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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Política e debates nas redes

16/01/2014 - A política e as redes
- Maurício Caleiro - em seu blogue Cinema & Outras Artes

O debate político brasileiro tem sofrido forte influência da internet, meio que não só reavivou, em muita gente, o interesse por política e o hábito cotidiano de discuti-la, mas deu voz a uma diversidade de atores na arena, acabando com o monopólio da mídia corporativa.

O jornalista Tácito Costa, editor do site Substantivo Plural, comenta o processo:

"As redes sociais abriram uma fenda na monolítica imprensa tradicional, que durante séculos monopolizou os canais de comunicação como alicerces de seu poder e dos seus interesses.

Definitivamente, acabou o tempo da comunicação unidirecional.

Um pouco antes da explosão das redes, os sites e blogs já tinham equilibrado esse jogo, oferecendo contraponto indispensável aos conglomerados da mídia e, com isso, fortalecendo a pluralidade e a democracia."

Deflagrados a partir da confluência entre desenvolvimento, barateamento e difusão de tecnologias digitais e num contexto em que a passividade do espectador dá lugar à interatividade, os resultados concretos dessa atividade virtual se fazem sentir em fenômenos mais ou menos recentes e por vezes antagônicos entre si, como a emergência da chamada blogosfera progressista, o uso do tumblr como ferramenta para o humor político e a mobilização popular via redes sociais.

Estas, além de se constituírem, cotidianamente, como arena pública de debates, tiveram papel relevante nas manifestações de junho e acabam de servir de meio para deflagração de "rolezinhos" em shoppings.

No bojo da Copa e da campanha eleitoral, prometem seguir dominando a cena em 2014.

Bolha de certezas
Não obstante positivo em sua essência, o debate político que se dá via redes sociais traz, inerentes, aspectos contraditórios ou mesmo intrinsecamente negativos, os quais se tornam mais evidentes à medida que a interação por elas proporcionada se torna um elemento rotineiro no cotidiano de cidadãos e cidadãs.

Talvez o mais evidente - e empobrecedor - deles, na seara política, seja a tendência à formação de "igrejinhas", em que a timeline [o conjunto de perfis seguidos e que te seguem] tende a se apresentar expurgada dos perfis que expressam opiniões francamente contrárias ou divergentes às do dono da conta, acabando por forjar uma falsa unidade discursiva em prol do ideário, partido ou programa político por este professado.

Assim, seu universo político pessoal é conservado em uma espécie de bolha que, embora perfurada amiúde pela própria impossibilidade de se prever e vetar toda e qualquer opinião contrária, o mantém no mais das vezes preso, a um tempo, de convicções que seus pares reafirmam a todo instante e do contato com a multiplicidade de opiniões divergentes – dinâmica que lhe impede acesso a uma visão realista da intensidade da oposição à linha política que defende.

Carimbador maluco
Deriva de tal dinâmica um segundo efeito dessa "segmentação opinativa" inerentes às redes sociais: a tendência, em um cenário político pobre em termos de diversidade e fortemente concentrado na oposição PT X PSDB, a "carimbar" as opiniões de acordo com a régua estabelecida por tal dicotomia.

Assim, se você defender o Bolsa Família ou mostrar simpatia pelos condenados do "mensalão" é grande a probabilidade de ser carimbado como simpatizante do PT ou mesmo xingado de "petralha" e termos derivados, os quais, disseminados a partir do jornalismo neocon, explicitam a intolerância e a tentativa de desqualificação do que entendem por esquerda.

Já se você ousa defender a classe média ou dá pinta de pender para uma posição com tinturas de conservadorismo ou de liberalismo econômico, se tornam grandes as chances de ser repelido pelas hostes dominantes nas redes e carimbado como "coxinha", o xingamento máximo do petismo militante, não obstante a ascensão de pobres à classe média ser comumente desfraldada pelos próprios partidários como principal conquista dos governos petistas.

Desqualificação a priori
Nesse cenário polarizado, há pouco espaço para nuances ou para assimilação de críticas que procuram ir além da dicotomia PT x PSDB.

É sintomático dessa intolerância a evocação do fantasma dos anos FHC – ou seja, elitismo, precariedade social e crise econômica – à mínima restrição dirigida ao governo petista.

Com tais reações, o debate é interditado por uma confusão deliberada entre a crítica pontual à atual administração e a negação total do petismo em prol do que seria inapelavelmente, de acordo com a reação citada, a única alternativa: o retorno aos anos FHC.

Trata-se de uma atitude que não só revela-se autoritária e diversionista ao se recusar a debater os termos específicos da crítica, mas, mostrando ignorar não só a significação última do dito marxista de que a história só se repete como farsa, não se apercebe que se a volta ao Brasil do ex-presidente fosse uma mera questão de deixar de optar pelo PT, então seria porque as mudanças por este partido promovida, nos últimos 11 anos, não foram suficientes sequer para nos colocar a salvo de tal perigo como uma ameaça imediata (muito pelo contrário, até as privatizações estão de volta, sob patrocínio petista).


Em decorrência da tendência a pouca tolerância com opiniões nuançadas – no sentido de não circunscritas à troca de chumbo entre petistas e peessedebistas -, cria-se um processo vicioso de desqualificação a priori das críticas, denunciadas na origem como ideologicamente tendenciosas e cujo teor sequer é levado em conta, e de restrição à sua circulação, seja através da recusa pessoal (e legítima) a repercuti-la nas redes sociais, seja na recusa (dissimulada) dos blogs de grande audiência em repercutir opiniões que se oponham frontalmente às linhas partidárias que efetivamente (mas não assumidamente) apoiam.

Boicote autoritário
Senador Joseph McMarthy
Destarte, malgrado o pleno direito à expressão e as múltiplas modalidades possibilitadas pela internet, acaba-se por observar-se atualmente, no que concerne ao debate político brasileiro, o germe de um processo de caráter totalitário, por vezes macartista, de abafar vozes críticas divergentes, processo este em que tem papel precípuo as paixões partidárias e é protagonizado por entidades virtuais que até recentemente se publicizavam como pluralistas e progressivas.

Trata-se, em última analise, de um fator de retrocesso no debate público, pois enquanto as paixões partidárias se manifestarem como elementos de desqualificação e de repressão à livre abordagem crítica dos problemas, será a fé se sobrepondo à razão, até na seara política.

Verdadeiros democratas não temem o debate.

Fonte:
http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/2014/01/a-politica-e-as-redes.html

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

Leituras afins:
- Das elites, essa estranha noção de liberdade - Fernando Brito
- Imprensa e rolezinho - Luciano Martins Costa
- Às esquerdas da Europa e do mundo - Álvaro Garcia Linera

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O virtual e o real e a nossa catarse cotidiana

29/10/2013 - Lígia Deslandes em seu blog

Não é de hoje que venho observando os movimentos e atitudes de muitos de nós nas redes sociais. 

Digo "nós" porque eu também me incluo nisso.

Tento refletir sempre sobre o meu papel na sociedade e quando reflito sobre o meu papel invariavelmente reflito sobre o papel das pessoas com quem milito e convivo.

Não deixamos de ser o que somos quando acessamos uma rede social.

Todas nossas carências, preconceitos, crenças, limitações e qualidades de uma forma ou de outra são expostas nas redes queiramos ou não.

Alguns de nós pensam que podem mascarar ou esconder suas idiossincrasias atrás da tela de um computador, mas, o que compartilham, como e de que forma compartilham, o que comentam e curtem denuncia o que vai dentro de si.

Confesso que tenho andado um tanto cansada do que tenho visto.

A novidade de um primeiro momento quando a gente verifica o grande potencial comunicativo das redes e quer a todo custo espalhar a verdade e compartilhar a realidade já esgotou um pouco em mim.

Atualmente observo os "olhos", os "ouvidos" e os "sentidos" que a virtualidade da rede tem instigado em muitos de nós e volta e meia me assusto, me entristeço e me rebelo com o que vejo. 

Independentemente do que, enquanto militantes conseguimos fazer como ação política determinada, compartilhando verdades no meio de tantas mentiras, enganações, mascaramentos e falsas notícias criadas para atacar a esquerda e principalmente, o Partido dos Trabalhadores.

Tenho muitas dúvidas sobre o momento que estamos vivendo. Ainda bem que as tenho, pois, certezas cristalizadas não fazem bem a saúde.

Muitos se espantam da pancadaria e violência nas ruas. Por que se espantam? O que temos visto nas redes sociais é o espelho e o estopim do que vemos nas ruas. O ódio de classe, a intolerância para com o debate, a falta de vontade para a reflexão, o preconceito com o novo, a discriminação com a experiência reflete a cultura violenta que nos assola e as crenças coloniais que teimam em continuar se fazendo presentes em nossas mentes e corações.

É como se vivêssemos em estado de extrema "catarse", bitolados ainda por uma formação medieval que não reconhece a diversidade, o pluralismo e a complexidade presentes nas diversas situações da vida cotidiana.

Temos horror ao fundamentalismo religioso e político, mas, quantas vezes partimos para o ataque "demonizando" ou "santificando" pessoas porque elas não estão ao lado de nossos interesses...

Como é fácil simplificar as questões e anular o debate! Como é simples dar ênfase ao que não funciona em detrimento do funcional! Tanta coisa mudou no Brasil para melhor... Mas, e nós?




Estamos marcados ainda pelo opressor e oprimido que lutam dentro da gente, cada um puxando o tapete do outro.

Quando iremos expulsar os dois tendo coragem para assumir o que somos sem a máscara que roubamos do sistema?

Essa mesma crônica que me desnuda e desnuda muitos de nós que aprendemos a viver na hipocrisia será motivo de debate? Será que vão compartilhar no facebook, no orkut, no google? Será que vão curtir?

Me pergunto se lerão com vontade de questionar-se, de refletir, se passarão adiante o texto pelo simples fato de serem meus amigos na rede ou porque ele de fato lhes tocou a alma?

virtual e o real se misturam numa mesma visão de mundo.

Quem são os outros e quem somos nós?

É possível responder? O que é virtual e o que é realidade?

Quero continuar me questionando e tendo certezas transitórias...

São elas que estão me ajudando a compreender esse Brasil que vai pouco a pouco se mostrando como sempre foi.

Cabe uma última pergunta e tenho tantas... O que nos cabe fazer para mudar de fato?

Fonte:
http://ligiadeslandes.blogspot.com.br/2013/10/o-virtual-e-o-real-e-nossa-catarse.html

domingo, 25 de agosto de 2013

O pior analfabeto é o analfabeto midiático




“Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões do jornalista Celso Vicenzi em torno de poema de Brecht, no século 21


Celso Vicenzi, no Outras Palavras / Pragmatismo Político


“Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.

Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.

Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.

O analfabeto mediático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.

O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”

O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.

Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.



O analfabeto político

O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.
Bertold Brecht

Fonte:Blog do Saraiva

sábado, 3 de agosto de 2013

O cerco informativo ao governo Dilma


Por Carlos Castilho em 28/07/2013 - Observatório da Imprensa

   
O governo federal está encurralado no cenário político nacional em matéria de estratégias de comunicação e informação, numa situação que pode ter reflexos diretos na campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 2014.

A imagem pública da presidente Dilma Rousseff foi desconstruída ao longo de um processo em que a imprensa teve um papel relevante, e que começou já há bastante tempo. Trata-se de um processo onde a construção ou desconstrução da forma como o público vê um político tem mais a ver com percepções do que com evidências. É como no famoso dito de que, em política, as versões são mais importantes do que os fatos.

Dilma hoje está sendo julgada mais pela imagem que a imprensa, a oposição partidária e os desafetos presidenciais no Poder Judiciário construíram em torno da presidente do que pelos feitos de seu governo. Entre a imagem e os feitos há uma considerável diferença – e os eventuais benefícios factuais capazes de ser capitalizados por Dilma estão sendo pulverizados pelos efeitos devastadores do encurralamento comunicacional e informativo.

O governo federal está claramente na defensiva porque a estratégia comunicacional dos adversários de Dilma logrou associar sua gestão à incerteza econômica ao supervalorizar processos como a inflação, queda do PIB, declínio da atividade econômica e redução do superávit na balança comercial. São todos fenômenos muito condicionados pela situação econômica internacional, mas foram apresentados como exclusivamente domésticos para associá-los a uma imagem de má gestão.

A onda de protestos de rua, em junho, confundiu o panorama político e ameaçou tirar Dilma do clinch político-partidário. [Clinch é o jargão usado no boxe para definir uma situação em que um lutador se abraça ao adversário para impedi-lo de continuar atacando.] Ela até que tentou retomar a iniciativa com a proposta de plebiscito, da reforma política, aumento das verbas para a educação e o envio de médicos para o interior. Mas faltou ousadia para romper com o fantasma da governabilidade. Para concretizar a sua estratégia destinada a encampar o clamor das ruas, a presidente tentou ganhar apoio parlamentar – e foi aí que ela se perdeu.

Negociar com políticos e candidatos em véspera de eleições é a forma mais segura de emascular uma proposta política que altere o status quo, especialmente quando se trata de acabar com privilégios e aberrações da atividade parlamentar. Surgiu uma aliança informal entre políticos e magistrados do Supremo Tribunal Federal com o apoio corporativista dos médicos que transformou em fumaça o projeto emergencial do governo.

Para romper o cerco, a presidente tem as redes sociais na internet como provavelmente a única alternativa para desenvolver uma nova estratégia de comunicação política. Mas essa opção exige uma considerável ousadia porque implica meter-se num ambiente informativo com regras e procedimentos bem diferentes dos usados habitualmente pelos altos escalões do governo.

Uma aposta nas redes sociais virtuais permitiria ao governo prescindir da imprensa como mediadora na relação com os cidadãos. Mas para tentar essa estratégia, a presidente teria que abrir mão da busca da tal governabilidade e da barganha de ministérios com partidos políticos. Poderia governar como pediam os participantes dos protestos de rua, em junho. Seria uma jogada de altíssimo risco.

Os desafetos da presidente não têm muita intimidade com o uso dos mecanismos digitais. Deputados federais, senadores, magistrados e até mesmo a imprensa preferem os métodos tradicionais de comunicação, embora eles se distanciem cada vez mais das ferramentas virtuais adotadas pelos jovens que saíram às ruas para exigir um país diferente.

Os riscos da opção estratégica pelas redes sociais são consideráveis. Primeiro, porque o governo teria que conviver com um forte criticismo de um segmento importante da blogosfera. A internet é muito mais transparente que a imprensa convencional e isso faz com que o debate político siga caminhos bem diferentes dos usuais. A convivência com xingamentos e acusações passa a ser uma necessidade porque o objetivo é o conjunto das opiniões e não a de um indivíduo isolado.

Nem pensar em controlar os comentários porque isso seria imediatamente associado à censura, o que anula qualquer eventual efeito positivo da presença online do governo federal. Além disso, uma estratégia online do Planalto exigiria uma profunda reciclagem comunicacional da cúpula do governo, que é tão conservadora em relação à internet quanto a oposição.

A aposta é arriscadíssima, mas a presidente está na posição de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

http://observatoriodaimprensa.com.br/posts/view/o_cerco_informativo_ao_governo_dilma

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Ecos na África

31/07/2013 - Revista Brasileiros, ed. 72
texto e fotos de Hélio Campos Mello e Luiza Villaméa, enviados especiais a Adis Abeba, na Etiópia

Nos 50 anos da União Africana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de encontro de combate à fome, tema de reportagem na próxima edição da Brasileiros.

Em entrevista exclusiva, concedida na Etiópia, Lula defende manifestações no Brasil, fala sobre corrupção, consertação e de uma nova maneira de fazer política

Em Adis Abeba, a capital da Etiópia, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou pela primeira vez em público sobre os protestos que se espalharam pelo Brasil e surpreenderam o mundo.

Cercado por líderes políticos e comunitários ávidos para implementar em seus países programas criados quando ele estava à frente da Presidência da República, Lula lembrou dos tempos em que ele próprio ocupava as ruas como forma de pressionar mudanças.

Para Lula, as manifestacões são, em parte, resultado do que foi feito no Brasil nos últimos dez anos: “Feliz é o povo que tem liberdade de se manifestar. E mais feliz ainda é o país que tem um povo que se manifesta e vai para as ruas querendo mais”.

Dois dias depois, em entrevista exclusiva à Brasileiros, ainda em Adis Abeba, Lula afirmou que o povo tem razão em reclamar. “As pessoas podem querer mais ou querer menos, podem até querer exageros, mas isso é positivo. É bom para que se faça nova consertação no País”, disse o ex-presidente, que tem acompanhado de perto as mudanças na forma de fazer política no cenário nacional e internacional.

Não por acaso, ele defende que governos e políticos entrem em sintonia com as novas mídias e os tempos em que “as pessoas se comunicam sem pedir licença”.

O ex-presidente estava em Adis Abeba para um encontro promovido pela União Africana (que comemora 50 anos em atividade), pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e pelo Instituto Lula.

Brasileiros – Como o senhor está vendo o Brasil? De repente, o índice de popularidade da presidenta Dilma Rousseff despencou.
Luiz Inácio Lula da Silva – Não é a presidenta. O terremoto que aconteceu no País pegou tudo. Pegou desde a imprensa, que estava perplexa e depois virou apoiadora do movimento, até o Congresso Nacional. Pegou todo mundo, os políticos, os prefeitos, como se fosse um vulcão em erupção.

Quem estava ali na frente foi se queimando. Como temos de encarar isso? primeiro, é inegável a evolução que aconteceu no Brasil nos últimos dez anos. Teve crescimento do emprego, do salário e do PIB, além de controle da inflação. Durante dez anos seguidos, o salário mínimo aumentou. 

Durante dez anos seguidos, as pessoas tiveram mais crédito, viraram consumidoras. Na campanha, Fernando Haddad dizia uma frase que eu achei genial.

Brasileiros – Qual?
Lula – Ele falava “da porta para dentro de suas casas as coisas melhoraram. Da porta para fora, as coisas não melhoraram”. É lógico que o povo tem razão de reclamar do transporte. E não é pelo preço não. É pela qualidade do transporte. Basta pegar um ônibus para sentir o problema.

metrô era chique em São Paulo, quando andava meio vazio. Agora, que entra três vezes mais gente do que cabe no vagão, acabou.

À medida que a sociedade evolui, ela quer mais, exige mais. Então, nada de ficar nervoso ou irritado porque os movimentos estão acontecendo. Vamos agradecer que a sociedade está viva, querendo coisas. As pessoas podem querer mais ou querer menos, podem até querer exageros, mas isso é positivo.

Brasileiros – Como?
Lula – É bom para que se faça uma nova consertação no País, para que se façam novos acordos. As pessoas criticam a Copa do Mundo… Eu fico muito feliz que a Copa do Mundo venha para o Brasil. Fiquei felicíssimo com a vitória do Brasil contra a Espanha.

Se as pessoas entendem que tem custo a mais, vamos explicar para as pessoas se não tem, se tem a mais ou a menos. Quem é responsável por fazer os estádios tem de explicar. Manda os empresários se explicarem, os governadores se explicarem por que custou 100, 200 ou 300.

O governo federal está muito à vontade porque não tem dinheiro para estádio. Tem financiamento do BNDES, como qualquer outro financiamento. Quem toma o empréstimo tem de dar garantia e tem de pagar.

O governo tem investimento para obra de infraestrutura, que é outra coisa. Precisa ser feito. Como diz o Andrés Sanchez, do Corinthians, o estádio é do Corinthians, não é da Copa. Se a Copa quiser utilizar, tudo bem.

E, no caso das obras públicas, elas têm de ser feitas. No Brasil, todos nós sabemos que faltam coisas. Não precisa nem fazer manifestação. É só acompanhar as pesquisas de opinião pública. E todo mês os políticos têm pesquisa. Todo santo dia tem pesquisa mostrando o que está bom e o que não está bom na percepção do povo. Nisso não há nenhuma novidade. A novidade é que o povo resolveu dizer “olha, nós existimos”.

Brasileiros – Em discurso para líderes políticos e comunitários no Centro de Convenções da União Africana, o senhor considerou os protestos saudáveis para o País.
Lula – Considero saudável, primeiro, porque o povo está fazendo uma manifestação pacífica. Nas greves do passado, mesmo quando a gente pedia para os trabalhadores “olha, não queremos que vocês estourem pneus de ônibus”, sempre aparecia um engraçadinho para quebrar o vidro de um ônibus. Sempre aparecia um engraçadinho com um alicate para tirar a válvula e esvaziar o pneu. Eu dizia “não peçam para fazer piquete que eu não vou fazer”. Eles faziam e depredavam. É sempre assim.

Separando isso, as manifestações são legítimas e devem ser encaradas como normais. Aliás, a Dilma tem tido um comportamento muito digno com relação a isso. Mas o mundo não sabe que a polícia é estadual, não é federal. No Brasil, você tem a educação básica, que é municipal e estadual. Há uma mistura. O mundo não sabe disso.

Em dez anos, conseguimos mais do que dobrar o número de jovens na universidade. Em dez anos, nós fizemos mais do que foi feito desde 1920, quando foi criada a primeira universidade no Brasil. O ProUni foi uma revolução no ensino brasileiro. Colocou para estudar um milhão e 300 mil pessoas que não teriam condições de entrar para a faculdade se não fosse o programa.

Brasileiros – Ainda há muitas demandas.
Lula – As pessoas querem mais mesmo. É normal. Isso é até dentro da casa da gente. E, depois, tem também o jeito moderno de fazer política. Hoje, eu não preciso ir num comício. Não preciso ouvir um carro de som. Hoje, monta-se uma rede. O que o governo precisa fazer? Tem de se atualizar, ter política de informação por meio de rede também. É um debate cotidiano. Os partidos, os sindicatos têm de se modernizar.

Tenho feito reunião com muita gente. Um pouco com a preocupação de compreender, mas também sem precisar compreender. Quando acontece um negócio desses, fica todo mundo querendo adivinhar o que está por trás. Eu me lembro que na greve de 1978 na Scania também havia a curiosidade de saber quem estava por trás … Eu nunca tinha ouvido falar no Almino Affonso (político que tinha chegado do exílio dois anos antes). Aí, diziam: “É o Almino Affonso que está fazendo a greve”.

Brasileiros – Desta vez o senhor ouviu o quê?
Lula – Ouvi gente chamar de fascista, de não sei das quantas. Vamos supor que nas manifestações tenha um cara de direita, outro de extrema esquerda, mas tem muita gente do povo, que está ali porque entende que também pode gritar.

Brasileiros – E o senhor também está tentando entender as novas mídias, não é verdade?
Lula – Mais do que entender, nós temos de nos preocupar e nos modernizar. O jeito de fazer política está mudando no mundo. Não é no Brasil. É no mundo.

Hoje, as pessoas se comunicam sem pedir licença. Antigamente, na porta de uma empresa, eu tinha de conversar com o segurança para ver se deixavam entrar o carro de som. Hoje, milhares de jovens se comunicam, sentados no sofá (Lula começa a tamborilar na mesa o som de teclas), comendo batatinha. É um negócio fantástico.

Onde isso vai parar no mundo eu não sei. O fato concreto é que a comunicação mudou. E nós temos de evoluir. De qualquer forma, sempre que a sociedade alerta é muito importante prestar atenção. A Dilma agiu rapidamente. No Brasil, o problema do transporte é crônico. Não é um problema de hoje.

Brasileiros – O que mudou?
Lula – A juventude tem outra linguagem hoje. Eu fui conversar com o companheiro Capilé (o produtor cultural Pablo Capilé, do Casa Fora do Eixo). Depois de meia hora de conversa, falei para o Capilé: “Vou ter de arrumar um tradutor para conversar com você”.

A linguagem é nova, mas não temos de reclamar. Temos de trabalhar nesse mesmo campo. Estamos fazendo isso dentro do instituto (Instituto Lula).

Como é que um partido do tamanho do PT não tem estrutura para conversar com essa meninada em tempo real? Não dá para conversar com essa juventude pelos jornais, pelas vias tradicionais. Tudo isso acabou.

Eu vejo lá em casa. Meus filhos não veem televisão, não leem jornal. Eles passam o dia na internet. Tenho um neto de 16 anos que passa o dia conectado. Então, a palavra de ordem agora é: “Vamos nos conectar! Vou me conectar!”.

Brasileiros – Corrupção e reforma política.
Lula– Não sei se haverá grandes mudanças se a reforma política for feita pelos mesmos que hoje estão no Congresso. Quando eu estava na Presidência, cheguei a discutir com a minha equipe política sobre uma Constituinte soberana. Uma Constituinte só para fazer a reforma política. 

Mas não se consegue passar isso no Congresso. Muita gente prefere que fique do jeito que está. É preciso conhecer as perguntas que serão feitas no plebiscito para saber o que mudará de concreto. De qualquer forma, só o debate já é importante. O problema da corrupção também é crônico.Quanto mais se combater, mais ela vai aparecer. E tem duas formas de combater a corrupção.

Brasileiros – Quais?
Lula – Uma delas é alguém denunciar e você ir atrás do denunciado. Outra é ter mecanismos de investigação. Eu me sinto muito à vontade. Posso dizer que nunca antes na história do País um presidente criou tantos mecanismos para investigar como nós criamos. Nenhum país do mundo tem a transparência que o Brasil tem hoje. Se quiserem acompanhar os gastos do governo, as pessoas podem fazer isso pela internet.

Brasileiros – Como?
Lula – É só entrar no site do Ministério do Planejamento. Com a Lei da Transparência, as pessoas acompanham tudo o que quiserem.

Em 2003, quando eu cheguei à Presidência, a Controladoria Geral da União era uma peça de ficção. Depois, virou um órgão de investigação. Grande parte das denúncias surge de nossa própria Controladoria.

A Polícia Federal foi equipada e preparada para investigar. Ou se faz isso ou joga-se para baixo do tapete.

Quando estava na Presidência, cansei de dizer: “Só tem um jeito de as pessoas não serem denunciadas. É serem decentes, honestas”. Se a pessoa roubar, um dia será descoberta. Quanto mais transparência houver, quanto mais debate a gente fizer, mais será importante. Às vezes, é cansativo. Às vezes, é desagradável. Não tem problema nenhum.

O importante é que a gente está a caminho de construir uma nação muito forte democraticamente e mais consciente politicamente. Eu vejo muito os jovens. Muitas vezes, percebo que falta uma coordenação política melhor.

Cansei de fazer discurso nesses últimos dez anos. Foi um ministro do Trabalho da direita, o Júlio Barata que disse: “O trabalhador que está satisfeito com o que tem, não merece o que tem”.

Em minhas palestras, cansei de me dirigir ao jovem que protesta muito, que radicaliza muito. Na hora que o jovem estiver desanimado, na hora que ele achar que não tem nenhum político que preste no mundo, na hora que ele achar que todo mundo é ladrão, em vez de ficar desanimado, ele tem de entrar na política. O político perfeito que ele quer pode estar dentro dele.

Brasileiros – O senhor se enxerga nesses jovens?
Lula – Eu não sou mais jovem. Eu já me enxerguei nesse processo. Por isso, criei um partido político.

Em 1978, quando o Geisel (o ex-presidente Ernesto Geisel) mandou para o Congresso Nacional uma lei criando as categorias essenciais, tentando proibir as categorias de fazer greve, eu fui conversar com os deputados. Quando cheguei lá, percebi: “Peraí, como é que eu quero que esses caras votem numa lei de interesse dos trabalhadores, se não tem trabalhador aqui?”.

É assim. Prefiro que as pessoas descubram a necessidade de fazer política do que neguem a política.

Não há exemplo na história de que a negação da política deu em coisa melhor. Sempre deu em coisa pior. Aí sim, pode-se fortalecer o fascismo, pode-se fortalecer coisas que não queremos. Precisamos fortalecer a política e a democracia. Quanto mais participação, melhor.

Não vejo nenhum problema em o povo ir para a rua dizer o que quer. Na hora que ele disser uma coisa que não é correta, que se discuta com ele. O debate tem de ser livre. A democracia tem de ser respeitada. E vamos tocar o barco.

Brasileiros – O senhor falou em consertação. Até onde vai a sua consertação?Lula – A minha não vai a lugar nenhum porque não sou prefeito, não sou deputado, não sou governador, não sou presidente da República. Estou fora da mesa de negociação. Não sou nem presidente do PT.

Acho que a Dilma deu um passo importante. Ela conversou com amplos setores da sociedade. Conversou com os sindicatos, com os partidos, com os jovens, com o Movimento Passe Livre. E, como a Dilma é muito inteligente, ela certamente vai tomar as medidas que precisa tomar.

Se algum jovem estiver fazendo uma coisa equivocada, é preciso debater com ele, mostrar que ele está equivocado. Se as pessoas querem o passe livre, é necessário dizer quem vai pagar. Alguém tem de pagar.

Brasileiros – A ex-prefeita de São Paulo Luiza Erundina tentou, mas não conseguiu.
Lula – A prefeitura não produz dinheiro, ela arrecada. É o seguinte: na hora de defender o passe livre, tem de dizer quem vai financiar. Quem vai assumir isso? Vai estatizar o transporte?

Brasileiros – Fala-se em sua volta. Onde o senhor vai estar em 2014?
Lula – Eu nem gosto de comentar esse assunto. Faz dois anos e meio que deixei a Presidência da República. Cumpri oito anos de Presidência. Se não fiz tudo, fiz muito do que achava que era preciso fazer. Temos de ter outras pessoas. A Dilma é uma excelente presidenta da República.

Conheço muita gente neste País. Conheço muito político neste País. E conheço pouquíssimas pessoas com a competência da Dilma. Portanto, ela será minha candidata em 2014. E eu serei seu cabo eleitoral. É isso que vai acontecer.

Fonte:
http://www.revistabrasileiros.com.br/2013/07/31/ecos-na-africa/

terça-feira, 2 de julho de 2013

Entrevista com Giuseppe Cocco

25/06/2013 - Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles
- entrevista especial com Giuseppe Cocco
- Instituto Humanitas Unisinos

Foto: Marcelo Say - Epa
Não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção”, avalia o cientista político.

Confira a entrevista.

Na tentativa de compreender as razões que levaram milhares de cidadãos brasileiros às ruas, o sociólogo Giuseppe Cocco, que estuda o conceito de multidão abordado pelo italiano Antônio Negri, elenca algumas possibilidades.

Na avaliação dele, o ciclo de “revoluções 2.0”, com base na internet, “começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais”.

Outro aspecto importante é o fato de jovens brasileiros só terem conhecido “o Brasil de Lula”.

E dispara: “No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do ‘novo modelo’ econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo”.

De acordo com Cocco, havia e há no Brasil “um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ele assinala que os protestos ganharam força a partir do Movimento Passe Livre [http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521290-movimento-passe-livre-vai-para-a-periferia] porque “a questão dos transportes e, mais em geral, do serviços é estratégica para o trabalho metropolitano”.

E esclarece: “Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma ‘empregabilidade’. Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (‘Vem Pra Rua’) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação”.


Foto: amaivos.uol.com.br
Giuseppe Cocco (foto) é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova.
É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne).
É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne).
Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Manifestações sociais massivas descontentes com a política e a economia iniciaram no Oriente, na Espanha, em Wall Street. E agora chegam ao Brasil. Por quê? O que estas manifestações sociais representam?

Giuseppe Cocco – Podemos logo começar dizendo que o que caracteriza essas manifestações é que elas não representam exatamente nada ao passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressam e constituem tudo.

O primeiro elemento é este: elas têm uma dinâmica intempestiva, fogem a qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou os sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia radical articulada entre as redes e as ruas: autoconvocação e debates nas redes sociais, participação massiva às manifestações de rua, capacidade e determinação de enfrentar a repressão e até capacidade de construção e autogestão de espaços urbanos como foram a Praça Tahrir, as acampadas espanholas e as tentativas do Occupy Wall Street e, enfim, a Praça Taksim em Istambul, na Turquia.

Para cada uma dessas ondas e dessas que chamamos de “primaveras”  houve um estopim específico, mas todas dispõem de uma mesma base social (por mais diferenciadas que sejam as trajetórias socioeconômicas dos diferentes países) e dos mesmos processos de subjetivação.

No caso do Brasil, todo mundo sabe que o estopim foram os protestos contra o aumento do preço das passagens nos transportes públicos. Como foi o caso de outras marchas, a manifestação em São Paulo foi violentamente reprimida pela Polícia Militar. Só que dessa vez a faísca não se apagou numa “marcha da liberdade” e incendiou São Paulo e todo o país. Mas saber que o estopim foi esse não nos permite avançar na análise.

Por que agora? É difícil responder e talvez a característica própria desse tipo de movimento é que ninguém sabe propor razões “objetivas” indiscutíveis. Contudo, podemos avançar três explicações: a primeira explicação tem a forma de um segundo “estopim” e é a quase coincidência do episódio da repressão da marcha pelo passe livre em São Paulo com a renovação das primaveras árabes e do 15M espanhol nas lutas duríssimas da multidão turca na Praça Taksim, em Istambul (não por acaso, na segunda manifestação carioca, que já reunia 10 mil pessoas, um dos gritos era: “acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia”);

uma segunda explicação está no fato que esse ciclo de “revoluções 2.0” começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais; a terceira explicação é mais consistente e a mais importante e diz respeito ao que são essas “novas gerações” no Brasil de hoje, ou seja, essas gerações de jovens que só conheceram o Brasil de Lula. O que é incrível e até irônico é que o próprio PT não tenha previsto isso e ainda hoje seja incapaz de enxergar esse dado importantíssimo.

IHU On-Line – Quais as aproximações e diferenças entre as manifestações brasileiras e as que vêm ocorrendo em outros países?

Giuseppe Cocco – As aproximações são mais importantes do que as diferenças, que apenas enfatizam a qualidade específica de cada evento.

Num primeiro nível, há em comum a articulação entre as redes e as ruas como processo de autoconvocação das marchas e manifestações que ninguém consegue representar, sequer as organizações que se encontraram no cerne da primeira chamada: a tentativa de “empoderar” os rapazes do Movimento pelo Passe Livre em São Paulo (“oficializados” pela presença no Roda Viva e a negociação com prefeitura e estado) mostrou que eles não controlam nem dirigem um movimento que se autorreproduz de maneira rizomática (as manifestações aconteciam ao mesmo tempo sem respeitar qualquer tipo de “trégua”).

Num segundo nível, há em comum o esgotamento da representação política. No Brasil, esse fenômeno foi totalmente subavaliado pela “esquerda” e, sobretudo, pelo PT porque não o entenderam (e não o entendem).

Inicialmente pensaram que fosse um problema das autocracias do Norte da África (Tunísia e Egito); depois que fosse a incapacidade dos socialistas espanhóis (PSOE) de responder de maneira soberana às injunções das agências internacionais de notação ou do Banco Central Europeu.

Depois pensaram que o 15M espanhol não consegue encontrar uma nova dinâmica eleitoral ao passo que o partido de Beppe Grillo mostrou na Itália um fenômeno eleitoral totalmente novo e desgovernado.

Em seguida, pensaram que o Egito e a Tunísia foram normalizados eleitoralmente pelo islamismo conservador e aí aparece o levante turco contra o governo islâmico moderado.

No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do “novo modelo” econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo.

O que a esquerda como um todo, e o PT no Brasil não entenderam, é que a crise da representação é geral (mesmo que ela tenha sintomas e manifestações diferenciadas), e que os levantes da multidão no Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão, entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira autorreferencial de pensar por parte dos governos e dos partidos políticos.

Num terceiro nível há a principal proximidade entre todos esses movimentos: a base social dessa produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracteriza o capitalismo cognitivo.

As redes que protestam e se constituem nas ruas de Madri, Lisboa, Roma, Atenas, Istambul, Nova York e agora de todas as cidades brasileiras são formadas pelo trabalho imaterial: estudantes, universitários, jovens precários, imigrantes, pobres, índios, ou seja a composição heterogênea do trabalho metropolitano.

Não por acaso, por um lado, uma de suas formas principais de luta foi a “acampada” ou o “occupy” e, por outro, os levantes turco e brasileiro tiveram como estopim a defesa das formas de vida da multidão do trabalho metropolitano: a defesa do parque contra a especulação imobiliária (a construção de um shopping) em Istambul, e a luta contra o aumento do custo dos transportes, no caso do Brasil.

Diante dessas aproximações, as diferenças são bem menores, embora elas existam (e sejam até óbvias).

Podemos apreender essas diferenças do ponto de vista das condições objetivas da cada país e do ponto de vista de como cada um desses movimentos foi transformando (ou não) a fase destituinte em momento constituinte. Assim, o 15M espanhol se apresenta como a experiência que mais conseguiu durar apesar de não ter revertido as políticas econômicas. As revoluções árabes foram normalizadas pelas vitórias eleitorais conservadoras, mas os levantes se tornam endêmicos.

Na Turquia e ainda mais no Brasil, não sabemos – literalmente – o que vai acontecer. É no plano das condições objetivas que encontramos a maior diferença: na Espanha e, em geral, no mediterrâneo as revoluções são marcadas pelos processos de “desclassificação” das classe médias.

No Brasil é exatamente o contrário: tudo isso acontece no âmbito e no momento da emergência da “nova classe média”.

Só que essa nova composição de classe é, na realidade, a nova composição do trabalho metropolitano, lutando pelos parques ou pelos transportes públicos: ascendendo socialmente, os pobres brasileiros se tornam o que as classes médias europeias se tornam, descendo: a nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles.

IHU On-Line – Além do aumento do preço das passagens, quais são os outros motivos que desencadearam as manifestações?

Giuseppe Cocco – Podemos elencar duas respostas. A primeira é a seguinte: se pensarmos bem, essa pergunta encontra sua resposta numa sua simples reformulação: “por que nas cidades e metrópoles brasileiras não há mais lutas e mais levantes pelo sem número de motivos que a justificariam?"

No Brasil, não faltam razões! Uma vez que “pegou” é só escolher, a lista é infinita.

Vou trazer apenas um exemplo, contando uma anedota: um dia fui assistir a um Fórum da UPP Social (que hoje não existe mais) em duas favelinhas da Zona Norte, bem precárias. Toda a parafernália dos governos estadual e municipal estava mobilizada, com seus carros de função, para dar sentido à pacificação. Os poucos moradores que falaram colocaram dois problemas essenciais: primeiro, disseram, vivemos no meio do esgoto; segundo, os policiais agem de maneira violenta e arbitrária.

As dezenas de secretários e outros servidores presentes não conseguiram dizer nada sobre como seria resolvido esse problema básico do saneamento. Saindo da favelinha, passei por uma centena de adolescentes que ficava sem fazer nada na entrada e, no caminho de volta ao Centro do Rio, a 5 minutos de carro, passei na frente de uma obra gigantesca, faraônica: o Maracanã!

A pergunta de cima encontra uma resposta bem igual a que colocava Keynes em 1919: “nem sempre as pessoas aceitam morrer em silêncio”.

Havia no Rio de Janeiro e no Brasil (e continua havendo) um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano.

No Rio, os manifestantes sempre se juntam para dirigir invectivas pesadas ao governador Sergio Cabral e ao prefeito Eduardo Paes.

Chegamos assim à segunda resposta: o movimento foi mesmo pelos 0,20 centavos! 

Só que esse “pouco” é na realidade “muito”. Por quê?
Porque a questão dos transportes e, mais em geral, dos serviços é estratégica para o trabalho metropolitano. Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma “empregabilidade”.

Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (“Vem Pra Rua”) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação.

Os operários fordistas lutavam contra o trabalho. Os trabalhadores imateriais lutam no terreno da produção de subjetividade. É na circulação que a subjetividade se produz e produz valor e renda.

IHU On-Line – Os manifestantes deixam claro que são apartidários, não querem violência e não têm lideranças. Como interpreta esse discurso? Como pensar um novo modelo político a partir dessas características?

Giuseppe Cocco – Com certeza, uma das dimensões constitutivas da Revolução 2.0 é a crise da representação e essa é uma questão central.

Precisamos lembrar que a antecipação da revolução 2.0 como crítica radical da representação é sul-americana.

O “Que se vayan todos” argentino antecipou em 10 anos o “No nos representan” espanhol.

Só que as dimensões dessa crise são processadas pelo discurso oficial – ou seja, partidário – de maneira invertida. E essa inversão não é por acaso.

Aliás, os últimos desdobramentos do movimento (as agressões contra os partidos de esquerda nas manifestações do dia 20 de junho) nos mostram muito bem como funciona essa inversão.

Os partidos (sobretudo aqueles que estão no governo) dizem que esses movimentos são limitados porque recusam os partidos, não são “orgânicos”, porque têm uma “ideologia” que os recusa e, portanto, são potencialmente antidemocráticos. Obviamente, isso é correto. Só que, a afirmação correta esconde duas belas falsificações.

A primeira também é óbvia: os “grupos” que rezam por uma crítica fundamentalista da representação têm pouca consistência social e nenhuma capacidade de determinar, sequer influenciar, movimentos desse tamanho.

A segunda falsificação é uma consequência dessa primeira: os partidos atribuem a crise da representação a um processo e a uma crítica que viria de fora, quando na realidade os maiores e únicos responsáveis dessa crise são eles!

E a responsabilidade está na indiferenciação da clivagem direita/esquerda, ou seja, no fato de os governos mudarem e continuarem fazendo as mesmas coisas, inclusive com a reciclagem das mesmas figuras políticas.

Assim, o PSOE espanhol atribuiu ao 15M sua derrota eleitoral, quando na realidade o 15M é apenas a consequência do fato que os socialistas espanhóis faziam a mesma política econômica da direita.

É exatamente o que acabou acontecendo no Brasil de Lula e, sobretudo, de Dilma. O movimento que nasceu com a luta contra o aumento recusa as dimensões autoritárias e arrogantes das coalizões e desses consensos que reúnem direita e esquerda na reprodução dos interesses de sempre.

É o Haddad que devia representar o novo e se apresenta junto ao Alckmin para juntos dizerem a mesma coisa: que a redução da tarifa terá um custo (sic!).

É a coalizão conservadora que governa o estado e a prefeitura do Rio, e onde o PT planeja e executa remoções de pobres, desrespeitando a própria LOM.

São as alianças espúrias com os ruralistas de um ministro de esquerda.

É a condução autoritária das megaobras e dos megaeventos.

É a entrega da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a um fundamentalista que, exatamente no dia seguinte da grande manifestação da segunda-feira, fez votar o projeto de Lei que define a homossexualidade como uma doença.

A esquerda e a incapacidade
A extrema esquerda ou a esquerda radical erram quando pensam que estão “salvas” dessa situação.

Os partidos de esquerda são incapazes de entender que esse movimento se forma na recusa – confusa, flutuante, ambígua e até perigosa – do partido, da organização separada, da bandeira. Isso porque a recusa é geral, não faz distinções e funciona como rejeição de qualquer plataforma ideológica preparada e determinada por lógicas de aparelhos separados: nisso há uma percepção de que um dos problemas da política é a construção de aparelhos que tendem – antes de tudo – a reproduzir a si mesmos.

A agressão de um grupo organizado ao bloco de bandeiras do PSTU, do PSOL e do PCB na marcha da quinta feira, 20 de junho, quebrou as ilusões de que a crise seria somente do PT e assustou todo o mundo.

Contudo, nesse episódio lamentável encontramos, mais uma vez, o funcionamento perverso da lógica da representação. Os grupos agressores eram claramente organizados e tinham esses objetivos tão claramente quanto o processo de organização indica as manipulações mais podres. Todas as análises e denúncias que imediatamente foram produzidas identificaram esses grupos (que claramente agiam a mando de algum desenho de provocar essa situação) com a manifestação em geral.

Sem partidos
Na realidade, o apoio genérico dos jovens à palavra de ordem “sem partidos! não tem nenhuma significação linear e ainda menos “fascista”. 

Paradoxalmente, a recusa dos partidos, inclusive dos “radicais” e de suas bandeiras, é a recusa – claro, confusa e contraditória – da homologação de direita e esquerda e uma demanda para uma “verdadeira esquerda”.

Essa demanda não é idealista e não pode ser travada com linguagens e símbolos obsoletos (as bandeiras vermelhas, por exemplo).

Para reerguer as bandeiras vermelhas, é preciso deixá-las em casa por um bom momento! A bandeira vermelha precisa abandonar sua dimensão ideal e transcendente (ou seja, vazia) e voltar a ser interna (imanente) às linguagens das lutas como eles são.

Nesse terreno é possível e necessário construir outra representação e, sobretudo, reforçar a democracia.

IHU On-Line – O senhor publicou recentemente no Twitter que “as lutas da multidão em São Paulo e no Rio são o melhor resultado dos governos Lula. Tão bom que ninguém no PT foi capaz de antecipar”. Pode nos explicar essa ideia? Trata-se da falência da política?

Giuseppe Cocco – Começando do final: não estamos diante da “falência da política". Ao contrário, trata-se da persistência da política!

Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção!

Ser contra o moralismo da direita não significa achar “graça” nos comportamentos imorais da esquerda no poder. Trata-se apenas de não cair nas armadilhas da direita, mas num esforço de conjunção ética dos fins e dos meios.

Esse movimento, qualquer seja seu desfecho, é o movimento da multidão do trabalho metropolitano, o mais puro produto dos 10 anos de governo do PT.

Vamos aprofundar e esclarecer essa afirmação em dois momentos.

Num primeiro momento, essa afirmação é uma valoração positiva dos governos Lula e Dilma. Uma avaliação positiva não porque tenham sido de “esquerda” ou socialistas, mas porque eles se deixaram atravessar – sem querer – por uma série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.

A esquerda radical julgava essas políticas exatamente como agora – ironicamente nesse caso até o PT – julgam a questão das “bandeiras”: idealmente.

Lula está implementando outro modelo, outra sociedade, socialista?” se perguntava e criticava. Ora, ninguém implementa modelo alternativo, mesmo quando se está no governo. Apenas pode ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.

Os governos Lula e Dilma associaram o governo da interdependência na globalização com a produção, tímida e real, de uma nova geração de direitos e de inclusão produtiva. Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades.

Lula não quis saber de bandeiras e até declarou que ele “nunca tinha sido socialista”. Ficou dentro da sociedade indo atrás das linguagens, dos símbolos e das políticas que entendia.

Na virada da década de 2010, esse processo se consolidou em dois fenômenos maiores: o primeiro é eleitoral e tem o nome de “lulismo”, ou seja, a capacidade que Lula tem de ganhar e, sobretudo, fazer ganhar eleições majoritárias: começando pela presidente Dilma e chegando ao prefeito Haddad;

o segundo é o regime discursivo da emergência de uma “nova classe média”, com base nos trabalhos do economista Marcelo Neri.

Com a crise do capitalismo global (2007-2008) e a chegada de Dilma ao poder, o discurso da “nova classe média” foi além das preocupações do marketing eleitoral, para tornar-se a base social de uma virada que vê, no papel do Estado junto das grandes empresas, o alfa e o ômega de um novo modelo desenvolvimentista (neodesenvolvimentista).

Economia
Sociologicamente, o objetivo do neodesenvolvimentismo é transformar os pobres em “classe média”, e para isso é preciso economicamente de um Brasil Maior, capaz de se reindustrializar.

O governo Dilma chegou a baixar os juros e multiplicou os subsídios às indústrias produtoras de bens de consumo duráveis, em particular de carros, e à construção civil.

O que o movimento afirmou e certificou foi a dimensão ilusória desse suposto modelo (isso não significa que o modelo não será implementado; significa apenas que ele perdeu a patina de consenso que o legitimava e deverá apresentar-se como cada vez mais autoritário).

No plano macroeconômico, a inflexão tecnocrática não deu muito certo, pois a tentativa de mexer nos juros resultou na volta da inflação dos preços (que está na base da revolta). A inflação dos juros e aquelas dos preços se reapresentaram como as duas faces de um impasse renovado que só uma mobilização produtiva (da qual não há sinal) pode resolver .

Nova classe média não existe
No plano sociológico, a “nova classe média” não existe, porque o que se constitui é uma nova composição social cujas características técnicas são de trabalhar diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole.

A figura econômica (a “média” da faixa de renda) esconde o conteúdo sociológico de uma inclusão produtiva que não passa mais pela prévia implementação na relação salarial.

Esse trabalho dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos serviços).

A qualidade da inserção produtiva desse trabalho depende diretamente dos direitos prévios aos quais têm acesso e que, ao mesmo tempo, ele produz, como, por exemplo, poder circular pela metrópole.

É exatamente essa composição técnica e social do trabalho metropolitano o que constitui a outra face da “nova classe média” oriunda do período Lula.

Ao mesmo tempo em que ela foi a base eleitoral das sucessivas derrotas do neoliberalismo, ela é também hoje, na sua recomposição política, a oposição ao neodesenvolvimentismo.

Para ela, a questão da mobilidade urbana tem a mesma dimensão que tinha o salário para os operários ao mesmo tempo em que o segmento estratégico é aquele dos serviços.

As cidades e metrópoles brasileiras – e não a reindustrialização – constituem o maior gargalo, ao mesmo tempo social, político e econômico.

A ideologia e a coalizão de interesses que estão com a presidente Dilma não mostraram, até agora, a menor capacidade de enxergar esse dado.

Mais do que isso, essa nova composição do trabalho imaterial e metropolitano produz, a partir de formas de vida, outras formas de vida.

Por isso, o movimento do passe livre, como aquele de Istambul que defendia um parque, foi juntando todos os focos de resistência que existem nas metrópoles, até se espalhar – como está fazendo nesse momento, dramaticamente e assustadoramente – pelas periferias onde nunca teve manifestação de massa nenhuma.

O que esse “levante” da multidão do trabalho imaterial nos mostra é que o “legado” destes últimos dez anos de governo está em disputa, e que o mais interessante é ficar por dentro dessas alternativas, em vez de querer colocar uma ou outra bandeira.

A política e os movimentos estão dentro e contra. Por exemplo, pensemos a questão dos megaeventos, das copas e olimpíadas.

Muitos dos focos de resistência nas metrópoles são movimentos que criticam os gastos com obras, estádios, favelas que resistem contra as remoções etc. 

Ao mesmo tempo, a possibilidade de o movimento ter acontecido sem uma repressão brutal, por enquanto, se deve também à Confederation Cup. Mais uma vez, o conflito é dentro e contra.

IHU On-Line – O que é possível vislumbrar para o cenário político a partir das manifestações?

Giuseppe Cocco – Creio que o evento é tão potente e imprevisto que ninguém saberá responder a essa pergunta. Sobretudo neste momento: a cada dia e talvez a cada hora mudam alguns dados fundamentais.

O que podemos dizer é que o cenário eleitoral de 2014 até 2018 estava desenhado e as variáveis vislumbradas eram aquelas macroeconômicas. O movimento se convidou para essa discussão. Só que não há ninguém que possa sentar nessa eventual mesa dizendo que o representa.

A terra tremeu e continua tremendo, só que a fumaça levantada não nos deixa ainda ver quais prédios cairão e quais ficarão em pé. Nesse cenário, podemos fazer duas conjeturas.

Numa primeira, a presidente Dilma pode abrir pela esquerda, por exemplo, com uma reforma ministerial que colocaria pessoas qualificadas e altamente progressistas em ministérios-chave como a Justiça, Cidade e Transportes, MinC e Educação, convocando a sociedade a se constituir – em todos os níveis possíveis – em assembleias participativas para discutir as urgências metropolitanas.

Na segunda (que me parece ser aquela anunciada pelo pronunciamento do dia 21 de junho), ela se limita a reconhecer a existência de outra composição social no movimento e a construção de um grande pacto sobre os serviços públicos, mas não anuncia nada de novo a não ser algumas bandeiras de longo prazo (a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação) e enfatiza a questão da ordem: repressão dos “violentos” e respeito pelos megaeventos (ou seja, mais repressão).

E isso depois dos fatos bem sombrios da quinta-feira (aparição desses grupos pagos para agredir os partidos e, no Rio, repressão generalizada da manifestação perseguindo a centenas de milhares de participantes durante toda a dispersão).

O cenário que vislumbro é pessimista: parece-me que boa parte dos militantes de esquerda está caindo na armadilha das “bandeiras”, e que isso acabará por realmente entregar o movimento à direita e, por cima, haverá repressão, eventualmente também das opiniões.

Nesse cenário muito provável, para salvar a si mesmos e evitar uma renovação geral, as burocracias e outros fisiologismos encastelados nos diferentes governos e coalizões, estão destruindo as possibilidades de uma grande renovação da esquerda e levando todo o mundo de roldão no buraco que será o resultado eleitoral de 2014.

Foto: Natália Scholz
Mas quero muito estar errado.
Se for verdade que estou errado, serão as lutas da multidão que o dirão e o cenário que elas têm de enfrentar é muito, muito complexo.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/521331-mobilizacao-reflete-nova-composicao-
tecnica-do-trabalho-imaterial-das-metropoles-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco


Leia também:http://www.brasileducom.blogspot.com.br/2013/06/alipio-freire-fortalecer-presidente.html

http://www.brasileducom.blogspot.com.br/2013/06/o-extase-da-conexao-nas-ruas.html