sábado, 6 de outubro de 2012

A espetacularização e a ideologização do Judiciário

04/10/2012 - Leonardo Boff (*) em seu blog


É com  muita tristeza que escrevo este artigo no final da tarde desta quarta-feira [03/10], após acompanhar as falas dos ministros do Superemo Tribunal Federal.

Para não me aborrecer com e-mails rancorosos vou logo dizendo que não estou defendendo a corrupção de políticos do PT e da base aliada, objeto da Ação Penal  470 sob julgamento no STF.

Se malfeitos foram comprovados, eles merecem as penas cominadas pelo Código Penal. O rigor da lei se aplica a todos.

Outra coisa, entretanto, é a espetacularização do julgamento transmitido pela TV. Ai é ineludível a feira das vaidades e o vezo ideológico que perpassa a maioria dos discursos.

Desde A Ideologia Alemã, de Marx/Engels (1846), até o Conhecimento e Interesse, de J. Habermas (1968 e 1973), sabemos que por detrás de todo conhecimento e de toda prática humana age uma ideologia latente.

Resumidamente, podemos dizer que a ideologia é o discurso do interesse. E todo conhecimento, mesmo o que pretende ser o mais objetivo possível, vem impregnado de interesses.

Pois, assim é a condição humana. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. E todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Isso é inescapável.

Cabe analisar política e eticamente o tipo de interesse, a quem beneficia e a que grupos serve e que projeto de Brasil tem em mente.

Como entra o povo nisso tudo?
Ele continua invisível e até desprezível?
A ideologia pertence ao mundo do escondido e do implícito.

Mas há vários métodos que foram desenvolvidos, coisa que exercitei anos a fio com meus alunos de epistemologia em Petrópolis, para desmascarar a ideologia.

O mais simples e direto é observar a adjetivação ou a qualificação que se aplica aos conceitos básicos do discurso, especialmente, das condenações.


Em alguns discursos, como os do ministro Celso de Mello, o ideológico é gritante, até no tom da voz utilizada.


Cito apenas algumas qualificações ouvidas no plenário: o mensalão seria “um projeto ideológico-partidário de inspiração patrimonialista”, um “assalto criminoso à administração pública”, “uma quadrilha de ladrões de beira de estrada” e um “bando criminoso”.

Tem-se a impressão de que as lideranças do PT e até ministros não faziam outra coisa que arquitetar roubos e aliciamento de deputados, em vez de se ocuparem com os problemas de um país tão complexo como o Brasil.


Qual o interesse, escondido por detrás de doutas argumentações jurídicas?

Como já foi apontado por analistas renomados do calibre de Wanderley Guilherme dos Santos, revela-se aí certo preconceito contra políticos vindos do campo popular.

Mais ainda: visa-se aniquilar toda a possível credibilidade do PT, como partido que vem de fora da tradição elitista de nossa política;

procura-se indiretamente atingir seu líder carismático maior, Lula, sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro e o primeiro presidente operário, com uma inteligência assombrosa e habilidade política inegável.


A ideologia que perpassa os principais pronunciamentos dos ministros do STF parece eco da voz de outros, da grande imprensa empresarial que nunca aceitou que Lula chegasse ao Planalto.

Seu destino e condenação é a Planície. No Planalto poderia penetrar como  faxineiro e limpador dos banheiros.
Mas nunca como presidente.


Ouvem-se no plenário ecos vindos da Casa Grande, que gostaria de manter a Senzala sempre submissa e silenciosa.

Dificilmente, se tolera que através do PT os lascados e invisíveis começaram a discutir política e a sonhar com  a reinvenção de um Brasil diferente.

Tolera-se um pobre ignorante e mantido politicamente na ignorância.

Tem-se verdadeiro pavor de um pobre que pensa e que fala.

Pois, Lula e outros líderes populares  ou convertidos à causa popular como João Pedro Stedile, começaram a falar e a implementar políticas sociais que permitiram uma Argentina inteira ser inserida na sociedade dos cidadãos.


Essa causa não pode estar sob juízo. Ela representa o sonho maior dos que foram sempre destituídos.

A Justiça precisa tomar a sério esse anseio a preço de se desmoralizar, consagrando um status quo que nos faz passar internacionalmente vergonha.

Justiça é sempre a justa medida, o equilíbrio entre o mais e o menos, a virtude que perpassa todas as virtudes (“a luminosíssima estrela matutina” de Aristóteles).

Estimo que o STF não conseguiu manter a justa medida. Ele deve honrar essa justiça-mor que encerra todas as virtudes da polis, da sociedade organizada.

Então, sim, se fará justiça neste país.



(*) Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é professor aposentado de ética da Uerj.

Fonte
http://leonardoboff.wordpress.com/2012/10/04/a-espetacularizacao-e-a-ideologizacao-do-judiciario/

Imagens: equipe do blog Educom 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Um serviço sujo em nosso nome


02/10/2012 - Massacre do Carandiru: um serviço sujo em nosso nome
- Leonardo Sakamoto em seu blog


Gostaria de lamentar que a alma do coronel Ubiratan Guimarães, que comandou (no chão) o massacre de 111 presos na Casa de Detenção do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, tenha sido ceifada cedo demais.

Morreu em 2006, segundo a polícia, pelo gatilho de sua própria namorada, cujo julgamento está marcado para novembro deste ano. Estava a caminho de ser facilmente reeleito como deputado estadual, ironizando o país ao candidatar-se com o número 14.111.

Ele chegou a ser condenado, em 2001, a 632 anos de prisão pela responsabilidade direta em 102 mortes. Cinco anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou um recurso e o absolveu, gerando protestos dentro e fora do Brasil.

Creio que todos os que lutam para que os direitos humanos não sejam um monte de palavras bonitas emolduradas em uma declaração sexagenária, filha de outras cartas centenárias, não se sentiram contemplados com o passamento de Ubiratan, da mesma forma que não sentiram que a Justiça se fez com a morte de pessoas como Erasmo Dias ou de Augusto Pinochet. Lamento porque tinha a esperança de que ele fosse julgado e punido.


Do meu ponto de vista, Justiça divina não existe.

O universo não conspira a favor ou contra nada. Por isso, desejo tanto que nossa Justiça funcione.

E que, no mínimo, a sociedade consiga saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o.

Para evitar que ele aconteça de novo.

Em janeiro do ano que vem, mais de 70 policiais militares acusados pelo massacre começam a ir a júri popular após uma série de recursos serem negados. Seus advogados dizem que cumpriam ordens.

A defesa de Ubiratan também afirmou que ele estaria agindo no “estrito cumprimento do dever” quando ordenou a invasão do Pavilhão 9 da Casa de Detenção.

Seus chefes, Pedro Franco de Campos e Luiz Antônio Fleury Filho, [foto] então secretário de Segurança Pública e governador do Estado de São Paulo, não são réus no caso. Mas se fossem, poderiam alegar o mesmo: “estrito cumprimento do dever”.

Pois, afinal de contas, o que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992 foi um servicinho sujo que parte de nós, paulistas, desejava (e ainda deseja) em seus sonhos mais íntimos: que bandido bom seja bandido morto.

Muita gente tem orgasmos múltiplos ao ler sobre execuções, sejam feitas pelas mãos da população, sejam pelas do próprio poder público, ao caçar traficantes na periferia da capital, enfiar uma bala na nuca de quem não respeitou o direito à propriedade ou entrar atirando em presídios. Para contrapor os bandidos e garantir uma inalcançável “pax paulistana”, optamos pelo terrorismo de Estado.


Vamos ser sinceros.

Não é que a nossa sociedade não conseguiu apontar e condenar os culpados.

Ela simplesmente não quis.

Porque não suportaria um espelho no banco dos réus.

Fonte:
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/10/02/massacre-do-carandiru-um-servico-sujo-em-nosso-nome/

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O novo idioma da direita na América Latina

01/10/2012 - Saul Leblon
- Portal Carta Maior

Henrique Capriles lotou ruas de Caracas neste domingo [30/09], num gigantesco comício de encerramento da campanha de oposição a Chávez.

Como diz Lula, as elites não brincam em serviço.

Na média, os prognósticos dão a Chávez a dianteira no pleito do dia 7, mas um fato é inegável: a reação não fala mais apenas aos trogloditas.

Capriles construiu um discurso para atrair descontentamentos explícitos e difusos; ademais dos endinheirados, ecoa aspirações de setores populares catapultados pelo próprio chavismo. A direita agora adotou o idioma dos que querem mais.

Não é exagero enxergar no 'burguesito', como o denomina Chavez, um drone político sobrevoando os céus da América Latina. Se bem sucedido - e para isso não necessariamente precisa atingir em cheio o alvo do próximo domingo - servirá de referência a outros da mesma cepa que cruzarão os ares; inclusive os do Brasil, em 2014, onde o fenômeno Russomano, em São Paulo, confirmou a receptividade a artefatos do gênero.

Drones, como se sabe, são aqueles aviões teleguiados que permitem cometer atentados e fulminar adversários sem precisar desembarcar tropas ostensivas. 

O golpismo cool concentra recursos em ações pontuais de sabotagens e outras façanhas seletivas, ancorando-se em intensa guerra psicológica & midiática e, claro, fluxos de caixa a lideranças com potencial 'caprílico'.

É o salto no processo de seleção. Não se pode enfrentar um Chávez, Lula, Cristina, Evo etc. com a mão pesada aplicada contra Kadafi ou Assad. 

Além de consagrados pelo voto, os líderes latino-americanos promoveram mudanças efetivas em curvas de distribuição de renda secularmente congeladas como o eletrocardiograma de um morto. 

Chávez tirou uns 3 milhões de miséria e permitiu a outros tantos ascenderem na escala da renda. Num país com 29 milhões de habitantes, fez da Venezuela a sociedade menos desigual da América Latina. Quem diz é a ONU.

No Brasil, sob Lula, a renda dos mais pobres cresceu 90%; a dos mais ricos, 17% (Ipea). O Brasil é hoje o país menos desigual de toda a sua história. Néstor e Cristina Kirchner fizeram o mesmo na Argentina onde o triturador neoliberal havia empurrado mais de 40% da população para a pobreza.

Sem ter como negar tais feitos, o gigantesco aparato intelectual e logístico que guia os drones ensaia uma vacina para enfraquecer essas conquistas.

"É insustentável', dizem os conservadores sobre a ênfase nas ações de transferência de rendas, adotada pelos governos progressistas.

O perigo desse raciocínio é que ele envolve pedaços de verdade apontados por uma parte da própria esquerda. Desses pedaços os Capriles extraem sua credibilidade para desidratar a dos adversários.


A simples transferência de renda não gera dinâmicas autônomas que possibilitem aos excluídos ocupar um espaço de inserção emancipadora para superar padrões estreitos de consumo e bem-estar.


O pulo do gato dos drones está em omitir que as reformas requeridas para esse salto são, ao mesmo tempo, fuziladas no berço pelos seus atiradores de elite.

É o caso, por exemplo, da taxação adicional sobre a riqueza, seja ela de natureza financeira ou patrimonial, assentada em latifúndios rurais e urbanos.

Os Capriles desviam o foco quando se trata de discutir essas rupturas históricos.E iluminam vitrines de acesso rápido ao repertório consumista.

Garantem: basta trocar o governante (como se troca o cartão de crédito) e limpar a corrupção da 'financiadora'.

Pronto: isso feito, no idioma dos drones, a engrenagem modernizante começa a funcionar ampliando o circuito das gôndolas no acesso ao supermercado global.


A contrapartida dos cidadãos envolve frequentemente outra ardilosa meia verdade: a emancipação social à frio, através da educação.

A ideia é que é possível anistiar o estoque de iniquidade patrimonial e superpor a ele um outro relevo histórico; e que isso se faz sentado nos bancos escolares.

Escola é crucial em qualquer etapa da vida de uma sociedade, mas o truque oculta uma contradição em termos.

Um Estado privado de recursos tributários adicionais seria incapaz de atender às obrigações correntes e, ademais, promover um efetivo salto educacional de qualidade nas periferias conflagradas.

Isso, sem falar do caixa necessário para implantar políticas de desenvolvimento que assegurem a absorção dessa nova mão-de-obra tecnificada.

Nem Chávez e tampouco Lula afetaram o estoque ou o fluxo da riqueza dos 20% mais ricos de seus respectivos países. Mesmo assim são caçados implacavelmente. 

Chávez que venceu meia dúzia de eleições e plebiscitos é repugnado como um ditador grotesco; Lula é tratado como um meliante por Serra que o acusa de 'poderoso chefão' - da quadrilha do dito 'mensalão'.

Jesse Chacon, ex-ministro das Comunicações venezuelano, um quadro qualificado do país, em recente entrevista ao jornal Valor, admite que o modelo ancorado sobretudo em políticas de transferência de renda flerta com o esgotamento. 

O diagnóstico se assemelha ao dos conservadores, mas as conclusões se bifurcam. Chacon evoca o passo seguinte da história. Chama a atenção, por exemplo, para os efeitos políticos de programas de acesso ao consumo que não alteram a lógica do consumismo capitalista.

Dá a entender que drones como Capriles levitam nessa corrente de ar que sopra permanente insatisfação material e psicológica.

Chávez desfruta de uma válvula de escape não reproduzível: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo pesado do mundo (230 bi de barris); o caixa da PDVSA dilata seu horizonte político apesar da ira da elite, que antes ficava com todo o resultado da empresa. Mesmo assim, há limites no bombeamento da estatal, cuja infraestrutura se ressente de investimentos pesados.

Nos demais países o poço é bem mais raso. A inércia da desigualdade não será vencida sem políticas de renda que alterem a posse do estoque da riqueza já existente. Alterar a carga fiscal é o primeiro passo; na América Latina ela não excede a média de 18% do PIB. No Brasil é quase o dobro; mas cai substancialmente se contabilizados incentivos e renúncias fiscais. Pior que isso: aqui, como na maior parte da AL, a receita disponível provém de uma base que acentua desigualdades em vez de corrigi-las. Na média regional, mais de 50% da receita do Estado é baseada em impostos indiretos, pagos de forma linear por toda população com efeito socialmente nulo ou regressivo.


O ciclo progressista da AL pode estar batendo no teto de suas ferramentas, mas está longe - muito longe - de ter esgotado a sua pertinência histórica.

Para ir além, todavia, talvez necessite renovar o instrumental com uma nova família de políticas e contrapesos.

Os drones estão chegando: independente dos resultados do dia 7, Capriles antecipa o esquadrão que aprendeu a jogar no campo do adversário.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1104

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A indústria jornalística tem alguma chance de reencarnar?

02/10/2012, por Dan Hind (*), Al-Jazeera
- Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila Vudu para a redecastorphoto


[Entreouvido na Vila Vudu: Se o jornalismo tido como melhorzinho já se dá por falido e morto... Imaginem só em que situação está hoje o Grupo GAFE (Globo-Abril-FSP-Estadinho), que faz, no Brasil-2012, o PIOR JORNALISMO DO MUNDO!  \o/ \o/ \o/]

Semana passada o Guardian deu a David Leigh, um de seus jornalistas, oportunidade para propor nova forma de arranjar dinheiro para fazer jornal. A venda de edições impressas despencou para o fundo do poço, diz ele, e cobrar de leitores virtuais não funciona na Grã-Bretanha, por causa da BBC. 

Mas algo se tem de conseguir fazer, Leigh explicou, por que: “... no dia em que os jornais pararem de vez de circular, será um desastre para a democracia”.


[Entreouvido na Vila Vudu: Isso, talvez, e na Grã-Bretanha. No Brasil, no dia em que pararem de circular de vez as publicações do Grupo GAFE (Globo-Abril-FSP-Estadão) a democracia talvez tenha, afinal, alguma chance real de prosperar por aqui .]

“Os magros lucros que os jornais obtêm dos anúncios publicados em páginas online de acesso gratuito pagam só uma mínima fração dos custos do jornalismo investigativo de alta qualidade que os jornais geram”.


[Entreouvido na Vila Vudu: “jornalismo investigativo de alta qualidade gerado por jornais”?!... Sóssifô na Grã-Bretanha! kkkkkkkkk]

“Ficaríamos só com a tímida BBC, de um lado; e com jornalismo-lixo, do outro”.
David Leigh

Ante desastre de tais proporções, David Leigh propõe o que, para ele, seria “meio perfeitamente fácil para recuperar jornais, garantir a pluralidade de opiniões: monetarizar a web” -- acrescentar £2 ($3,2 dólares, R$ 7,4) mensais no que se cobra pelo uso da banda larga e, assim, obter, no total, cerca de £500 milhões ($807 milhões de dólares, R$1,77 bilhão) por ano. O dinheiro seria então distribuído para operações jornalísticas “segundo o número de leitores online na Grã-Bretanha”.

Os grupos The Telegraph, Guardian e associados (i.e., Daily Mail) seriam os grandes beneficiados nesse arranjo, cada um deles embolsando cerca de £100 milhões ($161 milhões de dólares, R$ 398 milhões) ao ano. O Sun receberia metade disso, cerca de £50 milhões ($80 milhões de dólares, R$ 160 milhões) e o grupo Independent, £40 milhões.

Em tempos normais, os jornais jamais discutem a economia política da mídia. A publicação do artigo de Leigh sugere que não estamos vivendo tempos normais.


As perdas provocadas pela transferência de leitores para as mídias online acumulam-se hoje em ritmo tal que já obrigam a romper os velhos padrões de silêncio “midiático”. A maioria dos leitores não sabe da quantidade de subsídios públicos que os jornais já recebem (o artigo de Leigh também fala deles, embora muito rapidamente). Interessante será observar se, doravante, o Guardian ou qualquer dos grupos concorrentes começarão a publicar também propostas que não combinem tão exatamente com o que mais interesse ao Guardian.

Jornalismo Investigativo
Deixando isso de lado, nos concentremos no principal problema que há na proposta de Leigh. O mecanismo de distribuição de dinheiro que ele propõe não atingirá o objetivo declarado. Leigh propõe um meio espetacularmente ineficaz de usar dinheiro público para produzir “jornalismo investigativo de alta qualidade”. Longe de impedir um desastre para a democracia, só conseguirá dar sobrevida ao desastre já em andamento.

Embora vez ou outra ainda se encontre jornalismo investigativo nos jornais britânicos [nos jornais brasileiros, nunca, never, jamais, jamais, jamás]não passa de ínfima porção do total de conteúdo publicado. Dá-se sempre espaço muito maior a fofocas sobre celebridades, diz-que-disse diretamente saído do prédio do Parlamento (ou diretamente produzido dentro das próprias redações), comentário-futrica sobre estilos de vida, cobertura de esportes, histórias assustadoras em que imigrantes são sempre “culpados”, bobajol semicru e palpitaria sobre economia e outros temas equivalentes que se reúnem sob a tag “superficialidades e lixo”. Antigamente, esse tipo de “matéria” gerava manchetes hipnóticas e/ou pornô-sedutoras que turbinavam a venda de jornais. Ainda atrai internautas à caça de ver gente super, semi, ou totalmente despida, surubas e/ou pregação “ética” e “indignação” falso-moralista. Mas já não vende como nos bons tempos.

O plano de Leigh visa a turbinar as operações jornalísticas já em curso, com grande número de “seguidores” e/ou “visitantes” e/ou leitores online, independente da quantidade de “jornalismo investigativo de alta qualidade” que encomendem ou publiquem. O plano visa a recompensar, preservando, o que há hoje.

Também estimulará os editores a se dedicar ao sensacionalismo e ao escândalo, ainda mais do que já se vê hoje. A página online do Daily Mail receberia rios de dinheiro. O editor do já defunto The News of the World dos Murdoch poria as mãos em dezenas de milhões de dinheiro limpo e novinho, para pagar investigações privadas sobre mais vidas privadas de mais gente e para pagar despesas que podem ser mais ou menos, mas são, todas, sinistras.

Leigh chega a sugerir que só os sites que atraiam mais de 100 mil visitas/leitores recebam fundos públicos, o que é meio bem estranho para promover alguma pluralidade de opiniões.

A vida pública afundaria de vez na mediocridade, mantendo no poder e nos jornais “os suspeitos de sempre”, jogando sempre pelas mesmas regras.
Baronesa Hale

Até recentemente, havia vozes influentes que defendiam o conteúdo e a conduta atuais das empresas comerciais de jornalismo, a partir do pressuposto de que essas práticas seriam indispensáveis para atrair o interesse do consumidor, gerar vendas, as quais, assim, sustentariam a pluralidade de opiniões. A Baronesa Hale, por exemplo, das mais longevas juízas da Suprema Corte britânica:

Os jornais devem ter assegurada suficiente latitude para intrometer-se no sofrimento privado, para que mantenham os números de venda e a circulação, e todos nós possamos continuar a nos beneficiar da ampla diversidade de jornais e outros meios massivos de informação acessíveis nesse país”.


Na minha avaliação, difícil encontrar doutrina mais repugnante.

Os que desejem e possam continuar a produzir escândalos sobre escândalos e hectares de páginas de fofoca e futrica ficam assim autorizados a continuar a submeter os públicos consumidores à divulgação massiva de sua, só deles, específica ideia sobre o que seja a vida pública.

Como se vê hoje, o discurso público é privilégio reservado, sem qualquer cuidado com manter alguma proporcionalidade entre opiniões divergentes – e com, na prática, garantia de exclusividade –, para os que mais se interessem por atacar qualquer princípio, por mínimo que seja, de tolerância ou decência humana. É praticamente uma nova Constituição, produzida por juíza da Suprema Corte britânica, que assegura direitos de chantagem a todos os jornalistas!

Na caça à futrica mais comercialmente valiosa, os jornais e os jornalistas ficarão autorizados a reunir montanhas de qualquer tipo de “indício” de qualquer coisa que possa ser usado para destruir reputações de políticos e outros, e “indícios” que tanto poderão ser publicados quanto poderão ficar reservados” para uso em chantagens futuras, tudo deixado entregue ao critério de editores, jornalistas, empresários “da mídia”.

O problema é que, como se vê hoje, a autorização que a Baronesa Hale da Suprema Corte britânica garante aos jornais, “para intrometer-se no sofrimento privado”, já não é tão lucrativa. Então... Leigh, do Guardian, propõe que se crie um taxa... para subsidiar aquela intrusão!

Poder-se-ia, talvez, com algum sentido, considerar a criação de novos impostos que subsidiassem a produção de jornalismo investigativo. Talvez. Mas... criar uma nova taxa, sobre o uso da banda larga... para financiar os jornais e os jornalistas que operam os jornais que há hoje?!

[Millôr Fernandes em 2006:
“A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o País. Acho que uma das grandes culpadas das condições do País, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa. Repito, apesar de toda a evolução, nossa imprensa é lamentavelmente ruim. E não quero falar da televisão, que já nasceu pusilânime”. (Equipe Educom)]

O dinheiro correria lépido para os bolsos dos mais capazes de atrair os mais pervertidos! Claro que alguns sites jornalísticos poderiam alocar alguma fração do que recebessem e comprar jornalismo investigativo de alta qualidade... Mas, pode-se dizer, seria “problema deles”... Poderiam também comprar a produção do tal “jornalismo investigativo de boa qualidade” e jamais publicar coisa alguma de boa qualidade, como já fazem hoje.


Não há dúvida de que garantir subsídios públicos para apoiar a produção de jornalismo investigativo é solução altamente desejável. É, de fato, necessária, se se está buscando meio para sair do estarrecedor emaranhado de problemas que hoje enfrentamos. Mas é solução que só se justifica se, sobre a alocação dos tais “subsídios públicos”, houver eficiente controle público.

Criar novos impostos ou aumentar a taxa que os britânicos já pagamos para ter televisão pública seria boa ideia, se cada um de nós recebesse uma quantia de dinheiro para usar “em comunicação pública”, como melhor aprouvesse a cada um. E com o direito assegurado aos cidadãos, para exigir restituição do imposto pago, no caso de absolutamente não interessar a alguém apoiar qualquer tipo de empresa jornalística.

Quanto aos demais cidadãos, alguém pode ter algum interesse específico num determinado tipo de investigação jornalística. Outros, se quisessem, poderiam delegar a uma ou outra empresa jornalística o direito de falar em seu nome, ou de publicar, autorizadamente em nome “do leitor”, o que desse na telha de um ou outro jornalista, autorizando assim, também, um ou outro jornalista a investigar ou deixar de investigar o que bem entendesse.

Assim feito, os cidadãos poderiam decidir quais os temas sobre os quais querem saber mais. Quem desejar escândalo e mais escândalo, que entregue o seu dinheiro ao Sun e ao Daily Mail. (Embora, pensem bem: encontram-se na internet, perfeitamente gratuitos, todos os mais escabrosos escândalos reais e imagináveis!). Quem quisesse saber sobre o que acontece no mundo, poderia dar o próprio dinheiro diretamente aos que tenham conseguido convencer um ou outro cidadão de que merecem receber o seu rico dinheirinho, ou porque sejam confiáveis ou porque mentem talentosamente, do jeito que melhor apraza ser mentido, a um ou outro destinatário. O que importa, em todo esse processo, é que todos temos de poder discutir todas as propostas e todos os resultados.

Indivíduos e pequenos grupos de opinião teriam, assim, meios para continuar a produzir o noticiário que lhes interesse, recebendo dinheiro diretamente da parcela do público que se interessa por um ou outro tipo de informação: pequenos jornais para pequenos públicos. Que grande diferença faria, se vários milhares de pequenos jornais adequadamente financiados e sob eficaz controle público pudessem, todos, produzir jornalismo investigativo de boa qualidade! Que espantosa quantidade de informação pública de boa qualidade haveria disponível para todos, conhecimento público publicamente produzido e publicamente consumido, para esclarecimento público da opinião pública.

O jornalismo-empresa que vende jornais impressos que há hoje não passa de máquina de ensinar preconceitos, superstições e argumentação desejante, incansavelmente repetida, a favor do desejo de uns poucos. Sensacional seria se, todos os dias, alguém lançasse luz sobre alguma parte da realidade que, há tanto tempo, é cuidadosamente mantida na obscuridade, além de nos, também pelos jornais que conhecemos!


Num sistema bem projetado, se inventariam meios para dar ampla divulgação à informação que grande número de cidadãos considerassem interessante, valiosa.

E, nos grandes números, tudo, afinal, acabaria por ser adequadamente investigado.

Encomendar matérias de jornalismo investigativo e avaliar o significado público de uma ou outra descoberta passaria a ser rotina diária, parte da vida.

Como foi, antigamente, quando se comprava o jornal do dia.


(*) Dan Hind is the author of two books, The Threat to Reason and The Return of the Public. His pamphlet Common Sense: Occupation, Assembly, and the Future of Liberty, was published as an e-book in March. He is a member of the Tax Justice Network.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/10/a-industria-jornalistica-tem-alguma.html


Leia mais:
- As 10 estratégias de manipulação midiática
http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/07/as-10-estrategias-de-manipulacao.html
- Educom: Há dois anos na batalha
http://brasileducom.blogspot.com.br/2011/10/educom-ha-dois-anos-na-batalha.html