quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Rio de ouro e soja

13/12/2012 - Por Carlos Juliano Barros
- extraído do site #Amazônia Pública
- Desenvolvimentistas









[Para quem tentar compreender algumas das razões mantidas mais ou menos ocultas para justificar a tentativa de criação do Estado do Tapajós, oeste do Pará, em fins de 2011, vai, logo nos primeiros passos, esbarrar nos interesses das oligarquias nacionais e regionais e entender porque à cobiça que a região desperta entre as grandes corporações internacionais, desde o universo da exploração mineral - recursos hídricos, inclusive - ao do agronegócio, não pode mais prescindir de adicionar a ela o extenso emaranhado de interesses outros que, na sua essência, visam unicamente privilegiar economicamente as grandes madeireiras, os laboratórios de olho na rica biodiversidade da região em parte ainda intacta, os consórcios e as mega-construtoras brasileiras de barragens, portos, terminais e estradas, as siderúrgicas, as empresas transportadoras, políticos e empresários que já se estabeleceram e outros que ainda virão para essa região, todos na expectativa, seja como protagonistas ou como agentes menores, de se beneficiar do advento desse novo Eldorado que se avizinha célere e que mudará de vez a feição da região mais rica, bonita e ainda mais bem preservada do Estado.





Às populações originárias de indígenas e posseiros, ou de pequenos agricultores e extrativistas, pescadores e garimpeiros, carvoeiros e comerciantes, se juntaram imigrantes do sul e nordeste, ONGs nacionais e internacionais, conservacionistas, ativistas, assentados, peões e ribeirinhos para também cumprirem seus papeis e assim se tornarem também protagonistas de um outro ato dessa semi-tragédia onde não faltam os contrabandistas locais de drogas, de animais selvagens ou de suas peles e de metais preciosos diversos e, de uma forma ou de outra, espectadores, vítimas, combatentes ou aliados de primeira hora da degradação ambiental e, até mesmo, dos agentes piratas das grandes embarcações petroleiras e graneleiras que na foz do Amazonas surrupiam nossa água doce para, após tratamento na Europa, ser vendida no Oriente Médio e Norte da África, a um preço superior a de um barril de petróleo.

Isso tudo faz parte do cenário que vislumbrávamos em "Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 4/6" e nesse capítulo que fala DO ENCONTRO DAS ÁGUAS AMAZÔNICAS COM O MUNDO GLOBALIZADO, já antevíamos que do umbigo do monumental aquífero de Alter-do-Chão, um lugarejo de cinema, 30 km ao sul de Santarém, se projetava um novo ciclo do chamado "progresso", fruto apenas do avanço predatório do capitalismo sobre a região. Aqui voltamos à carga.- (Equipe Educom)]

Muito além da discussão sobre as hidrelétricas, o Tapajós vive problemas relativos ao garimpo – clandestino ou oficial – e a expansão do agronegócio. 

Ivo Lubrinna (foto) não se conforma com o fato de seu candidato à reeleição para a prefeitura de Itaituba – “mesmo com a máquina na mão” – ter perdido o pleito realizado em outubro passado.

Dono de uma voz grave e de uma franqueza espantosa, ele sabe que os próximos anos serão bastante movimentados no município de 100 mil habitantes que cresceu às margens do rio Tapajós, no oeste do Pará.

Enquanto concede a entrevista, Lubrinna é vigiado silenciosamente pelo filho, que acaba de voltar à Amazônia depois de nove anos na capital da Inglaterra, onde comandava uma prestadora de serviços de limpeza. Como a crise europeia não dá sinais de trégua, ele acha que é possível ganhar até três vezes mais investindo em Itaituba.

Até o apagar das luzes de 2012, Lubrinna estará à frente da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Produção. Porém, mesmo antes de integrar a linha de frente do Executivo local, ele já era uma verdadeira lenda, um dos garimpeiros mais conhecidos no Tapajós por conta dos mais de 40 anos de ofício.

Não à toa, Lubrinna (foto) é o presidente – “licenciado”, como ele faz questão de ressalvar – da Associação dos Mineradores de Ouro do Tapajós (AMOT), entidade que representa menos de 10% dos 50 mil garimpeiros da região.

Enquanto se afasta da carreira de homem público, Lubrinna já se prepara para encarar a missão de homem de negócios, agora com a ajuda do filho.

Após concluir recentemente o licenciamento ambiental do único garimpo que afirma possuir, e que segundo ele encontrava-se parado por falta de regularização, vai retomar a procura do ouro.

Eu fui irresponsável até o dia em que assumi o cargo na prefeitura. Era um contrassenso: como é que o secretário de Meio Ambiente, com um garimpo irregular, iria discutir com alguém?”, questiona.

Agora, ele já não corre atrás apenas do valioso metal. Cogita também investir em terrenos para a instalação de empresas de logística e de maquinaria pesada que, num horizonte bastante próximo, devem chegar à região.


Lubrinna encarna de forma pitoresca o nebuloso futuro de Itaituba.
Encravado no coração da Amazônia, o município é o epicentro de uma avalanche de grandes empreendimentos que ameaçam seriamente uma região de altíssima biodiversidade habitada por diversas comunidades tradicionais e comunidades indígenas munduruku.

Quem toma um barco e navega pelos 850 quilômetros de águas esverdeadas do Tapajós, que rasga de cima a baixo o oeste do Pará, não raro se depara com botos e aves mergulhando, além de uma paisagem verde de tirar o fôlego, protegida por um mosaico composto por reservas florestais e terras indígenas.



Entretanto, um amplo leque de obras – que vão desde hidrelétricas, passando por rodovia, hidrovia, portos fluviais, até projetos de mineração – pode redesenhar em um curto espaço de tempo as feições desse que é, reconhecidamente, um dos mais belos rios da Amazônia.

Sem sombra de dúvida, o projeto com potencial de gerar os impactos sociais e ambientais mais preocupantes é o chamado Complexo Hidrelétrico do Tapajós, um conjunto com potencial para até sete usinas que podem gerar até 14 mil Megawatts (MW) – a mesma capacidade da faraônica usina binacional de Itaipu, erguida durante a ditadura militar na fronteira do Brasil com o Paraguai.

Os estudos de viabilidade conduzidos pela estatal Eletrobras para licenciamento de duas delas – Jatobá e São Luiz do Tapajós – já estão em andamento. Por enquanto, o custo para erguer as duas barragens é estimado em R$ 23 bilhões. E o governo federal não esconde a pressa: já no ano que vem espera licitar pelo menos a construção de São Luiz do Tapajós e prevê que as duas entrarão em operação até 2019.

A energia dessas novas hidrelétricas tem pelo menos um endereço certo: grandes projetos de exploração de minérios no Pará, como ouro e bauxita – a matéria-prima do alumínio.

A companhia norte-americana Alcoa, por exemplo, iniciou há apenas três anos a operação da terceira maior jazida de bauxita do mundo no município de Juruti, no extremo oeste do Pará, e já tem planos de construir uma fábrica de beneficiamento – por enquanto, a empresa utiliza energia de origem termelétrica. Já a brasileira Votorantim está levantando uma indústria do mesmo tipo no município de Rondon do Pará. A norueguesa Hydro também tira bauxita no leste do estado.

No caso do ouro, só uma mineradora de médio porte, a canadense Eldorado Gold, tem um projeto concreto de investimento no Tapajós. Mas a própria AngloGold Ashanti, companhia sul-africana considerada uma das maiores empresas de extração de ouro no mundo, também tem requerimentos de pesquisa no oeste do Pará, região hoje tomada pelo garimpo manual – em sua esmagadora maioria, clandestino.

Além de ser considerada a última grande fronteira energética e mineral da Amazônia, a região banhada pelo rio Tapajós tem ainda outro considerável atrativo econômico: é um corredor estratégico para o escoamento da produção de soja colhida no Mato Grosso, o principal produtor de grãos do país.


Até 2014, o governo federal pretende gastar R$ 2,85 bilhões para concluir o asfaltamento dos 1.739 quilômetros da BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém – o maior município do oeste do Pará, localizado na foz do Tapajós.
No rastro das hidrelétricas, também está prevista a construção de eclusas que possibilitarão a integração do rio Teles Pires, no Mato Grosso, com o rio Tapajós, no Pará.

Além dessa hidrovia, o transporte de commodities por via fluvial também será impulsionado pela instalação de ao menos três portos no município de Itaituba, além da expansão das docas de Santarém.

Ambientalistas e ativistas de movimentos sociais preocupam-se com os impactos socioambientais que a explosão do agronegócio pode trazer para o oeste do Pará.

GARIMPOS
Quando a produção do mítico garimpo de Serra Pelada, localizado no sudeste do Pará, entrou em declínio, no início dos anos 1980, os aventureiros dispostos a encarar a lama e a malária apostaram que o novo eldorado encontrava-se no Tapajós. E eles estavam certos.

Passadas três décadas, calcula-se que hoje existam nada menos que 2 mil pontos de garimpo no entorno do rio.

Para chegar até as chamadas "currutelas", povoados que funcionam como uma espécie de QG para os quase 50 mil homens decididos a desafiar a floresta, só fretando um pequeno avião ou encarando dias no lombo de uma lancha, a partir de Itaituba.

Cerca de 98% dos garimpos da região são irregulares”, assegura Oldair Lamarque, engenheiro que chefia o escritório do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em Itaituba.

Não é muito difícil entender por que a esmagadora maioria está na clandestinidade. Para fazer o licenciamento ambiental de uma pequena lavra, do tamanho de até 50 campos de futebol, é preciso viajar até a capital Belém, pagar cerca de R$ 16 mil em taxas e ainda arcar com os custos de transporte dos técnicos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará (Sema).

Sem qualquer tipo de fiscalização, os garimpos são um dos principais vetores de degradação ambiental na bacia do Tapajós.

E os problemas não se resumem à contaminação da água por conta da utilização de substâncias tóxicas para depurar o ouro, como o mercúrio e – mais recentemente – o cianeto. Novas técnicas têm aumentado a produtividade e potencializado os impactos sobre a floresta.

A utilização de retroescavadeiras chamadas de PCs, usadas para revolver o solo à procura do ouro, é uma delas. O serviço que antes demorava quase um mês para ser feito hoje é realizado em apenas dez dias.

Além disso, aumentou significativamente o número de barcaças que garimpam diretamente o leito do rio Tapajós.

Nesse caso, servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) entendem que a decisão do governo de reduzir a área de cinco reservas ambientais para a construção das hidrelétricas de Jatobá e São Luiz do Tapajós, em janeiro deste ano, contribuiu para agravar o problema. Sem essa medida, o licenciamento ambiental das usinas não poderia ser feito.

Como parte das áreas foi desprotegida, o número de barcaças no rio cresceu de forma preocupante: pulou de cinco para 35 no trecho de 400 quilômetros entre os municípios de Itaituba e Jacareacanga. “Para desarticular garimpos grandes, como os que existem em Itaituba, é preciso montar praticamente uma operação de guerra”, afirma Nilton Rascon, analista ambiental do ICMBio.

No começo de novembro, fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), escoltados por duas centenas de agentes da Polícia Federal (PF) e da Força Nacional de Segurança Pública transportados até por helicópteros, resolveram fazer uma batida digna de cinema para desarticular um garimpo que funcionava na Terra Indígena Kayabi, já na divisa entre Pará e Mato Grosso e habitada por indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká.

A operação, no entanto, extrapolou o objetivo inicial de desmantelar a extração de ouro, e seu saldo foi desastroso: casas na aldeia arrombadas, embarcações de pesca afundadas a tiro e, o mais grave, um indígena, Adenilson Kirixi, encontrado morto, boiando no rio.

É fato que o garimpo funcionava com consentimento dos indígenas – que alegam ter protocolado informações a respeito da atividade junto à Funai, afim de formalizar o acordo de parceria que mantinham com os garimpeiros.

Numa região completamente negligenciada pelo poder público, os indígenas afirmam que o pedágio pago pelos mineradores era a única fonte de renda de que dispunham para bancar a eletricidade na aldeia e arcar com os custos das crianças que estudam na sede do município de Jacareacanga. Além disso, vendiam parte de sua produção de alimentos aos garimpeiros.

Segundo lideranças ouvidas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), desde 2005, os indígenas vêm tentando dialogar com representantes do poder público no sentido de criar projetos de piscicultura, produção de mel e artesanato de forma a reduzir a dependência do garimpo. Mas, por enquanto, nada saiu do papel.

Ainda na avaliação das lideranças ouvidas pelo Cimi, a ação da PF foi calculada para intimidar e fragilizar financeiramente os indígenas, de modo a
deixá-los mais “sensíveis” às obras das hidrelétricas na região.

Até o presente momento, a PF não se pronunciou sobre o caso, mas abriu um inquérito para investigar o episódio, o qual também é acompanhado pela Funai, o Ibama e a Secretaria-Geral da Presidência da República. O Ministério Público Federal (MPF) também abriu investigação.

Questionada pela Pública, a assessoria de imprensa da Funai respondeu por meio de nota que o órgão “tinha conhecimento de que existia atividade ilícita (garimpo) na Terra Indígena Kayabi. No entanto, não conhecia os detalhes de sua operacionalização e dimensão”.

A nota acrescenta que “Funai não tem o poder de autorizar, formalizar acordos ou dar anuência a qualquer atividade ilegal realizada em terra indígena. Além disso, o garimpo em terra indígena depende de regulamentação pelo Congresso Nacional”.

MINERADORAS
Se o Tapajós é uma das maiores províncias auríferas do mundo, por que ainda não há mineradoras na região? A resposta se divide, basicamente, em duas explicações.

A primeira é geológica. “Aqui não existem depósitos grandes, como ocorre em Goiás ou em Minas Gerais. Os depósitos são pequenos e espalhados. Isso favorece o garimpo manual, e não as grandes mineradoras”, explica Lamarque, do DNPM. A segunda explicação é de ordem estritamente econômica. “A falta de estradas e de fontes de energia inviabiliza grandes projetos de mineração de ouro”, completa.

A construção das hidrelétricas e o asfaltamento da BR-163 já estão despertando a sanha das mineradoras. Por enquanto, o ouro do Tapajós ainda
não entrou na mira das companhias consideradas majors – as maiores do mundo. Mas pelo menos cinco empresas identificadas como juniorscomo são chamadas as de médio porte, já estão em fase de pesquisa.

O mais adiantado deles é o Projeto Tocantinzinho, no município de Itaituba, que já está em fase de licenciamento ambiental e deve entrar em funcionamento até 2016. O empreendimento é de uma subsidiária da Eldorado Gold, do Canadá, que já opera uma mina no Amapá.

E não é apenas o ouro que chama atenção no Tapajós.


A gigante Anglo American, uma das dez maiores mineradoras do mundo, com lucro líquido da ordem de US$ 6,17 bilhões em 2011, está levantando o potencial de uma jazida de cobre na Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim – a segunda maior do país, com uma área de 1,3 milhão de hectares, quase dez vezes superior à da cidade de São Paulo.

Mas é importante ressalvar que, geologicamente falando, o cobre muitas vezes aparece associado ao ouro. Em outras palavras, a mineradora deve mapear todo o potencial da área.

O perímetro de pesquisa requerida pela companhia inglesa ao DNPM, no segundo semestre de 2011, abrange mais da metade da Flona. Em tese, isso não é ilegal: a legislação ambiental permite a mineração em uma reserva desse tipo – desde que devidamente licenciada e adequada ao plano de manejo.

Porém, sem qualquer tipo de autorização, a Anglo American já vem utilizando máquinas de sondagem na área, desde julho deste ano, pelo menos. A denúncia é feita pelo próprio chefe da Flona do Jamanxim, Haroldo Marques.

Esse pedido para realização de sondagem na área tem que ser formalizado. Eu sou o responsável pelo parecer que autoriza pesquisas e perfurações, mas até agora não chegou nada até mim”, explica o servidor do ICMBio.

Eu vi funcionários em caminhonetes com logotipo da Anglo American, usando uniformes, sem qualquer preocupação em esconder o nome da empresa.”

O chefe da Flona do Jamanxim fica lotado no escritório do ICMBio de Itaituba e precisa de autorização dos superiores de Brasília para ir a campo e fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental. “Eu estava na fiscalização combatendo o desmatamento, pedi a renovação de diárias, mas ela não foi concedida”, explica Marques. “Fui tirado da fiscalização e parei os trabalhos que estava fazendo por lá. Muito esquisito, né?

Questionada pela Pública, a assessoria de imprensa da Anglo American emitiu nota em que “confirma que empresa requereu áreas junto ao DNPM” e diz que “aguarda a publicação dos respectivos alvarás de pesquisa, para, só então, solicitar a autorização do ICMBio, órgão gestor das Unidades de Conservação no país, e seu respectivo enquadramento no Plano de Manejo [da Flona do Jamanxim]”.

A empresa nega, porém, que esteja fazendo trabalhos de sondagem. “A equipe de campo promoveu no período unicamente contatos com superficiários, visando futura celebração de Termos de Acordo, conforme previsto no Código de Mineração”, finaliza a nota.

Os “superficiários” citados na nota da Anglo American são pessoas que reivindicam a propriedade de terras dentro da Flona do Jamanxim. Quando foi criada, em 2006, a unidade de conservação que leva o nome desse afluente do Tapajós já estava ocupada por diversas fazendas.

A pecuária, o garimpo e a extração ilegal de madeira fazem dessa a reserva a que mais perdeu mata nativa em todo país, ao longo de 2012.

Curiosamente, a devastação cresce na mesma velocidade que a intenção do governo de reduzir a área da Flona do Jamanxim.
Atualmente, um grupo de trabalho do ICMBio de Brasília analisa a possibilidade de extirpar, no mínimo, 200 mil hectares da área atualmente protegida.

Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que rastreia o desmatamento por satélite, a floresta perdeu, em 2012, 5.069 hectares até outubro. No mesmo período do ano passado, o número era consideravelmente menor: 972 hectares. “A área onde a Anglo American está fazendo as pesquisas é uma das mais preservadas da Flona”, analisa Marques.

CORREDOR DO AGRONEGÓCIO
Itaguaí Mendes da Silva já não descarta um conflito sangrento na pequena comunidade de Açaizal, localizada a 40 quilômetros do centro de Santarém, o maior município do Tapajós, com 300 mil habitantes.

Até dez anos atrás, além de plantar a própria roça e tirar peixe do igarapé que banha o povoado, as 54 famílias – descendentes de indígenas e nordestinos – também arrumavam trabalho como vaqueiros ou capinadores de pasto nas fazendas de gado que circundavam Açaizal (foto).

Porém, desde a chegada dos “gaúchos”, como são apelidados os produtores de grãos que compraram as terras dos criadores de bois a partir de 2001, a relação com os novos vizinhos nunca foi tão tensa. “Nós estamos cercados pela soja”, desespera-se Itaguaí. “A gente não pode nem mais criar galinha. Antes os animais ficavam livres. Agora, não dá para soltar. Se soltar, e eles forem para a área dos gaúchos, morrem.

Itaguaí também reclama do assoreamento e da contaminação com agrotóxicos dos igarapés onde a comunidade pesca. Por essa razão, os moradores de Açaizal lutam, desde 2004, para que o governo federal reconheça a comunidade como uma terra indígena e retire os "sojeiros" da área.

Esperamos que em 2013 saia pelo menos uma audiência pública”, afirma.

Os “gaúchos” do oeste paraense não vêm apenas do Rio Grande do Sul.

Muitos são ex-funcionários de grandes fazendas do Mato Grosso, atraídos pelas terras baratas da região”, explica Gílson Rego, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os preços baixos se justificam pela completa ausência de títulos de propriedade regularizados.

Dez anos atrás, a terra não valia nada aqui. Eram R$ 250 o hectare [equivalente a um campo de futebol, aproximadamente]. Hoje, já está bem mais valorizado, na casa de R$ 5 mil o hectare”, afirma Toni Silver, coordenador da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa).

Mesmo assim, o preço é ainda muito baixo quando comparado aos locais onde mais se produzem grãos no país: em Sinop (MT), o mesmo pedaço de terra não é vendido a menos de R$ 21 mil, segundo o Instituto Mato-grossense de Economia Agrícola (Imea).

No oeste paraense, as fazendas de soja cresceram em torno do porto da multinacional Cargill instalado na foz do rio Tapajós, em Santarém, e se concentram na zona rural desse município e na do vizinho Belterra.

Como a falta de títulos regularizados inviabiliza a obtenção de crédito em bancos públicos, a trading norte-americana, uma das maiores comerciantes de commodities agrícolas do mundo, é a principal fonte de financiamento dos 
produtores. “Existem 170 produtores cadastrados na Cargill, afirma Silver.

Quem chega pela BR-163 (foto) a Santarém depara-se ao longo da estrada com alguns silos e armazéns para estocagem não só de soja, mas também de milho e arroz. Porém, a realidade é que as lavouras de grãos ocupam uma área ainda pouco expressiva, que não chega a 60 mil hectares.

Esse é o tamanho de uma única propriedade comum no Mato Grosso”, compara o coordenador da Faepa.

Mais do que uma fronteira para produção, o Tapajós é visto principalmente como um corredor para escoar a produção do Mato Grosso. Além da BR-163, que deve ser completamente asfaltada até 2014, o governo também planeja aproveitar as hidrelétricas para construir eclusas que podem viabilizar uma hidrovia ligando o rio Teles Pires, no Mato Grosso, ao Tapajós.

O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) até chegou a promover uma licitação para encomendar o projeto técnico da hidrovia. Porém, nenhuma empresa se interessou pelos R$ 14 milhões oferecidos para o trabalho, o que levou o órgão federal a suspender o edital.

Mas há quem duvide da obra, pelo menos, para o curto prazo. A desconfiança vem da simples observação da história: as eclusas da hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, ficaram prontas 26 anos após a inauguração da usina.

A ideia da hidrovia é ligar o norte do Mato Grosso ao município de Santarém, onde as embarcações saem do Tapajós, adentram o rio Amazonas e da lá ganham o mundo pelo Atlântico.

No porto da Cargill (foto) localizado em Santarém, cerca de 95% da carga movimentada vêm do Mato Grosso. Mas, por enquanto, os grãos são primeiro transportados de caminhão até Rondônia e, de lá, seguem em barcaças pelo rio Madeira até o rio Amazonas, que recebe o seu afluente Tapajós em Santarém.

No terminal da multinacional norte-americana, são carregados os porões de navios capazes de transportar até 60 mil toneladas de grãos.

O porto fluvial da Cargill (foto) foi objeto de intensos questionamentos por parte de ambientalistas e movimentos sociais nos últimos anos.

Com o consentimento do governo do Pará, a empresa iniciou a operação do terminal sem a realização prévia do Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) – requisito básico previsto na legislação para licenciar qualquer grande empreendimento.

O porto foi construído em cima de sítios arqueológicos importantes. Além disso, acabou privatizando a praia de Vera Paz, que era muito utilizada pela população de Santarém”, conta Érina Gomes, advogada da ONG Terra de Direitos.

Segundo o diretor de portos da Cargill, Clythio Buggenhout,(foto) a empresa construiu o seu terminal depois de vencer em 1999 uma licitação aberta pela Companhia de Docas do Pará (CDP), vinculada à Secretaria de Portos da Presidência da República. De acordo com ele, a área gerida pela CDP já era uma zona portuária consolidada e tinha licença operacional para diversas atividades.

Foi feita uma consulta à Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (Sema-PA) e, como o porto já estava licenciado, ela informou que bastaria fazer um Plano de Controle Ambiental (PCA)”, explica Buggenhout, que, antes de assumir o cargo na Cargill, presidiu a CDP entre 2007 e 2009.

De acordo com o executivo, até o começo da década passada, não era comum que se cobrasse a realização de um EIA/Rima para licenciar um terminal portuário. “Hoje a gente entende que todo mundo tem que fazer EIA/Rima para qualquer terminal. Mas, na época, era atípico.

Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Cargill respondeu a questionamentos da Pública. Clique aqui para ler a íntegra das respostas.

As justificativas da Cargill não convenceram o MPF, que se baseou sobretudo na Resolução 237, de 1997, publicada dois anos antes da licitação vencida pela Cargill, para cobrar a realização do EIA/Rima. Depois de um longo questionamento judicial promovido pelo MPF, que até obteve liminares para paralisar temporariamente as atividades do porto, a Cargill foi obrigada a fazer o estudo.

A primeira versão foi concluída em 2008 – cinco anos após a inauguração do terminal fluvial. Porém, a Sema-PA exigiu que o trabalho fosse refeito e que se ampliasse a área de influência do empreendimento, para que fossem analisados os impactos socioambientais trazidos pela inevitável expansão do cultivo da soja no oeste paraense, impulsionada pelo porto. A segunda versão do EIA/Rima ficou pronta em 2010.

Porém, o imbróglio está longe de chegar ao fim: a CPEA (Consultoria, Planejamento e Estudos Ambientais), empresa contratada pela Cargill para fazer o estudo de impacto ambiental, é acusada de fraude pelo MPE-PA.

Na ação movida pelo órgão estadual, a CPEA é acusada de ter inserido informações parcialmente incongruentes, as quais apontam desconformidades entre os textos utilizados como pilares para a construção dos argumentos favoráveis ao Licenciamento Ambiental da empresa Cargill S.A. e os resultados dos próprios autores quanto às suas conclusões”.

Dentre os dados supostamente distorcidos pela CPEA, por exemplo, encontram-se estatísticas sobre o desmatamento na zona rural de Santarém, 
que teriam sido adulteradas de forma a não serem diretamente correlacionadas à instalação do porto da Cargill.

Entidades que trabalham em parceria com movimentos sociais e populações tradicionais também acusam o EIA/Rima de não levar em consideração os problemas sofridos por algumas comunidades do Planalto Santareno descendentes de indígenas e de quilombolas, impactadas diretamente pelo plantio e pelo transporte da soja, como se verifica no povoado de Açaizal.

O representante da Cargill nega que a empresa esteja fomentando a violação de direitos de comunidades tradicionais.

A Funai nunca nos oficiou, dizendo que estamos comprando indevidamente de alguma fazenda em área indígena”, argumenta Buggenhout (foto). Ele também afirma que, para a empresa, a produção de soja no oeste do Pará, “comercialmente, é irrisória”.

Se toda a região de Santarém for plantada com soja, e não é isso que a gente quer, ainda assim não seria significativo no movimento do terminal, que já se movimenta – 95% – com  carga vinda do Mato Grosso.

Em entrevista concedida à Pública por e-mail, o diretor-presidente da CPEA, Sérgio Luis Pompeia, refuta as acusações do MPE-PA e afirma que não houve qualquer dado distorcido sobre o desmatamento nas áreas de influência do empreendimento”.

Além disso, diz ele, “as áreas indígenas e de quilombolas existentes na área de influência indireta do empreendimento foram todas relacionadas e analisadas dentro do diagnóstico do EIA/Rima”.

Pompeia argumenta ainda que a ação movida pelo MPE-PAdecorreu de um equívoco na análise do EIA realizada por seus assistentes técnicos".

O processo judicial ainda está longe de ter um desfecho: a primeira audiência está marcada para agosto de 2013.

Apesar das desconfianças em relação ao EIA/Rima, o fato é que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará concedeu, em agosto deste ano, a licença operacional para funcionamento do terminal e, de quebra, também aprovou a licença de instalação para que a infraestrutura do porto seja expandida. “Muitas empresas do agronegócio estavam esperando resolver esse caso da Cargill. Já temos notícias de que outras querem construir portos no Tapajós”, explica Érina.

A menina dos olhos das grandes empresas do agronegócio – e também do setor de transporte de cargas – é o distrito de Miritituba, localizado na margem direita do rio Tapajós, no município de Itaituba. Trata-se de um ponto logístico estratégico não só pela via fluvial, mas também pelo modal rodoviário.

É precisamente do lado direito do rio, na altura de Miritituba, que se encontram tanto a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém, como as vias de acesso à rodovia Transamazônica, que rasga a Amazônia de leste a oeste.

Em Miritituba, barcaças de pequeno porte serão carregadas sobretudo com grãos e vão seguir viagem pelo Tapajós e pelo rio Amazonas até outros portos fluviais de maior envergadura, como os dos municípios de Santarém, Barcarena (próximo à capital paraense) e Santana, no entorno de Macapá (AP).

Mas não são apenas grãos que vão ser escoados. Produtos da Zona Franca de Manaus (AM) também devem chegar à região Centro-Oeste a partir de Miritituba”, analisa Buggenhout.

Além da própria Cargill, pelo menos três grandes empresas já compraram terrenos em Miritituba, nos últimos dois anos, para a construção de novos terminais.

Uma delas é a também norte-americana Bunge, que figura entre as quatro maiores empresas mundiais do agronegócio e que já está com o processo de licenciamento ambiental do porto em fase avançada.

As outras duas são a Hidrovias do Brasil (HB), pertencente ao fundo de investimento P2 Brasil, e a Cianport – empresa ligada a grandes produtores de grãos do Mato Grosso interessados em fazer a logística da sua produção por conta própria.

Mas há quem diga que o número de novos portos possa ser até duas vezes maior.

Exageros e especulações à parte, não há como negar que o Tapajós é a bola da vez na expansão da fronteira amazônica – processo que, historicamente, deixou feridas não cicatrizadas devido à lógica predatória com que se instalou em outras partes da floresta.

Resta torcer para que a história não se repita no oeste do Pará. Mas, pelo andar da carruagem, a torcida terá de ser grande. Muito grande.

Fonte:
http://apublica.org/2012/12/rio-de-ouro-soja/

Não deixe de ler:
- Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana - Michael Löwy

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana

26/12/2012 - Entrevista de Michael Löwy - Carta Maior

Nesta entrevista à Fundação Oswaldo Cruz, o investigador do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) diz que a dinâmica de movimentos como o dos “Indignados” é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente.

Michael Löwy (foto) esteve no Brasil em dezembro de 2012 para lançar ‘A teoria da revolução no jovem Marx', publicado em 1970 na França e que só agora ganha edição em português. (Fundação Oswaldo Cruz)

Durante a sua estada no país, participou de muitos eventos e falou sobre temas diversos, como literatura e a questão ecológica. Nada que surpreenda no perfil de um pesquisador que circula com desenvoltura entre o estudo dos clássicos e a análise da conjuntura atual, e isso sem abrir mão da militância política de esquerda.


Nesta entrevista, ele lança mão dos conceitos que aprendeu com os clássicos – principalmente Marx e Walter Benjamin – para discutir a crise que o capitalismo atravessa e os movimentos reivindicatórios que têm surgido em diferentes cantos do mundo. Além disso, explica os princípios e limitações da ideia de ‘ecossocialismo', com a propriedade de ter sido um dos autores do Manifesto que defende essa bandeira.

Brasileiro, residente na França desde 1969, Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) e responsável por um seminário na Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales. Só em português, é autor de mais de 20 livros.

Como a teoria da revolução do jovem Marx, de que trata o seu livro, nos ajuda a entender o momento atual, com mobilizações de indignados no Estado espanhol, Grécia e vários outros países da Europa, além de movimentos de ‘ocupação' em vários locais do mundo? Esses são movimentos anticapitalistas?
Os movimentos de ‘Indignados' opõem-se às políticas ditadas pelo capital financeiro, pela oligarquia dos bancos e aplicadas por governos de corte neoliberal, cujo principal objetivo é fazer com que os trabalhadores, os pobres, a juventude, as mulheres, os pensionistas e aposentados – isto é, 99% da população – paguem a conta pela crise do capitalismo.

Esta indignação é fundamental. Sem indignação, nada de grande e de significativo ocorre na história humana.

A dinâmica destes movimentos é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. É no curso de sua ação coletiva, de sua prática subversiva, que estes movimentos poderão tomar um caráter radical e emancipador. É o que explicava Marx na sua teoria da revolução, inspirada pela filosofia da práxis.

Marx escreveu no século XIX. As revoluções socialistas a que assistimos aconteceram no século 20. O que a realidade trouxe de diferente na forma como se concretizaram e na forma como se entende revolução nos séculos 19, 20 e 21?
As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais. Nenhuma se assemelha às anteriores.

A Comuna de Paris (1871) foi um formidável levante da população trabalhadora da grande cidade e a Revolução Russa foi uma convergência explosiva entre proletariado urbano e massas camponesas.


Nas demais revoluções do século 20, desde a Mexicana de 1911 até a Cubana de 1959, ou nas revoluções asiáticas (China, Vietname), foram os camponeses o principal sujeito do processo revolucionário.

Não podemos prever como serão as revoluções do século 21: sem dúvida, não repetirão as experiências do passado.

Por outro lado, existe o que Walter Benjamin (foto) chamava de ‘a tradição dos oprimidos': a experiência da Comuna de Paris inspirou a Revolução Russa e é ainda até hoje um exemplo de autoemancipação revolucionária das classes subalternas.

Com a crise capitalista de 2008 e o movimento de intervenção dos Estados para salvar a economia dos países, acreditou-se que a era neoliberal havia chegado ao fim. No entanto, tem sido intensificada cada vez mais a destruição dos direitos conquistados com o Estado de Bem-Estar Social, como temos visto acontecer na Europa (França, agora Espanha...). O que isso significa?
A intervenção dos Estados não significou de forma alguma o fim do neoliberalismo. O único objetivo desta intervenção era salvar os bancos, resgatar a dívida e assegurar os interesses dos mercados financeiros. Para este objetivo, foram sacrificadas conquistas de dezenas de anos de lutas dos trabalhadores: direitos sociais, serviços públicos, pensões e aposentadorias, etc. Para a lógica de chumbo do capitalismo neoliberal, tudo isto são ‘despesas inúteis'.

Um debate antigo da esquerda é sobre a relação entre revolução e reforma. O contexto do final do século 20 e do início do século 21, com situações como, por exemplo, a vitória eleitoral de partidos de esquerda na América Latina e mesmo em alguns países da Europa recolocam essa questão. Como analisa essa relação hoje?
Rosa Luxemburgo (foto) já havia explicado, em seu belo livro ‘Reforma ou Revolução?' (1899), que os marxistas não são contra as reformas; pelo contrário, apoiam qualquer reforma que seja favorável aos interesses dos trabalhadores: salário mínimo, seguro médico, seguro desemprego, por exemplo.

Simplesmente, lembrava ela, não podemos chegar ao socialismo pela acumulação gradual de reformas; só uma ação revolucionária, que derruba o muro de pedra do poder político da burguesia, pode iniciar uma transição ao socialismo.

O problema da maioria dos governos de centro-esquerda, seja na Europa ou na América Latina, é que as ‘reformas' que aplicam são muitas vezes de corte neoliberal: privatizações, regressões no estatuto dos pensionistas, etc.

Tratam-se de variantes do social-liberalismo, que aceitam o quadro econômico capitalista mas, contrariamente ao neoliberalismo reacionário, têm algumas preocupações sociais. É o caso dos governos Lula-Dilma no Brasil. Temo que no caso da França (François Hollande, recentemente eleito), nem a isto chegue...

Um desafio dessa esquerda que chegou ao poder na América Latina tem sido equacionar a dependência econômica da exploração de recursos naturais (como o petróleo na Venezuela e o gás natural na Bolívia) com a tentativa de superação da lógica capitalista de destruição do meio ambiente. Na sua opinião, essa equação é possível?
Contrariamente aos governos social-liberais, os da Venezuela, Bolívia e Equador têm levado adiante uma verdadeira rutura com o neoliberalismo, enfrentando as oligarquias locais e o imperialismo. Mas dependem, para a sua sobrevivência econômica, e para financiar os seus programas sociais, da exploração de energias fósseis – petróleo, gás –, que são os principais responsáveis pelo desastre ecológico que ameaça o futuro da humanidade.


É difícil exigir destes governos que deixem de explorar estes recursos naturais, mas eles poderiam utilizar uma parte do rendimento do petróleo para desenvolver energias sustentáveis – o que fazem muito pouco.

Uma iniciativa interessante é o projeto ‘Parque Yasuni', do Equador, proposta dos movimentos indígenas e dos ecologistas assumida, após algumas hesitações, pelo governo de Rafael Correa.

Trata-se de preservar uma vasta região de florestas tropicais, deixando o petróleo embaixo da terra, mas exigindo, ao mesmo tempo, que os países ricos paguem metade do valor (9 bilhões de dólares) deste petróleo. Até agora, não houve iniciativas comparáveis na Venezuela ou na Bolívia.

A crítica à destruição do meio ambiente como intrínseca ao capitalismo já estava presente na obra de Marx?
Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica parece-me completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade.

O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar. 

Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspetiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.

O Manifesto Ecossocialista, que o sr. ajudou a escrever em 2001, diz que o capitalismo não é capaz de resolver a crise ecológica que ele produz. Como o sr. analisa as soluções a esse problema que vêm sendo apresentadas pelo capitalismo, como é o caso da economia verde?
A assim chamadaeconomia verde', propagada por governos e instituições internacionais (Banco Mundial, etc), não é outra coisa senão uma economia capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade algumas propostas técnicas ‘verdes' bastante limitadas. 


Claro, tanto melhor se alguma empresa trata de desenvolver a energia eólica ou fotovoltaica, mas isto não trará modificações substanciais se não for acompanhado de drásticas reduções no consumo das energias fósseis. 

Mas nada disto é possível sem romper com a lógica de competição mercantil e rentabilidade do capital.

Outras propostas ‘técnicas' são bem piores: por exemplo, os famigerados ‘biocombustíveis' que, como bem diz Frei Betto, deveriam ser chamados de ‘necrocombustíveis', pois tratam de utilizar os solos férteis para produzir uma pseudogasolina ‘verde', para encher os tanques dos carros – em vez de comida para encher o estômago dos famintos da terra.

É possível implementar uma perspetiva como a do ecossocialismo no capitalismo?
O ecossocialismo é anticapitalista por excelência. Como perspectiva, implica a superação do capitalismo, já que se propõe como uma alternativa radical à civilização capitalista/industrial ocidental moderna. Por outro lado, a luta pelo ecossocialismo começa aqui e agora, na convergência entre lutas sociais e ecológicas, no desenvolvimento de ações coletivas em defesa do meio ambiente e dos bens comuns.

É através destas experiências de luta, de auto-organização, que se desenvolverá a consciência socialista e ecológica.

A perspectiva ecossocialista pressupõe uma crítica à noção de progresso. Em que consiste essa crítica?
Walter Benjamin insistia, com razão, que o marxismo precisa libertar-se da ideologia burguesa do progresso, que contaminou a cultura de amplos setores da esquerda. Trata-se de uma visão da história como processo linear, de avanços, levando, necessariamente, à democracia, ao socialismo. 

Estes avanços teriam sua base material no desenvolvimento das forças produtivas, nas conquistas da ciência e da técnica.

Em rutura com esta visão – pouco compatível com a história do século 20, de guerras imperialistas, fascismo, massacres, bombas atômicas –, precisamos de uma visão radicalmente distinta do progresso humano, que não se mede pelo PIB [Produto Interno Bruto], pela produtividade ou pela quantidade de mercadorias vendidas e compradas, mas sim pela liberdade humana, pela possibilidade, para os indivíduos, de realizarem suas potencialidades; uma visão para a qual o progresso não é a quantidade de bens consumidos, mas a qualidade de vida, o tempo livre - para a cultura, o ócio, o desporto, o amor, a democracia - e uma nova relação com a natureza.

Para o ecossocialismo, a emancipação humana não é uma ‘lei da história', mas uma possibilidade objetiva.


Quais as principais diferenças entre o ecossocialismo e a forma como o socialismo real lidou com os problemas ambientais? E a socialdemocracia, conseguiu construir alternativas a essa lógica destrutiva do capital?

O assim chamadosocialismo real' - muito real, mas pouco socialista - que se instalou na URSS sob a ditadura burocrática de Stalin e seus sucessores tratou de imitar o produtivismo capitalista, com resultados ambientais desastrosos, tão negativos quanto os equivalentes no Ocidente. O mesmo vale para os outros países da Europa Oriental e para a China.

As intuições ecológicas de Marx foram ignoradas e se levou a cabo uma forma de industrialização forçada, copiando os métodos do capitalismo. A social-democracia é um outro exemplo negativo: nem tentou questionar o sistema capitalista, limitando-se a uma gestão mais ‘social' de seu funcionamento. 

Mesmo nos países em que governou em aliança com os partidos verdes, a social-democracia não foi capaz de tomar nenhuma medida ecológica radical.

O ecossocialismo corresponde ao projeto de um socialismo do século 21, que se distingue dos modelos que fracassaram no curso do século 20.

Ele implica uma rutura com o modelo de civilização capitalista e propõe uma visão radicalmente democrática da planificação socialista e ecológica.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21444

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Dilma refém do PMDB

Acabo de chegar de Mato Grosso do Sul. Voltei muito preocupada com a possibilidade de golpes em cascata em toda a América do Sul. A situação ambiental na região Centro-Oeste que conheci há 50 anos, quando meus pais deixaram o Paraná, é desoladora. O agronegócio passa por cima de tudo e de todos como um trator. Para meu desespero, quando voltei ao Rio, onde moro há dezenas de anos, meu colega de blog Rodrigo Brandão alertou-me que o deputado Henrique Alves (PMDB-RN) seria o presidente da Câmara. Não dormi mais. As imagens de Alves afrontando o governo Dilma durante a reforma do Código Florestal não saíam das minhas retinas. Assim, mesmo com problemas domésticos e de saúde, pedi ao Rodrigo que me ajudasse a fazer uma pesquisa e construir um texto para mostrar o perigo que significa Henrique Alves presidente da Câmara e o risco que correríamos se o PT entregasse as duas Casas legislativas ao PMDB.
Zilda Ferreira

Cenário ameaçador se desenha para os próximos dois anos, caso PT abra mão do comando da Câmara e do Senado

Alves: na presidência da Câmara, ele pode desestabilizar governo Dilma

Por Rodrigo Brandão* e Zilda Ferreira**

Em 2010, durante a discussão de alianças para as eleições gerais daquele ano, PT e PMDB fecharam um acordo. Com a perspectiva de elegerem bancadas numericamente muito próximas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, os dois maiores partidos brasileiros e líderes da Frente Brasil Popular combinaram um rodízio de presidentes nas duas Casas para a legislatura 2011-15. Meses atrás o presidente do PT, Rui Falcão, foi aos líderes do PMDB reiterar a vigência do "pacto", o que significa que em fevereiro toda a bancada petista, a maior da Câmara, deve ajudar a eleger o deputado federal Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) presidente para o biênio que encerra a legislatura, a terminar em janeiro de 2015.

Aí entra um problema, apontado por algumas lideranças do PT no Legislativo. Nenhuma menção ao Senado foi feita. E o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) já se lançou candidato à sucessão de José Sarney, para a qual é favorito absoluto. Mesmo porque no Senado, ao contrário da Câmara, o regimento não permite candidaturas avulsas. Ou seja, somente candidaturas indicadas diretamente pelos partidos são aceitas, uma por partido.

Renan Calheiros pode ser um presidente do Senado melhor do que foi José Sarney. Alvo constante de campanhas difamatórias por parte da grande imprensa, Calheiros poderá ser mais permeável aos projetos de lei ligados a esse campo que a esquerda luta para emplacar no Brasil. Como um guarda-chuva a abarcar os pontos principais desta agenda está a reforma do marco regulatório das comunicações, mas podemos aí enumerar a desconcentração da propriedade de mídias e o próprio fim da propriedade cruzada dos meios de comunicação, além da recuperação de aspectos fundamentais da Lei de Imprensa derrubada pelo STF – como o direito de resposta. Em resumo, lutamos por uma “Ley de Medios” aos moldes daquela aprovada na Argentina.

Há também no horizonte a necessidade de aprovação do Marco Civil da Internet, cujo texto (construído por lideranças do Parlamento em conjunto com ativistas pelas mídias livres) tramita por comissões. O Marco Civil é fundamental para garantir neutralidade da rede e que o Brasil se imponha a tentativas monopolistas – e censoras – surgidas na arena internacional, com uma legislação progressista e soberana.

A alternativa Requião
Por outro lado, um senador como Roberto Requião (PMDB-PR), que em seus dois últimos mandatos à frente do governo do Paraná (2003-10) implantou várias políticas para a democratização das comunicações e tem sido leal ao governo democrático-popular, seria certamente um nome ainda mais adequado para liderar a Câmara Alta no biênio que encerra a atual legislatura. Biênio esse que coincide com os dois últimos anos do (esperamos) primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff.

Requião é um nacionalista e um progressista, é o governador que parou o Porto de Paranaguá para impedir embarque e desembarque de soja transgênica. Lideranças como ele, à frente do Legislativo, significam que retrocessos como a derrubada da portaria presidencial que restringe compra de terras por estrangeiros, caso passem na Câmara, dificilmente passem sem resistência pelo Senado.

Tudo isso leva em conta um cenário em que o acordo PT-PMDB de 2010 não é cumprido na sua totalidade, mas apenas em parte. Se realmente "acordo político foi feito para cumprir", como tem repetido Rui Falcão, o PMDB estaria obrigado a incondicionalmente apoiar um nome do PT para a presidência do Senado. Que poderia ser o piauiense Wellington Dias ou o acreano Jorge Vianna. Não vai acontecer, tudo indica.

Voltemos então nossas atenções à Câmara. E aí vem, além do problema com a “palavra dada” pela metade e que pode transformar-se em impasse, um impasse ainda maior e que ameaça a própria continuidade do projeto político que elegeu Lula em 2002 e 2006 e Dilma em 2010. Com o PMDB senhor das duas Casas Legislativas e Michel Temer, outro peemedebista, vice-presidente da República, praticamente toda a linha sucessória da presidenta Dilma Rousseff passa a ser formada por filiados a apenas um dos partidos que compõem a coalizão de governo.Lembremos que esse mesmo partido, hoje base do governo Dilma, participou da coalizão liderada por Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 2002, antes de apoiar a primeira candidatura presidencial de José Serra. Dilma ficaria então refém, na governabilidade e na própria sustentação do projeto político do PT, de um partido que levou alguns anos para desembarcar no governo Lula.

Eleição de Henrique Alves pode afetar governabilidade
O nome apontado até o momento pelo PMDB para presidir a Câmara dos Deputados é motivo de grande inquietação. Henrique Alves é membro da bancada ruralista e foi uma das principais lideranças do Congresso Nacional na articulação para aprovação e na própria defesa da reforma do Código Florestal, um dos piores retrocessos da nossa história republicana e que acabou por constranger a presidenta Dilma às vésperas da Rio+20. Mesmo com a clara orientação do Planalto a sua base para que barrasse os pontos fundamentais do projeto de lei, o líder do PMDB orientou sua bancada no sentido contrário e ainda articulou apoios em outros partidos governistas para atropelar um acordo construído por toda a base aliada no Senado, que atenuava os aspectos mais negativos da reforma. 

Alves contribuiu assim diretamente para abalar a credibilidade do Brasil diante do mundo inteiro num momento dos mais delicados, talvez o maior desafio do governo Dilma no campo geopolítico. Depois de afrontar o governo, está prestes a ganhar de presente a direção da Câmara Baixa e com o apoio do PT. 

Com os ruralistas chegando de corpo e alma ao comando da nave-mãe do Poder Legislativo, é de se esperar que todos ou pelo menos a maioria dos pontos constantes em sua agenda ganhem selo de urgência ou urgência urgentíssima, garantias de que determinado projeto de lei terá celeridade e prevalência diante de outros. Entre as prioridades ruralistas está, para substituir a portaria do Poder Executivo – baseada em um parecer da Advocacia Geral da União – que restringe compra de terras por estrangeiros, a aprovação de uma lei escancarando o mercado de imóveis rurais ao capital externo.

Em toda a região Centro-Oeste é grande a campanha para derrubar essa restrição imposta pelo governo Dilma. O agroimperialismo ganha cada vez mais terreno e assim pode acelerar a ocupação dos cerrados com as culturas intensivas da soja e da cana-de-açúcar (biocombustível), além da pecuária intensiva. É um processo que desrespeita as peculiaridades do bioma e massacra as populações indígenas, com o objetivo de produzir commodities para exportação. Completando o cenário de horrores no Centro-Oeste, crescem as pressões para que o governo libere a instalação de dezenas de pequenas hidrelétricas no Pantanal, além de usinas de álcool. 

A respeito da questão indígena, há mais uma ameaça no horizonte e que pode transformar-se em pesadelo ao termos uma liderança negativa como Henrique Alves à frente da Câmara. É que outra prioridade da bancada ruralista para os próximos anos legislativos é a reforma do Código Mineral, defendida de peito aberto inclusive por latifundiários que sonham ocupar o Ministério da Agricultura. Com a reforma, os ruralistas pretendem abrir caminho à concessão de licenças para mineração dentro de reservas indígenas.

Tanto a liberação da compra de terras por estrangeiros como a reforma do Código Mineral são projetos de lei que já passaram em comissões justamente na Câmara dos Deputados, obviamente dominadas por ruralistas e seus representantes. Por sinal, o nó político-parlamentar que vivemos hoje, com o setor agropecuário superrepresentado (para dizer o mínimo) no Congresso Nacional, em grande parte se deve às falhas do sistema político e eleitoral brasileiro. Uma reforma política, implantando o financiamento público de campanhas, é urgente. Com o PMDB aliado ao latifúndio concentrando tanto poder, trata-se apenas de um sonho distante. 

Câmara dos Deputados sob liderança de forças progressistas
Já que o PMDB se dispõe a cumprir apenas parte do acordo de rodízio, infelizmente sem ao que parece grande resistência do PT, que seja esse “pacto” adiado para outro momento ou congelado ad eternum. Em lugar de entregar as duas Casas Legislativas e deixar Dilma Rousseff “nas mãos” de um dos dois grandes partidos da base, seria melhor então que o PT mantivesse o comando da Câmara. Nomes não faltam. O pernambucano Fernando Ferro, o baiano Emiliano José e o paulista Paulo Teixeira são lideranças comprometidas com a necessária (e urgente) regulação da mídia e, no caso de Ferro, trata-se de um deputado com histórico marcado pelo respeito ao meio ambiente.

A particularidade na Câmara é que ali, onde o regimento permite candidaturas avulsas, começam a surgir sinais de que haverá dissidência. O deputado Júlio Delgado (PSB-MG) já manteve conversas com lideranças de pelo menos quatro partidos e o PDT, outro integrante da base de governo, já sinalizou que pode apoiá-lo. O PSB nos abre pelo menos duas alternativas que trariam ao menos mais pluralismo à cúpula do Legislativo, além disso melhorando a interlocução com a agenda dos movimentos sociais: Beto Albuquerque (PSB-RS) mas, principalmente e enfaticamente, Luiza Erundina (PSB-SP; foto).


Albuquerque é um apoiador de primeira hora dos governos Lula e Dilma, mas Erundina é uma líder política nascida na Paraíba e eleita em 1988 a primeira mulher prefeita de São Paulo, responsável pela até hoje considerada melhor gestão que a “mais brasileira das cidades brasileiras” – por reunir em profusão gente de todas as partes do país – viu. Erundina tem sido uma líder incansável na defesa de pautas como a Comissão da Verdade e a Lei de Transparência Pública, ambas saídas do papel em grande parte graças ao esforço da deputada, a revogação da Lei de Anistia e a regulação da mídia. Com Erundina à frente da Câmara, os movimentos pelos direitos humanos ganhariam uma importante interlocutora. Erundina é também uma liderança que agrega, que colocaria o PSB pela primeira vez no comando do Poder Legislativo Federal e poderia ajudar a aparar certas arestas entre os governistas.

As cartas estão na mesa. Num ano que promete ser dos mais difíceis, quando embates duros deverão ser travados tanto na arena doméstica quanto fora de nossas fronteiras – mas nos interessando diretamente, sobretudo os próximos às fronteiras –, podemos o PT e a esquerda aproveitar a eleição das Mesas Diretoras do Legislativo para dar uma nova cara ao Congresso Nacional. É fundamental neste momento oxigenar a própria base de apoio ao governo, agregando seus membros e mobilizando-os em torno de projetos que motivaram a própria candidatura Dilma Rousseff em 2010.
*
** da Equipe do Blog EDUCOM

No mundo de Murdoch

12.12.2012 - Luiz Gonzaga Belluzzo - Carta Maior


Arrisco a dizer: o relatório Levenson é a mais corajosa e serena crítica aos abusos e malfeitos da mídia contemporânea.

O relatório é tão destemido em sua ousadia como a Areopagítica de John Milton ao pregar a liberdade de impressão em 1644, no auge da Revolução Inglesa.

Milton resistia a Cromwell e à reintrodução da “licença de ­publicação”, hoje conhecida como censura prévia.



Esta edição [727 de 07/12/2012] de CartaCapital também corajosamente disseca os pontos mais importantes do relatório. Não vou repetir a narração dos fatos, exaustivamente tratados nas cinco páginas anteriores. Peço, no entanto, licença ao leitor para reproduzir argumentos que já esgrimi nos anos 1990 a respeito das diferenças entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

Vou começar com Paul Virilio (foto), importante pensador francês da atualidade.

Ao analisar as transformações do papel dos meios de comunicação na moderna sociedade capitalista de massa, Virilio chegou a uma conclusão tão óbvia para os cidadãos de boa-fé quanto negada pelos senhores do aparato midiático.

A mídia, diz ele, é o único poder que tem a prerrogativa de editar as próprias leis, ao mesmo tempo que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra. Mas a liberdade de expressão não se esgota na liberdade de imprensa.
A liberdade de imprensa só se justifica enquanto realização da liberdade de expressão dos cidadãos livres e iguais, os legítimos titulares do sagrado e inviolável direito à opinião livre e desimpedida.



Essa reivindicação da cidadania torna-se mais importante na medida em que os meios de divulgação e de formação de opinião têm se concentrado, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos de grandes impérios capitalistas, como os construídos pelo australiano Rupert Murdoch (foto).

Esse imperador midiático não trepidou em utilizar a chantagem contra políticos pusilânimes, como o “novo” trabalhista Tony Blair e o janota conservador David Cameron.

Metido até o pescoço em negócios que envolvem o Estado e seus funcionários, Murdoch mobilizou suas forças para conseguir o controle da emissora de televisão BSkyB (foto abaixo) valendo-se dos serviços e pareceres de certo Adam Smith, conselheiro do então ministro da Cultura Jeremy Hunt. Os Smith de nome Adam já foram melhores.



A peculiaridade da mercadoria colocada à venda juntou o objetivo natural e legítimo de ganhar dinheiro ao desejo de ampliar a influência e o poder sobre a sociedade e sobre a política.

A acumulação monetária já implica necessariamente a acumulação de poder e de influência.

Ao brandir a superioridade da liberdade de opinião e de informação pro domo sua, os senhores da mídia se recusam a submeter ao livre debate as transformações ocorridas ao longo dos séculos XIX e XX na chamada esfera pública.

Quando sua legitimidade é questionada, imediatamente gritam:

Censura!
E assim sufocam qualquer crítica a seu desempenho como provedores de informação e amordaçam os reclamos de maior diversidade.

Murdoch e seus competidores abusaram da manipulação, da construção da notícia, da censura da opinião alheia e da intimidação sistemática das vítimas dos assassinatos morais.

Mas o tycoon [magnata] australiano não estava, nem está só.

Na Inglaterra e em outras partes do planeta, o poder que esconde seu nome não descansa em sua faina de produzir cadáveres.

Por essas e outras, foi dura a reação das famílias e dos indivíduos torturados no pau de arara dos grampos ilegais e dos homicídios morais.

Reagiram com indignação aos comentários apaziguadores do peralvilho Cameron, mais uma vez imponente no papel de Cameron defensor dos patrões de Fleet Street.

O Parlamento inglês mobiliza-se para atenuar os estragos e responder às exigências de 80% da população que concorda com os ofendidos.


Acossada pela opinião pública, a secretária de Cultura, Maria Miller, tratou de convocar os editores dos principais jornais para reconstruir o ambiente regulatório da imprensa.

Esse espaço é ocupado desde 1991 pela Press Complaints Comission [Comissão de Queixas contra a Imprensa - tradução livre], formada por representantes das empresas de comunicação.

Um jornalista do Guardian sugeriu que essa forma de regulação poderia ser equiparada a um julgamento de crimes de estupro por um corpo de jurados composto por violadores contumazes.

É tragicamente curioso que os valores mais caros ao projeto da Ilustração, as liberdades de expressão e de opinião, tenham se transformado em instrumentos destinados a conter e cercear o objetivo maior da revolução das luzes: o avanço da autonomia do indivíduo.

Não bastasse, os ímpetos plebiscitários colocam em risco o sistema de garantias destinado a proteger o cidadão das arbitrariedades do poder, público ou privado.

Sob a aparência da democracia ­plebiscitária e da justiça popular, perecem os direitos individuais, fundamentos da cidadania moderna, tais como construídos ao longo da ascensão liberal-burguesa e consolidados pelas duas revoluções dos séculos XVII e XVIII.

Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-mundo-de-murdoch/

Não deixe de ler:
Compare: o juiz inglês e os nossos juízes - Paulo Nogueira

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Compare: o juiz inglês e os nossos juízes

11/11/2012 - por Paulo Nogueira (*)
- Diário do Centro do Mundo

Depois de ver Brian Leveson comandar as discussões sobre a mídia inglesa, dói ver nosso STF.

Acompanho, em Londres, o trabalho sereno, lúcido, inteligente do juiz Brian Leveson, incumbido de comandar as discussões sobre a mídia britânica. 

Leveson, para lembrar, é chefe de um comitê independente montado a pedido do premiê David Cameron depois que a opinião pública disse bastaexclamação, às práticas da mídia.

Já havia um mal estar, parecido aliás com o que existe no Brasil, mas a situação ficou insustentável depois que se soube que um jornal de Murdoch invadira criminosamente a caixa postal do celular de uma garota de 12 anos sequestrada e morta. O objetivo era conseguir furos.



Leveson (foto) e um auxiliar interrogaram, sempre sob as câmaras de televisão, personagens como o próprio Cameron, Murdoch (duas vezes), editores de grande destaque, políticos e pessoas vítimas de invasão telefônica, entre as quais um número expressivo de celebridades.

Em breve, espera-se um relatório de Leveson com suas recomendações. A maior expectativa gira em torno da fiscalização à mídia. A opinião pública espera que algo de efetivo seja feito aí. Mais especificamente, a criação de um órgão independente que fiscalize as atividades jornalísticas.

Os britânicos, em sua maioria, entendem que a auto-regulação fracassou. O “interesse público” tem sido usado para encobrir interesses privados, e a “liberdade de expressão” invocada para a prática de barbaridades editoriais.

Um grupo de políticos conservadores publicou uma carta aberta que reflete o sentimento geral.


Ninguém deseja que nossa mídia seja controlada pelo governo, mas, para que ela tenha credibilidade, qualquer órgão regulador tem que ser independente da imprensa, tanto quanto dos políticos”, diz a carta.

"Achamos que a proposta da indústria jornalística (auto-regulação, em essência) é falha na questão da independência do órgão regulador e corre o risco de ser um modelo instável destinado a fracassar, como outras iniciativas nos últimos sessenta anos.”

Você vê Leveson e depois vê nossos juízes do STF e o sentimento que resulta disso é alguma coisa entre a desolação e a indignação.


Por que os nossos são tão piores?

Leveson, para começo de conversa, fala um inglês simples, claro, sem afetação e sem pompa. Não se paramenta ridiculamente para entrevistar sequer o premiê: paletó e gravata bastam.

Ninguém merece a visão das capas que fizeram Joaquim Barbosa ser chamado, risos, de Batman.

Leveson guarda compostura, também.
Se ele fosse a uma festa de um jornalista com um interesse tão claro nos debates que ele comanda, seria fatalmente substituído antes que a bagunça fosse removida pelas faxineiras.

Nosso ministro Gilmar Mendes foi, alegremente, ao lançamento do livro do colunista Reinaldo Azevedo, em aberta campanha para crucificar os réus julgados por Gilmar, e de lá saiu com um livro autografado que provavelmente jamais abrirá e com a sensação de que nada fez de errado.

Leveson também mede palavras.
Há pouco tempo, nosso Marco Aurélio Mello disse que a ditadura militar foi um “mal necessário”. Mello defendeu uma ditadura, simplesmente – e ei-lo borboleteando no STF sem ser cobrado para explicar direito isso.

Necessário para quem?
O Brasil tinha, em 1964, um presidente eleito democraticamente, João Goulart. Os americanos entendiam, então, que para cuidar melhor de seus interesses em várias partes convinha patrocinar golpes militares e apoiar ditadores que seriam fantoches de Washington.

Foi assim no Irã e na Guatemala, na década de 1950, e em países como o Brasil e o Chile, poucos anos depois. O pretexto era o “risco da bolchevização”.

Recapitulemos o legado do golpe:
- a destruição do ensino público, a mais eficiente escada para a mobilidade social.

- A pilhagem dos trabalhadores: foram proibidas greves, uma arma sagrada dos empregados em qualquer democracia. Direitos trabalhistas foram surrupiados, como a estabilidade.

De tudo isso nasceu uma sociedade monstruosamente injusta e desigual, com milhões de brasileiros condenados a uma miséria sem limites. Quem dava sustentação ideológica ao horror que se criava era o poderoso ministro da economia Delfim Netto. Ele dizia que era preciso primeiro deixar crescer o bolo para depois distribuir.

São Paulo, a minha São Paulo onde nasci e onde pretendo morrer, era antes da ditadura uma cidade dinâmica, empreendedora, rica – e bonita.

Menos de 1% de sua população vivia em favelas. Com vinte anos de ditadura, já havia um enxame de favelas na cidade, ocupadas por quase 20% dos residentes.

Este o mundo que adveio do “mal necessário” defendido por Marco Aurélio Mello (foto abaixo).

Não tenho condições de avaliar se ele entende de justiça. Mas de justiça social ele, evidentemente, não sabe nada.

(*) Paulo Nogueira é jornalista e está vivendo em Londres. Foi editor assistente da Veja, editor da Veja São Paulo, diretor de redação da Exame, diretor superintendente de uma unidade de negócios da Editora Abril e diretor editorial da Editora Globo.

Fonte:
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/?p=15688

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Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.