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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O que houve na Ucrânia?

23/02/2014 - por Flávio Aguiar
-publicado no blog do Velho Mundo do Portal Rede Brasil Atual

No pano de fundo destas confrontações estão as desigualdades do país

Manifestantes lamentam a morte de ucranianos nos protestos da última semana

Na Ucrânia houve de tudo, menos uma revolução popular.

Tudo começou com uma série de manifestações empilhadas umas sobre as outras: uma juventude ansiosa por se identificar com a União Europeia, uma classe média cansada pelas sucessivas vagas de corrupção dos sucessivos governos, uma insatisfação com o autoritarismo e o fechamento do governo de Viktor Yanukovitch [foto], o desejo de maior ascendência de grupos do oeste do país em detrimento de grupos do leste do país.

A repressão que o governo desencadeou abriu caminho para uma intensificação do descontentamento, açulado pelos partidos de oposição representados no Parlamento e pelo encorajamento internacional – da União Europeia a políticos norte-americanos, republicanos e democratas.

De todos o mais animado foi o senador republicano John McCain [foto], em dezembro, gritando na praça da Independência (Maidan), foco e espaço das concentrações: “O mundo livre está com vocês! A América está com vocês!” 

Melhor lembrança da Guerra Fria e do dito “A América para os [norte-]americanos” seria impossível. Como nos velhos “bons” tempos, o alvo continua sendo a Rússia.

No pano de fundo destas confrontações estão as desigualdades do país.

O leste e o sul – junto à Rússia e ao Mar Negro são mais desenvolvidos e industrializados do que o oeste, mais pobre.

O leste, de um modo geral, tem seu foco econômico voltado para a vizinha Rússia, de que depende o abastecimento de gás do país, vital para a indústria e para o aquecimento durante o rigoroso inverno.

Se a Rússia endurecer a questão do fornecimento de gás, cortando-o ou simplesmente cobrando o preço de mercado, a Ucrânia literalmente congela – em todos os sentidos.

Entretanto para o oeste, mais  próximo da União Europeia, a aproximação com esta significaria em tese uma maior autonomia em relação ao governo central e às demais regiões do país, além de mais oportunidades de colher investimentos. Pelo menos em tese.

Há também a questão do histórico repúdio aos russos, maior no oeste, um repúdio cujas últimas e trágicas edições foram uma relação ambígua – para dizer o mínimo – de movimentos nacionalistas ucranianos com o regime nazista da Alemanha, e um conflito sangrento e frequentemente descrito como “inútil” com o regime soviético.

No leste há também um fator étnico: o número de habitantes russos é muito grande, o que mexe com os brios dos movimentos nacionalistas. E é bom lembrar que na Europa, ao contrário da América Latina, nacionalismo é sempre coisa de direita.

Se este é o pano de fundo, deve-se levar em conta o que acontece nos bastidores e também no palco da política ucraniana.

Nos bastidores pairam as sombras dos grupos econômicos – assim como na Rússia liderados pelos chamados “oligarcas” – que se formaram depois do desmanche da ex-União Soviética, dos processos de privatização de tudo, feitos a toque de caixa, e da independência.

Estes grupos de oligarquias é que dão as cartas – o poder do dinheiro – para os que estão no palco, os políticos e seus partidos.

Entretanto na Ucrânia não houve, pelo menos até o momento, um Vladimir Putin que, na Rússia, digamos, “botou a casa em ordem”, oferecendo aos oligarcas a manutenção de suas fortunas recém-feitas (sobretudo durante o governo de Boris Yeltsin) desde que não se metessem em política.

Enfiando os principais desobedientes na cadeia ou mandando-os para o exílio – confortável, na verdade – Putin e seu neoczarismo disfarçado de república impuseram uma espécie de “pax romana” em seu território.

Na Ucrânia não houve este Putin, mas uma guerra de grupos ora antagônicos, ora aliados, pelas benesses dos oligarcas e pelos espaços de poder, o que conduziu todos a uma política onde alianças ocasionais são apenas passos para uma ideal tomada total do poder, no melhor estilo do “para mim e os meus tudo, para os demais, os rigores da lei”.

Este foi o conflito que se estabeleceu entre o atualmente já ex-presidente Viktor Yanukovitch e sua maior rival, Yulia Tymoschenko [foto], que já fora primeira-ministra por duas vezes, líder do partido chamado de União de Toda a Ucrânia – Pátria Mãe, diríamos em português, embora em ucraniano seja “Pátria Pai”.

Yanukovitch, chegando à presidência em 2010, ensaiou e pôs em prática uma reforma constitucional para aumentar a concentração de poderes em torno da presidência, alijando os demais partidos – inclusive o do Tymoschenko – até mesmo das suas franjas.

E através de denúncias de corrupção e de um julgamento carregado de suspeitas botou Yulia na cadeia.

Aqui pode-se ter uma ideia das complicações da política ucraniana. 

Yanukovitch é visto em geral como próximo da Rússia e Tymoschenko, como aliada da União Europeia.

Pois o primeiro processo aberto contra ela acusava a ex-primeira ministra de abuso de poder e superfaturamento no contrato de fornecimento de gás para Gazprom, a principal empresa russa do setor e uma das maiores do mundo que, como a Petrobras, reúne capitais privados, mas tem seu controle acionário e de fundos nas mãos do Estado.

Entrementes, o pró-Rússia Yanucovitch se aproximava da União Europeia e apressava-se a assinar um acordo de livre comercio com ela. 

Nesta altura, Moscou acendeu a luz vermelha.

Para se entender isto precisamos sair do teatro da política ucraniana e olhar o terreno em volta onde ele está localizado.

Três grandes jogadores estão assentados neste terreno, como os bispos de um jogo de xadrez, mais um cavalo que joga com dois deles, contra o terceiro. Os jogadores são a Rússia, a União Europeia e os Estados Unidos, e o cavalo é a OTAN, a aliança militar que teve como principal inimiga a antiga União Soviética e que agora, além de policiar o norte da África e áreas próximas, continua, nem que seja por força do hábito, a cercar seu adversário  histórico, atraindo para si os ex-satélites deste.

Os interesses dos Estados Unidos e da União Europeia não são coincidentes na região, pois na atual conjuntura interna de Washington não interessa atiçar o confronto – a não ser na retórica – com a Rússia, devido às necessidades de acertos na Síria, no Irã, etc.

Já a UE tem interesse em desembarcar seus avatares dentro do teatro ucraniano, ampliando sua área de influência econômica.

Outro fator que complica este movimento é o temor histórico dos Estados Unidos de que, mesmo com rivalidades marcantes, a proximidade entre Alemanha e Rússia termine por forjar uma aliança estável e poderosa que desenvolva um outro núcleo regional de poder.

Na base de um movimento destes estaria novamente o gás russo, de que a Alemanha já depende e vai depender mais quando – e se – cumprir a promessa de desativar suas usinas nucleares.

De um modo ou de outro, o fato é que a Rússia colocou um sinal de “Pare!” nos movimentos de Yanukovitch: prometeu 15 bilhões de euros em empréstimos quase a fundo perdido – coisa que a UE, às voltas com suas próprias quebradeiras, não tem condições de oferecer à quebrada Ucrânia – baixou ainda mais o preço do gás e pôs à disposição um acordo de livre comércio consigo mesma, mais outros países da região, ex-repúblicas, como a Ucrânia, da antiga União Soviética.

Yanukovitch, que já estava com a caneta na mão e embarcando para Bruxelas, tampou aquela e desceu do avião. Junto aos projetos de novos capitalistas e da classe média do oeste ucraniano (onde o desemprego também é grande entre os jovens), que já sentiam o doce odor dos euros ao alcance da mão, este recuo foi a gota d’água.

Voltando ao cenário político, a gota d’água acabou se transformando num mar de sangue.

É verdade que as manifestações foram reprimidas duramente pela polícia. Mas rapidamente sua linha de frente e também seu espaço foram ocupados por movimentos de extrema-direita, nacionalistas xenófobos, antirrussos, antidireitos humanos, anti-imigrantes, antissemitas, antietc., tradicionais na Ucrânia.

São grupos de combate, armados, que fizeram frente a uma polícia que progressivamente foi se tornando caótica e desorganizada. Estes grupos são ligados, mas não necessariamente subordinados, ao Partido Svoboda, de extrema-direita, que tem representação no Parlamento. Na última semana os confrontos chegaram ao paroxismo.

Na frente de negociação assentaram-se à mesa três ministros de Relações da União Europeia (Alemanha, França e Polônia), Yanukovitch, três partidos de oposição e mais um representante da Rússia.

Enquanto isso, na praça em frente, o conflito de agudizou, com armas de fogo de parte a parte, e franco-atiradores que provavelmente eram de ambos os lados, embora a polícia tivesse ainda maior poder de fogo. O resultado foi de centenas de feridos e muitas dezenas de mortos; as cifras destes últimos variavam entre cerca de 50 a mais de 70, com pelo menos 11 policiais. A certa altura o noticiário chegou a informar que 70 policiais tinham sido “sequestrados” pelos “manifestantes”.

Coloquei “manifestantes” agora, logo acima, entre aspas, porque houve um movimento constante por parte da mídia do Ocidente de idealizar o que ocorria na praça principal de Kiev, apresentando os acontecimentos como um confronto desproporcional entre a brutal repressão do governo e os “amantes da liberdade”.

Apesar desta cortina de fumaça, logo começaram a vazar as informações de que estes últimos eram na maioria e na realidade verdadeiras gangues neofascistas que não aceitavam nenhuma negociação nem nada, a não ser a queda de Yanukokovitch e o afastamento da arqui-inimiga Rússia.

Na mesa de negociação chegou-se a um acordo, envolvendo um recuo nas reformas constitucionais promovidas pelo presidente, eleições em dezembro deste ano e a formação de um governo provisório de coalizão.

Mas na praça a força policial vinha recuando cada vez mais diante dos “manifestantes”, a tal ponto que estes ampliaram os espaço sob seu controle, chegando inclusive a tomar as entradas do palácio presidencial. Sentindo-se sem condições de segurança, Yanukovitch deixou a capital em direção ao nordeste do país.

Seguiu-se nesta altura um verdadeiro golpe de estado no novo estilo “legalizado” corrente em várias ocasiões neste século 21 (Honduras, Paraguai, Grécia, Itália...): o Parlamento declarou que Yanukovitch “abandonara o cargo” e destituiu-o da presidência, com vários ex-membros de seu partido bandeando-se para o lado da oposição, antecipando as eleições para maio e libertando Tymoschenko, que já declarou-se candidata.

Que acontecerá no futuro?

É uma boa pergunta.

Antes de conjecturar, um parêntese: e as Forças Armadas da Ucrânia?

Trata-se mesmo de um parêntese.

Depois da independência em relação à ex-União Soviética, as FFAA abriram mão do arsenal nuclear que estava acantonado em seu território, passando-o à nova Rússia emergente, e diminuíram seu contingente de quase 800 mil para pouco mais de 300 mil homens.

Estão entre a cruz e a caldeirinha, realizando manobras tanto com a Rússia quanto com a Otan, que já se declarou de braços abertos para receber este novo aliado quando ele quiser aderir. O namoro está no ar, e só não se concretizou por causa da vigilância do chá-de-pera da Rússia.

Até o momento, pelo menos, as FFAA ucranianas parecem estar olhando para o lado – pois nem mesmo a segurança do presidente foram capazes de garantir.

O que vai acontecer vai depender das mensagens que estarão neste momento sendo trocadas entre Moscou, Washington, Bruxelas, Berlim, Paris e, em menor grau, outras capitais europeias, como Londres e Varsóvia.

Qual será o novo arranjo entre os partidos políticos ucranianos?

É uma boa pergunta.

Tymoschenko vai mesmo recuperar seu antigo espaço na oposição que liderava, hoje ocupado por Vitali Klitschko, do Partido Democrático Aliança pela Reforma?

O Svoboda vai aumentar seu poder de fogo?

O que fará Yanukovitch?

Os movimentos de trabalhadores, sobretudo no leste, ainda se mantinham a seu favor, embora no momento, com seu enfraquecimento, isso não tenha significado muito no tabuleiro enxadrístico ucraniano.

E o que farão os grupos neofascistas que mantêm Kiev sob seu controle?

O que estes farão ainda não se sabe. Mas já se sabe o que estão fazendo. 

Neste domingo pela manhã (23), enquanto eu redigia esta nota, corria a notícia – em tom discreto, ao lado da retumbância triunfal dada ao discurso de Yulia Tymoschenko na praça da Independência – de que a Embaixada de Israel na Ucrânia emitira um comunicado pedindo que todos os judeus se abstivessem de sair às ruas de Kiev ou até mesmo deixassem a capital, se pudessem, diante dos ataques contra eles que vêm se sucedendo e intensificando nas ruas, com espancamentos, perseguições e outras coisas desse tipo.

Como em velhos mas nada bons tempos, brinca-se com fogo por aqui.

Fonte:
http://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-do-velho-mundo/2014/02/o-que-houve-na-ucrania-7801.html

Nota:
A inserção de imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os ucranianos não querem essa guerra

05/02/2014 - “A grande maioria dos ucranianos não quer esta nova guerra civil”
- Jean-Marie Pestiau - Correio da Cidadania

A Solidaire, semanário do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou Jean-Marie Chauvier [foto] para melhor compreender a situação atual da Ucrânia.

Ele é um jornalista e ensaísta belga, especialista em Ucrânia e ex-União Soviética. Conhecendo esses países e a língua russa há muito tempo, colabora hoje para o Le Monde Diplomatique e em diversos outros jornais e sites de internet.

- Quais são os problemas econômicos mais prementes enfrentados pela população ucraniana, principalmente os trabalhadores, os pequenos camponeses e os desempregados?

Jean-Marie Chauvier
Desde o desmembramento da União Soviética, em 1991, a Ucrânia passou de 51,4 milhões a 45 milhões de habitantes. Esta diminuição se explica por uma baixa taxa de natalidade e um aumento da mortalidade devido, em parte, ao desmantelamento dos serviços de saúde.

A emigração é muito forte; 6,6 milhões de ucranianos vivem atualmente no estrangeiro. Numerosas são as pessoas do leste da Ucrânia que foram trabalhar na Rússia, onde os salários são sensivelmente mais elevados, enquanto que aqueles do oeste se dirigiram em sua maioria para a Europa ocidental, por exemplo, para as serras da Andaluzia ou para o setor de construção civil em Portugal. A emigração faz entrar, anualmente, 3 bilhões de dólares na Ucrânia.

Enquanto o desemprego é oficialmente de 8% na Ucrânia, uma parte importante da população vive abaixo da linha da pobreza: 25%, segundo o governo, até 80% segundo outras estimativas. A extrema pobreza, acompanhada de subalimentação, é estimada entre 2% a 3% até 16%.

O salário médio é de U$ 332 dólares por mês, um dos mais baixos da Europa. As regiões mais pobres são as regiões rurais a oeste. As alocações de desemprego são baixas e limitadas no tempo.

Os problemas que mais pressionam acentuaram-se pelos riscos ligados à assinatura de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE) e à aplicação de medidas preconizadas pelo FMI.

Existe, portanto, a perspectiva de fechamento de empresas industriais, sobretudo no leste. Ou a recuperação, reestruturação e desmontagem das multinacionais.

No que diz respeito às terras férteis e à agricultura, vê-se no horizonte a ruína da produção local, que é assegurada atualmente pelos pequenos camponeses e pelas sociedades por ações herdeiras dos kolkhoses [foto] e a chegada de grande número de multinacionais da agro-alimentação.

A compra maciça de terras férteis se acelerará. Desse modo, Landkom, um grupo britânico, comprou 100.000 hectares (ha) de ricas terras e um fundo de reserva russo, Renaissance, comprou 300.000 hectares de terras (este número representa um quinto das terras agrícolas da Bélgica).

Para as multinacionais, há, portanto, bons pedaços a tomar: certas indústrias, os oleodutos e gasodutos, as terres férteis e a mão de obra qualficada.

Quais seriam as vantagens e desvantagem de uma aproximação com a União Europeia?

Jean-Marie Chauvier
Os ucranianos – a juventude antes de tudo – sonham com a UE, com a liberdade de viajar, com as ilusões de conforto, bons salários, prosperidade etc., a respeito dos quais os governos ocidentais especulam.

Mas, na realidade, não se trata da adesão da Ucrânia à UE. Não se trata da livre circulação de pessoas.

A UE propõe poucas coisas a não ser o desenvolvimento do livre comércio, da importação massiva de produtos ocidentais, da imposição de padrões europeus nos produtos suscetíveis de serem exportados para a UE, o que levanta temíveis obstáculos à exportação ucraniana.

A Rússia – em caso de acordo com a UE – ameaça fechar seu mercado aos produtos ucranianos. O mercado russo já está fechado.

Moscou ofereceu compensações como a redução de um terço do preço do petróleo, uma ajuda de 15 bilhões de dólares, união aduaneira com a própria, com o Cazaquistão, com a Armênia...

Putin [foto] tem um projeto euro-asiático que engloba a maior parte do antigo espaço soviético (inclusive os países bálticos), reforçando os laços com um projeto de coopeeração industrial com a Ucrânia e integrando as tecnologias em que a Ucrânia era performática desde os tempos da URSS: aeronáutica, satélites, armamento, construções navais, modernização dos complexos industriais.

É, evidentemente, a parte leste da Ucrânia que está mais interessada nessa perspectiva.

O senhor poderia nos explicar as diferenças regionais da Ucrânia?

Jean-Marie Chauvier
Não há um Estado-Nação homogêneo na Ucrânia. Há uma diversidade de Ucrânias. Há contradições entre as regiões. Há uma diversidade de história. 

Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm um berço comum: o Estado dos eslavos orientais (séculos 9 a 11), a capital Kiev, que é chamada “Rous”, “Rússia” ou “Ruthenia”.

Além disso, seus cursos se diferenciaram: línguas, religião, pertencimentos a Estados.

O oeste foi ligado muito tempo ao Grande Ducado da Lituânia, aos reinos poloneses, ao Império Austro-Húngaro.

Depois da revolução de 1917 e da guerra civil, nasceu a primeira formação nacional chamada “Ucrânia”, co-fundadora em 1922 da URSS.

A parte ocidental anexada notadamente pela Polônia foi “recuperada” entre 1939 e 1945, pois, ao território atual da Ucrânia, agregou-se ainda a Crimeia, em 1954.

O leste da Ucrânia é mais industrializado, mais operário, mais de língua russa, enquanto que o oeste é mais rural, camponês, língua ucraniana.

O leste é ortodoxo, ligado ao patriarcado de Moscou, enquanto que o oeste é ao mesmo tempo grego-uniate, católico e ortodoxo, ligado ao patriarcado de Kiev desde a independência em 1991.

A igreja uniate Católica, notadamente a oeste na Galícia, foi tradicionalmente germanófila, muitas vezes em conflitos com a igreja católica da Polônia.

O centro da Ucrânia, com Kiev, é uma mistura de correntes do leste e do oeste. Kiev é, muito majoritariamente, de língua russa, suas elites são pró-oposição e muito ligadas aos ultraliberais de Moscou.

A Ucrânia, portanto, foi dividida – historicamente, culturalmente, politicamente – entre o leste e o oeste, e não há sentido algum em jogar uma parte contra a outra, sob o risco de provocar a sua divisão, ou seja, a guerra civil, o que está, sem dúvida, no cálculo de alguns.

A força de provocar a ruptura, como fazem os ocidentais e seus soldadinhos atuais, pode bem chegar ao momento em que a UE e a OTAN obterão “sua parte”. Mas também a Rússia pegará a sua!

Não seria o primeiro país em que se haveria feito, deliberadamente, explodir. 

Ninguém deve ignorar também que a escolha europeia será igualmente militar: a OTAN seguirá e logo se colocará a questão da base russa de Sebastopol na Crimeia, majoritariamente russa e estrategicamente crucial para a presença militar no mar do Norte. [Negro]

Pode-se imaginar que Moscou não deixará instalar uma base norte-americana nesse lugar!

O que pensa da maneira pela qual o atual conflito está sendo apresentado pela nossa mídia?

Jean-Marie Chauvier
É um faroeste! Os bons “pró-europeus”, os maus “pró-russos”.

É maniqueísta, parcial, ignorante da realidade da Ucrânia. Na maior parte do tempo, os jornalistas entrevistam as pessoas que pensam como eles, que dizem o que os ocidentais têm vontade de ouvir, que falam inglês ou outras línguas ocidentais. E, ademais, existem mentiras por omissão.

Primeiro, houve uma notável ausência: o povo ucraniano, trabalhadores, camponeses, submetidos a choques de capitalismo, à destruição sistemática de todas as suas conquistas sociais, os poderes da máfia de todos os lados.

Há em seguida a ocultação ou a minimização de um fenômeno que se qualifica de nacionalista e que é, de fato, neofascista, ou seja, claramente nazista.

É principalmente (mas não unicamente) localizado no partido SVOBODA, seu chefe Oleg Tiagnibog [foto abaixo, a esquerda do senador norte-americano John McCain, a quem coube supervisionar a "Revolução Laranja", de 2004, a mesma de Ioulia [Julia] Timochenko, e que visava desestabilizar o país] e a região ocidental que corresponde à antiga “Galícia Oriental” polonesa. 

Quantas vezes tenho visto, escutado, lido na mídia, citações deste partido e de seu chefe como “opositores”, sem qualificação?

Fala-se de jovens simpáticos, “voluntários da autodefesa”, vindos de Lviv (Lwow, Lemberg) à Kiev, quando se trata de comandos formados pela extrema-direita nessa região (Galícia) que é a sua fortaleza.

Pesada é a responsabilidade daqueles – políticos, jornalistas – que jogam este jogo a favor de correntes xenófobas, russofóbicas, antissemitas, racistas, celebrando a memória do colaboracionismo nazista e da Waffen SS, do qual a Galícia (não toda a Ucrânia!) foi a pátria.

E enfim, a mídia omite as múltiplas redes financiadas pelo ocidente (EUA, UE, Alemanha) para a desestabilização do país, as intervenções diretas de personalidades políticas ocidentais.

Imaginemos a zona neutra em Bruxelas ocupada durante dois meses por dezenas de milhares de manifestantes, exigindo a demissão do rei e do governo, tomando de assalto o Palácio Real, e aclamando ministros russos, chineses ou iranianos na tribuna!

Imagina-se isto em Paris ou em Washington? É o que se passa em Kiev, na praça Maïdan.

Meu espanto aumenta a cada dia ao constatar a diferença entre as “informações” dadas por nossa mídia e as que posso coletar nas mídias ucranianas e russas. As violências neonazistas, as agressões antissemitas, as tomadas de assalto das administrações regionais: na nossa grande mídia, nada disso! Só se ouve um ponto de vista: os opositores de Maïdan. O resto da Ucrânia não existe!

Quais são os principais atores atuais? Quem são os manifestantes em Kiev e em outros lugares? O que é que os federaliza? Qual é a natureza do poder atual?

Jean-Marie Chauvier. A oligarquia industrial e financeira, beneficiária das privatizações, está dividida por grupos rivais entre a Rússia e o Ocidente. 

Viktor Ianoukovitch [foto] e seu Partido das Regiões representam os clãs (e a maior parte das populações) do leste e do sul.

O Partido das Regiões ganhou as eleições presidenciais e parlamentares no outono de 2013.

Há igualmente fortes disputas políticas no oeste, na Transcarpatia (também chamada Ucrânia subcarpática), uma região multiétnica que resiste ao nacionalismo.

Mas a crise atual, as hesitações e fraquezas do presidente podem lhe custar muito caro e desacreditar o seu partido.

O poder atual é altamente responsável pela crise social que favorece a extrema-direita e as enganadoras sirenes da UE e da OTAN. Poder impotente, de fato, defensor de uma parte da oligarquia, e não da “pátria” a que diz pertencer. Ele favoreceu a extensão da corrupção e das práticas mafiosas.

Diante dele, três formações políticas que têm sua base, sobretudo, no oeste e também no centro da Ucrânia.

Há, primeiramente, o Batkivschina, “Pátria”, cujo dirigente é Arseni Iatseniouk. Ele sucedeu Ioulia [Julia] Timochenko [foto], doente e prisioneira.

Em seguida, o partido Oudar (Partido Democrático das Reformas), cujo líder e fundador é o ex-boxeador Vitali Klitschko [foto abaixo].

É o queridinho de Angela Merkel e da UE. Os quadros do seu partido são formados pela fundação Adenauer.

Por fim, o partido neofascista Svoboda (“Liberdade”) dirigido por Oleg Tiagnibog.

O Svoboda filia-se diretamente à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) – fascista, o modelo de Mussolini –, fundado em 1929 na Galícia oriental, então sob o regime polonês.

Com a chegada de Adolf Hitler em 1933, tomou contato com o mote “nós nos serviremos da Alemanha para avançar nossas reinvidicações”.

As relações com os nazistas foram algumas vezes tumultuosas – porque Hitler não queria uma Ucrânia –, mas todos estavam firmemente unidos no seu objetivo comum de eliminar os comunistas e os judeus e de sujeitar os russos.

Os fascistas ucranianos opõem o caráter “europeu” da Ucrânia àquele “asiático” da Rússia.

Em 1939, Andriy Melnyk [foto] dirigia o OUN, com o apoio de Andriy Cheptytskyi, da Igreja Greco-católica (uniate), germanófila, “líder espiritual” da Galícia, que caiu em 1939 sob o regime soviético.

Em 1940, o radical Stepan Bandera abriu uma dissidência: seu OUN-b forma dois batalhões da Wehrmacht, Nachtigall e Roland, a fim de tomar parte na agressão da Alemanha e seus aliados contra a Rússia, no dia 22 de junho de 1941. Imediatamente, desata uma onda de pogroms.

Após muitos escrutínios, após a “revolução laranja” de 2004, a influência do Svoboda aumenta na Galícia e em todo o oeste da Ucrânia, compreendendo-se aí as grandes cidades com 20% a 30% dos votos. Para o conjunto da Ucrânia, o Svoboda conta com 10% dos votos. O Svoboda foi “ultrapassado” por grupos neonazistas ainda mais radicais do que ele.

As três formações políticas, Batkivschina, Oudar e Svoboda, apoiadas pelo ocidente, reclamam após dois meses a derrubada do governo e do presidente da República. Eles exigem novas eleições. O Svoboda os leva mais longe, organizando um golpe de Estado num nível local, lá nos lugares em que fez reinar seu regime de terror. O Svoboda proibiu o Partido das Regiões e o Partido Comunista ucraniano.

O Partido Comunista ucraniano chama à razão já há várias semanas.

Coletou mais de 3 milhões de assinaturas para exigir um referendo que deveria decidir se a Ucrânia quer um tratado de associação com a UE ou uma união aduaneira com a Rússia.

A situação insurrecional diz respeito não somente aos três partidos da oposição, mas também ao poder oferecido do país e do povo “de bandeja” aos diregentes da pseudo-oposição, aos grupos de extrema-direita neonazis, às organizações nacionalistas violentas, aos políticos estrangeiros que conclamam as pessoas a “radicalizar os protestos” e a “lutar até o fim”.

O PC destaca os problemas sociais. Ele tem a posição mais democrática entre os partidos políticos. Mas sua influência limita-se à parte leste e ao sul da Ucrânia.

Que papel jogam as grandes potências (EUA, União Europeia, Russia) no enfrentamento atual? O que buscam?

Jean-Marie Chauvier
Zbigniew Brzezinski, célebre e influente, geoestrategista estadunidense, de origem polonesa, traçou nos anos 1990 a estratégia estadunidense para comandar a Eurásia e instalar duravelmente a hegemonia do seu país, tendo a Ucrânia como elo essencial.

Para ele, havia os “bálcãs mundiais”, de um lado, a Eurásia e, do outro, o Oriente Médio.

Esta estratégia deu seus frutos na Ucrânia com a “revolução laranja” de 2004. Ela instalou uma rede tentacular de fundações estadunidenses – como Soros e a Fundação Nacional para a Democracia (NED) –, que remuneraram milhares de pessoas para “fazer progredir a democracia”. Em 2013-2014, a estratégia foi diferente.

Sobretudo, a Alemanha de Angela Merkel [foto] e a UE estão no comando, ajudados por políticos estadunidenses, como McCain.

Eles discursam para as massas a respeito de Maidan e de outros com uma grande irresponsabilidade: para atingir facilmente seu objetivo de atrair a Ucrânia para o campo euro-atlântico, donde a OTAN se apoia nos elementos mais antidemocráticos da sociedade ucraniana.

Mas este objetivo é irrealizável sem dividir a Ucrânia entre leste e oeste e com a Crimeia, que se juntará novamente à Russia, como sua população deseja.

O parlamento da Crimeia declarou: “não viveremos jamais sob um regime bandeirista (fascista)”.

E para Svoboda e outros fascistas, é a revanche de 1945 que eles vivem.

Eu creio que, apesar de tudo, o que a grande maioria dos ucranianos não quer é esta nova guerra civil nem a divisão do país, mas, sem dúvida, a sociedade está para ser reconstruída!

Para saber mais:
- Jean-Marie Chauvier, Euromaïdan ou a batalha da Ucrânia, 25/01/2014
http://www.mondialisation.ca/euroma... e Ucrânia: que posição?

Mais:
- A política antissocial revelada pelo Wikileaks

Viktor Pynzenyk [foto], antigo ministro das finanças e hoje membro do partido de oposição, ou OUAR, de Vitali Klitchko, explicou em 2010 ao embaixador dos EUA o que ele desejava para a Ucrânia:

“- Aumento da idade da aposentadoria entre dois e três anos;
- A limitação das pensões dos aposentados que trabalham;
- Triplicação do preço do gás de cozinha;
- Aumento de 40% no preço da eletricidade;
- Anulação da Resolução governamental que exige o consentimento dos sindicatos para aumentar o preço do gás;
- Anulação da Disposição Legislativa que proibe os fornecedores comunais de cortar as reservas ou de punir os consumidores em caso de não pagamento dos serviços comunais;
- A privatização de todas as minas de carvão;
- O aumento dos preços dos transportes, a anulação de todas os subsídios;
- A abolição das ajudas governamentais para os nascimentos, comida e livros escolares gratuitos (está escrito: as famílias devem pagar);
- Anulação de isenção de IVA sobre produtos farmacêuticos;
- Aumento da gasolina e aumento de 50% de impostos sobre os veículos;
- O pagamento de seguro desemprego, após um período mínimo de 6 meses trabalhados;
- O não aumento do salário mínimo vital (introduzindo, entretanto, pagamento suplementar aos necessitados)."

Fonte do Wikileaks: Cabo diplomático revelado por Wikileaks
http://www.cablegatesearch.net/cabl...;;q=elections+ukraine

Fonte do artigo:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9308:submanchete050214&catid=72:imagens-rolantes

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Duas aventuras pan-europeias: na África e na Ucrânia

15/12/2013 - Duas aventuras pan-europeias: Asterix em Bangui e a roleta russa da Santa Aliança
- Rui Peralta, Luanda - Página Global

I - São famosas as intervenções francesas em África.
Apenas relembrando as dos últimos tempos temos: a Costa do Marfim (utilizando veículos da ONU, para retirar do poder um presidente incômodo aos interesses franceses e o Mali (em curso).

Por apurar, ainda, o papel da França no genocídio de Ruanda e no presente a intervenção francesa na Republica Centro-Africana (será que caçarão o “mau da fita”, Abdallah Hamat?).

Têm também no seu historial pós-invasão uma série de “eleições”, “legitimando” os governos neocoloniais nascidos das suas intervenções.

A lista das “obras” da França no continente africano é vasta: insegurança alimentar, subnutrição, carências sanitárias, exploração dos recursos naturais, neocolonização, criação de governos fantoches (e sua manutenção no poder) e militarização do continente são apenas alguns itens de tão vasta lista.

A França decidiu exercer a sua faceta de poder colonial em África, de forma aberta e “transparente”.

E tal como acontecia com os regimes coloniais no inicio da expansão europeia em África (a colonização era legitimada por bula papal) a França legitima os governos fantoches no continente através da “qualidade democrática” dos seus funcionários autóctones (assim foi na RDC [República Democrática do Congo], Mali e Costa do Marfim, por exemplo, sempre com o histórico balão de ensaio senegalês por detrás, colhendo as lições do “frére” Senghor).

A intervenção francesa na Republica Centro Africana tem alguns personagens que vale a pena mencionar.

Abdallah Hamat é um desses personagens típicos que pululam pelo continente.

Autodesignado general ascendeu à ribalta como lugar-tenente de Michel Djotodia, coordenando ações militares decisivas para a expulsão do presidente François Bozizé.

Acusado de vários homicídios, Hamat ficou no centro do tabuleiro com um ataque que comandou no passado dia 10 de novembro, ação que aparenta ter um cunho religioso.

Uma vez mais a “ameaça islâmica fundamentalista” serve para tapar peneiras e na Republica Centro Africana não foi necessário fomentar núcleos da al-Qaeda para justificar a invasão: bastou a figura do Hamat - o que reduz substancialmente os custos da intervenção – para o Conselho de Segurança da ONU autorizar que soldados franceses e da União Africana (sempre por arrasto, esta figura pateticamente apática da UA).

O cenário é confuso. As milícias SELEKA, islâmicas, apoiantes de Michel Djotodia, que em março foram decisivas para depor François Bozizé são comandadas pelo tal Hamat e controlavam Bangui, a capital. Do outro lado estão as milícias cristãs designadas por “antibakala” leais a Bozizé.      

O problema é que os franceses, chegados ao terreno, defrontaram a SELEKA, mas devido aos ataques sucessivos dos leais a Bozizé á capital, acabaram também por envolver-se em combates com as milícias cristãs.

Quanto ao presidente interino, Michel Djotodia [foto], quando em setembro anunciou a dissolução da SELEKA – seus apoiantes – viu rebentar uma onda de violência na capital, levada a cabo por milicianos islâmicos que não aceitavam a dissolução, perdendo o controlo da situação.  

O contingente da UA que se encontra no país, em missão de paz, é composto por 2 mil e 500 soldados, com a típica desorganização dos contingentes da UA e as limitações de financiamento que caracterizam estas intervenções africanas.

Este contingente deverá ser enquadrado em força de Paz da ONU, em Julho de 2014, quando o Conselho de Segurança se reunir para reavaliar a situação na Republica Centro Africana, caso a instabilidade persista. Neste caso a MISCA (a força de paz da UA na Republica Centro Africana), será reforçada com mais mil efectivos.

Desta forma a ONU poupa dinheiro, passando as despesas para a UA, deixando todos os parceiros contentes: a UA porque desta forma vê a sua politica de “resolução africana para os assuntos africanos” (leia-se: soluções que transformar-se-ão em parte do problema a medio prazo) e o Ocidente poupa dinheiro e limpa as mãos do assunto, deixando-as livres para o caso de uma intervenção futura, quando o descalabro da UA for irremediável e a terra já estiver queimada, podendo então fazer o que muito bem apetecer, pois tudo estará justificado.  

Em 1997, o país foi palco de uma missão similar, mas a França cansou-se de sustentar a prolongada estadia, acabando por reduzir as operações ao mínimo, criando, desta forma, as condições necessárias para uma intervenção mais direta, como aconteceu agora.

É evidente que os resultados são, como sempre, sentidos pelas populações de forma dramática: cerca de 160 mil refugiados, 240 mil desalojados e largas centenas de mortos.

É o preço que os Povos pagam pelas soluções neocolonialistas (Será que já estão a preparar um programa de recuperação “afrocapitalista” para a Republica Centro-Africana?

De certeza que as elites que se escondem por detrás da falsa “acumulação primitiva” – leia-se: esbanjamento do presente e anulação do futuro – já devem ter uma das suas sábias e pragmáticas soluções na manga).

II - Anteriormente com Sarkozy e atualmente com Hollande, a França alterou procedimentos e mecanismos da sua política externa.
Encabeçou as potências ocidentais na agressão á Líbia e impôs a linha mais dura do ocidente em relação á intervenção na Síria.

Transformados em “falcões” os franceses intervieram unilateralmente no Mali e François Hollande foi recebido como herói gaulês em Israel [foto], aplaudido pelos profetas da desgraça que impõem os seus delírios ao povo hebraico.

O mesmo Hollande acabou de enviar tropas para a Republica Centro Africana, para “restaurar a ordem” (será que os lideres gauleses tentam substituir a milenária “Pax Romana” por uma mais atualizada e eficaz “Pax Gauloise”?

Esta é a mesma França que no início do presente século XXI foi ridicularizada pelo Congresso dos USA, devido á sua recusa em seguir a intervenção norte-americana no Iraque e que renunciou publicamente à “Francafrique”, considerando-o um “comportamento inapropriado”.

Então como explicar esta viragem na política externa francesa?

A explicação tem vertentes internas e externas.

Nos factores internos é de salientar um movimento migratório, provocado pela História colonial francesa: o grande número de cidadãos islâmicos, na sua maioria pobres, ou usufruindo de baixos rendimentos, com muitos dos jovens islâmicos franceses – sentindo-se sem perspectivas e sofrendo com um problema de identidade, devido á sua condição proletária - a serem atraídos pela extrema-direita islâmica.

Ainda que esta viragem na politica externa seja sentida em todo a região pan-europeia, ela foi particularmente forte na França, evocando uma reação politica interna, em que deve também ser salientado a xenofobia da extrema-direita francesa (Frente Nacional) e de uma tendência que se faz sentir na esquerda politica e no “centro-esquerda”, como a representada pelo ministro do Interior, Manuel Valls, do Partido Socialista, cuja principal atividade é reprimir a migração ilegal e em particular as comunidades islâmicas.

Esta política, cujo lema é “Responsabilidade de Proteger”, percorre todo o espectro político francês, da direita á esquerda, principalmente nos sectores pantanosos do “centro” (“centro-direita” e “centro-esquerda”).

Uma das suas figuras principais é Bernard Kouchner [foto], fundador dos Médicos sem Fronteiras (MSF), que foi primeiro-ministro de Sarkozy.

Outro dos seus arautos é Bernard-Henri Levy [foto abaixo], que foi conselheiro de Sarkozy, função que continua a exercer para Hollande.

No entanto é nas dinâmicas externas que poderemos encontrar um fator de maior importância, para entender o que se passou com esta viragem, aparente, da política externa francesa.

Desde 1945 que a França luta para manter-se como figura de maior relevo no cenário mundial. Neste esforço a França teve que contornar um obstáculo: USA.

Para Charles de Gaulle a preocupação primordial era a França reassumir o seu papel mundial e reafirmar-se nas arenas internacionais.

De Gaulle tentou de muitas formas, desde a aproximação com a União Soviética, o seu distanciamento em relação á NATO [OTAN], a sua forte relação com Israel (principalmente na guerra da Argélia), num momento em que as relações de forças na ONU impulsionavam uma direção oposta (foi a França que armou Israel, no ataque conjunto franco-britânico-israelita ao Canal do Suez, em 1956).

O vínculo especial com Israel terminou em 1962, depois da independência da Argélia e a França demonstrou-se mais preocupada em renovar as suas relações (e influencia) com as ex-colônias do Norte de África.

Esta política não foi apenas uma política gaullista, tendo sido assimilada por muitos socialistas franceses e por muitos sectores não gaullistas á esquerda e á direita do espectro politico francês.

A Grã-Bretanha e os USA sempre foram (desde a Segunda Guerra Mundial) os dois grandes fantasmas da política externa francesa, dois concorrentes poderosos, que viam na França um parceiro difícil de controlar e excessivamente espicaçado por uma competição desenfreada pelos lugares cimeiros da política internacional.

A crise econômica internacional, que afeta com particular dureza as economias capitalistas do Ocidente levou a uma cartelização dos interesses do capitalismo, provocando uma estratégia imperialista de concertação em torno de interesses geoeconômicos comuns.

Neste novo cartel a França assume o lugar de “falcão”, desempenhando com graciosidade o papel de “polícia mau”, assumindo a “linha dura” no combate ao “inimigo islâmico”.

É assim, que depois de um longo interregno (desde 1962) que Israel volta a ver a França como o seu melhor amigo (ainda que este não seja um amigo tão poderoso como os USA).
       
Existe no entanto um fator que não permite que a França assuma o seu “destino napoleônico” (esse complexo imperial da burguesia francesa desde a sua ascensão a força dominante na sociedade francesa): o caótico cenário geopolítico da atualidade.

Na Ásia Ocidental (Médio-Oriente) existem potências regionais imprevisíveis, que impedem a França de jogar, aqui, um papel primordial. Muito menos a Ásia Oriental (apesar do peso histórico da França por essas zonas) é um cenário favorável para as elites francesas passearem as suas plumas pós-modernistas.

Resta a África, o único continente onde a França pode reassumir um papel central, aparecendo lado a lado (mas um pouco mais á frente) dos USA e da Grã-Bretanha (graças não apenas à cartelização de interesses, como também ao fator migratório, que permite aos franceses terem agentes provocadores mais baratos e conhecedores do terreno).

E a França aproveita a oportunidade oferecida, continuando a cantar os “Enfants de la Patrie”, mesmo que sejam “enfants terribles”, filhos bastardos de uma França madrasta.

III - A região pan-europeia pode ser dividida em dois polos geopolíticos e geoeconômicos concorrentes.


Uma área aparentemente integrada a vários níveis (U.E.) constituída por um núcleo monetário – a Eurolândia – e uma outra adversa ao atual projeto europeu e dominada pela Rússia.

Esta ultima região pan-europeia (e também meta-europeia, uma vez que abrange vastos territórios não só da Eurásia, mas também da Ásia Oriental) com uma forte tradição autocrática é de difícil sedução para os seus vizinhos europeus (principalmente para as classes médias) que anseiam por se integrar na U.E.

Este conflito entre a Rússia e a U.E. passa na atualidade por um período de alta conflitualidade na Ucrânia.

Apesar da proximidade cultural e histórica entre ucranianos e russos (sem esquecer a existência na Ucrânia Ocidental de uma minoria histórica russófoba) a Rússia não apresenta qualquer atrativo para as classes médias ucranianas, que procuram afirmar-se na sociedade ucraniana.

Esta classe média (maioritariamente média-baixa) vê na U.E. a possibilidade de maior enriquecimento, assim como no Ocidente uma panaceia para os seus problemas centrais (como ficou patente na “Revolução Laranja”) e olha para Oriente com algum receio e incerteza.  

Este receio das classes médias ucranianas em relação aos seus vizinhos tem, obviamente, o respaldo dos setores da burguesia ucraniana (as classes médias caracterizam-se por um comportamento acéfalo, que obedece a dois inputs fundamentais: a vontade de enriquecer e o medo de empobrecer) que apenas poderão assumir um papel preponderante e de domínio total se diluírem-se no seio da Europa Ocidental (esta é uma questão histórica para a burguesia ucraniana e que marca fases decisivas na História da país).

Os dois modelos concorrentes de capitalismo na região pan-europeia (um modelo liberal que hesita entre a incerteza da liberalização total e as indecisões neokeynesianas, no lado da U.E. e o modelo russo de desenvolvimento, assente no capitalismo de estado, tendencialmente oligárquico, consequência do socialismo real e do caos reinante durante o período de transição para o capitalismo) confrontam-se na Ucrânia em função destes fatores de dinâmica interna, mas também de importantes fatores de dinâmica externa, de raiz geopolítica e geoeconômica. [foto: Júlia Timochenko, magnata ucraniana com Vladimir Putin, da Rússia]

A Ucrânia é uma fase atual (como o foi a Geórgia num passado recente) da longa batalha travada entre a U.E. e a Rússia.

O Ocidente (NATO e U.E.) tenta evitar a todo o custo a consolidação geopolítica da Federação Russa – e geoeconômica, afirmando o controle da “rota do gás” por parte da Rússia – e a Rússia, que volta em “pleno” (politica e economicamente) ao palco global, tenta reafirmar-se como potência.    
Com a dissolução da URSS em 1991 e posterior separação da Ucrânia, as relações entre os dois países tem-se constituído por acordos mais ou menos instáveis em matéria de gás ou da presença da frota do Mar Negro nos portos da Crimeia.

A atual estratégia ocidental atua sobre o sector energético e abrange uma miríade de formas que vão desde as rotas alternativas aos gasodutos russos até às medidas anti monopólio contra a GAZPROM, tudo montado a partir de Bruxelas.

Estas constantes pressões ocidentais, com repercussões negativas sobre a Ucrânia, levaram a Rússia a aumentar a sua exportação de gás para o Oriente – China, Japão e Coreia.

A Rússia apresenta-se segura dos seus objetivos.

Tem obtido vitórias plausíveis na política externa, com a desmontagem do cartel OTAN / Estados do Golfo, formado para destroçar a Síria e mais recentemente com o acordo estabelecido entre a comunidade internacional e o Irã sobre o programa nuclear iraniano.

Esta atitude de conforto e de confiança por parte dos russos contrasta com a atitude beligerante e arruaceira da U.E.

A Alemanha continua amarrada ao seu papel na Revolução Laranja, apoiando diretamente duas das forças politicas que organizaram os protestos (através da Fundação Konrad Adenauer, da CDU), advertindo o Presidente ucraniano [Victor Yanukovitch - foto acima] contra o uso da violência e qualifica o sistema judicial ucraniano de “justiça seletiva”, ao referir o caso de Júlia Timochenko [ao lado], a magnata pró-Ocidente (uma das figuras de proa da Revolução Laranja, que pouco tempo depois atolou-se em escândalos de corrupção) enquanto Guido Westerwelle o (ainda) ministro das relações exteriores do gabinete germânico passeia-se pelas manifestações de Kiev, por entre as bandeiras do SVOBODA [abaixo], um partido antissemita da extrema-direita ucraniana.

Para além da Alemanha, a Polônia e a Suécia, através dos respectivos ministros das relações exteriores, expressaram o seu apoio aos manifestantes ucranianos pró U.E. e o primeiro-ministro polaco chegou a intervir em comícios e encontros realizados em Kiev.

Estarão os líderes da U.E a entrarem num processo de senilidade acentuada que já os fazem esquecer princípio básicos do direito internacional, como o da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados?

Ou será que foram tomados pelo “amigo alemão” (Alzheimer)?

IV - Mas, sobre os acontecimentos na Ucrânia, existe um aspecto que não é referido em qualquer meio de comunicação social: o estabelecimento da “Profunda e Completa Área de Livre Comércio” (DCFTA- Deep and Complete Free Trade Area).
O que é a DCFTA?

Para respondermos a esta questão, vejamos um pormenor crucial da balança comercial ucraniana (e que permitirá uma melhor compreensão deste mecanismo): a Ucrânia exporta cerca de 15 mil milhões de euros para a U.E. e importa desta, cerca de 24 mil milhões de euros.

Ora, o DCFTA contribuirá para uma maior integração econômica com o mercado interno da U.E. através da adoção de medidas legislativas por parte dos ucranianos.

Isto inclui a eliminação de todos os obstáculos ao comércio, serviços e ao fluxo de investimentos (em particular com os investimentos no setor energético).

Uma vez que a Ucrânia incorporou-se ao Acervo Comunitário Europeu a U.E. concede-lhe acesso a todos os mercados internos europeus.

Por enquanto, como o DCFTA ainda não entrou em vigor, as taxas aduaneiras e outras barreiras alfandegárias ou fiscalmente mais vastas, ainda fazem-se sentir nos custos das operações e transações entre a U.E. e a Ucrânia (mesmo que sejam mais baixas e existam algumas isenções), mas quando o DCFTA estiver em vigor os operadores econômicos pouparão cerca de 750 mil milhões de euros por ano, em taxas, impostos e direitos.

Dadas as disparidades (evidentes nos números acima apontados, da balança comercial ucraniana) – e para dar uma ideia mais vasta do atual panorama o poder econômico da U.E é 40 vezes superior ao da Ucrânia e o quantitativo de investimentos europeus é 11 vezes superior – não é difícil imaginar que percentagem dos 750 milhões de euros em poupanças, gerados pelo DCFTA, pertence à U.E. e qual a que é pertença da Ucrânia e aos quais é necessário adicionar os números da liberalização dos investimentos, uma mais-valia incalculável para os investidores da U.E., se atendermos a que os investimentos da U.E. na Ucrânia, na área de infraestrutura (transporte, energia, meio ambiente e equipamentos sociais) estarão cobertos por financiamentos adicionais destinados a cobrir eventuais necessidades de tesouraria.

O que na verdade está a acontecer com a DCFTA é a completa assimilação jurídica da Ucrânia por parte da U.E. (fornecedora, com 40 vezes mais capacidade de capitalização e 11 vezes mais capacidade de investimento).

O principal propósito das leis e dos regulamentos comunitários da U.E. tem como pano de fundo a eliminação dos mecanismos institucionais que possam proteger os mercados nacionais dos estados membros da U.E., abrindo-os completamente a condições alienígenas para os quais estes mercados não se encontram preparados, ou perante os quais não têm qualquer mecanismo orgânico ou interno de defesa.

Por fim uma outra questão é abordada no DCFTA: a mobilidade.

O máximo de mobilidade (livre-circulação) de mercadorias, serviços, bens e capitais, mas um extraordinário vazio sobre uma mobilidade que é fundamental para um efetivo desenvolvimento e fortalecimento da Ucrânia: a livre-circulação de pessoas, sob a forma de mão-de-obra.

Para a economia ucraniana é importante o fator migratório, no sentido de abarcar mão-de- obra tecnicamente especializada, mas também no sentido de fazer escoar a mão-de-obra excedente para a U.E., ao mesmo tempo que permitiria uma maior abertura do ensino médio e superior através do intercâmbio com instituições da U.E., novas especializações, melhor qualidade de ensino, etc.

Mas a profundidade do DCFTA limita-se à livre circulação de capitais, bens, serviços e mercadorias.

As pessoas (o fator humano) ficam de fora, ou com “livre-circulação” de um sentido apenas.

Claro que falar em questões que deveriam ser abrangidas por estes acordos, como a globalização da Segurança Social, através de mecanismos de capitalização global de fundos internacionais, regionais, ou intercontinentais, está completamente fora de questão.

Livre circulação de Capitais, serviços e mercadorias, sim! Livre circulação de pessoas e políticas sociais (mesmo através da capitalização de fundos), não!

V - Pelo conjunto de fatores (internos e externos) acima descritos seria lógico prever que os protestos na Ucrânia contra a decisão do governo de Victor Yanikóvich de não assinar o Acordo de Associação com a União Europeia (com mais de mil e quinhentas páginas, do qual o DCFTA é um anexo) assumiram formas violentas, em escalada de intensidade.

E isto acontece porque estamos perante uma operação de desestabilização, em que as dinâmicas internas (o descontentamento das classes médias e as aspirações das burguesias – financeira, comercial, industrial e agrária – da Ucrânia) foram doutamente explorados e cruzados com as dinâmicas externas.

O auge da intensidade dos conflitos foi atingido no dia 1 de dezembro, com a ocupação de edifícios públicos por parte dos manifestantes.

No dia anterior a BERKUT – o corpo especial da polícia ucraniana – dispersara violentamente uma manifestação pacífica em Maidan, na Praça da Independência.

Os protestos alargaram-se a grande parte do território, com especial incidência em Kiev e na Ucrânia Ocidental (tradicionalmente um bastião pró-ocidental) mas também em Dnipropetrovsk, na Ucrânia Oriental.

O modelo proposto pelo Acordo de Associação com a U.E. choca com a adesão ao projeto russo da União Euroasiática, que engloba também o Cazaquistão e a Bielo-Rússia.

Este projeto, a longo prazo representa uma saída de estabilidade para a débil economia ucraniana, mas que não é viável para a burguesia ucraniana (que será asfixiada e subordinada ao Estado) e muito menos para as classes médias (que passarão por um breve processo de proletarização, que elas tanto temem).

Para as camadas mais desfavorecidas da população e para os setores administrativos (acadêmicos, elite administrativa, elite tecnocrática) esta representa uma forma de escapar à deterioração das condições de vida e adquirem (principalmente os trabalhadores assalariados da industria e trabalhadores agrícolas) uma posição de maior importância na sociedade ucraniana, sendo algumas das suas reivindicações satisfeitas.

De um modo geral e pesando vantagens e desvantagens, a União Euroasiática representa um reforço da soberania nacional e popular da Ucrânia e uma integração mais efetiva nos mercados globais, pois não se encontrará sujeita aos ditames das obrigações impostas á regionalização europeia, que transformariam a Ucrânia numa economia periférica, produtora de grão e de carvão e fornecedora de mão-de-obra barata.

Por outro lado a União Euroasiática representa também uma forma da Ucrânia rentabilizar a sua dependência em relação ao gás russo (baixando o custo e ampliando os créditos a juro mais baixo, por exemplo, ou assumindo uma parceria para a reexportação – adquirindo vantagens nos mercados europeus - com a GAZPROM).

É bom não esquecer que mais de 60% das exportações ucranianas vão para o mercado russo, pelo que a União Euroasiática representaria um importante polo de desenvolvimento para o setor exportador ucraniano, diminuindo desta forma o peso e o impacto das importações.

As elites ocidentais, pan-europeias, do capitalismo contemporâneo, obrigadas – contra vontade - à cartelização, sofrem de um problema que advém dos tempos recentes das “economias de casino”: viciaram-se no jogo.

E se ao Sul, os jogos africanos são mais rentáveis do que nunca, a Leste iniciaram-se os jogos euroasiáticos…

Vinde, Senhores! A adrenalina de vasto mercado espera-vos… (embora na Eurásia, dos gauleses, nem murmúrios).    

Fontes:
Böröcz, József  - The European Union and Global Social Change: A Critical Geopolitical-Economic Analysis Rutger University Press, New Jersey, 2009
Ferrero, Àngel - Ucrania: la bisagra entre Rusia y la !Unión Europea estalla en protestas http://www.sinpermiso.info
Böröcz, József -  http://www.criticatac.ro/lefteast/ukraine-eu-dependency/
Oakford, Samuel - http://www.ipsnoticias.net/2013/12/onu-al-margen-del-caos-en-republica-centroafricana/
Poch, Rafael - http://blogs.lavanguardia.com/berlin/?p=520
Wallerstein, Immanuel - http://www.jornada.unam.mx/2013/12/08/  
http://www.guinguinbali.com
http://www.rebelion.org

Fonte do artigo:
http://paginaglobal.blogspot.pt/2013/12/duas-aventuras-pan-europeias-asterix-em.html

Leia também:
- Líderes europeus rejeitam apoio a missões militares francesas na África - Correio do Brasil