quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Lei da Mídia: nada além da Constituição

04/01/2014 - Por Franklin Martins, na revista CartaCapital
- extraído do blog do Miro

No fim de outubro, a rainha Elizabeth II [foto], com respaldo dos principais partidos do governo e da oposição, assinou Carta Régia estabelecendo novos mecanismos de regulação para a imprensa na Grã-Bretanha.

Foram fixadas penalidades duríssimas para os órgãos que invadirem a privacidade dos cidadãos, atropelarem as leis e usarem de má-fé no tratamento das notícias.

O texto foi uma resposta à indignação da sociedade britânica diante dos desmandos de alguns jornais e revistas.

O Grupo Murdoch [Rupert Murdoch, foto] chegou a grampear ilegalmente telefones de súditos de Sua Majestade.

Também em outubro, a Suprema Corte da Argentina considerou constitucionais quatro artigos da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada em 2009.

A decisão julgou improcedente recurso do poderoso grupo midiático El Clarín, que se recusava a abrir mão de parte das mais de 240 licenças de tevê aberta e por cabo em seu poder, como manda a nova lei.

Os artigos em questão, segundo os juízes, longe de ferir a liberdade de imprensa, ajudarão a promover a desconcentração da mídia.

Cristina Kirchner, presidente da Argentina
No início de 2013, a União Europeia (UE) divulgou o relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia”, elaborado por um Grupo de Alto Nível da instituição, em que alertava:

“Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo que eles formem opiniões sem a influência indevida de um poder dominante”.

Rafael Correa, presidente do Equador
Em meados do ano, o Congresso do Equador aprovou por longa maioria a Lei Orgânica de Comunicação, que, entre outras coisas, determinou que o espectro eletromagnético usado pela radiodifusão seja dividido de forma equilibrada, abrindo espaço para a expressão de organizações da sociedade civil.

Pela nova lei, 34% das concessões de rádio e tevê devem ir para as comunidades, 33% para os meios privados e 33% para o setor público.

No momento, o debate ganha corpo no Uruguai, depois de o presidente Pepe Mujica [foto] enviar ao Parlamento projeto de lei que visa estimular a democratização dos meios.

Tudo indica que será aprovado.

O fato é que praticamente todas as sociedades democráticas do mundo contam com mecanismos de regulação dos meios de comunicação, especialmente daqueles que, como o rádio e a televisão, são objeto de concessões do Estado.

Em alguns países – é o caso dos Estados Unidos-, a regulação se dá principalmente pela via econômica, através da proibição da chamada propriedade cruzada.

Ou seja, nenhum grupo empresarial pode ser dono de televisão, rádio e jornal na mesma cidade ou estado.

Em outros países, como Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, a regulação também estabelece princípios a ser observados nas programações de rádios e tevês, como equilíbrio, imparcialidade, respeito à privacidade e à honra dos cidadãos e garantia de espaço para a cultura nacional e as produções locais.

O Brasil, infelizmente, está na contramão dessa tendência mundial.

Tem uma das mídias mais concentradas do planeta – e uma das legislações mais atrasadas também.

O Código Brasileiro das Telecomunicações, que finge reger a radiodifusão, é de 1962.

Ou seja, tem 51 anos de idade.

É de uma época em que não havia tevê em cores, transmissões por satélite e redes nacionais de televisão.

Não responde, é claro, às espetaculares transformações tecnológicas, econômicas, culturais e mercadológicas das últimas décadas.

Salta aos olhos a necessidade de avançar nessa área.

No entanto, todas as tentativas de abertura de um debate público, aberto e transparente sobre o tema têm sido sistematicamente interditadas pelos oligopólios que dominam a comunicação social no Brasil, sob o argumento falacioso de que regulação é sinônimo de atentado à liberdade de imprensa.

Dizem que regular é o mesmo que censurar.

Trata-se de uma afirmação sem qualquer base na realidade.

Por acaso existe censura nos EUA, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha, na Itália, em Portugal, na Espanha, na Argentina ou no Equador? Claro que não.

Mas todos esses países possuem leis reguladoras, ambientes regulatórios e agências reguladoras na área da comunicação social.

Sabem disso perfeitamente os oligopólios da comunicação social, a começar por aqueles que construíram gigantescos impérios midiáticos à sombra da ditadura.

Mesmo assim, satanizam o debate sobre o marco regulatório das comunicações eletrônicas. Têm suas razões.

Mas o que lhes tira o sono no caso não são as fictícias ameaças à liberdade de imprensa, e sim a perspectiva real de conviver com a pluralidade, a competição e a multiplicação dos meios.

Não querem perder privilégios e poder.

Felizmente, vivemos novos tempos, graças ao alargamento da democracia no País e ao surgimento de novas tecnologias, como a digitalização e a internet.

Essas mudanças têm colocado em xeque o próprio modelo tradicional de jornalismo.

Foi-se o tempo em que havia, de um lado, um pequeno núcleo ativo de produtores de informação e, de outro, uma massa passiva de consumidores de informação.

Hoje, mal uma notícia chega à internet, ela é avaliada.

Em três tempos, pode ser qualificada ou desqualificada, confirmada ou negada, aprofundada ou rejeitada por redes que reúnem centenas de milhares ou milhões de indivíduos.

A Era do Aquário, em que os comandos das redações, julgando-se no Olimpo, tudo podiam, tem sido gradativamente minada e substituída pela Era da Rede, que diluiu as fronteiras entre produtores e consumidores de informação.

Por isso mesmo, a cada dia que passa é mais difícil bloquear o debate sobre a necessidade da democratização dos meios de comunicação.

Se antes o tema estava restrito a especialistas, acadêmicos e organizações não governamentais, atualmente ela faz parte da agenda de boa parte da sociedade.

Nos últimos anos, multiplicaram-se as vozes que defendem a elaboração de um novo marco regulatório das comunicações eletrônicas.

Cresceu também o sentimento de que a existência de oligopólios tende a asfixiar a pluralidade e a qualidade da informação.

Sintoma disso foram as palavras de ordem que, espontaneamente, tomaram conta das manifestações de junho, sinalizando forte mal-estar com a atuação dos principais meios de comunicação no Brasil.

Espera-se que o governo tome a iniciativa de propor um novo marco regulatório, a ser debatido pela sociedade – e aperfeiçoado e aprovado pelo Congresso.

Lucraria o País se esse desafio fosse enfrentado num ambiente isento de manipulações e preconceitos.

Quanto menos retórica e mais espírito público, melhor.

O ideal é que o debate se dê em cima de um terreno comum, aceito, acatado e respeitado por todos os brasileiros: a Constituição da República Federativa do Brasil.

Ela define os princípios democráticos que devem reger a comunicação social.

O problema é que, 25 anos depois de sua promulgação, esses princípios ainda não foram transformados em lei.

Não saíram do papel. Não foram e não são cumpridos. Continuam engavetados.

Para afastar os fantasmas e desanuviar o ambiente, talvez valha a pena fechar um acordo preliminar na sociedade: o marco regulatório não conterá nenhum dispositivo que fira a Constituição, mas contemplará todos os dispositivos sobre comunicação social inscritos na Carta Magna, sem relegar ao abandono nenhum deles.

Ou seja, a Constituição não pode ser arranhada, tampouco pode ser desfigurada. Trata-se de cumpri-la. Na íntegra.

Os princípios que, segundo a Constituição, devem reger a comunicação social no Brasil são:

- liberdade de imprensa (art.220 da Constituição, parágrafos 1˚ e 2˚);

- respeito ao sigilo da fonte (artigo 5˚, inciso XIV);

- os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio (art.220, parágrafo 5˚);

- complementaridade nas concessões na radiodifusão entre o sistema público, estatal e privado (art.223, caput);

- respeito à intimidade, à privacidade, à imagem, à honra dos cidadãos (art.5˚, inciso X);

- direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material e moral à imagem (art.5˚, inciso V);

- preferência na radiodifusão às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (art.221, inciso I);

- promoção e defesa da cultura nacional e das culturas regionais (art.221, incisos II e III);

- estímulo à produção independente (art.221, inciso II);

- defesa da família, da criança. Defesa da sociedade contra produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (art.220, inciso I e II, e art.221, inciso IV);

- não ao racismo e à discriminação de um modo geral (art.5˚, inciso XLII e art. 3˚, inciso IV);

- proibição de concessões de TV a pessoas que gozem de imunidade parlamentar e foro especial, como parlamentares e juízes (art.54, inciso I).

O Brasil só terá a ganhar com a aplicação dos princípios constitucionais que preveem a ampliação da liberdade de expressão e a democratização dos meios de comunicação.

Eles tendem a estimular o florescimento de um ambiente livre, fecundo e plural, no qual a sociedade tenha acesso a mais vozes, a mais opiniões, a mais informação, a mais debate qualificado, a mais entretenimento, a mais produções culturais – a mais democracia, enfim.

Fonte:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2014/01/lei-da-midia-nada-alem-da-constituicao.html#more

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

Leia também:
- As derrotas da mídia na América Latina - Altamiro Borges
- Derrotas dos barões da mídia em 2013 - Altamiro Borges
- China vs. Brasil: alguma diferença? - Venício Lima

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

As derrotas da mídia na América Latina

01/01/2014 - Por Altamiro Borges em seu blog do Miro

Em 2013, a América Latina se manteve na vanguarda da luta pela regulação da mídia.

A região conhece bem os estragos causados por uma mídia concentrada e manipuladora.

Os golpes e ditaduras que infelicitaram o continente foram bancados pelos veículos da imprensa.

O neoliberalismo que dizimou a região também foi apoiado por este setor.

Já os governos progressistas nascidos da luta contra as chagas neoliberais tiveram como principal opositor o “Partido da Imprensa Golpista (PIG)”.

Nada mais natural, portanto, que a regulação se tornasse uma exigência democrática.

Ley de Medios da Argentina
A derrota mais sentida pelos barões da mídia no ano passado se deu na Argentina.

Em outubro, finalmente a Suprema Corte do país declarou a constitucionalidade de quatro artigos da “Ley de Medios” que eram contestados pelo Grupo Clarín, principal império midiático da nação vizinha.

Esta decisão histórica permitiu que o governo de Cristina Kirchner [foto] prosseguisse com a aplicação integral da nova legislação, considerada uma das mais avançadas do mundo no processo de desconcentração e democratização dos meios de comunicação.

Pelas regras agora em vigor, os grupos monopolistas tem um prazo definido para vender parte de seus ativos com o objetivo expresso de “evitar a concentração da mídia”.

O Grupo Clarín, maior holding multimídia do país, terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200 outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde estão as suas emissoras.

A batalha pela constitucionalidade dos quatro artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina.

O Clarín – que fez fortuna durante a ditadura militar – agora não tem mais como apelar.

Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e sancionada por Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei substitui o decreto-lei da ditadura militar. Seu processo de elaboração envolveu vários setores da sociedade – academia, sindicatos, movimentos sociais e empresários.

Após a primeira versão, ela recebeu mais de duzentas emendas parlamentares.

No processo de debate que agitou a Argentina, milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a sua aprovação.

A passeata final em Buenos Aires contou com mais de 50 mil participantes.

Mesmo assim, os barões da mídia tentaram sabotá-la, apostando suas fichas na Suprema Corte da Argentina.

Isto explica porque a sentença de outubro abalou tanto os impérios midiáticos da região, reunidos na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).

Num discurso terrorista, eles afirmaram que a nova lei é autoritária.

Mas até o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), Frank La Rue [foto], reconheceu que a Ley de Medios da Argentina – com seus 166 artigos – é uma das mais avançadas do planeta e visa garantir exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não se confunde com a liberdade dos monopólios midiáticos.

Equador e Uruguai dão exemplo
A Argentina não foi a única a avançar neste debate estratégico na região. Outros dois países deram passos significativos neste sentido em 2013.

Em junho, o parlamento do Equador aprovou o projeto do governo de Rafael Correa [foto] que cria um órgão de regulação da mídia com poderes para sancionar econômica e administrativamente os veículos da imprensa e que definirá os critérios para as futuras concessões de rádio e televisão no país.

O projeto tramitou por quatro anos na Assembleia Nacional e foi aprovado por folgada maioria – 108 a favor e 26 contra.

Além de criar a Superintendência de Informação e Comunicação, que terá o papel de “vigilância, auditoria, intervenção e controle”, a lei reserva 33% das futuras frequências de rádio e TV para a mídia estatal, 33% para emissoras privadas e 34% para os grupos indígenas e comunitários.

Ela também garante amplo direito de resposta, contrapondo-se ao chamado “linchamento midiático”.

Caso julgue que pessoa física ou jurídica foi “caluniada e desacreditada” pela mídia, a Superintendência pode obrigar o veículo responsável a divulgar um ou mais pedidos de desculpas.

Para o deputado Mauro Andino, relator do projeto, a nova lei com seus 119 artigos representa significativo avanço na democracia no Equador e na garantia da verdadeira liberdade de expressão.

Como cidadãos, queremos a liberdade de expressão com os limites dados pela Constituição e pelos instrumentos internacionais, além de uma liberdade de informação com responsabilidade...

Propusemos uma lei que se constrói a partir de um enfoque de direitos para todos, não para um grupo de privilegiados”.

Vale lembrar que a mídia equatoriana é controlada por banqueiros!

Para irritar ainda mais os barões da mídia do continente, em dezembro último a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual, proposta pelo governo de José Pepe Mujica [foto].

Com 183 artigos, a nova “Ley de Meios” encara os meios de comunicação como um direito humano e define que “é dever do Estado assegurar o acesso universal aos mesmos, contribuindo desta forma com liberdade de informação, inclusão social, não-discriminação, promoção da diversidade cultural, educação e entretenimento”.

Em seu enunciado, a nova lei enfatiza que os monopólios dos meios de comunicação “conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação”.

Visando corrigir esta distorção, o texto propõe “plena transparência no processo de concessão de autorizações e licenças para exercer a titularidade” nas emissoras de rádio e televisão.

Ela também prevê a criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, com o intento de “implementar, monitorar e fiscalizar o cumprimento das políticas”.

A nova lei uruguaia ainda estabelece cotas mínimas de produção audiovisual nacional, institui o horário eleitoral gratuito nos canais e determina que as empresas telefônicas não poderão explorar concessões de rádio ou tevê.

Ela também contempla a proteção à criança e ao adolescente, já que regula a veiculação de imagens com “violência excessiva”.

Das 6h às 22h, esse tipo de conteúdo é proibido, com a exceção para “programas informativos, quando se tratar de situação de notório interesse público” e somente com aviso prévio explícito sobre a exposição dos menores.

A reação da máfia midiática da SIP
As recentes mudanças legais na Argentina, Equador e Uruguai se somam as que já estavam em vigor na Venezuela – o primeiro país da região a encarar este tema estratégico –, Bolívia e Nicarágua.

Não é para menos que o rebelde continente latino-americano é hoje o maior entrave ao poder dos monopólios da mídia.

Em outubro passado, durante a 69ª Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), os poderosos empresários do setor confessaram que estão perdendo a batalha de ideias na América Latina e decidiram reforçar sua postura oposicionista.

Na maior caradura, o [ex] presidente da SIP, Jaime Mantilla [foto], disse que "os governos latino-americanos têm se dedicado a semear o ódio e o medo" contra os meios de comunicação.

O objetivo da entidade, sediada em Miami, com famosos vínculos com a CIA e que sempre apoiou os golpes e as ditaduras, é evitar que as novas legislações sejam aplicadas em sua plenitude e que contagiem outros países da região.

O Brasil inclusive foi citado como preocupação maior dos mafiosos da mídia do continente.

Se depender da presidente Dilma Rousseff, porém, eles podem dormir tranquilamente.

(*) No próximo e último artigo da série, uma análise sobre o debate acerca da mídia no Brasil.

Leia também:
- Derrota dos barões da mídia em 2013 - Altamiro Borges
- China vs. Brasil: alguma diferença? - Venício Lima

Fonte:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2014/01/as-derrotas-da-midia-na-america-latina.html#more

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Derrotas dos barões da mídia em 2013

01/01/2014 - Por Altamiro Borges em seu blog do Miro (*) 

"O ano em que a rainha Elizabeth II [foto] aderiu ao chavismo" (Viomundo)

Em 2013, o debate sobre o poder ditatorial dos meios de comunicação e sobre a urgência da regulação democrática da mídia ganhou impulso no mundo inteiro.

Até o Reino Unido, chocado com os escândalos de corrupção e invasão de privacidade do império de Rupert Murdoch [foto], aprovou uma dura legislação.

A Rainha Elizabeth II se tornou, na visão dos barões da mídia, a nova “chavista” do planeta.

Os avanços mais sensíveis se deram na América Latina.

Infelizmente, o Brasil se manteve na posição da “vanguarda do atraso” no enfrentamento desta questão estratégica.

O “Royal Charter” britânico
A nova legislação britânica, assinada em outubro, cria um órgão regulador para a mídia imprensa, estabelece um código de ética para os veículos e fixa multas de até R$ 3,7 milhões para os crimes da imprensa.

Ela se soma à regulação já existente há décadas sobre as concessões públicas de rádio e televisão.

Os abusos da mídia britânica, principalmente do império Murdoch – o maior do planeta – resultaram num fato inédito.

A nova lei foi elaborada pelo governo conservador de David Cameron [foto], obteve o apoio da oposição trabalhista e foi assinada pela Rainha Elizabeth II.

Os monopólios do setor fizeram de tudo para sabotar a nova lei.

Ingressaram na Justiça, pressionaram parlamentares e até atacaram a “sagrada” monarquia britânica.

A pressão, porém, não evitou que a rainha ratificasse a “Royal Charter”, a carta real sobre a mídia imprensa.

Os poderes públicos se viram pressionados pela sociedade, que não engoliu os crimes praticados pelo jornal “News of the World”, do empresário australiano Rupert Murdoch.

O tabloide, que subornou e grampeou telefones ilegalmente, inclusive foi fechado e seus diretores podem ir para a cadeia.

Pela lei aprovada, o novo órgão regulador poderá aplicar multas de até 1 milhão de libras (R$ 3,7 milhões), além de impor correções e pedidos de desculpas por parte de jornais e revistas com o mesmo destaque dado pelas matérias caluniosas.

Ele será composto por integrantes indicados de forma independente, sendo vedada a participação de editores dos veículos privados.

Já o código de ética exige “respeito pela privacidade onde não houver suficiente justificativa de interesse público”. Qualquer pessoa que alegar ter sido atingida por reportagens poderá acionar o órgão.

A defesa do pluralismo na Europa
As derrotas dos barões da mídia não se deram apenas no Reino Unido.

Em vários países tão badalados como expressão da “democracia liberal” também ocorreram importantes revezes em 2013.

Outro destaque do ano, simplesmente ocultado pela imprensa brasileira, foi a aprovação do relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia”, em janeiro do ano passado.

O documento foi elaborado por um grupo de alto nível (HLG) constituído no âmbito da União Europeia e faz trinta recomendações sobre a regulação democrática da mídia.

Entre outros pontos, o relatório realça que “o conceito de liberdade de mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão, mas não é idêntico a ela.

A última está entronizada nos valores e direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm direito à liberdade de expressão...

Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da propriedade... 

Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder dominante”.

Para o desespero dos barões da mídia, o documento propõe
- a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias;
- o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial;
- a total neutralidade de rede na internet;
- a provisão de fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa que seja inviável comercialmente, mas essencial ao pluralismo;
- a existência de mecanismos que garantam a identificação dos responsáveis por calúnias
- e a garantia da resposta e da retratação de acusações indevidas.

Todos os países da União Europeia deveriam ter Conselhos de mídia independente, cujos membros tenham origem política e cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados.

Esses organismos teriam competência para investigar reclamações (...), mas também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade...

Os conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como imposição de multas, determinar a publicação de justificativas e cassação do status jornalístico”, afirma o relatório.

Espionagem e atritos nos EUA
Se na Europa o debate sobre a regulação democrática da mídia produziu alguma luz, na pretensa “pátria da democracia”, os EUA, ele só gerou atritos e nada de concreto.

Mesmo assim, o tema esteve na ordem do dia. Durante vários meses, o presidente Barack Obama e os impérios midiáticos se digladiaram.

O governo acusou abertamente a rede Fox, do mesmo Rupert Murdoch, de se transformar no braço político do Partido Republicano e da sua corrente mais fascistoide, o Tea Party.

Já os veículos acusaram a Casa Branca de monitorar os seus repórteres e promover retaliações.

Em junho passado, num fato inédito, as corporações midiáticas chegaram a boicotar uma reunião com o secretário de Justiça, Eric Holder.

A crise decorreu das revelações de que o governo espionava jornalistas.

A agência de notícias Associated Press e a TV Fox News tiveram telefonemas e e-mails de seus repórteres monitorados pelo Departamento de Justiça, que investigava o vazamento de informações consideradas confidenciais pelo governo.

Diante do escândalo, que desmistifica a “pátria da democracia”, Barack Obama [foto] aceitou conter as medidas de monitoramento.

O armistício, porém, não soluciona os crescentes atritos entre o governo dos EUA e as poderosas corporações midiáticas.

Estudos indicam que a concentração do setor tem aumentado no país, reforçando assustadoramente o poder destes impérios.

Mais de 120 jornais faliram nos últimos anos e apenas os grandes sobrevivem à avassaladora crise da mídia impressa.

Já as emissoras de televisão “atravessam intensa concentração nos EUA”, segundo reportagem de Nelson de Sá, publicada em julho passado na Folha.

Através de aquisições e fusões, a mídia fica ainda mais monopolizada.

Nelson de Sá cita dois exemplos nos setores de TV a cabo e TV aberta.

No primeiro, a Charter, controlada por John Malone [foto], tenta comprar o serviço da Time Warner.

Negócios semelhantes estariam sendo discutidos entre a Cablevisión e a Cox e, no âmbito das operadoras de TV por satélite, entre a Dish e a DirecTV.

No segundo setor, pequenos grupos de emissoras abertas estão se consolidando em grupos maiores, como na compra das 19 estações do Local TV pelo Tribune por US$ 2,7 bilhões”.

(*) No próximo artigo, as derrotas dos barões da mídia na América Latina.

Leia também:
- China vs. Brasil: alguma diferença? - Venício Lima

Fonte:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2014/01/derrotas-dos-baroes-da-midia-em-2013.html

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A desigualdade que se acentua nos EUA

01/01/2014 - A desigualdade nos EUA
- Paul Krugman no The New York Times - Carta Capital

Aumento da disparidade de renda fez mais que a recessão para deprimir os ganhos da classe média

Demorou um tempo incrivelmente longo, mas a desigualdade finalmente está surgindo como uma questão unificadora significativa para os progressistas nos Estados Unidos – incluindo o presidente.

E também há, inevitavelmente, uma reação, ou na verdade algumas reações.

Uma delas vem de grupos como a organização Terceira Via.

Josh Marshall [foto], editor de Talking Points Memo [TPM], caracterizou essa posição em um artigo recente:

Ela capta muito do que se trata a ‘Terceira Via’: uma espécie de retrocesso fossilizado a um período do fim do século XX em que havia um mercado para grupos que tentavam puxar os democratas ‘de volta para o centro e para longe do extremismo ideológico’, em uma era em que os democratas são o partido, razoavelmente, não ideológico e têm um histórico bastante decente de ganhar eleições nas quais a maioria das pessoas vota”.

Mas também há uma reação intelectual, com pessoas como o colunista Ezra Klein [foto], do Washington Post afirmando que a desigualdade, embora seja uma questão importante, não pode ser descrita como “o desafio definidor de nosso tempo”.

Isso, por sua vez, enfurece outros comentaristas.

Bem, eu não estou furioso, mas argumentaria que Klein entendeu errado.

A tese de que a desigualdade é um desafio importante e realmente definidor – e algo que deveria estar no centro das preocupações progressistas – repousa em diversos pilares.

Vistas juntas, as razões para se concentrar na desigualdade são extremamente convincentes, mesmo que você seja cético sobre determinados argumentos.

Deixe-me defender quatro pontos.

Primeiro, em puros termos quantitativos, o aumento da desigualdade é o que o vice-presidente Joe Biden chamaria de Grande Alguma Coisa.

Os dados referentes à distribuição de renda mostram que a parcela dos 90% na camada inferior de renda, excluindo ganhos de capital, caiu de 54,7%, em 2000, para 50,4%, em 2012.

Isso significa que a renda dos 90% na camada inferior é cerca de 8% menor do que teria sido se a desigualdade tivesse se mantido estável.

Enquanto isso, as estimativas da lacuna de produção – à medida que nossa economia está operando abaixo da capacidade – geralmente são inferiores a 6%.

Assim, em puros termos numéricos, o aumento da desigualdade fez mais que a recessão para deprimir as rendas da classe média.

Alguém poderia argumentar que os danos causados pelo desemprego são maiores que a simples perda de renda, e eu concordaria. Mas é difícil olhar para esse tipo de cálculo e relegar a desigualdade a uma questão secundária.

Em segundo lugar, existe uma tese razoável para se atribuir pelo menos parcialmente a culpa pela crise econômica ao aumento da desigualdade.

A melhor história envolve algo como isso: havia uma poupança elevada do 1% da população, com a demanda sustentada apenas pelo rápido aumento da dívida mais abaixo na escala – e, como esse empréstimo era conduzido parcialmente pela desigualdade, levou a uma cascata de gastos e assim por diante.

É um caso dramático? Não – mas é sério, e reforça o resto do argumento.

Em terceiro, existe o aspecto da economia política, em que se pode argumentar que os fracassos políticos, tanto antes como, talvez de modo ainda mais crucial, depois da crise, foram distorcidos pelo aumento da desigualdade e o correspondente aumento do poder político do 1%.

Antes da crise, havia um consenso da elite a favor da desregulamentação e da financialização que nunca foi justificado por evidências, mas se alinhava estreitamente aos interesses de uma pequena e muito rica minoria.

Depois da crise, houve o súbito afastamento da geração de empregos para a obsessão pelo déficit; pesquisas sugerem que isso não era absolutamente o que o eleitor médio queria, mas que refletia as prioridades dos ricos.

E a insistência na importância de cortar benefícios é avassaladoramente uma coisa do 1%.

Finalmente, e muito ligada a isso, está a questão do que os grupos de pensadores progressistas deveriam pesquisar.

Klein sugeriu recentemente que “como combater o desemprego” deveria ser um tópico mais central que “como reduzir a desigualdade”.

Mas há aquela coisa: sabemos como combater o desemprego – não perfeitamente, mas a boa e velha macroeconomia básica funcionou muito bem desde 2008.

Não há mistério na economia de nossa lenta recuperação – é isso que o acontece quando endurecemos a política fiscal, apesar da desalavancagem privada, e a política monetária é restrita pelo limite inferior a zero.

A questão é por que nosso sistema político ignorou tudo o que a macroeconomia aprendeu, e a resposta para essa pergunta, como já sugeri, tem muito a ver com a desigualdade.

Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/revista/780/a-desigualdade-nos-eua-1482.html

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Europa, terreno de luta

02/01/2014 - Quebrar o feitiço neoliberal: Europa, terreno de luta
- Euronomade - Sandro Mezzadra e Toni Negri [*]
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu - Redecastorphoto

Países da Zona do Euro (moeda única da Europa)
(para aumentar, clique na imagem)

Quem, como nós, não tem interesses eleitorais, está na melhor posição para reconhecer a grande importância que terão em 2014 as eleições ao Parlamento Europeu.

É fácil prever que na maior parte dos países implicados haverá alta abstenção e significativa afirmação das forças “eurocéticas”, unindo à retórica da “soberania nacional”, a hostilidade contra o euro e contra os “tecnocratas de Bruxelas”. Para nós, não é nada bom.

Estamos convencidos há tempos de que por baixo do perfil normativo, como por baixo da ação governamental capitalista, há uma Europa cuja integração já ultrapassou o portal do irreversível.

O realinhamento geral dos poderes na crise – em torno da centralidade do Banco Central Europeu e o que se define como “federalismo executivo” – modificou sem dúvida a direção do processo de integração, mas não pôs em discussão a continuidade daquele processo.

A própria moeda única mostra-se hoje consolidada na perspectiva da união bancária: é necessário responder à violência com que essa união bancária manifesta o mando capitalista; mas a volta às moedas nacionais significa não entender qual é o terreno no qual se disputa hoje a luta de classes.

Angela Merkel, chanceler alemã
É verdade que a Europa é hoje uma “Europa alemã”, cuja geografia econômica e política vai-se reorganizando em torno de relações concretas de força e de dependência, que se refletem até no nível monetário.

Mas só o feitiço neoliberal explica que se confundam a irreversibilidade do processo de integração, de um lado; e de outro a impossibilidade de modificar os conteúdos e as direções; de fazer agitarem-se dentro do espaço europeu a força e a riqueza de uma nova hipótese constituinte.

Quebrar esse feitiço neoliberal significa redescobrir hoje o espaço europeu como espaço de luta, de experimentação e de invenção política.

Como terreno sobre o qual a nova composição social dos trabalhadores, das trabalhadoras e dos pobres abrirá talvez uma perspectiva de organização política.

Lutando sobre o terreno europeu, uma organização assim terá a possibilidade de golpear diretamente a nova acumulação capitalista.

E só no terreno europeu é possível propor tanto a questão do salário como da renda; redefinir os direitos como nova dimensão do Welfare; tanto as transformações constitucionais internas nos países individuais, como a questão constituinte europeia. Hoje, não há realismo político se não nesse terreno.

Parece-nos que as forças de direita compreenderam há tempo que a irreversibilidade da integração assinala hoje o perímetro do que resulta política e praticamente pensável na Europa.

Em torno da hipótese de aprofundamento substancial do neoliberalismo, já se organizou um bloco hegemônico que inclui variantes significativamente heterogêneas (das aberturas não só táticas na direção de uma hipótese socialdemocrata de Angela Merkel, à violenta constrição repressiva e conservadora de Mariano Rajoy [foto]).

As mesmas forças de direita que se apresentam como “antieuropeias”, pelo menos nos seus componentes mais informados, jogam sua opção sobre o terreno europeu, com vistas a ampliar os espaços de autonomia nacional que estão bem presentes na Constituição Europeia, e recuperando, num plano meramente demagógico, o ressentimento e a fúria disseminados em amplos setores da população, depois de anos de crise.

A referência à nação mostra-se como o que é: transfiguração de um sentido de impotência em agressividade xenófoba; defesa de interesses particulares imaginados como arquitrave de uma “comunidade de destino”.

Por outro lado, a esquerda socialista, embora não fazendo parte do bloco hegemônico neoliberal, não consegue diferençar-se eficazmente daquele bloco no momento de elaborar propostas programáticas de signo claramente inovador.

A candidatura de Alexis Tsipras [foto], líder do partido Syriza, à presidência da Comissão Europeia, tem importância indubitável nessa ordem de coisas; já determinou em muitos países uma positiva abertura do debate de esquerda.

Em outros países, contudo, ainda parecem prevalecer os interesses de pequenos grupos ou “partidos”, incapazes de desenvolver discurso político plenamente europeu.

Com as coisas nesse pé, por que as eleições europeias de maio próximo nos parecem importantes?

Em primeiro lugar, porque tanto o relativo reforço dos poderes do Parlamento, como a designação pelos partidos de um candidato à Presidência da Comissão, fazem da campanha eleitoral, necessariamente, um momento de debate europeu, no qual as diversas forças ficarão obrigadas a definir e anunciar, pelo menos, algum esboço de programa político europeu.

Parece-nos pois que aqui se apresenta a ocasião para uma intervenção política dos que se batem para quebrar tanto o feitiço neoliberal como seu corolário, segundo o qual a única oposição possível à atual forma da União Europeia seria o “populismo” antieuropeu.

Não se exclua, de início, que essa intervenção possa encontrar interlocutores entre as forças que se movem no terreno eleitoral.

Mas estamos pensando, antes de tudo, numa intervenção de movimento, que consiga deitar raízes no interior das lutas que se desenvolveram nos últimos meses, embora de diferentes maneiras, em muitos países europeus – com intensidade significativa inclusive na Alemanha.

É decisivamente importante voltar a habilitar um discurso programático – e isso não é possível exclusivamente dentro e contra o espaço europeu.

Não vemos como se poderia questionar sociologicamente, de modo adequado, a “composição técnica de classe” de um ponto de vista messiânico acima da “composição política” adequada.

Do mesmo modo, não haverá movimentos de classe vitoriosos que não tenham interiorizado a dimensão europeia. Não seria a primeira vez, mesmo na história recente das lutas, que esses movimentos ver-se-iam forçados pelo marco político a se modificarem, voltando a experiências locais, até se verem asfixiadas em clausuras sectárias.

Trata-se de reconstruir imediatamente um horizonte geral de transformação, de elaborar coletivamente uma nova gramática política e um conjunto de elementos de programa que possam agregar força e poder no interior das lutas.

Aqui e agora – repetimos – a Europa nos parece ser o único espaço no qual isso é possível.

Um ponto nos parece particularmente importante.

A violência da crise fará sentir seus efeitos ainda por muito tempo. Não há “recuperação” à vista, se por recuperação se entender diminuição significativa do desemprego, diminuição do precarismo [1] e relativo reequilíbrio dos ganhos.

Mesmo assim, parece que se possa descartar o aprofundamento da crise.

O acordo sobre o salário mínimo, sobre o qual se fundamenta a nova coalizão na Alemanha, parece indicar, mais, um ponto de mediação no terreno do salário social que pode funcionar – em geometria e geografia variáveis – como critério de referência geral para a definição de um cenário de relativa estabilidade capitalista na Europa.

É um cenário, não a realidade atual, é um cenário de relativa estabilidade capitalista.

Para a força de trabalho e para as formas da cooperação social, esse cenário assume como dados de partida a extensão e a intensificação do precarismo, a mobilidade forçada dentro do espaço europeu e fora dele, o desclassamento de quotas relevantes do trabalho cognitivo e a formação de novas hierarquias dentro do trabalho cognitivo, determinados pela crise.

Mas em geral, o cenário de relativa estabilidade de que falamos constata a plena hegemonia de um capital cujas operações fundamentais têm natureza extrativa, quer dizer: combinam a persistência de uma exploração de tipo tradicional, com intervenções de “subtração” direta da riqueza social (mediante dispositivos financeiros, mas também porque assumem “bens comuns”, como, dentre outros, saúde e educação, como terreno privilegiado de valoração).

Não por acaso, os movimentos compreenderam que nesse terreno travam-se as lutas que podem golpear o novo regime de acumulação.

Nesse cenário trata-se, obviamente, de saber perceber a especificidade das lutas que se desenvolvem, de analisar sua heterogeneidade; e de medir sua eficácia em contextos políticos, sociais e territoriais que podem ser muito diferentes.

Mas trata-se também de propor os problemas de tal modo que as lutas possam convergir, multiplicando sua própria potência “local”, mas dentro do marco europeu.

Enquanto isso, delinear os novos elementos do programa pode ser feito mediante a escrita coletiva de uma série de princípios dos quais não se pode abrir mão, no terreno do Welfare e do trabalho; da fiscalidade e da mobilidade; das formas de vida e do precarismo, em todos os terrenos sobre os quais se expressaram os movimentos na Europa.

O que estamos pensando não seria uma carta de direitos redigida de baixo para cima que se apresentaria a alguma instância institucional: é mais, um exercício de definição programática que, como começa a mostrar a “Carta de Lampeduza” essas semanas, no que tenha a ver com migração e asilo, possa converter-se em instrumento de organização no nível europeu.

Sem esquecer que, nesse trabalho, podem aparecer impulsos decisivos, mesmo, imediatos, para construírem-se coalizões de forças locais e europeias, sindicais e cooperativas, em movimento.

Nota dos tradutores
[1] Há uma tendência no Brasil, a preferir-se “precariedade” a “precarismo”.
Optamos por “precarismo” para evitar uma arapuca semântica: todos os substantivos construídos com o sufixo “-idade” (como “precariedade”) são, necessariamente, sempre, substantivos abstratos (de fato, em praticamente todas as línguas em que o sufixo ocorre).
Não nos parece razoável acrescentar, a todas as dificuldades do precariato, mais essa dificuldade – terrível! – apresentar precariato mediante exclusivamente por um traço abstrato.
Por piores que sejam os “-ismos”, entendemos que nenhum deles seria o que é sem a luta muito concreta dos que lutaram por eles, ou neles e, claro, também contra eles.
______________________

[*] Autores: Sandro Mezzadra e Toni Negri

Sandro Mezzadra é professor na Universidade de Bolonha. Os seus estudos concentram-se na história das ideias políticas e na teoria política. Nos últimos anos, tem-se debruçado sobre a relação entre globalização, migração e cidadania. Esteve igualmente envolvido na luta pelo direitos dos migrantes, nomeadamente no âmbito do primeiro dia de acção contra a reunião do G-8 em Génova (Itália) em 2001, dedicado às questões da migração, bem como nos fóruns sociais italianos. Entre as suas publicações, destacamos Diritto di fuga. Migrazioni, cittadinanza, globalizzazione, Verona, Ombre corte, 2001.

Antonio Negri, também conhecido como Toni Negri é um filósofo político italiano, tradutor dos escritos de Filosofia do Direito de Hegel, especialista em Descartes, Kant, Espinosa, Leopardi, Marx e Dilthey, tornou-se conhecido no meio universitário sobretudo por seu trabalho sobre Espinosa, mas sua atividade acadêmica sempre foi intimamente ligada à atividade política. Negri ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império - que se tornou um manifesto do movimento anti-globalização - e de sua sequência, Multidão, ambos escritos em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/01/quebrar-o-feitico-neoliberal-europa.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed:+redecastorphoto+(redecastorphoto)