domingo, 22 de abril de 2012

Declama Raul!

21/04/2012 - Marcelo Rubens Paiva - extraído do blog Conteudo Livre

[homenagem do blog EDUCOM a Raul Seixas, 23 anos após sua morte em 21/08/1989]


Indagado se fazia música de protesto, de bate-pronto respondia: “Faço raulseixismo

Algum músico que já era lenda antes de morrer tem recorrentemente o nome gritado em shows de outros músicos? Algum músico tem uma composição pedida rotineiramente quando, numa aglomeração, o silêncio se faz, apesar de ter morrido há 23 anos?

Algum político ou artista brasileiro tem um dia dedicado a ele, em que fãs se fantasiam como ele, circulam pelo centro de São Paulo e cantam numa manifestação essencialmente popular e espontânea? 

Não só em shows, mas em casamentos, baladas, batizados, passeatas, no intervalo entre músicas, na indecisão de como animar uma festa, o grito é sempre entoado, como um ato de rebeldia e desobediência:


Toca Raul!


A obra de Raul Seixas sobrevive, continua contemporânea, e pode ser revista no documentário O Início, O Fim e O Meio, de Walter Carvalho.

O legado de Raulzito não é apenas a mistura do pensamento maquiavélico (“o fim justifica os meios”). É bem mais profundo e perspicaz. Apesar de ele ter anunciado:


Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora da lei. Durango Kid só existe no gibi. E quem quiser que fique aqui. Entrar pra história é com vocês.”

Mas entrou, ao fundir o rock com o baião, sem as sutilezas dos seus conterrâneos tropicalistas. Raul foi a Tropicália que tocou no rádio. Propôs reflexão e sublevação no quartinho da empregada, na tela da TV, no Chacrinha e nos shows em ginásios.

Fundiu o alcance vocal de Elvis com o de Luiz Gonzaga e provou a semelhança entre o produto da corte e a improvisação da colônia, entre Deus e sua cria.

A primeira grande aparição foi no Festival Internacional da Canção (1972), provocando a bossa nova e o utopismo messiânico da época:

Let me sing my rock’n’roll. Não vim aqui tratar dos seus problemas, o seu Messias ainda não chegou. Eu vim rever a moça de Ipanema e dizer que o sonho terminou.


Depois, Mosca na Sopa (1973), quandoa ditadura brasileira unificada combatia em todos os fronts. Quem não entendia a ameaça debochada do roqueiro maluco dançava como um alucinado nas festinhas infantis, que era o meu caso:

Eu sou a mosca que perturba o seu sono, eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar.”

Opositores no pau de arara. Jornais e revistas enquadradas pela censura. Artistas silenciados pelo exílio e ameaças.

E o roqueiro entortava a cabeça da repressão política:

Não adianta vir me dedetizar, pois nem o DDT pode assim me exterminar. Porque você mata uma, e vem outra em meu lugar.”

Desta vez, a mistura era o samba de roda baiano, o canto para os orixás e afoxé, com rock pesado.

No mesmo disco, a música Ouro dos Tolos, o maior deboche do projeto Brasil Grande e do Milagre Brasileiro, um alerta existencialista à classe média emergente brasileira.

Eu devia estar contente, porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês.”

O regime conseguia o selo de excelência de 100% de autoritarismo – resistência armada dominada, opositores silenciados. O empresariado e a população de bolsos cheios pareciam felizes. Médici tinha altos índices de aprovação.

Não restava nada no campo da contestação: quem sobreviveu estava fora do País ou de si, dopado, maluco beleza.

Quando o Regime entulhou as TVs com propagandas de Brasil Grande, difundindo os feitos do crescimento recorde, em que o dinheiro emprestado do exterior estava barato, e o País criou infraestrutura suficiente para a importação de parques industriais, ele compôs:

Eu devia estar feliz, porque consegui comprar um Corcel 73... Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida. Mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa.” 

Indagado se ele fazia música de protesto, respondia de bate-pronto: “Faço raulseixismo”.  

O verso que Caetano canta de boca cheia no documentário, palavras que propositalmente não cabem na melodia, um pré-rap, contém o mais profundodos sentimentos literários, a falta de sentido da vida:



Eu devia estar feliz pelo senhor ter me concedido o domingo pra ir com a família ao Jardim Zoológico dar pipoca aos macacos. Ah!, mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã. Eu acho tudo isso um saco...”

A maior ironia é que a música foi composta em cima de acordes de Detalhes, do neoconformista Roberto Carlos, artista que deixava a irreverência do rock para se acomodar nas plumas de uma causa mais romântica.


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Em 1974, os ideais libertários de Maio de 68 desembocaram num fracassado projeto armado de terrorismo isolado. Baader Meinhof, Brigadas Vermelhas, ETA, IRA, OLP confundiam e assustavam a juventude mais do que agregavam. A utopia foi questionada.

Raul lançou com Paulo Coelho a Sociedade Alternativa, uma terceira via, que defendia o direito de ter riso e prazer. No manifesto, pregavam:

O espaço é livre. Todos têm direito de ocupar seu espaço. O tempo é livre. Todos têm que viver em seu tempo e fazer jus às promessas, esperanças e armadilhas. A semente é livre. Todos têm o direito de semear suas ideias sem qualquer coerção da inteligência ou burrice. Não existe mais a classe dos artistas.”


Todos nós somos capazes de plantar e colher. Todos nós vamos mostrar ao mundo e ao Mundo a nossa capacidade de criação. Todos nós somos escritores, donas de casa, patrões e empregados, clandestinos e caretas, sábios e loucos. E o grande milagre não será mais ser capaz de andar nas nuvens ou caminhar sobre as águas. O grande milagre será o fato de que todo dia, de manhã até a noite, sermos capazes de caminhar sobre a Terra.”


O governo Geisel não entendeu muito bem o que propunha essa sociedade com pinta de subversiva, prendeu os dois e os mandou para o exílio.


Ele preferia ser uma metamorfose ambulante a ter opinião sobre quase tudo. Mas não conseguia deixar de ver, pensar, propor e rediscutir os rumos da arte e da política do seu país.


Com metafísica, espiritismo, antropofagia, de mãos dadas com o povo, ele era o nosso sacrifício, a placa de contramão, a vela que acende, a luz que se apaga, a beira do abismo, o tudo e o nada, raso, largo, profundo, os olhos do cego, e a cegueira da visão.

sábado, 21 de abril de 2012

GLOBO RURAL - O eixo Rede Globo-Monsanto

 17/04/2012 - original publicado na edição 690 do Observatório da Imprensa
Fábio de Oliveira Ribeiro*


No programa Globo Rural de 15/04/2012 foi veiculada uma longa reportagem sobre a Monsanto feita nos EUA.

A pior companhia de 2011
Nenhum ambientalista ou ativista norte-americano que critica a atuação da Monsanto foi entrevistado pelos repórteres do Globo Rural.


Portanto, a matéria, que parece ter cunho jornalístico, funciona como uma excelente peça de propaganda da Monsanto e de seu milho transgênico.


A reportagem-propaganda foi veiculada justamente durante a realização da Cúpula das Américas, reunião de chefes de Estado e diplomatas em que os EUA fazem uma ofensiva diplomática para recuperar sua credibilidade e importância política e econômica na América Latina.

Os EUA deixaram de ser o maior e mais importante parceiro comercial do Brasil. Mesmo assim, a Rede Globo preferiu veicular a peça de propaganda que produziu sobre a Monsanto.

Não poderia ter feito uma matéria jornalística sobre a integração agroindustrial dos BRICS?

Vez por outra, o Globo Rural faz matérias sobre a criação de peixes, as novas tecnologias aplicadas à pesca e os problemas deste importante ramo de atividade produtiva. Neste momento, não seria mais barato, fácil e relevante os jornalistas daquele programa fazerem uma matéria sobre a influência negativa na pesca litorânea brasileira do vazamento provocado pela Chevron norte-americana? Uma das características da propaganda é enfatizar os pontos positivos de uma mercadoria e omitir seus pontos negativos.

O comportamento jornalístico da Rede Globo indica claramente que os Estados também são mercadorias.

Algum tipo de regulação
A pauta do Globo Rural de 15/04/2012 evidencia a opção da emissora pelos EUA. A tentativa do clã Marinho de reforçar a política externa norte-americana neste momento é evidente, pois não só fez propaganda da Monsanto como evitou tocar no desastre ambiental da Chevron no Rio de Janeiro.

O Itamaraty, instituição pública encarregada de formular a política externa brasileira, aposta nos BRICs.
 Mas a Rede Globo, empresa privada que visa ao lucro, parece querer ter a sua própria política externa e enfiá-la goela abaixo dos brasileiros. O que a Rede Globo [uma concessão pública, sempre bom lembrar] fez em 15/04/2012 com seu programa Globo Rural não foi exercitar a “liberdade de imprensa”, mas abusar de sua condição de empresa quase monopolista.

O Brasil tem feito uma política externa coerente e eficiente, mas não tem uma rede de televisão tão grande quanto a Globo para reforçar internamente suas decisões diplomáticas. O clã Marinho, entretanto, usou a sua empresa para fortalecer a política externa norte-americana dentro do Brasil.

É por causa deste tipo de abuso que a mídia tem que sofrer algum tipo de regulação. A política externa brasileira não pode mais ficar à mercê de uma empresa privada que faz de tudo para impor sua própria política externa ao país.

*Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Privatização da água: o 'fracasso' melhor financiado

As populações de muitos países do Sul em desenvolvimento têm difícil acesso a água potável, e o enfoque para remediar este problema tem sido depender cada vez mais de empresas privadas

Da Revista Fórum, original publicado no portal Envolverde terça, 17 de abril

Apesar de ficar demonstrado que a privatização da água é prejudicial para os pobres, um quarto dos fundos do Banco Mundial vão diretamente para empresas do setor, afirma um documento divulgado nesta segunda. O estudo assegura que o Banco apoia as empresas privadas da água, passando por cima de governos e de seus próprios padrões de transparência.

As populações de muitos países do Sul em desenvolvimento têm difícil acesso a água potável, e o enfoque para remediar este problema tem sido depender cada vez mais de empresas privadas. Entretanto, isto é pernicioso, segundo o informe da organização não-governamental Corporate Accountability International (CAI), com sede nos Estados Unidos.

A CAI exortou o Banco Mundial a deixar de financiar o setor privado da água e mudar a direção dos fundos para focá-los em instituições públicas e democraticamente responsáveis. A divulgação do informe, intitulado Shutting the Spigot on Private Water: Case for the World Bank do Divest (Fechando a torneira para a água privada: argumentos para que o Banco Mundial desinvista), coincide com o início das reuniões que esse organismo realiza com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

A Corporação Financeira Internacional (CFI), ramo do Banco dedicado a fomentar o desenvolvimento econômico por meio do setor privado, investiu US$ 1,4 bilhão em empresas de água desde 1993, segundo o estudo. Até janeiro de 2013, os investimentos crescerão US$ 1 bilhão ao ano. O informe também assinala que, para cada dólar que a CFI coloca em um projeto, ela atrai entre US$ 14 e US$ 18 em investimentos privados complementares.

Isto explica porque o Banco Mundial e a CFI continuam financiando companhias privadas de água, mesmo quando cerca de um terço de todos os contratos assinados entre 2000 e 2010 fracassaram ou estão em risco de fracassar, quatro vezes mais do que no caso de projetos de infraestrutura nos setores de eletricidade e transporte, segundo a CAI.

“Em lugar de se concentrar em garantir o acesso a água potável inclusive economicamente, o Banco Mundial promove medidas que deixarão mais cara a água para os consumidores”, diz, por outro lado, um informe de 2010 da organização não governamental Food and Water Watch. O alto custo também pode ser definido em termos humanos. O mesmo documento indica que a má qualidade da água e do saneamento permite a propagação de parasitas que “são a principal causa de doenças e mortes no mundo em desenvolvimento”.

A CAI também crítica vários conflitos de interesses, como o fato de o Banco Mundial ser dono de empresas do setor da água enquanto se apresenta como conselheiro imparcial. No fim das contas, o “Banco Mundial é o motor por trás desta invasão corporativa nos sistemas e nos serviços de água”, afirmou a CAI em seu site. O Banco Mundial estimula os países a privatizarem seus sistemas de água ou modificá-los para que tenham por foco o lucro, acrescentou.

O Banco Mundial também promove o desenvolvimento de infraestruturas que oferecem vantagens para os “usuários de grandes corporações, acima dos interesses dos indivíduos ou das comunidades”, afirma a diretora-executiva da CAI, Kelle Louaillier. “Em meio a uma crise mundial da água, o Banco está desperdiçando os recursos necessários para salvar milhões de vidas. Seus estatutos estabelecem que deve ajudar os que têm mais necessidade, mas sua aposta financeira nas corporações da água está criando perversos incentivos que solapam a própria missão do Banco”, enfatizou.

Segundo a CAI, as privatizações prejudicam os mais pobres, limitando o acesso ao recurso e afetando os direitos humanos, com ocorreu em Manila, Filipinas, onde o Banco Mundial ajudou o governo filipino a desenhar um plano de privatização. “Anos depois, muitos moradores de Manila ainda carecem de água, e os problemas de acesso se agravaram”, disse Shayda Naficy, especialista da CAI. “A CFI chama isso de êxito, e foi, para seus investidores. Contudo, é um tremendo fracasso do ponto de vista dos moradores e seu direito à água”, ressaltou.

Por outro lado, um porta-voz do Banco Mundial disse à IPS que o informe da CAI desvirtua o papel do órgão e carece de profundidade. “Os serviços de financiamento e assessoria da CFI asseguraram água potável e saneamento a mais de 20 milhões de pessoas até 2011”, afirmou. “Se mudam as hierarquias, existe a possibilidade de o Banco mudar seu curso”, disse Louaillier hora antes da eleição, ontem, do novo presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, norte-americano de origem sul-coreana.

O candidato de Washington prevaleceu sobre outros que receberam importante apoio político: a ministra das Finanças da Nigéria, Ngozi Okonjo-Iweala, e o ex-ministro das Finanças colombiano José Antonio Ocampo. O Banco Mundial sempre teve presidentes de nacionalidade norte-americana

Há um ano, seu então presidente, Robert Zoellick, disse que o mundo necessitava de “nova geopolítica para uma economia multipolar, na qual todos estejam representados equitativamente em associações a favor das maiorias, e não em clubes para poucos”. Para ele, a crise financeira global marcou o fim dos velhos modelos de economia e desenvolvimento. Como consequência, categorizações como “primeiro mundo” ou “terceiro mundo”, “doadores” ou “beneficiários”, “líderes” ou “liderados”, já “não encaixam”, destacou Zoellick. No entanto, estas ideias não parecem se refletir dentro do próprio banco.

Nota da editora do Blog: os tecnocratas brasileiros presentes ao Fórum Internacional da Água, em Marselha, defenderam a Governança Global, proposta do Banco Mundial e das multinacionais para facilitar a privatização. O governo brasileiro levou à França uma delegação de 250 pessoas, incluindo muitos empresários, como informa o site da ANA (Agência Nacional de Águas) em 17 de março.

Leia ainda:
A governança sul-americana da água
A Centralidade da Água
A água novamente entre a vida e a morte
A luta pelo direito à água na Rio+20



O colonialismo liberal europeu mostra a sua face

19/04/2012 - Eduardo Febbro*, de Paris
Tradução: Libório Junior - Carta Maior


É o cúmulo do absurdo que o Parlamento Europeu, que reúne representantes do povo, se preste a votar uma resolução contra a Argentina, em defesa dos interesses de uma multinacional.

Cristina Kirchner
O mesmo parlamento que nada faz para denunciar as empresas do Velho Continente que, em nome da segurança jurídica, investiam seus capitais em países amordaçados por regimes assassinos que, ao mesmo tempo que ofereciam segurança jurídica aos investidores, jogavam seus povos no poço da repressão, da corrupção e da pobreza."
O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris 
Catherine Ashton

Os impérios do Ocidente estão nervosos. A decisão da presidenta argentina de renacionalizar os recursos petrolíferos do país reativou nos europeus o ímpeto da ameaça e da desqualificação, assim como a política dos valores em escala variável. O santo mercado tem prerrogativas acima de qualquer oposição. Além da agressiva campanha que se desatou na Espanha em defesa de uma companhia que, na realidade, sequer é espanhola, a União Europeia somou seus votos em respaldo à multinacional. A inesgotável e esgotadora responsável pela diplomacia da UE, Catherine Ashton, advertiu que a decisão argentina “era um muito mau sinal” para os investidores estrangeiros. Por sua vez, o presidente da Comissão Europeia José Miguel Barroso, disse que estava muito “decepcionado” pela medida de Buenos Aires.

José Miguel Barroso
O vice-presidente da Comissão Europeia, o italiano Antonio Tajani, sacou um leque de ameaças: "Nossos serviços jurídicos estudam, de acordo com a Espanha, as medidas a adotar. Não se exclui nenhuma opção", disse.

Cúmulo do absurdo, o Parlamento Europeu de Estrasburgo, que reúne os representantes do povo, se presta a votar uma resolução contra a Argentina. 
UE - Estrasburgo - França
Um traço mais da confusão que leva a uma instituição política, surgida do voto popular, a clamar pelos interesses de uma multinacional. O Parlamento Europeu nada fez para denunciar as empresas do Velho Continente que, em nome da segurança jurídica, investiam e investem seus capitais em países amordaçados por regimes assassinos que, ao mesmo tempo que ofereciam segurança jurídica aos investidores, jogavam seus povos no poço da repressão, da corrupção, do assassinato das liberdades e da pobreza.

A defesa dos interesses nacionais contra os do mercado é algo que ficou na garganta da muito liberal União Europeia. A UE revisitou seus “valores” recentemente, no ano passado: em troca da ajuda aos países árabes, a UE pede eleições democráticas, luta contra a corrupção, abertura comercial e proteção dos investimentos. Antes, não lhe importava que um punhado de ditadores e autocratas esmagassem seus povos enquanto a abertura comercial e a proteção dos investimentos estivessem garantidas. A fonte da democracia fechava os olhos enquanto suas empresas pudessem operar a seu bel-prazer.

A mesma dupla linguagem, duplo valor, envolve a escandalosa política das subvenções agrícolas da UE. Instrumento de destruição dos mercados, perverso mecanismo de falsificação dos preços internacionais, as subvenções se aplicam em apoio a uma corporação, a dos agricultores. Pouco importa que o planeta pague pela proteção de um setor. O porta-voz do Comissário Europeu para o comércio, John Clancy, disse ao canal EuroNews que a decisão da presidenta “destrói a estabilidade que os investidores procuram”.
 
Juan Manuel de Rosas

 Tocar numa empresa europeia é sinônimo de uma declaração de guerra ou de pisotear a identidade. Hoje reúnem o Parlamento Europeu, em outras épocas talvez tivessem enviado a marinha para bloquear o porto de Buenos Aires como ocorreu em 1834, quando Juan Manuel de Rosas se negou a que os súditos franceses ficassem isentos de suas obrigações militares e decidiu impor um gravame de 25% às mercadorias que chegavam do exterior com destino a Buenos Aires.

A imprensa europeia e os analistas propagam um cúmulo alucinante de omissões e mentiras.


Frases como “nacionalismo petroleiro” ou “tentação intervencionista” do Estado argentino, se tornaram uma consigna repetida em todas as colunas. Como se qualificaria então a defesa de uma empresa por parte das instituições políticas da União? Euro-nacionalismo de mercado, escudo político para os interesses privados, etnocentrismo liberal?

E, assim mesmo, o discurso do nacional contra o global, do local contra o multilateral não é uma exclusividade peronista. O próprio presidente francês, Nicolas Sarkozy, o reativou com um vigoroso discurso durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais do dia 22 de abril e seis de maio (primeiro e segundo turno). O presidente candidato propôs renegociar o acordo de Schengen que regula e garante a livre circulação das pessoas e revisar os acordos comerciais que ligam os 27 países membros da União Europeia.

No primeiro caso e por razões claramente eleitorais, Sarkozy considera que os acordos de Schengen não permitem regular para baixo os fluxos migratórios. No segundo, que tem dois capítulos, se trata primeiro de instaurar na Europa um mecanismo similar ao Buy Act American com um “Buy European Act” a fim de que as empresas que produzem na Europa obtenham dinheiro público em caso de licitações. Em segundo lugar, Sarkozy exigiu à Comissão Europeia que imponha um critério de reciprocidade a seus sócios comerciais. Sarkozy disse em seu discurso: “A Europa não pode ser a única região do mundo que não se defende. (…). Não podemos ser vítimas dos países mais fortes do mundo”.

Isto pode ter vigência também para o resto do planeta. O patriotismo europeu bem vale o suposto “patriotismo petroleiro”. Ali onde se encontra em desvantagem, a UE impõe seus limites, ativa seu lobby ou bota suas instituições democráticas a atuar como polícia moralizadora. O livre comércio e o direito monárquico das empresas sobre os recursos naturais, a vida humana e as geografias não é o último estado da humanidade. Há vida depois de tudo, antes e depois da Repsol.

Todo o aparato jurídico da UE se colocou em marcha para sancionar isso que o jornal espanhol El País chama “o vírus expropriador” de Cristina Fernández de Kirchner.

O “vírus” do mercado global começa a fazer seu trabalho. A UE está ofendida.


Tocaram em seu filho pródigo, a liberdade de brincar com o destino dos povos em benefício de suas empresas.

Uma guerra moderna onde o gigante vai sancionar um sócio que deixou de apostar em um tabuleiro onde só ganham os capitais que se volatilizam como os valores democráticos e de justiça que defenda a sacrossanta União.

Seu hino à liberdade é geométrico.


Contanto que a grana encha seus bancos, o sangue pode correr, como na Tunísia, Líbia, Egito e tantas outras ditaduras africanas que proporcionam o petróleo para acender as luzes de um século cujo destino está em mãos privadas e suas instituições às ordens das entidades financeiras e das empresas.

* Eduardo Febbro é correspondente da Carta Maior em Paris


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Eldorado dos Carajás - 16 anos de impunidade

05/04/2012 - Jornada de Lutas exige Reforma Agrária e justiça
José Coutinho Jr. - Página do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)


(Nesse Abril Vermelho, a homenagem do blog a todos os que lutam pela reforma agrária, nosso gesto de tristeza, luto e gratidão aos que já tombaram honrando essa luta)

"Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora"
(Chico Buarque – Assentamento)


“Morrer de bem com a minha terra”

Infelizmente, muitos sem-terra já morreram sem ter uma terra que possam chamar de sua. O massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996, na BR 155, sul do Pará, no qual 155 policiais militares utilizaram armas de fogo contra 1500 Sem Terras, entre os quais mulheres e crianças.

A ação da PM assassinou 19 camponeses e expôs para todo o país a questão da violência no campo contra aqueles que lutam pela Reforma Agrária. Até hoje, ninguém foi punido pelo massacre, e os sobreviventes, mutilados tanto física quanto psicologicamente, continuam sem receber a devida assistência médica.

Em 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu o dia 17 de abril como o Dia Internacional de Luta pela Terra. O MST realiza durante o mês de abril jornadas de lutas, com ocupações, marchas e atos pelo país inteiro, para pressionar o governo a priorizar a pauta da Reforma Agrária e honrar a memória daqueles que perderam suas vidas na luta pela terra.

Nosso dia de lutas surgiu infelizmente por causa de Eldorado dos Carajás. O latifúndio é inerentemente violento e impede as pessoas de viver e trabalhar no Campo. O que ocorreu em Carajás nos dá força e clareza para lutar, pois enquanto houver latifúndio, a desigualdade, violência e falta de democracia no Campo vão continuar”, acredita Jaime Amorim, dirigente do MST em Pernambuco.

Para Dom Tomás Balduíno, Bispo emérito de Goiás co-fundador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), “esse dia lembra a força da caminhada dos trabalhadores do Campo, que se arrasta desde Zumbi dos Palmares até hoje na história do Brasil. A luta pela Reforma Agrária não é questão de conseguir apenas um pedaço de chão, mas de mudar nosso país. A luta é profunda, ampla e de mudanças”.

A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha, e encontraram semelhantes seus bastante ingênuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar". (José Saramago)

Dezesseis anos depois do massacre, os conflitos no campo continuam; neste ano, três membros do MLST foram assassinados em Minas Gerais. Já em Pernanbuco, outros dois companheiros do MST foram tombados por balas de pistoleiros nos últimos dias.

Jaime acredita que hoje a violência contra os assentados está mais seletiva. “Temos dois tipos de violência: a primeira, perpetrada por grandes grupos de fazendeiros atacando lideranças locais, como aconteceu este ano. A segunda é a violência do Estado, que se utiliza do aparato jurídico para impedir as pessoas de olhar para frente e enxergar a perspectiva de uma Reforma Agrária concreta. O fato de que temos muitos acampamentos que já duram 10, 15 anos pela desapropriação do Estado é por si só uma violência”.

Dom Tomás afirma que esta violência ocorre porque “o poder público nega sistematicamente a Reforma Agrária, apoiando o discurso dos grandes fazendeiros e empresas de que ‘o agronegócio é o modelo do progresso’. Tudo que se opõe a este suposto progresso, segundo essa lógica, são obstáculos que devem ser removidos”.

Aliado a isso está o papel da mídia, cujas informações refletem os interesses das elites alinhadas com o agronegócio. “A imprensa mudou sua postura: antigamente ela criminalizava os movimentos e desqualificava a luta e as lideranças. Hoje, ela tenta ignorar as lutas sociais de sua agenda, e a população, sem informação, se afasta do tema, formulando ideias de que o movimento está desmobilizado ou que a luta pela Reforma Agrária não é mais importante”, analisa o dirigente do MST.

"E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se, de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão"
(Chico Buarque – Fantasia)

Para que a Reforma Agrária torne-se realidade e a felicidade deixe de ser uma fantasia, é preciso lutar. Jaime afirma que “estamos animados para a jornada de lutas deste ano, pois ela vai ser uma demarcação de força. Estamos construindo uma unidade maior entre unidades e movimentos do campo, pois todos nós temos sido agredidos pelo mesmo aparato. Temos que nos unir para soltar um grande grito pela Reforma Agrária e contra o latifúndio”.

Sebastião Salgado

 O rio de camponeses se põe novamente em movimento; foices, enxadas e bandeiras se erguem na avalanche incontida das esperanças nesse reencontro com a vida - e o grito reprimido do povo sem-terra ecoa uníssono na claridade do novo dia:

"REFORMA AGRÁRIA, UMA LUTA DE TODOS!"
(Sebastião Salgado)"


Terra, 15 anos
Os trechos em negrito e a foto [acima] desta matéria foram retirados do livro Terra, que foi lançado há 15 anos. O livro é composto por fotos do fotógrafo Sebastião Salgado sobre a vida dos indígenas e camponeses em um país cuja terra não lhes pertence mais. O prefácio é do escritor José Saramago e as músicas de Chico Buarque, cujo CD acompanha a obra.

Os três juntos constituem a Coleção Terra, criada em 1997. Para Dom Tomás, a arte com foco político se faz fundamental, pois “o povo que luta também celebra, canta, faz seus repentes e trovas. A caminhada do povo é poética, inspirada na mística e profética”.

Jaime avalia que “o MST sempre produziu muito culturalmente, e isto serve de inspiração para quem acompanha o Movimento de fora, com artistas famosos a apoiarem o movimento. Mas os momentos onde a arte está mais próxima da luta política são os momentos de maior mobilização. Arte, cultura e educação caminham lado a lado no movimento”.