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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Política e debates nas redes

16/01/2014 - A política e as redes
- Maurício Caleiro - em seu blogue Cinema & Outras Artes

O debate político brasileiro tem sofrido forte influência da internet, meio que não só reavivou, em muita gente, o interesse por política e o hábito cotidiano de discuti-la, mas deu voz a uma diversidade de atores na arena, acabando com o monopólio da mídia corporativa.

O jornalista Tácito Costa, editor do site Substantivo Plural, comenta o processo:

"As redes sociais abriram uma fenda na monolítica imprensa tradicional, que durante séculos monopolizou os canais de comunicação como alicerces de seu poder e dos seus interesses.

Definitivamente, acabou o tempo da comunicação unidirecional.

Um pouco antes da explosão das redes, os sites e blogs já tinham equilibrado esse jogo, oferecendo contraponto indispensável aos conglomerados da mídia e, com isso, fortalecendo a pluralidade e a democracia."

Deflagrados a partir da confluência entre desenvolvimento, barateamento e difusão de tecnologias digitais e num contexto em que a passividade do espectador dá lugar à interatividade, os resultados concretos dessa atividade virtual se fazem sentir em fenômenos mais ou menos recentes e por vezes antagônicos entre si, como a emergência da chamada blogosfera progressista, o uso do tumblr como ferramenta para o humor político e a mobilização popular via redes sociais.

Estas, além de se constituírem, cotidianamente, como arena pública de debates, tiveram papel relevante nas manifestações de junho e acabam de servir de meio para deflagração de "rolezinhos" em shoppings.

No bojo da Copa e da campanha eleitoral, prometem seguir dominando a cena em 2014.

Bolha de certezas
Não obstante positivo em sua essência, o debate político que se dá via redes sociais traz, inerentes, aspectos contraditórios ou mesmo intrinsecamente negativos, os quais se tornam mais evidentes à medida que a interação por elas proporcionada se torna um elemento rotineiro no cotidiano de cidadãos e cidadãs.

Talvez o mais evidente - e empobrecedor - deles, na seara política, seja a tendência à formação de "igrejinhas", em que a timeline [o conjunto de perfis seguidos e que te seguem] tende a se apresentar expurgada dos perfis que expressam opiniões francamente contrárias ou divergentes às do dono da conta, acabando por forjar uma falsa unidade discursiva em prol do ideário, partido ou programa político por este professado.

Assim, seu universo político pessoal é conservado em uma espécie de bolha que, embora perfurada amiúde pela própria impossibilidade de se prever e vetar toda e qualquer opinião contrária, o mantém no mais das vezes preso, a um tempo, de convicções que seus pares reafirmam a todo instante e do contato com a multiplicidade de opiniões divergentes – dinâmica que lhe impede acesso a uma visão realista da intensidade da oposição à linha política que defende.

Carimbador maluco
Deriva de tal dinâmica um segundo efeito dessa "segmentação opinativa" inerentes às redes sociais: a tendência, em um cenário político pobre em termos de diversidade e fortemente concentrado na oposição PT X PSDB, a "carimbar" as opiniões de acordo com a régua estabelecida por tal dicotomia.

Assim, se você defender o Bolsa Família ou mostrar simpatia pelos condenados do "mensalão" é grande a probabilidade de ser carimbado como simpatizante do PT ou mesmo xingado de "petralha" e termos derivados, os quais, disseminados a partir do jornalismo neocon, explicitam a intolerância e a tentativa de desqualificação do que entendem por esquerda.

Já se você ousa defender a classe média ou dá pinta de pender para uma posição com tinturas de conservadorismo ou de liberalismo econômico, se tornam grandes as chances de ser repelido pelas hostes dominantes nas redes e carimbado como "coxinha", o xingamento máximo do petismo militante, não obstante a ascensão de pobres à classe média ser comumente desfraldada pelos próprios partidários como principal conquista dos governos petistas.

Desqualificação a priori
Nesse cenário polarizado, há pouco espaço para nuances ou para assimilação de críticas que procuram ir além da dicotomia PT x PSDB.

É sintomático dessa intolerância a evocação do fantasma dos anos FHC – ou seja, elitismo, precariedade social e crise econômica – à mínima restrição dirigida ao governo petista.

Com tais reações, o debate é interditado por uma confusão deliberada entre a crítica pontual à atual administração e a negação total do petismo em prol do que seria inapelavelmente, de acordo com a reação citada, a única alternativa: o retorno aos anos FHC.

Trata-se de uma atitude que não só revela-se autoritária e diversionista ao se recusar a debater os termos específicos da crítica, mas, mostrando ignorar não só a significação última do dito marxista de que a história só se repete como farsa, não se apercebe que se a volta ao Brasil do ex-presidente fosse uma mera questão de deixar de optar pelo PT, então seria porque as mudanças por este partido promovida, nos últimos 11 anos, não foram suficientes sequer para nos colocar a salvo de tal perigo como uma ameaça imediata (muito pelo contrário, até as privatizações estão de volta, sob patrocínio petista).


Em decorrência da tendência a pouca tolerância com opiniões nuançadas – no sentido de não circunscritas à troca de chumbo entre petistas e peessedebistas -, cria-se um processo vicioso de desqualificação a priori das críticas, denunciadas na origem como ideologicamente tendenciosas e cujo teor sequer é levado em conta, e de restrição à sua circulação, seja através da recusa pessoal (e legítima) a repercuti-la nas redes sociais, seja na recusa (dissimulada) dos blogs de grande audiência em repercutir opiniões que se oponham frontalmente às linhas partidárias que efetivamente (mas não assumidamente) apoiam.

Boicote autoritário
Senador Joseph McMarthy
Destarte, malgrado o pleno direito à expressão e as múltiplas modalidades possibilitadas pela internet, acaba-se por observar-se atualmente, no que concerne ao debate político brasileiro, o germe de um processo de caráter totalitário, por vezes macartista, de abafar vozes críticas divergentes, processo este em que tem papel precípuo as paixões partidárias e é protagonizado por entidades virtuais que até recentemente se publicizavam como pluralistas e progressivas.

Trata-se, em última analise, de um fator de retrocesso no debate público, pois enquanto as paixões partidárias se manifestarem como elementos de desqualificação e de repressão à livre abordagem crítica dos problemas, será a fé se sobrepondo à razão, até na seara política.

Verdadeiros democratas não temem o debate.

Fonte:
http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/2014/01/a-politica-e-as-redes.html

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

Leituras afins:
- Das elites, essa estranha noção de liberdade - Fernando Brito
- Imprensa e rolezinho - Luciano Martins Costa
- Às esquerdas da Europa e do mundo - Álvaro Garcia Linera

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Marxismo, ideologia e religião

 10/08/2013 - Por Antonio Ozaí da Silva - em seu Blog do Ozaí

Jean-Pierre Vernant (1914-2007), [foto abaixo, quando jovem] intelectual de formação marxista, jovem comunista da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial e membro do Partido Comunista Francês no pós-guerra, diferencia o “marxismo de Marx”, uma “metodologia crítica indispensável para colocar corretamente questões de história”, do marxismo como “catecismo revisto e corrigido, às vezes censurado, ao qual foi reduzido, primeiro para justificar determinada prática política, em seguida para justificar um sistema de Estado burocratizado e de governo autoritário”.[*]

Este marxismo de catequese, a palavra transformada em dogma, verdade sagrada e absoluta, “aparece como um substituto da religião trazendo a seus 
fiéis certezas e respostas prontas, o que evita que eles pensem em perguntas embaraçosas. Entre os dois, a diferença talvez seja da mesma ordem que entre mito e razão” (p. 56).[1]

O marxismo religioso pressupõe mais do que adesão, exige a conversão, ou seja, a introjeção acrítica da ideologia à maneira religiosa.

Neófitos e prosélitos da fé profana amparam-se em livros elevados à categoria de sagrados, em autores e líderes cujas palavras são inquestionáveis; autoridades que, a exemplo dos profetas, denunciam os males do presente e anunciam a mensagem escatológica do paraíso na terra. 

Eles falam pelos livros, e, em seu nome, estabelece-se cultos e rituais.

Se a religião representa o que há de mais simbólico no homem, o tratamento religioso da ideologia secular implica em desenvolver uma concepção  transcendente da realidade.

A religião consiste em afirmar que, por trás de tudo o que se vê, de tudo o que se faz, de tudo o que se diz, existe outro plano, um além. É o símbolo em ação” (p. 64).

A ideologia, na medida em que assume um caráter escatológico, também se coloca, no plano do simbólico, para uma ação que visa o “além”, um objetivo final que está para além da realidade social vivenciada pelos homens e mulheres concretos do presente.

É o futuro incerto, mas inscrito no pensamento dos que agem como demiurgos do novo mundo.

A ideologia como religião é maniqueísta e messiânica. Estabelece-se diante da idéia de que existe o bem e o mal, e que o mal é encarnado pelo Outro (classe social, grupos, indivíduos, adversários, inocentes úteis que fazem o jogo do inimigo, solapam o bem e alimentam o mal etc.).

complemento deste maniqueísmo é a idéia de que cumprimos uma missão salvadora e libertadora.

Vernant, ao rememorar a sua militância comunista à época da juventude, afirma que, para alguém da sua geração, “ser comunista era pensar que estávamos entrando num período de confrontos decisivos contra as forças do mal. Não era apenas o destino individual que estava em jogo, mas o de toda a humanidade” (p. 468-469).[2]

Esse caráter redentor – “estar aqui pela humanidade” ou por uma classe social cuja missão é redimir a humanidade – revela uma certa fé ingênua. 

Havia de minha parte muita ingenuidade, uma ingenuidade humana e intelectual. Eu vivia nos livros, e acreditava também que as teorias marxistas, as teorias revolucionárias deveriam inscrever-se necessariamente na ação daqueles que as adotavam” (p. 469).

A teoria transforma-se em doutrina justificadora da ação. Se a realidade é incompatível com a doutrina, azar dela.

O fanatismo é outro traço religioso da ideologia. Ele se traduz no “culto ao líder”, na fidelidade cega à liderança e à ideologia encarnada por ela.

É sintomático que, a despeito dos fatos históricos, personagens como Stalin [foto] ainda encontrem defensores e seguidores.

É mais uma das características da ideologia enquanto religiosidade. A fé religiosa não admite a dúvida e, ainda que confrontada com a realidade, mantém-se firme e convicta. O marxismo religioso adota procedimento semelhante.

Como atesta Vernant: “O que foi chamado na época de Kruchev, de 'culto da personalidade’ fazia da pessoa de Stalin no topo do Estado, na URSS, uma entidade com valor propriamente religioso, sacramental, e foi transposto até mesmo para a França – com algumas nuanças” (p. 480).

O culto ao líder foi um dos alicerces do stalinismo, mas a idolatria transcende a figura de Stalin. A ideologia não prescinde do culto aos ídolos, sejam eles quem forem. Não é por acaso que os diversos ismos em que se dividem os 
marxismos originam-se de nomes próprios!

Um dos aspectos vinculados às religiões é o medo. Não é apenas o temor da condenação e tudo o que representa não ser salvo. Paradoxalmente, o crente ama e teme a divindade; aceita e voluntariamente submete-se.

Os sacerdotes, e outros que falam em seu Nome, nos lançarão diante do horror que ameaça consumir o corpo e alma. Em nome Dele, e para evitar o terror das trevas, muitos estão dispostos a fazer cruzadas e combater as 
heresias, nem que seja preciso consumir no fogo corpos e almas.

Ideologias também sacrificam os seus hereges no altar da ortodoxia secular, condenam as ideias exterminando os corpos que as abrigam e, assim,
reproduzem a inquisição em suas formas de tortura e morte.

Se o herege religioso é condenado ao inferno, a heresia política expressa o pecadoideológico imperdoável. Num caso, o terror religioso; no outro, o terror político.

Ambos exigem fidelidade absoluta. Mas é um terror incorporado e legitimado ideologicamente. É ingenuidade, ou desconhecimento, acreditar que regimes políticos se sustentam apenas pela repressão.

A própria massa é usada pelo e para o terror. “Terror das massas significa que as massas são ao mesmo tempo sujeito e objeto desse terror”.

Muitos foram vítimas e o medo se impôs a todos.

Contudo, Vernant [foto] observa que as massas “também foram sujeito desse terror pois, junto com a passividade, era acompanhado por uma espécie de participação, pois os discursos oficiais davam a entender que o inimigo estava em todo lugar, que era preciso proteger-se dele com os procedimentos da 'democracia de massa', ou seja, notadamente, com a denúncia, o que permitia que as massas colaborassem com o terror pendurado sobre suas cabeças.

Esse fenômeno extraordinário do terror interiorizado faz com que os homens da minha geração, na União Soviética, permaneçam marcados por esse medo, medo que fazia com que não pudessem falar, nem mesmo consigo mesmos” (p. 480).

Nestas condições, há espaço para uma relação de cunho religioso entre governante e governados, pensamento e ação. A URSS aparecia aos militantes como uma espécie de Jerusalém sagrada, Meca ou a utopia milenar realizada.

Ela “representava para nós o socialismo realizado e, apesar da contradição nos termos, a utopia encarnada, a utopia que se tornou Estado.

Éramos uma espécie de grupo religioso de tipo milenarista, com tudo o que isso implica em termos de fé, com a diferença de que os novos tempos já haviam chegado” (p. 482). Isto também era encarnado na relação fideísta com o partido.

Via-se este como uma espécie de “contra-sociedade, e eu diria até como família, ou, como seria mais exato, como fraternidade. Era de fato o que sentíamos” (Id.).

Neste contexto, a ideologia marxista assume caráter religioso e irracional: “Não só porque era incrivelmente simplificadora, mas também e principalmente porque excluía todo esforço de reflexão pessoal, toda atitude crítica, toda mobilização da inteligência."

"Era ensinada como uma espécie de credo, uma bíblia à qual era preciso aderir, e essa bíblia tinha poucas relações com a vida concreta dos jovens aos quais se impunha esse castigo. Logo, para eles, a verdade 'científica' e o ensino eram ao mesmo tempo algo muito rasteiro, sem relação com sua realidade, em que deviam acreditar ainda assim como um dogma sem questioná-lo” (p. 498).

O homem é anulado. Só lhe resta submeter-se ou desempenhar um papel religioso em relação ao partido, ao líder.

Fora disso, é o inferno: “Costumo dizer que o sistema totalitário é aquele que faz com um homem sentado no banheiro, na solidão oferecida pela porta fechada e trancada, é tomado pela angústia, pelo terror e por um intenso sentimento de culpa se de repente ocorre-lhe uma idéia subversiva ou insólita.

Em um sistema totalitário, com efeito, aderimos a nosso medo, tornamo-nos lisos, sem nenhum lugar em que possamos nos agarrar e de onde possamos recusar” (p. 508).

Há numerosas formas de expressar e vivenciar a crença ideológica e autoridades a definir qual a leitura ortodoxa sacramentada: “Mas como as formas de ler estabelecidas por essa autoridade eram mutáveis segundo as circunstâncias políticas, os modos de crença podiam variar segundo os indivíduos."

"Conheci bons comunistas, para começar eu mesmo, totalmente incrédulos no campo da ideologia, depois da guerra assim como o foram antes da guerra, mas que, entretanto, permaneciam completamente fiéis no plano político” (p. 510).

Havia os irremediavelmente crentes, os que se recusaram, a despeito de todas as evidências, a abandonar a “igreja”, aqueles cuja crença “ia além do último suspiro” e que desejavam o enterro oficial no seio da “Igreja” (Id.).

A experiência de Jean-Pierre Vernant mostra o quanto, sob determinadas circunstâncias históricas, a ideologia transubstancia-se em religião, ainda que afirme-se ateísta e vincule-se ao mundo profano. O mesmo pode ser observado no relato de Eric J. Hobsbawm. [3]

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[*] Para a reflexão sobre o tema sugiro também a leitura de "O marxismo é religião?", publicado em 19/05/2012; e, "O marxismo é utopia?!", de 06/07/2013.

[1] VERNANT, Jean-Pierre, "Entre Mito e Política", São Paulo: Edusp, 2002. Todas as citações são desta obra.

[2] Sugiro a leitura de HOBSBAWM, Eric J. "Tempos interessantes: uma vida no século XX". São Paulo: Companhia das Letras, 2002, em especial, o significado de “ser comunista” relatado por ele.
Ver "O marxismo é religião?", publicado em 19/05/2012.

[3] Idem.

Fonte:
http://antoniozai.wordpress.com/2013/08/10/marxismo-ideologia-e-religiao/

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A política não é o pasto da fatalidade

30/11/2012 - Saul Leblon - Carta Maior


O mal que desaba sem que se saiba de onde vem nem como evitá-lo e que se multiplica quanto maior é o esforço para domá-lo chama-se tragédia.


Os gregos entendiam de fatalidade.

A política não é uma fatalidade - não deveria ser.


A política deveria ser justamente o espaço da liberdade, sobretudo dos que nunca tiveram espaço, nem liberdade, para se emancipar enquanto indivíduos e como classe. 

A subordinação da política aos desígnios dos mercados sanciona uma rendição que nega o seu apanágio. Ao confundir cordura com submissão, pragmatismo com desistência, a política se transforma no pasto do cavalo xucro que deveria domar; submete-se ao mal que não tem cura em si: é a tragédia econômica.


Há aqui uma boa dose de simplificação, mas estamos falando dos dias que correm e das horas que rugem.

A Europa culta e rica ilustra o custo humano e material da inversão de papéis: o desemprego bate recordes; um exército de 19 milhões de pessoas carecia de trabalho e de tudo o mais que acompanha essa inserção produtiva, na zona do euro em outubro; novas demissões estão previstas para sanear mercados doentes deles mesmos; a fome ronda a Espanha; na 4ª maior economia do euro, a Caritas servirá um milhão de refeições este ano aos novos e velhos pobres espanhóis. A classe média recorre às instituições e caridade para comer.

Há nuances mais próximas com igual peso e envergadura.

A população conjunta da América Latina e Caribe soma 597 milhões de pessoas; a região produz alimentos suficientes para abastecer 746 milhões de bocas, segundo a FAO. E todavia 49 milhões de latino-americanos e caribenhos passam fome nesse momento.


O fracasso da política explica o paradoxo de um planeta em rota de colisão com a sua própria natureza.

Imerso na lógica autorreferente de um sistema de produção à deriva, que se ergue pelos próprios cabelos, o planeta acumula desastres que tem a força impessoal, autônoma e ciclópica das tragédias.


Kioto fracassou.

No período de vigência do protocolo assinado há 15 anos as emissões aceleraram uma curva ascendente: o volume de emissões de gases efeito estufa hoje está 31% acima dos níveis de 1990; sua presença na atmosfera saltou de 2 ppm (partes por milhão) então, para 3 ppm. 


A temperatura média atual no globo já está 14% acima do que deveria atingir em 2020 para não romper o limite de aquecimento de 2 graus neste século - linha vermelha além da qual a ciência enxerga um ambiente clássico de... tragédia.

Eventos naturais extremos ganhariam frequência e gravidade desconhecidas a partir daí gerando energia própria inédita e autopropelida.

Em janeiro de 2013 a humanidade ingressará num desconcertante vazio de pactos ambientais. A política fracassou em construí-los.

Ninguém mais está comprometido com qualquer limite.

A prorrogação de Kioto é uma solução emergencial, insuficiente e incerta.

Depende do que for decidido na 18ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas (COP-18), que acontece agora no Qatar.

E da qual pouco se espera. Tragédia.

Quem pode reverter a fatalidade? Ou melhor, o que pode a política hoje? 
Resgatar o seu poder implica antes de mais nada apoderar-se de seus instrumentos indispensáveis: a democracia e os partidos são parte preciosa desse arsenal. 

Esse apoderamento tampouco é teórico. Trata-se de uma disputa. Ela está marmorizada na vida dos dias que correm. Na crise das horas que urgem. E nas arguições que os revezes desnudam.


É imperioso que os partidos da esquerda se assumam e se legitimem como ferramentas dessa emancipação histórica enredada na lógica da tragédia.

Sua captura pela força autorreferente do sistema que deveriam submeter destrói a bússola e perverte suas práticas.

Não é um problema de indivíduos corruptos ou apenas de oportunistas contumazes - embora eles existam, e como.


É pior que isso. A dissipação das referências históricas desencadeia um processo impessoal e autoimune que tritura consciências e valores, assumindo vida própria para subverter a meta e o método originais. É a tragédia.

O antídoto à fatalidade convoca a força da consciência e a consciência de que só a força da mudança pode evitá-la.

Repita-se: há aqui uma boa dose de simplificação, mas estamos falando dos dias que correm e das horas que rugem. Há vários perigos nessa travessia.

O maior deles é ignorar a sua urgência.


O outro, não menos delicado por conta da sedução das aparências, consiste em endossar o ardil das 'soluções redentoras', tenham elas o apelo dos tribunais 'faxineiros' de toga ou quepe; ou a ingênua aspiração ao partido puro.

Ambas são incompatíveis com os processos concretos, protagonizados por sujeitos intrinsecamente contraditórios, marcados pelos limites e vícios do sistema contra o qual se insurgem. 

A panaceia dos tribunais 'faxineiros' é conhecida; remete ao sonho conservador de engessamento da história num formol de hierarquia pétrea.

O sonho do partido puro carrega gravidade adicional: soterra no moralismo a tarefa mais difícil da história que é fazer das forças impulsionadas pelas suas contradições, o instrumento político efetivo da sua superação.

Fonte:
http://cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1149

Imagens: Google Images

Não deixe de ler:
Barbosa pediu a Dirceu para ser Ministro do STF

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Contradições do atual quadro político

05/09/2012 - Maurício Caleiro - seu blog Cinema & Outras Artes

O quadro político-ideológico brasileiro passa por um momento particularmente contraditório, em decorrência, sobretudo, de dois fenômenos correlatos:

1. A crise dos partidos de direita apeados do poder federal, representada pelo esfalecimento do DEM e pelas consequências do prolongamento artificial do serrismo;

2. A guinada conservadora do governo Dilma Rousseff, seja no campo econômico, em que as premissas neoliberais residuais, representadas pela obsessão pelo superavit primário, assomam à condição de políticas de Estado com as privatizações temporárias de longo prazo (“concessões”, na novilíngua petista); seja na seara administrativa, através da negligência para com áreas sociais fundamentais como Educação e Saúde e na truculência inaudita, incompatível com parâmetros democráticos, para lidar com greves no setor público.

Luta por hegemonia
O grande paradoxo que marca tal processo é que, no momento mesmo em que o enfraquecimento da direita proporcionou potencial de ampliação da hegemonia da chamada centro-esquerda, a administração Dilma, parcialmente liberta dos ódios pessoais e classistas que Lula despertava e visando assegurar o aumento da aprovação a seu governo, passou a incorporar pautas conservadoras - e, desde o início do mandato, a buscar uma aproximação com a mídia corporativa - como forma de promover sua identificação com as parcelas eleitorais órfãs do conservadorismo.

Tal dinâmica, por sua vez, gera agora um círculo vicioso, pelo qual a manutenção dos altos índices de aprovação da ex-militante de esquerda e candidata da aliança petista passa a se manter atrelada à sua modelagem como liderança neoconservadora. Nesse quadro, ideologia e coerência programática cedem de vez lugar ao pragmatismo eleitoral.

Guerra nada santa
Esse desenho começara a delinear-se já na campanha eleitoral, quando a batalha religiosa estimulada por Serra levou a então candidata a firmar um pacto com lideranças pentecostais e setores católicos conservadores, comprometendo-se a, se eleita, não utilizar o Estado de forma pró-ativa no que concerne a aborto e à expansão dos direitos dos homossexuais. Não obstante haver, entre os cientistas políticos, quem assegure que, ao neutralizar a fuga em massa do voto religioso, tal acordo teria sido imprescindível para a vitória nas urnas, seus efeitos estão no cerne do atual desprestígio de Dilma entre parcelas culturalmente qualificadas do eleitorado que valorizam questões ligadas à chamada biopolítica.

Ainda assim, a vitória de Dilma nas eleições, após uma batalha do tipo bem contra o mau contra Serra, trouxe alento aos setores politicamente progressistas do país. Afinal, ela encarnava a continuidade do governo Lula, cuja superioridade inconteste ante o do antecessor FHC evidenciava-se pela transformação vivenciada pelo Brasil, no relativamente curto prazo de oito anos, de um país periférico e subalterno aos EUA, com índices pornográficos de miséria, alto desemprego e uma economia em frangalhos a uma potência emergente no cenário internacional, promotor de uma acelerada redução da miséria e da pobreza, baixo desemprego e um desempenho econômico na contramão da crise mundial.

Heranças em debate
Como a própria presidente, num raro repente, fez questão de deixar claro na dura mas justa resposta que deu anteontem a FHC, ela recebeu uma herança bendita do governo Lula. A questão que se coloca, porém, é o que Dilma Rousseff fará de tal legado, já que, mesmo sem receber a “herança maldita” que FHC legou ao seu antecessor e mentor, ela, ao invés de aprofundar as conquistas deste, trabalhar para a criação de alternativas ao neoliberalismo e trazer a níveis aceitáveis a Saúde, a Educação, a segurança pública e o respeito aos Direitos Humanos no país, parece empenhada em retroceder ao economicismo mais tacanho, à privatização, ao conservadorismo nas questões comportamentais e à repressão truculenta aos movimentos grevistas.

Neste exato instante, tramam-se mudanças na CLT e, devido exclusivamente à recusa de Dilma em negociar, a greve dos professores federais se alastra por inacreditáveis 112 dias, mesmo com os docentes aceitando um aumento menor e cobrando apenas a adoção de um Plano de Carreira. A inflexibilidade da presidente agrada em cheio aos setores conservadores, mas o fato é que universidades paradas por um terço do ano, além dos transtornos a alunos, servidores e professores, custam uma fortuna aos cofres públicos – e sem dar nenhum retorno. Não pode ser considerada uma boa gestora uma presidente que, por picuinhas, permite tamanho descalabro.

Tudo somado, é danosa para o governo Dilma e para o país a ausência de uma oposição à direita digna do nome – já que a atual encontra-se duplamente massacrada, pela ausência de resposta programática ao sucesso dos governos petistas junto à população e pelo fracasso do serrismo, o qual, em conluio com parte da mídia corporativa, trocou a adoção de propostas por táticas baixas e ataques desqualificadores. Mesmo se se livrar de Serra, levará um bom tempo para a oposição conservadora se recompor.

Vácuo à esquerda
Por outro lado, a desarticulação da oposição à esquerda do governo mostra-se talvez ainda mais deletéria, pois não permite que o país disponha, na arena pública, de forças capazes de contrabalançar as inclinações conservadoras as quais o governo Dilma se vê, em nome da ampliação de sua hegemonia, atraído.

Sem esse contrapeso e de olho no voto das classes médias, a aliança petista caminha para um conservadorismo atávico, em que os programas de renda mínima e as ações afirmativas vias cotas – duas criações do capitalismo liberal – seguem, isolados, como meio de promoção de políticas inclusivas – efetivas enquanto vigentes, mas que não transformam estruturalmente a qualidade e a abrangência dos serviços sociais do Estado nem alteram a brutal assimetria entre rendimento advindo do capital (leia-se mercado financeiro) e rendimento advindo do trabalho, já que as remessas bilionárias de reservas ao exterior e os lucros dos bancos continuam intocados pelo modelo de capitalismo o qual o governo se recusa a contrariar.

Tais processos têm tornado evidente a um número cada vez maior de pessoas a guinada conservadora do governo Dilma, seu desprezo pelo social e pelo público e o caráter predatório do desenvolvimentismo a todo custo que promove, baseado no endividamento limítrofe das famílias de baixa e média renda. Dívida, na novilíngua petista, é crédito. Trata-se de um modelo que claramente privilegia o desenvolvimento econômico como condição precípua para um eventual desenvolvimento social, o que evidencia o quão frágeis são suas ligações com um programa político de centro-esquerda.

Bloco dos fanáticos
Tudo isso pouco importa para a vasta gama de apoiadores incondicionais do PT, que ou fingem não ver que o partido abandonou muitas de suas bandeiras e práticas – inclusive o saudoso hábito de escolher seus candidatos através de eleições internas – ou também mandaram às favas os escrúpulos e estão interessados apenas no prolongamento da hegemonia do partido no poder, em tantas instâncias quanto possível, à revelia de como ele o exerça, privatizando ou não, privilegiando o mercado financeiro ou humilhando o servidor público, não importa. Interessa ao bloco chapa-branca é se autocongratular histericamente pelo que se entenda por cada mínimo acerto da camarada presidenta, mesmo quando beneficia os ruralistas de extrema-direita. Stalin perde.

Para esse projeto de manutenção da hegemonia – conservador por definição – vale tudo: a crítica justa à mídia se transforma na generalização do termo “PIG” como um bode expiatório para todas as horas, mesmo que hoje sejam rotineiramente usados contra os críticos do petismo os burburinhos e as mesmas táticas desqualificadoras que caracterizam o esgoto jornalístico.

Contradições evidentes
O articulista Francisco Bosco, em coluna memorável [ver em: http://sergyovitro.blogspot.com.br/2012/09/freixo-francisco-bosco.html] sobre o significado da candidatura Freixo enquanto reflexo da insatisfação com o petismo, assinala que “O acontecimento político mais importante para a história recente do Brasil foi a eleição de Lula para presidente, em 2002 (…) Mas é preciso lembrar o que custou de resignação ao país esse projeto. Sob alguns aspectos, o lulo-petismo tem sido a continuação da modernização conservadora do Brasil. Já sabemos as virtudes e os limites desse projeto”.

Como se vê, as contradições do atual projeto político petista ficam cada vez mais evidentes e uma hora não será mais possível adorar a dois deuses antagônicos ao mesmo tempo. A guinada à direita ora comandada por Dilma cobrará o seu preço, o tratamento humilhante a professores - uma das classes mais aviltadas de trabalhadores no país -, também. Talvez não seja nestas eleições, nem na próxima, mas isso ocorrerá um dia.

Faz-se urgente, neste momento e de agora em diante, o fortalecimento e a união das forças de esquerda como forma de combater o neoconservadorismo petista, que se presta a fazer voluntariamente o jogo da direita, interessado apenas no poder pelo poder.

Fonte:

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sustentabilidade e Educação

06/05/2012 - Leonardo Boff - em seu blog

A sustentabilidade, um dos temas centrais da Rio+20, não acontece mecanicamente.


Resulta de um processo de educação pela qual o ser humano redefine o feixe de relações que entretém com o Universo, com a Terra, com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo dentro dos critérios de equilíbrio ecológico, de respeito e amor à Terra e à comunidade de vida, de solidariedade para com as gerações futuras e da construção de uma democracia sócio-ecológica sem fim.

Estou convencido de que somente uma processo generalizado de educação pode criar novas mentes e novos corações, como pedia a Carta da Terra, capazes de fazer a revolução paradigmática exigida pelo risco global sob o qual vivemos. Como repetia com freqüência Paulo Freire: ”a educação não muda o mundo mas muda as pessoas que vão mudar o mundo”. Agora todas as pessoas são urgidas a mudar. Não temos outra alternativa: ou mudamos ou conheceremos a escuridão.

Não cabe aqui abordar a educação em seus múltiplos aspectos tão bem formulados em 1996 pela UNESCO: aprender a conhecer, a fazer, a ser e a viver juntos; eu acrescentaria: aprender a cuidar da Mãe Terra e de todos os seres.

Mas este tipo de educação é ainda insuficiente. A situação mudada do mundo exige que tudo seja ecologizado, isto é, cada saber deve prestar a sua colaboração a fim de proteger a Terra, salvar a vida humana e o nosso projeto planetário. Portanto, o momento ecológico deve atravessar todos os saberes.

A 20 de dezembro de 2002 a ONU aprovou uma resolução proclamando os anos de 2005-2014 a Década da educação para o desenvolvimento sustentável. Neste documento se definem 15 perspectivas estratégicas em vista de uma educação para sustentabilidade.

Referiremos algumas:
Perspectivas socioculturais que incluem: direitos humanos, paz e segurança; igualdade entre os sexos; diversidade cultural e compreensão intercultural; saúde; AIDS; governança global.


Perspectivas ambientais que comportam: recursos naturais (água, energia, agricultura e biodiversidade); mudanças climáticas; desenvolvimento rural; urbanização sustentável; prevenção e mitigação de catástrofes.


Perspectivas econômicas que visam: a redução da pobreza e da miséria; a responsabilidade e a prestação de contas das empresas.

Como se depreende, o momento ecológico está presente em todas as disciplinas: caso contrário não se alcança uma sustentabilidade generalizada. Depois que irrompeu o paradigma ecológico, nos conscientizamos do fato de que todos somos ecodependentes.

Participamos de uma comunidade de interesses com os demais seres vivos que conosco compartem a biosfera.


O interesse comum básico é manter as condições para a continuidade da vida e da própria Terra, tida como Gaia [1]. É o propósito intencionado pela sustentabilidade.
 A partir de agora a educação deve impreterivelmente incluir as quatro grandes tendências da ecologia: a ambiental, a social, a mental e a integral ou profunda (aquela que discute nosso lugar na natureza). Mais e mais se impõem entre os educadores esta perspectiva: educar para o bem viver que é a arte de viver em harmonia com a natureza e propor-se repartir equitativamente com os demais seres humanos os recursos da cultura e do desenvolvimento sustentável.

Precisamos estar conscientes de que não se trata apenas de introduzir corretivos ao sistema que criou a atual crise ecológica mas de educar para sua transformação. Isto implica superar a visão reducionista e mecanicista ainda imperante e assumir a cultura da complexidade. Ela nos permite ver as interrelações do mundo vivo e as ecodependências do ser humano.

Tal verificação exige tratar as questões ambientais de forma global e integrada. Deste tipo de educação se deriva a dimensão ética de responsabilidade e de cuidado pelo futuro comum da Terra e da humanidade. Faz descobrir o ser humano como o cuidador de nossa Casa Comum e o guardião de todos seres. Queremos que a democracia sem fim (Boaventura de Souza Santos) assuma as características socioecológicas pois só assim será adequada à era ecozóica e responderá às demandas do novo paradigma.


Ser humano, Terra e natureza se pertencem mutuamente. Por isso é possível forjar um caminho de convivência pacífica. É o desafio da educação no atual momento.


[1] Nota do blog: A Hipótese Gaia, também conhecida como a Teoria ou Princípio Gaia, concebido pelo cientista norte-americano James Lovelock sugere que todos os organismos vivos e os componentes inorgânicos presentes na Terra estão intimamente integrados com a finalidade de conservar um singular, autorregulável e complexo sistema que assegura-lhes as condições para viver neste planeta.