Mostrando postagens com marcador Manipulação da informação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Manipulação da informação. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O vale de lágrimas é aqui

21/01/2014 - Venício Lima - Carta Maior
- Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

Assim como outros milhares da minha geração, nascidos em famílias católicas, ainda criança aprendi a popular oração “Salve Rainha” que inclui a súplica: “A vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas” [Ad te clamamus, exsules filii Hevae, ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle].

Segundo a Wikipedia, “a autoria da oração é atribuída ao monge Hermano Contracto, que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha.

Naquela época, a Europa central passava por calamidades naturais, epidemias, miséria, fome e a ameaça contínua dos povos nômadas do Leste, que invadiam os povoados, saqueando-os e matando”. 

Cresci repetindo mecanicamente esta súplica sem saber o que poderia ser “um degredado filho de Eva” ou, muito menos, por que razão estaríamos todos a “suspirar, gemer e chorar” num “vale de lágrimas”.

Com o tempo, ensinaram-me que o “pecado original” nos tornava a todos “degredados”, e que a expressão “vale de lágrimas” tinha sua origem numa passagem do Salmo 84 [na numeração da Bíblia Hebraica], conhecido como Salmo dos Peregrinos.

Anos mais tarde, me dei conta de que, no Salmo 84, o significado literal de “vale de lágrimas” é muito diferente daquele que prevalece na interpretação cristã dominante.

[Registro, embora este não seja o objetivo aqui, que palavras e expressões mudam de significação ao longo do tempo, da mesma forma que palavras são introduzidas no nosso cotidiano e passam a constituir uma nova linguagem, um novo vocabulário dentro do qual se aprisionam determinadas formas de pensar e ver o mundo.

Ver, por exemplo, “A linguagem seletiva do ‘mensalão’“.]

Baca e as lágrimas
A tradução literal da passagem do Salmo 84 no original hebraico é:

“Bem-aventurados os homens cuja força está em Ti, em cujo coração os caminhos altos passando pelo vale de Baca, fazem dele um lugar de fontes; e a primeira chuva o cobre de bênçãos.”

Na Vulgata Latina (Salmo 83), no entanto, que serve de referencia para as interpretações cristãs, o “vale de Baca” é substituído por valle lacrimarum:

Beatus vir cui est auxilium abs te ascensiones in corde suo disposuit in valle lacrimarum in loco quem posuit etenim benedictiones.”

Na verdade, a palavra hebraica “baca” significa tanto lágrima, choro, como bálsamo.

As “balsameiras” (amoreiras) são árvores que “choram” porque produzem uma resina de cheiro agradável, o bálsamo, palavra que, figurativamente, significa conforto, lenitivo, alívio.

Esta é razão pela qual o vale, ao norte de Enom, recebeu o nome de Baca: é o vale das árvores que “choram”.

Ele era também a última etapa da peregrinação, na encruzilhada das estradas que vinham do norte, do oeste e do sul, com destino ao Templo em Jerusalém [foto].

Os peregrinos, que chegavam até Baca, depois de uma longa caminhada, eram bem-aventurados e poderiam transformar as chuvas em fontes (de água) e de bênçãos.

Na pregação cristã, ao contrário, o “vale das árvores que choram” foi se transformando no “vale de lágrimas” e até mesmo no “vale da morte”, uma condição inescapável da vida humana, uma sequência de sofrimento e purgação para os pecadores na busca do perdão de Deus.

Um pastor presbiteriano assim descreve o vale de Baca:

“É muito indesejável.
a) É árido. Não tem rios de alegria; os poços, cavados por alguns dos peregrinos que nos antecederam ou por nós mesmos são, muitas vezes, “cisternas rotas que não retêm as águas” (Jeremias 2.13).
b) É pedregoso. Os peregrinos conseguem remover as pedras menores, não as grandes; a caminhada é muito sofrida; muitos tropeçam e caem.
c) É escuro. As trilhas serpenteiam entre rochas de angústia e montanhas de pecado; o Sol da Justiça esconde-se por trás destas e o vale fica muito sombrio.
d) É extenso. Os peregrinos sabem que Sião está à frente, mas não podem vê-la; a caminhada parece não ter fim. Muitos ficam desencorajados.
e) É infestado. Há espíritos maus neste vale. Eles tentam; fazem insinuações malditas e sugestões blasfemas: armam ciladas, lançam os “dardos inflamados do maligno” (Efésios 6.11,16) [ver aqui].

Esta é a significação que “vale de lágrimas” (Baca) tem na oração “Salve Rainha”. É um mundo pleno de misérias e obstáculos.

Ajuda divina
Toda essa introdução é para observar que um visitante estrangeiro que desembarque no Brasil e que tome como referência as notícias diariamente veiculadas na grande mídia brasileira se convencerá de que o “vale de lágrimas” da interpretação cristã do Salmo 84 é aqui, hoje e agora.

No enquadramento padrão do jornalismo praticado entre nós, até mesmo as notícias eventualmente “boas” são acompanhadas de comentários irônicos e jocosos insinuando que alguma coisa deu ou dará errado, mantendo-se o “clima geral” de que estamos vivendo numa permanente e irrecorrível sequência de sofrimento e purgação de pecados.

Dia desses, fiz um teste assistindo ao noticiário local da concessionária de televisão líder de audiência do Distrito Federal.

Além das chamadas de abertura e passagem, nos três blocos de notícias, cada um com três matérias, todas tinham um enquadramento negativo e crítico:

- o hospital universitário, que finalmente iniciaria uma necessária reforma na sua maternidade, criava um novo problema para as grávidas, pois elas teriam que procurar outros hospitais;
- o subsecretário de Segurança era criticado (justamente) por referir-se a uma pessoa desaparecida e encontrada morta sob suspeita de ter sido assassinada por policiais como “um zé”;
- um incêndio no Cerrado, incomum nesta época do ano, tinha causado uma enorme fumaça e atrapalhado a visibilidade dos motoristas, mesmo combatido e controlado pelo Corpo de Bombeiros;
- em algumas regiões do Distrito Federal faltavam vagas para crianças de zero a cinco anos, perto de suas casas, nas creches públicas;
- as chuvas estavam provocando buracos nas ruas de uma cidade satélite onde as “bocas de lobo” estão entupidas e com as tampas quebradas;
- em outra satélite há um cruzamento onde a falta de um semáforo tem dificultado a travessia e provocado acidentes;
- e, por fim, o retrato falado de um suspeito de praticar sequestros relâmpago é divulgado com o inescapável comentário sobre a crise na segurança pública.

Por óbvio, o “vale de lágrimas” não é a única característica do jornalismo brasileiro que omite e/ou enfatiza seletivamente aquilo que atende mais ou menos aos seus interesses, implícitos e/ou explícitos.

De qualquer maneira, o noticiário televisivo do Distrito Federal, escolhido aleatoriamente, é apenas um exemplo de um padrão que se repete várias vezes ao dia, todos os dias.

Não haveria nada de positivo eventualmente acontecendo e merecedor de ser noticiado neste pedaço do planeta “descoberto” por Cabral?

No jornalismo do “vale de lágrimas” que vem sendo praticado pela grande mídia, salvar o Brasil, só com ajuda divina.

Vamos todos rezar o “Salve Rainha”.

(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador/autor com Juarez Guimarães de Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio, Paulus, 2013, entre outros livros

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-vale-de-lagrimas-e-aqui/30055

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

Leituras afins:
- Política e debates na rede - Maurício Caleiro

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

As previsões fracassadas de 2013

20/12/2013 - O jornalismo ornitorrinco e a herança maléfica de 2013
- Wanderley Guilherme dos Santos - Carta Maior

O recorde mais espetacular do ano de 2013 foi o número de previsões fracassadas.

Dia sim, outro também, os jornalões estamparam notícias recebidas com surpresa pelo famoso mercado, que as esperava o oposto.

De boca aberta também andaram seus renomados especialistas, a inventar explicações fora da curva para os furos especialmente enormes.

Erros que, imediatamente, soterraram com pompa, circunstância e virgens anúncios de futuras tempestades.

É intrigante a permanente charlatanice com que os periódicos, diários e semanais, afagam o ego dos conservadores sem que estes se sublevem contra a falcatrua.

Ou, talvez, os conservadores desconfiem de que a realidade seja bastante diferente, mas aspiram, tal como os jornalistas e especialistas, a vê-la materializar-se conforme a aspiração.

Este parece o sonho derradeiro dos colunistas e pitonisas da oposição: obter o condão de pronunciar profecias que se auto-cumprem.

Daquelas que, uma vez proclamadas, contribuem para a realização do desastre.

Uma corrida a um banco disparada por falsa previsão de que vai quebrar pode, de fato, levar à bancarrota um estabelecimento sólido.

Mas é impossível evitar uma estupenda safra agrícola escondendo-a sob pragas e tormentas apenas verborrágicas.

Criam, contudo, uma espécie ornitorrinco de jornalismo – aquele que retrata o que lhe apeteceria acontecesse efetivamente, não o que, com modesta realidade, ocorre.

Daí a freqüente discrepância entre as manchetes e o conteúdo, ainda que este venha narrado como que sob tortura, tão tortuosa é a narrativa.

Diverso é o caso do jornalismo a soldo. Não há como perdoar àqueles que sabem o que fazem.

Omitem informações relevantes, adulteram outras, inventam terceiras.

Cada um dos desvios é serviço prestado.

Digamos que eles fabricam um tipo especial de caixa dois, recursos contabilizados como salário, quando, contudo, resultam de um efetivo domínio do fato inventado ou distorcido.

Essa cumplicidade entre fiéis ingênuos e deliberados bandoleiros que assaltam a reputação alheia, maculam o estafante trabalho de legislar ou de executar tarefas de interesse geral, enriquecendo ao longo da labuta, dificulta identificar a composição da quadrilha que, diariamente, vende engodo à população.

Estamos de acordo que as matérias impressas, tanto as assinadas quanto as editorializadas, constituem atos de ofício e aceitável evidência dos crimes assinalados, certo?

Sendo assim, uma legislação democrática, que proteja os cidadãos comuns contra os achaques e calúnias dessa quadrilha de mistificadores e inventores de escândalos, deve ser uma das preocupações de qualquer governo de origem popular.

Os antigos gregos já puniam severamente os propagadores de infâmias e em alguns casos de indução de outros a atos perversos, aplicavam a pena do ostracismo, da multa e, eventualmente, impunham até a pena de morte.

O Brasil nunca ultrapassou essa fase porque nunca esteve nela.

O jornalismo ornitorrinco e o jornalismo adversativo (aquele que acrescenta um mas, porém, todavia, contudo a toda notícia positiva) ainda são os controladores do mercado de notícias.

O mercado de notícias é o único que os conservadores não desejam livre.

Qualquer iniciativa de soltá-lo das garras oligárquicas é, ornitorrincamente, apresentada como seu oposto, o de invadir a liberdade da notícia.

Ora, o que não existe no país é justamente uma imprensa livre, plural e competitiva o suficiente para que o cidadão possa optar.

O mercado de notícias está cativo de tiranetes sem escrúpulos, de colunistas a soldo, sem mencionar o inacreditável nível de desinformação e de cultura da média das redações desses jornais.

O Judiciário, por sua vez, além da adoção do discurso de ódio, inaugurou uma etapa bastante peculiar em nosso constitucionalismo.

Dizem seus arautos que o Supremo Tribunal Federal (STF) representa a vanguarda iluminada das sociedades contemporâneas.

Ainda com mais fulgor no Brasil, entendem, em vista da podridão de que estariam acometidos os demais poderes da República.

Entre suas atribuições abrigar-se-ia a de estabelecer prazos para que o Legislativo legisle sobre matérias que ele, Judiciário, considera inadiáveis.

Isso, como todos sabem, inclusive os senhores ministros do STF, não está escrito na Constituição.

Os únicos prazos legitimamente impostos ao Legislativo, salvo engano, são aqueles hospedados por seu Regimento Interno e pelos estatutos de urgência e medidas provisórias, ambas emanadas do Poder Executivo.

De uma penada os atuais e transitórios ministros do STF ofendem o Executivo e o Legislativo.

É cautelar, em conclusão, que se observe como os conflitos por vir não deverão ser debitados à conta de um confronto direto entre o capital e o trabalho, mas entre o jornalismo ornitorrinco e o Judiciário e os demais poderes.

O ano de 2014 promete.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-jornalismo-ornitorrinco-e-a-heranca-malefica-de-2013/4/29856

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

Leia também:
- Um ano cansado e de grandes derrotas - Miguel do Rosário
- O que disse Johnny Saad para Fernando Haddad - Paulo Nogueira

domingo, 25 de agosto de 2013

O pior analfabeto é o analfabeto midiático




“Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões do jornalista Celso Vicenzi em torno de poema de Brecht, no século 21


Celso Vicenzi, no Outras Palavras / Pragmatismo Político


“Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.

Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.

Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.

O analfabeto mediático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.

O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”

O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.

Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.



O analfabeto político

O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.
Bertold Brecht

Fonte:Blog do Saraiva

terça-feira, 11 de junho de 2013

Inflação? Que inflação?

10/06/2013 - Inflação? Só que não! - Joao Pedro Stedile
- Com Texto Livre

Revista Exame, do grupo Abril do finado Robert Civita, mostra o gráfico:

Desculpe a nossa falha, não é o gráfico da urubóloga.
O desempenho da inflação mês a mês até maio.
IPCA ficou em 0,37% no mês; veja os dados por período e por grupo

Design: Juliana Pimenta
Apuração: Lilian Alvares
Fonte: IBGE

Fonte na Revista Exame
[http://exame.abril.com.br/economia/noticias/o-desempenho-da-inflacao-mes-a-mes-ate-maio]

PARANOIA DA INFLAÇÃO E HIPOCRISIA DA BURGUESIA
A imprensa burguesa tem propagandeado que a inflação está fora do controle com a divulgação de noticias, artigos e comentários de políticos de oposição ao governo federal.

Com isso, colocam o tema dos preços como um fantasma atrás da porta de cada família brasileira, prestes a assaltá-la e tomar o seu dinheiro.

A construção dessa paranoia começou com a divulgação de matérias sensacionalistas sobre o aumento do preço do tomate, como se a valorização desse alimento tivesse de forma isolada incidência real na inflação dos gastos da maioria da população.

Qualquer estudante do primeiro ano de economia já sabe que os estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Getúlio Vargas têm diversos itens do orçamento doméstico médio dos brasileiros, sobre o qual se calcula o aumento da inflação real para as famílias.

Depois da criação da “crise do tomate”, a mídia burguesa tem apelado a cada dia para outros produtos, tentando criar novos factoides.

Essa manipulação grosseira se baseia em duas táticas complementares.

A primeira delas é criar na população paranoias e preocupações desnecessárias que resultem em ações de massa que desgastem o governo.

Essa tática deu resultado, por exemplo, com o boato de que a Bolsa Família iria acabar.

Com isso, 900 mil representantes das famílias mais pobres, desinformados ou mal informadas, correram para as agências da Caixa, provocando um verdadeiro tumulto, sobretudo nas cidades do Nordeste.

Hipocrisia descarada
A segunda tática da burguesia é jogar uma cortina de fumaça sobre os verdadeiros problemas do país, lançando mão da hipocrisia descarada.

Em primeiro lugar, a burguesia e seus meios de comunicação sabem que existe uma tendência geral de aumento dos preços de todas as mercadorias que estão na sociedade, independente do preço de um único produto.

Ora, se há uma tendência de aumento de preços em todas as mercadorias, quem são os atores econômicos que aumentam os preços?

São exatamente os capitalistas proprietários das fábricas, supermercados ou lojas do comércio.

Portanto, é a base social tucana que opera o aumento dos preços, beneficiando-se com o aumento dos seus lucros.

Assim, o discurso por trás da inflação esconde interesses de classes.

Em segundo lugar, ao mesmo tempo em que exageram nas notícias sobre um “descontrole inflacionário”, fazem pressão pelo aumento das taxas de juros.

Nós, brasileiros, já pagamos os juros mais altos do mundo.
A taxa média de juros paga na economia pelos comerciantes e pelos consumidores é de 58% ao ano.

Os bancos que financiam esses empréstimos ganham 52% de lucro líquido, com a inflação em torno de 6% ao ano.
Não existe paralelo no mundo para a lucratividade dos bancos com crédito no Brasil.

Com isso, os brasileiros ficam endividados no cartão de crédito ou no cheque especial, que têm taxas que ultrapassam em média 100% ao ano…
Ou seja, é um verdadeiro assalto.

Para efeito de comparação, a taxa média de lucro nas economias centrais é de 13% ao ano. Essa taxa já faz brilhar os olhos dos capitalistas nesses países…
Nenhum porta-voz da burguesia brasileira protesta nos jornais, revistas e nas TVs contra esse assalto aos brasileiros que o capital financeiro pratica todos os dias.

Ao contrário.
Esses ideólogos defendem aumentos das taxas de juros como uma pretensa medida para controlar o consumo das massas e impedir o tal descontrole da inflação.

A terceira hipocrisia da burguesia é omitir que a taxa de câmbio da nossa moeda em relação ao dólar é irreal.
A comparação dos preços das mercadorias em dólar nos Estados Unidos e em real no Brasil indica uma taxa de câmbio necessária ao redor de U$S1,00 por R$3,00.

Essa posição é defendida por diversos especialistas da área.
A atual taxa de câmbio próxima a U$S 1,00 por R$2,00 está provocando um processo de desindustrialização da economia brasileira e reprimarização das exportações.

A produção das manufaturas, que geram emprego e valor agregado, não consegue mais competir no mercado internacional.

Essa taxa de cambio é provocada pela emissão descontrolada do papel dólar pelo governo dos Estados Unidos e pela avalanche de capital financeiro especulativo em nosso país, que vem para cá se proteger da crise.

Nenhuma palavra dos porta-vozes da burguesia sobre o “descontrole” da taxa de câmbio.

Ou seja, a mídia da classe dominante sequer protege sua fração industrial.

Controle dos alimentos
A quarta hipocrisia é esconder que grande parte dos produtos agrícolas que se transformam em alimentos no mercado interno é controlado por um oligopólio formado por empresas transnacionais.

Depois da crise de 2008, houve uma corrida do capital financeiro internacional e das empresas transnacionais sobre as chamadas commodities para se proteger da perda de dinheiro.

Assim, fizeram um brusco movimento especulativo, que fez com que os preços das commodities aumentassem em três anos, em todo mundo, nada menos do que 200%.

Esse aumento de preço foi repassado para os consumidores de alimentos.
Portanto, o aumento de certos produtos alimentícios tem como responsáveis os que multiplicaram os seus ganhos: as grandes empresas do agronegócio, como Bunge, Monsanto, Unilever, Cargill, Nestlé, Danone, entre outras.

A quinta hipocrisia da mídia burguesa é ignorar que o Brasil é um dos maiores produtores mundiais de milho, enquanto a falta de alimentos dizima 18 milhões de cabeças de bois, vacas, porcos e bodes no Nordeste.

Foram colhidas 60 milhões de toneladas de milho na última safra.
No entanto, diante da pior seca no Nordeste, morrem os animais criados por camponeses da região.

A morte desses animais será uma perda irreparável para a população nordestina, que pode demorar uma geração para repor o rebanho dizimado.

As famílias se salvaram da fome graças a saques, aos benefícios do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) e ao programa Bolsa Família, que garantiram renda para fazer a feira e se alimentar.

Diante dessa situação, a presidenta Dilma Rousseff mandou seus ministérios tomarem providências.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário resolveu doar tratores produzidos no Sul para as prefeituras do Nordeste. Foi só um negócio que não alterou questões estruturais.

Independente da situação, o Ministério da Integração Nacional continuou com a distribuição de lotes de perímetros irrigados para empresários do Sul, em vez de beneficiar os camponeses da região que padecem com a falta de água.

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foi autorizada a comprar milho para levar para o Nordeste e salvar o rebanho.

No entanto, a companhia fez vários editais e não encontrou quem vendesse milho suficiente para a demanda. Por quê?

A safra de milho é controlada por empresas transnacionais.

A Cargill e a Bunge exportaram nada menos que 18 milhões de toneladas de milho para os Estados Unidos no último ano.

Esse milho voltou ao país como etanol, importado por esses mesmas empresas.

Com isso, o preço do etanol se mantém bem acima do seu valor real.


João Pedro Stedile
Se o governo quisesse resolver o problema, poderia requisitar a produção de milho, proibir as exportações e salvar o rebanho no Nordeste, enfrentando o problema das mortes dos animais causado pela seca.

Nenhuma palavra na imprensa burguesa sobre a falta de milho no país campeão de produção agrícola.

Na verdade, foram escondidas as raízes da perda do rebanho no Nordeste.

Dessa forma, a mídia burguesa demonstra seu compromisso com o interesses do grande capital financeiro internacional.

Os meios de comunicação da classe dominante, “preocupados” com a inflação, omitem questões centrais relacionadas à formação dos preços no país.

Assim, os verdadeiros problemas que a sociedade brasileira enfrenta ficam submersos diante da manipulação e da hipocrisia dos donos de jornais, revistas e redes de televisão.

Fonte:
http://contextolivre.blogspot.com.br/2013/06/inflacao-so-que-nao.html

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Não mostrem isso nas aulas de economia

07/06/2013 -  Fernando Brito - blog Tijolaço

O gráfico aí de cima mostra a trajetória da inflação, mês a mês, e foi publicado hoje [7/6] em O Globo, com o resultado de 0,37% do IPCA anunciado de manhã pelo IBGE.

Eu, que peguei a mania da Miriam Leitão (abaixo) de ficar usando gráfico para explicar as coisas, tomei a liberdade de colocar, junto dele, uma linha com a trajetória da taxa Selic do Banco Central.

O resultado é algo que não pode ser mostrado nas aulas de economia, porque contraria o manualzinho que diz que “inflação sobe, juro sobe” e “inflação cai, juro pode cair”.

E se você juntar aí a curva do consumo das famílias, aí é que a coisa dá um nó. Porque não se encontra, nem revirando o depósito das Casas Bahia, nenhuma corrida às compras que pudesse estar elevando preços.

Houve, é verdade, alta no preço dos alimentos, mas isso não se combate com alta de juros públicos.

A menos que se ache que os plantadores de tomate estão especulando com a taxa Selic.

Mas o perverso disso é que será, no mínimo, uma “meia-trava” no que há de melhor hoje, em nossa economia, que é o investimento produtivo – o melhor indicador do PIB foi a formação bruta de capital fixo – e o que ele projeta para a produção futura, para o emprego e para o consumo.

Bom, há uma alternativa: passar a ensinar, nos cursos universitários, que a mídia é “fundamento econômico”.

E que o papel da autoridade monetária é defender os ganhos dos especuladores.

Fonte:
http://www.tijolaco.com.br/index.php/nao-mostrem-isso-nas-aulas-de-economia/

Nota:
No ponto mais baixo do gráfico o correto é 0,08

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

"Especialistas" em economia, não os leve tanto a sério

12/01/2013 - A opinião econômica particular vendida como de interesse geral
- J. Carlos de Assis (*) - Carta Maior

O jornalismo econômico brasileiro, a exemplo do norte-americano, está dominado pela opinião de economistas de bancos e de grandes corporações.

Eventualmente, aparece um professor ou um especialista independente para fazer algum comentário, mas em tempo ou espaço suficientemente curtos para não permitir mais do que legitimar a presença dominante dos primeiros nos noticiários de jornal e televisão.

Com isso a sociedade acaba com uma visão distorcida da economia política, mascarada que fica pelo viés dos negócios de curto prazo.


Galbraith, com sua fina ironia, costumava dizer que, em matéria econômica, não se devia levar muito a sério a opinião de quem tem interesse próprio em jogo.

Ainda há pouco assisti no Jornal da Globo a uma “especialista” culpando o intervencionismo do Governo pela queda das ações das empresas do setor elétrico: ela estava visivelmente indignada com a decisão governamental de reduzir as tarifas elétricas, afetando a rentabilidade das empresas do setor, e não fez qualquer menção ao que isso representava de positivo para a sociedade e a economia.

Claro, ela ou sua empresa certamente tem ações das elétricas!

Sou de um tempo em que, no jornalismo econômico, se separava claramente negócios de economia política.

Fui subeditor de economia do Jornal do Brasil na segunda metade dos anos 70, e, depois, repórter de economia da Folha na primeira metade dos anos 80: não me lembro de uma única vez, nesses dois jornais, em que, por iniciativa própria ou por instrução da direção, tenha entrevistado um economista de banco.

É verdade que, na cobertura de bolsa, havia repórteres que se referiam a “fontes” não identificadas para empurrar ações para cima ou para baixo.

Mas isso não era economia política. Era corrupção mesmo.

Em 1978, meu editor no JB era Paulo Henrique Amorim. Ele tirou as greves do ABC das páginas de Polícia e as trouxe para a Economia. Fui encarregado de editá-las.

Foram 40 dias e 40 noites de greve, o tempo das chuvas de Noé, em plena ditadura. A gente sentia que era algo importante, mas não podíamos adivinhar que ali estava o início do fim do autoritarismo.

Quais eram os nossos entrevistados na época?
Empresários com liderança no setor, líderes trabalhistas, economistas independentes, professores, ex-ministros, autoridades etc etc.

Não se ouvia economista de banco que viesse a defender como se fosse de interesse geral assunto de seu interesse.

Na imprensa norte-americana, quando alguém que tem interesses específicos trata de assuntos econômicos de interesse geral, é costume identificá-lo como interessado imediato. Há um certo escrúpulo em misturar as duas coisas.

Claro, ninguém põe em dúvida que um jornal de direita, como Wall Street Journal, ou liberal, como The New York Times, defendam no essencial os interesses capitalistas.

Mas isso é feito abertamente, nas páginas editoriais, e não de forma camuflada numa entrevista ou num artigo vendido como de interesse geral. Nesse último caso, prevalece a opinião dos ideólogos, não dos economistas de mercado.

Há uma diferença sutil entre as duas formas de jornalismo: uma coisa é deduzir o interesse específico do interesse geral, e outra, bem diferente, é inferir o interesse geral a partir do interesse específico.

No primeiro caso, há uma justificação ideológica de princípio do interesse particular no contexto mais amplo do capitalismo. É a forma padrão americana.

Noutro, há uma racionalização do interesse geral a partir do particular. Trata-se de um jornalismo econômico mais primitivo que se traduz por uma manipulação ideológica disfarçada já que evita apresentar-se como defesa pura e simples do sistema capitalista.

Há um nível de manipulação ideológica menos disfarçado, sobretudo em televisão, quando âncoras de noticiário assumem, eles próprios, a interpretação” das notícias dando-lhes maior ou menor ênfase de acordo com seu juízo subjetivo.

Sabemos que aquilo é um teatro, pois tudo foi preparado e escrito previamente, mas da forma como aparece na tela o teatro sugere o mundo real.


Aqui, de novo, é o Jornal da Globo (tardio, portanto mais dedicado às elites) que me vem à mente: ao noticiar a inflação do ano passado, William Waack (foto abaixo), que pessoalmente não parece entender nada de economia (sei disso porque trabalhamos um curto espaço de tempo juntos, no passado), fez um editorial agressivo contra o Governo, como se tivesse havido total descontrole dos preços.

No entanto, como se sabe, a inflação esteve perfeitamente dentro da normalidade em função das margens da meta.


A diatribe não passou de uma agressividade gratuita em relação a uma política econômica que, se não está totalmente correta, pode ser consertada numa direção que, por certo, não é a direção que William Waack quer.

(*) J. Carlos de Assis, é economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, editado pela Civilização Brasileira.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21491

Nota:
A inserção de algumas imagens, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

sábado, 7 de julho de 2012

A vida privada de Assange usada para tentar ocultar o grande triunfo de WikiLeaks

01/07/2012 - por Patrick Cockburn
Original: The Independent “Patrick Cockburn: How Julian Assange's private life helped conceal the real triumph of WikiLeaks”
Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu

A partir do momento em que Julian Assange conseguiu evitar a prisão, buscando refúgio na embaixada do Equador em Knightsbridge, escapando assim de ser extraditado para a Suécia, e provavelmente, em seguida, para os EUA, os jornalistas, colunistas e comentaristas britânicos tornaram-no alvo da mais escandalosa agressão.

Parecem babar de ódio, enquanto repetem os mais mesquinhos “exemplos” de uma pressuposta grosseria, pressuposto egoísmo e aparência pressuposta “péssima”, como se o que dizem fosse verdade e, por ser escrito pelos que escrevem, como se tratasse de crimes imperdoáveis.


O que se lê na imprensa britânica fala, uma vez mais, muito mais do convencionalismo e do instinto de manada dos formadores britânicos de opinião, do que de Assange.

O que passa sem ser noticiado, em toda a cobertura, é o quase inacreditável sucesso do fundador de WikiLeaks, que conseguiu publicar documentos do governo dos EUA, os quais, publicados, permitiram que muitos, em todo o mundo, começassem a saber como realmente agem seus governos. Que os eleitores conheçam, precisamente, esse tipo de fato é a alma da democracia, porque os eleitores têm de ser bem informados, para que consigam eleger representantes que de dediquem a fazer “governo do povo, pelo povo e para o povo”.

Graças a WikiLeaks, a opinião pública teve acesso a mais informação sobre o que fazem pelo mundo os EUA e seus aliados do que nunca antes, em toda a história da imprensa ocidental. O único momento semelhante a esse que me vem à mente foi a publicação, pelos bolcheviques vitoriosos em 1917, de tratados secretos, incluindo planos da Grã-Bretanha e da França, para ocupar o Oriente Médio [1].

Paralelo mais fácil foi a publicação dos Papéis do Pentágono, graças a Daniel Ellsberg em 1971, que revelaram as sistemáticas mentiras do governo Johnson sobre o Vietnã. Como se fez contra Assange, Ellsberg foi massacrado pela imprensa e pelo governo dos EUA, que o ameaçou com as mais severas penas.

Aspecto extraordinário da campanha contra Assange é que jornalistas, colunistas e “especialistas” sentem-se perfeitamente livres para publicar milhares de palavras sobre alegadas faltas de Assange, sem que se leia qualquer indignação contra os crimes de Estado, infinitamente mais graves, que WikiLeaks revelou ao mundo.

Os críticos e os leitores que concordam com eles deveriam, antes de falar, assistir a 17 minutos de um filme divulgado por WikiLeaks, filmado pela tripulação de um helicóptero Apache, sobre um bairro na parte leste de Bagdá, dia 12/7/2007. Mostra a tripulação do helicóptero matando, a rajadas de metralhadora, pessoas que se veem no solo, e que os soldados norte-americanos dizem supor que fossem guerrilheiros armados. Examinando o filme, não consigo ver arma alguma. O que teria sido tomado por arma, em mãos de um dos mortos, foi depois identificado como câmera de filmagem que estava sendo usada por Namir Noor-Eldeen, jovem fotógrafo da agência Reuters, morto, com o motorista também a serviço da Reuters, Saeed Chmagh. O vídeo mostra o helicóptero voltando para um segundo ataque, dessa vez contra uma caminhonete que parou para recolher os cadáveres e os feridos. O motorista dessa caminhonete também foi morto, e duas crianças foram feridas. "Há-há-há! Acertei eles!” – grita, em triunfo, um dos soldados norte-americanos. Olhem só os filhos da puta mortos!”

Eu estava em Bagdá quando a matança aconteceu e lembro que, no momento, nem eu nem outros jornalistas que lá estavam acreditamos no que o Pentágono informou, que todos eram guerrilheiros armados. Mas não havia como provar que o Pentágono mentira. Rebeldes armados não estariam conversando na esquina, com helicópteros dos EUA à vista. Logo se soube que havia um vídeo da matança, mas o Departamento de Defesa recusou-se terminantemente a divulgá-lo, nem quando se invocou a Lei da Liberdade de Informar [orig. Freedom of Information Act]. A versão oficial nunca pôde ser desmentida, até que o vídeo chegasse a WikiLeaks, enviado, parece, por um soldado dos EUA, Bradley Manning. WikiLeaks publicou o vídeo em 2010. [2]

Os telegramas diplomáticos que chegaram a WikiLeaks foram publicados adiante, no mesmo ano, em cinco jornais –The New York Times, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País – mas a resposta ao trabalho de Assange foi surpreendentemente mesquinha. Os jornalistas pareceram ter ficado furiosos por seu campo de caça privativo ter sido invadido por um nerd australiano, que fizera o trabalho que os jornalistas não haviam feito. Na Grã-Bretanha, o colunariato das empresas jornalísticas é clube notoriamente fechado, conservador e hostil a quem chegue de outros contextos culturais, com diferentes normas políticas.

Mas nem isso bastaria para explicar que toda a mídia planetária declarasse aberta a temporada de caça a Assange. Para que isso acontecesse, foi preciso que aparecessem acusações de que Assange seria autor de estupro na Suécia. Acusações de estupro destroem qualquer reputação, por mais frágeis que sejam as provas e mesmo que não haja prova alguma. Assange nunca conseguiu recuperar-se completamente daquelas acusações.

Quanto à sugestão de que ele estaria exagerando o risco de ser extraditado da Suécia para os EUA, é parte da caçada: quem, em sã consciência se exporia a algum acaso, mesmo que com 5% de probabilidades de deixar-se meter-se num voo para a Suécia que poderia levá-lo a sentença de 40 anos de cadeia nos EUA?

Muitos jornalistas e comentaristas agarraram-se ao argumento oficial de que os vazamentos teriam “posto vidas em risco”. Esse lobby começou a fracassar e a calar em 2011, quando funcionários do Pentágono tiveram de reconhecer, extraoficialmente, que não havia qualquer prova de que alguém tivesse sido ferido ou morto por causa dos vazamentos.

Resposta melhor seria que WikiLeaks nada revelou de realmente secreto; e que os documentos aos quais o cabo Manning teve acesso não eram classificados como secretos. Outro bom argumento de defesa ouvi de um diplomata dos EUA em Cabul, onde eu estava na época da publicação. Disse ele: “Não há segredo algum a ser divulgado por WikiLeaks, porque os “segredos” já foram vazados pela Casa Branca, Pentágono ou Departamento de Estado, que não souberam proteger os próprios documentos sigilosos, se fossem sigilosos”.

Na prática, os documentos publicados por WikiLeaks são exclusivamente e vastamente informativos sobre o que os EUA fazem e sobre o que os EUA pensam sobre o mundo no qual vivemos. Por exemplo, há um telegrama enviado da embaixada dos EUA em Cabul, em 2009, no qual o primeiro-ministro é descrito como “indivíduo paranoico e fraco, sem qualquer familiaridade com o básico da construção nacional”. [3]

Especialistas em Afeganistão comentaram que os defeitos de Karzai absolutamente não eram segredo ou novidade para ninguém. Deixaram de comentar que ali se ouvia a opinião de diplomatas norte-americanos experientes, falando sobre um homem que os norte-americanos e os britânicos estavam matando e morrendo, não para tirar do poder, mas para manter no poder.

Todos os governos são hipócritas, em maior ou menor medida, e há grande distância entre o que dizem em público e no privado.

Quando o povo exige transparência democrática em ações ou políticas gerais, o Estado e os governos fingem que enfrentam demandas por total transparência, que tornaria inviável qualquer governança efetiva.

A rapidez com que convertem demandas razoáveis em demandas alucinadas visa, quase sempre, a ocultar algum fracasso ou a defender o monopólio do poder.

Naquele caso, os EUA desejavam manter secreta bem mais que uma opinião negativa sobre Karzai, principal aliado local dos EUA. O real segredo que os EUA desejavam manter secreto é que não tinham qualquer parceiro confiável no Afeganistão e que, portanto, a guerra contra os Talibã tinha de ser dada por antecipadamente perdida.

Assange e WikeLeaks não desmascararam alguma incoerência, na opinião de um ou outro embaixador. Desmascararam a duplicidade de julgamentos para justificar a insistência dos EUA em prosseguir guerras fracassadas, nas quais morrem dezenas de milhares. Informações recentes mostram que esse tipo de segredo e o sigilo oficiais, com a ajuda empenhada de jornalistas “incorporados” às tropas, muitas vezes geram exatamente os resultados que se esperam deles.

No Iraque, nos meses anteriores à eleição presidencial de 2004 nos EUA, muitas embaixadas estrangeiras em Bagdá sabiam e informavam que os EUA só controlavam porções ínfimas de território, em país hostil. Mas o governo Bush conseguiu persuadir do contrário os eleitores norte-americanos: que estaria combatendo e vencendo uma batalha para instalar a democracia, contra os restos do regime de Saddam Hussein e seguidores de Osama bin Laden.

O controle da informação pelo Estado e a capacidade de manipular a informação, servindo-se para isso da imprensa-empresa, tornam sem sentido, na prática, o direito democrático de votar. Por isso os povos precisam muito de gente como Assange: para dar sentido, novamente, ao voto democrático.

Notas dos tradutores:
[1] A publicação desses tratados secretos foi dos primeiros atos do governo revolucionário bolchevique. Foram publicados dia 17/11/1917, por ordem de Trotsky, então Comissário do Povo para Assuntos Internacionais. Em 26/2/1922, o New York Times publicou matéria sobre eles em: EUROPE'S SECRET TREATIES. Em resumo acessível hoje dessas notícias, lê-se: “Desconfiança reina na Europa. Rússia revela os Tratados Secretos. Confiança nos EUA segue inabalável”.

[2] Os que não conheçam podem comprovar assistindo as cenas terríveis no vídeo que se segue:

[3] WikiLeaks “Diplomatic Cables”, Tuesday, 07 July 2009, 13:29 - S E C R E T SECTION 01 OF 03 KABUL 001767/ SIPDIS EO 12958 DECL: 07/03/2019 / TAGS PGOV, PREL, AF SUBJECT: KARZAI ON THE STATE OF US-AFGHAN RELATIONS – The Guardian, UK, em: “US embassy cables: Karzai feared US intended to unseat him and weaken Afghanistan”

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/07/vida-privada-de-assange-usada-para.html