a produção e não a partir dos seus efeitos.  Afinal, o efeito estufa, como o próprio nome indica, é efeito e deveríamos estar cuidando de evitar a sua produção e não dos seus efeitos. Mas, para isso seria necessário que democratizássemos a empresa, instituição de poder que, diga-se de passagem, menos sensível tem sido à democracia.

[13] Depois do segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi criada a Coalizão Mundial contra a Privatização e a Mercantilização da Água no dia 23 de maio de 2002 em Créteil, pelos representantes de cerca de trinta organizações vindos da Malásia, Índia, Gana, Marrocos, da França, da Itália, da Suíça, da Espanha, do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil, da Bolívia, da Argentina, do Equador e do Chile.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]


Próxima parte (final): 5/5 - A Guerra da Água

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 3/5

Águas Para Quem? Do interesse privado e do público
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas 


Embora tenhamos destacado inicialmente que documentos importantes recentes, como "O Nosso Futuro Comum" ou mesmo a Agenda XXI e a Carta da Terra, não contemplavam com a devida ênfase a problemática da água, é importante sublinhar que o tema havia merecido, ainda em 1977, uma Conferência patrocinada pela ONU – Conferência de Mar del Plata – que levou a que, em 1980, fosse instituído o Decênio Internacional de Água Potável e Saneamento Básico.

Uma leitura atenta das preocupações ali arroladas nos mostra que havia uma ênfase na ação dos governos na gestão da água e, sobretudo, na garantia do abastecimento por meio da construção de infra-estruturas – diques e barragens - para fins de ampliação das áreas a serem irrigadas e de energia para o desenvolvimento.

O documento da ONU analisado a seguir acusa a guinada ocorrida no debate recente acerca da água e, sobretudo, não deixa dúvidas sobre os interesses específicos que estariam, hoje, cultivando o discurso de escassez e da repentina descoberta da gravidade do problema da água na segunda metade dos anos 90.

Vejamos o diagnóstico que os técnicos da ONU fazem do sistema de gestão que ontem estimularam e que, hoje, criticam e se propõem superar. “A Comissão sobre o Desenvolvimento Sustentável (CDS) informou que muitos países carecem de legislação e de políticas apropriadas para a gestão e aproveitamento eficiente e eqüitativo dos recursos hídricos. Apesar disso, se está avançando no exame de legislações nacionais e promulgação de novas leis e regulamentos” (GEO-3: 156). Logo a seguir demonstram “preocupação acerca da crescente incapacidade dos serviços e organismos hidrológicos nacionais, especialmente nos países em desenvolvimento, para avaliar seus próprios recursos hídricos. Numerosos organismos têm sofrido redução em redes de observação e pessoal apesar do aumento da demanda de água. Tem sido posta em marcha uma série de medidas de intervenção, como o Sistema Mundial de Observação do Ciclo Hidrológico (WHYCOS, por sua sigla em inglês) que se implementou em várias regiões” (GEO-3: 156).

Como se pode observar também no caso da água, mais uma vez, é brandido, sem a menor cerimônia, o argumento da incapacidade dos governos dos países em desenvolvimento para avaliar seus próprios recursos hídricos, numa nova versão da velha colonialidade característica dos velhos modernizadores. Em nenhum momento, observe-se, há qualquer comentário sobre as políticas de ajuste estrutural recomendadas pelos próprios organismos multilaterais e que bem seriam as responsáveis pela “redução em redes de observação e pessoal apesar do aumento da demanda de água”, para ficarmos com as próprias palavras do documento.

Pouco a pouco o deslocamento político que se dá na segunda metade dos anos 90 vai tornando mais claros os interesses em jogo. “Muitos e diferentes tipos de organizações cumprem uma função no que concerne às decisões sobre políticas relativas a água, desde os governos nacionais até os grupos comunitários locais. De todo modo, no transcurso dos últimos decênios, se tem posto cada vez mais ênfase tanto em aumentar a participação e responsabilidade de pequenos grupos locais como em reconhecer que às comunidades corresponde jogar um papel preponderante nas políticas relativas a água (...)."

Assim, o Estado Nacional que, a princípio, já fora considerado como um entre os “muitos e diferentes tipos de organizações” é, logo a seguir, completamente descartado em benefício dos "pequenos grupos locais” e das “comunidades”. Assim, em nome dos pequenos, dos pobres e das comunidades, novos interesses procuram se legitimar ética, moral e, sobretudo, politicamente [8]. Para isso contam com entidades muito mais flexíveis que o Estado, como as Organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais.

É preciso levar-se em conta o contexto específico da América Latina para que entendamos a força que esse discurso adquire entre nós, sobretudo quando se sabe que, além da pobreza generalizada, a região exibe os maiores índices de desigualdades sociais do mundo.

Agregue-se a isso o fato de, nos anos 70 e 80, a região ter ficado submetida, salvo raras exceções, a regimes ditatoriais quase sempre sob tutela militar.

Anibal Quijano

Os apelos por justiça social e democracia vindos dos movimentos populares foram deslocados para políticas de corte neoliberal, onde a crítica ganhou destaque mais em direção à negação do Estado do que a um aprofundamento da democracia. Ao contrário, a liberalização aprofundou a crise histórica da democracia na América Latina, o que levou um dos mais importantes cientistas sociais da região, o peruano Anibal Quijano, a cunhar expressões como des-democratização e des-nacionalização para assinalar que o povo já não mais detém a prerrogativa da soberania.

O mais interessante de todo esse processo, e fundamental para compreendermos a crise atual, inclusive, com relação às novas e desastrosas políticas de gestão das águas, é que os mesmos organismos internacionais que apoiaram as políticas de Estado legitimando governos ditatoriais, todos desenvolvimentistas, de gravíssimas conseqüências socioambientais, são os mesmos organismos que no momento de democratização apoiam políticas que diminuem a importância do Estado e incentivam a iniciativa empresarial e das organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais.

Assim, esses novos gestores assestam uma dura crítica ao papel do Estado também na questão específica da gestão das águas dizendo que “os responsáveis pela planificação sempre supuseram que se satisfaria uma demanda em crescimento dominando ainda mais o ciclo da água mediante a construção de mais infra-estrutura” e que “a ênfase posta no abastecimento de água, combinado com uma débil aplicação dos regulamentos, limitou a eficácia da ordenação dos recursos hídricos especialmente nas regiões em desenvolvimento. Os responsáveis pela adoção de políticas agora mudaram as soluções (...) e entre essas medidas se contam melhorar a eficácia no aproveitamento da água, políticas de preços e o processo de privatização” (GEO-3: 151).

É interessante observar a desfaçatez desse discurso que parte de técnicos dos próprios organismos que antes desencadearam essas políticas. Sem nenhuma avaliação criteriosa dos próprios organismos de que fazem parte acabam, entretanto, por explicitar os princípios e os interesses em jogo, a saber:
1- dos gestores técnicos para “melhorar a eficácia no aproveitamento da água”;
2- do princípio da água como bem econômico com as “políticas de preços” e;
3- dos empresários interessados no “processo de privatização”. Não podiam ser mais claros.

À página 156-7 desse mesmo documento da ONU pode-se ler, como se fora a conclusão desejada, que “o setor privado começou recentemente a expandir suas funções na ordenação dos recursos hídricos. O decênio dos 90 foi testemunha de um rápido aumento no índice e grau de privatização dos sistemas de condução de água anteriormente administrados pelo Estado. As empresas privadas administradoras de água se ocupam cada vez mais de prestar serviços às cidades em expansão ao fazer-se encarregadas de organismos públicos para construir, possuir e operar parte ou inclusive todo o sistema municipal. Do mesmo modo, tem aumentado a preocupação com a garantia do acesso eqüitativo à água ao setor pobre da população, financiar projetos e compartilhar riscos da melhor maneira possível” (GEO-3: 156-7).

O mundo da água privatizada está sendo dominado amplamente por grandes corporações (ver mais abaixo) que vêm atuando no sentido de que um novo modelo de regulação seja conformado à escala global.

Salientemos que, até aqui, não há um modelo pronto de regulação até porque são muitas os problemas que vêm se apresentando.

Várias têm sido as propostas de privatização das águas, todas baseadas numa ampla desregulamentação pela abertura dos mercados e a supressão dos monopólios públicos, sob a pressão dos técnicos do Banco Mundial e do FMI, políticas essas que vão desde:
(1) privatização em sentido estrito, com a transferência pura e simples para o setor privado com a venda total ou parcial dos ativos;
(2) transformação de um organismo público em empresa pública autônoma, como bem é o caso da ANA – Agência Nacional da Água – no Brasil; ao
(3) PPP – Parceria Público Privado - modelo preferido pelo Banco Mundial.

As dificuldades para se estabelecer um sistema de regulação pode, ainda, ser visto na sucessão de entidades que, em pouco tempo, vêm se alternando no sentido de se chegar a um formato que possa garantir “a superação dos obstáculos aos investimentos em água[9]. Em 1994, por iniciativa de alguns governos (França, Holanda e Canadá entre outros) e de grandes empresas, com destaque à época para a Suez-Lyonnaise des Eaux uma das maiores do mundo do setor, foi criado o Conselho Mundial da Água.

Segundo nos informa Ricardo Petrella, em 1996 esse Conselho se atribuiu o objetivo de definir uma “visão global sobre a água" de longo prazo, que serviria de base a análises e propostas visando uma "política mundial de água".
Ricardo Petrella
Nos últimos anos tem sido o Banco Mundial o principal promotor do Conselho Mundial da Água que ensejou a criação da Parceria Mundial pela Água (GWP - Global Water Partnership) que tem como tarefa aproximar as autoridades públicas dos investidores privados. O GWP é presidido pelo Vice-presidente do Banco Mundial e como os trabalhos desse organismo não têm se mostrado plenamente satisfatórios criou-se, em agosto de 1998, outro órgão, a Comissão Mundial para a Água no Século XXI.

Embora não haja ainda uma modelo claro de regulação, um princípio vem sendo sistematicamente perseguido: o da liberalização, que acredita que a alocação ideal de recursos (bens e serviços materiais e imateriais) requer a total liberdade de acesso aos mercados local, nacional e, sobretudo, mundial [10].


Segundo Ricardo Petrella, “por ocasião da IV Conferência Geral da OMC em Doha, em novembro de 2001, sob a eficaz pressão do European Service Forum (Fórum Europeu de Serviços) – que reuniu as principais empresas européias, tais como Suez, Vivendi, bancos, seguradoras e telecomunicações –, os representantes da União Européia conseguiram fazer aprovar, algumas horas antes do fechamento oficial das negociações, um dispositivo autorizando a inclusão de “indústrias do meio ambiente” (que englobam os serviços de água) entre os setores que podem ser objeto de liberalização dentro do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços - AGCS”.

No capítulo sob título “Comércio e Meio Ambiente” aprovado nessa mesma reunião, pode-se ver no artigo 31, inciso 3, que se exige “a redução ou, conforme o caso, a eliminação dos obstáculos tarifários e não tarifários aos bens e serviços ambientais”, entre os quais, a água. Segundo essa lógica, qualquer tentativa de controle de exportação da água para fins comerciais passa a ser ilegal. O artigo 32 tem por objetivo impedir os países de apelarem para obstáculos não tarifários, como as leis de proteção ambiental [11]. Na Alca esse mesmo princípio vem sendo proposto pelos EUA. É com base nele que várias empresas vêm processando governos sempre que esses, alegando o interesse público, ferem os interesses comerciais das grandes corporações.

A Sun Belt, empresa estadunidense da Califórnia, processou o governo da Colúmbia Britânica, província do Canadá, que suspendera a exportação de água para os EUA pelas conseqüências que estava trazendo para abastecimento de sua própria população. A alegação da empresa é que o governo da Colúmbia Britânica violara os direitos dos investidores do Nafta e, por isso, reivindicava a indenização de US 220 milhões como reparo de seus prejuízos, no que foi bem sucedida judicialmente.

A empresa estadunidense Bechtel, expulsa da Bolívia no ano 2000 pelos péssimos serviços que prestara por sua subsidiária Águas del Tanuri, em Cochabamba, tentou processar o governo boliviano através de uma empresa especificamente criada para isso na Holanda. Na verdade, a Bechtel buscava se aproveitar de um Tratado bilateral entre os governos da Bolívia e da Holanda que estabelece fórum internacional para resolução de conflitos entre esses países. A tentativa não obteve êxito, pois o governo da Holanda cassou o registro de conveniência da empresa estadunidense. O exemplo, por si mesmo, revela os interesses contraditórios entre Estados Nacionais e o que as empresas visam, no caso, sobretudo, a rentabilidade dos seus negócios.

Observe-se que é um novo território, global, que está sendo instituído ensejando as condições para que se afirmem protagonistas que operam à escala global – os gestores globais, as grandes corporações transnacionais e grandes organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais. Cada vez mais, muitos dos técnicos dos próprios organismos nacionais são contratados em parceria com o Banco Mundial e outros organismos internacionais e, assim, órgãos que seriam de planejamento se tornam simplesmente de gestão, já que perdem o caráter estratégico inerente ao planejamento, haja vista ser esse definido à escala global, enfim, aquela escala em que operam as grandes corporações e, ainda, as grandes organizações (neoliberalmente bem denominadas) não-governamentais.

O fato de cada vez mais se falar de gestão não nos deve fazer esquecer a necessária relação entre planejamento e gestão, haja vista o primeiro, o planejamento, ser mais estratégico e político, e o segundo, a gestão, ser mais técnico-operacional. Cada vez mais o planejamento tem se deslocado para os organismos multilaterais.

Deve-se ter em conta que, além das resistências de todo tipo a essa política de novas formas de controle e gestão por meio da privatização e liberalização, há também interesses empresariais em disputa que ainda não conseguiram conformar claramente seus interesses divergentes.

Há, também, questões relativas à própria doutrina jurídica, até porque não há grande tradição de apropriação privada de recursos que são fluidos, líquidos, cujos limites não são tão claros e distintos, como é a terra, cuja tradição jurídica está ancorada no Direito Romano. As cercas não são aplicáveis ao ar e à água nem às fronteiras entre os Estados. Afinal, a água exige uma perspectiva que vá além da propriedade privada individual e nos chama a atenção, talvez melhor do que qualquer outro tema, para o caráter público, exigindo um sentido comum que vá além do individualismo possessivo tão cultivado e estimulado pela lógica de mercado.


Eis parte do grande desafio colocado pela problemática ambiental, haja vista apontar para questões que transcendem a propriedade privada, sobretudo quando nos coloca diante da queda de outros muros que se acreditavam ter sobrevivido sem maiores conseqüências à queda do muro de Berlim, em 1989. Afinal, questões como as da poluição do ar e da água que, como vemos, não se restringem à escala local ou regional, exigem referências de direito distintas do Direito Romano, direito sobretudo (dos proprietários e) da propriedade privada, e que foi pensado para a terra e não para a água e o ar (para não dizer da vida, conforme se pode ver no debate sobre a propriedade intelectual sobre material genético).

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.


[8] Não olvidemos que também eram os pobres que eram invocados pelos políticos então chamados de populistas e oligárquicos, com a ‘indústria da seca’ e da ‘bica d’água’.

[9] Aproprio-me, aqui, literalmente, do título de um painel do Congresso Anual de Desenvolvimento Econômico patrocinado pelo FMI e pelo Banco Mundial, onde estiveram reunidos representantes de governos de 84 países com corporações e instituições financeiras internacionais (Ver Maude Barlow em “O Ouro Azul” em http://www.canadians.org)./

[10] É o que vêm propondo não só os novos teóricos da justiça social e da democracia, como vários seguidores de John Rawls, mas também alguns intelectuais e cientistas progressistas, como o Prêmio Nobel de economia Amartya Sem, conforme nos diz Ricardo Petrella.

[11] Definiu-se, ainda, que cada Estado membro da OMC deve submeter as solicitações de liberalização que espera dos outros membros. As formuladas pela União Européia, até aqui, principalmente para o Canadá, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Egito e a África do Sul, insistem sobre a liberalização dos serviços de água (Ler ATTAC nº 338, do dia 7 de junho 2002 jornal@attac.org


[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]