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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Todo mundo sabe como certos desastres terminam

Nota de atualização do EDUCOM: o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, deu na tarde desta segunda o voto de Minerva que cassou os mandatos de três deputados federais condenados na Ação Penal 470. Antes de votar, Mello ameaçou quem resistisse ao cumprimento desta decisão. Após a sessão do STF, o presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS) disse a repórteres que não vai entregar os mandatos dos colegas.
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15/12/2012 - Paulo Moreira Leite
- Coluna Vamos Combinar - Revista Época


A descoberta de que em 1995 o ministro Celso de Mello proferiu um longo voto no qual defendia que apenas o Congresso tinha poderes para cassar o mandato de um parlamentar ilumina vários aspectos do julgamento do mensalão.


Decano do STF, em 1995 o ministro sustentou, com base no artigo 55 da Constituição, que:

A norma inscrita no art. 55, § 2o, da Carta Federal, enquanto preceito de direito singular, encerra uma importante garantia constitucional destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria instituição parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo membro do Congresso Nacional, impedindo, desse modo, que uma decisão emanada de outro poder (o Poder Judiciário) implique, como conseqüência virtual dela emergente, a suspensão dos direitos políticos e a própria perda do mandato parlamentar.


(…) É que o congressista, enquanto perdurar o seu mandato, só poderá ser deste excepcionalmente privado, em ocorrendo condenação penal transitada em julgado, por efeito exclusivo de deliberação tomada pelo voto secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa Legislativa.”

“Não se pode perder de perspectiva, na análise da norma inscrita no art. 55, § 2o, da Constituição Federal, que esse preceito acha-se vocacionado a dispensar efetiva tutela ao exercício do mandato parlamentar, inviabilizando qualquer ensaio de ingerência de outro poder na esfera de atuação institucional do Legislativo.”


Vamos prestar atenção:



Celso de Mello (foto) está dizendo com todas as letras que, “salvo deliberação em contrário da própria instituição parlamentar,” o mandato possui a garantia constitucional da intangibilidade, impedindo que “uma decisão emanada de outro poder (o Poder Judiciário), implique a suspensão dos direitos políticos e a própria perda do mandato.

Diz ainda o ministro que o mandato só pode ser cassado “por efeito exclusivo” de uma deliberação “tomada pelo voto secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa Legislativa.

Precisa mais?
Precisa. Em outra passagem daquele voto, Celso Mello (foto) faz questão de estabelecer diferenças entre a Carta em vigor, a de 1988, e a Emenda Constitucional anterior, de 1969, que procurava formatar as  leis da ditadura nascida com o AI-5. Era um cuidado importante.

A carta da ditadura, que autorizava o funcionamento de um Congresso controlado, onde o presidente da República divulgava lista de cassados sem o menor pudor, dizia em seu artigo 149 que o “Presidente” e o “Poder Judiciário” poderiam cassar mandatos.

Os próprios parlamentares estavam excluídos dessa decisão. Compreende-se. Mesmo num regime sem liberdade partidária, e imensa repressão sobre as organizações populares, em especial dos trabalhadores, eles poderiam causar dores de cabeça.

Neste aspecto, a ditadura era coerente. Subtraia dos representantes do povo – mesmo eleitos naquelas circunstâncias difíceis de um regime militar – o direito de deliberar sobre a cassação de um mandato. Examinando as duas cartas, Celso Mello conclui que uma decisão de outro poder – fala explicitamente do Poder Judiciário – poderia representar uma “tutela” ao “exercício do mandato parlamentar” e que a finalidade do artigo 55 era inviabilizar “qualquer ensaio de ingerência” sobre o Legislativo.

Precisa mais?
Precisa. O voto de Celso Mello (foto) em 1995 está longe de ser um caso isolado. Até muito recentemente, era um ponto pacífico para vários ministros da casa. Vários votaram no mensalão – para sustentar que o Supremo tem o direito de cassar mandatos.

Em 2011, no julgamento de um deputado condenado pelo STF por esterilização ilegal de mulheres no interior do Pará, os ministros também votaram sobre a cassação de mandatos. Alguns votos são significativos, conforme levantamento feito pelo repórter Erick Decat, divulgado dias atrás por Fernando Rodrigues:
Luiz Fux

Luiz Fux, revisor – página 173 do acórdão: “Com o trânsito em julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados e oficie-se a Câmara dos Deputados para os fins do art. 55, § 2º, da Constituição Federal."

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio – página 177 do acórdão: “Também, Presidente, ainda no âmbito da eventualidade, penso que não cabe ao Supremo a iniciativa visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos Deputados a deliberar quanto à perda do mandato, presente o artigo 55, inciso VI do § 2º, da Constituição Federal. Por quê? Porque, se  formos a esse dispositivo, veremos que o Supremo não tem a iniciativa para chegar-se à perda de mandato por deliberação da Câmara”.
Gilmar Mendes

Gilmar Mendes – página 241 do acórdão: “No que diz respeito à questão suscitada pelo Ministro Ayres Britto, fico com a posição do Relator, que faz a comunicação para que a Câmara aplique tal como seja de seu entendimento."

Ayres Britto (já aposentado) – página 226 do acórdão: “Só que a Constituição atual não habilita o Judiciário a decretar a perda, nunca, dos direitos políticos, só a suspensão”.
Ayres Brito

Cezar Peluso


Cezar Peluso (já aposentado) – página 243 do acórdão: “A mera condenação criminal em si não implica, ainda durante a pendência dos seus efeitos, perda automática do mandato. Por que que não implica? Porque se implicasse, o disposto no artigo 55, VI, c/c § 2º, seria norma inócua ou destituída de qualquer senso; não restaria matéria sobre a qual o Congresso pudesse decidir. Se fosse sempre consequência automática de condenação criminal, em entendimento diverso do artigo 15, III, o Congresso não teria nada por deliberar, e essa norma perderia qualquer sentido”.

Vamos ler de novo?
Fux não manda cassar. Pelo contrário: manda oficiar a mesa para “os fins do artigo 55”, que exige deliberação por voto secreto e maioria absoluta – da cassação. Para Marco Aurélio, “não cabe ao Supremo a iniciativa visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos Deputados a deliberar quanto à perda do mandato, presente o artigo 55, inciso VI do § 2º, da Constituição Federal.” Gilmar Mendes pede que se comunique a decisão à Câmara para que a “aplique tal como seja de seu entendimento.”

Claro que ninguém está impedido de mudar de opinião ao longo da vida. Muitas vezes, essa mudança é indispensável e positiva. Quem pode julgar?


O voto de Celso de Mello (foto) em 1995 está longe de ser uma analise conjuntural. Aponta para traços permanentes que distinguem a Constituição cidadã de 1988, sem “ingerência de outro poder”, daquela de 1969, que previa cassação de mandatos pelo poder judiciário, como o Supremo fez com Chico Pinto em 1976.

Parece óbvio que ele – e outros colegas do STF – mudaram de opinião com o passar do tempo. Ao julgar o mensalão do PT, concluíram que o artigo 55 está errado.

Passaram a ter receio de que os parlamentares não cassem o mandato dos deputados condenados à pena de prisão.

Concordo que pode ser absurdo, mas está na lei e é um direito deles. E se os parlamentares concluírem, após ampla defesa, que o mandato não deve ser cassado? É feio? Escandaloso? Imoral?


Repito: feio, escandaloso e imoral é romper a Constituição, desastre que todos sabem como começam e, para evitar reações em contrário, fingem  não saber como terminam. (Todos sabem como terminam, não é?)

Em 2012, pelo menos quatro ministros do STF dizem que essa prerrogativa está errada. Dizem que ela pode criar o inconveniente de ter um político na cadeia – com o mandato no bolso.

Embora os juízes tenham mudado de opinião, a Constituição permanece a mesma. Passou por várias reformas, recebeu emendas, mas o artigo 55 permanece lá, em seu formato original. O texto é o mesmo, com todos os seus parágrafos e vírgulas. Temos então, um debate político — e não jurídico. A discussão é de outra natureza.

Quem quer mudar a Lei Maior, só precisa respeitar o artigo primeiro, que diz que todo poder emana do povo e será exercido por seus representantes eleitos – e aprovar uma emenda constitucional.


Não vale dizer que a Constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é.

Sabe por que?
Isso pode ser válido nos Estados Unidos, país que criou uma democracia aristocrática, com voto indireto, sem uma Assembléia Constituinte, colocando  acertos de cúpula acima da manifestação popular.


Não custa lembrar que George W. Bush foi empossado por decisão da Suprema Corte.

No caso do Brasil, essa visão ignora a história do país. Os brasileiros conquistaram sua soberania no fim da ditadura ao eleger uma Constituinte pelo voto direto e secreto, rejeitando emendões, remendos e monstrengos variados que se queria impor a partir do alto.

A Constituinte foi a resposta democrática contra as tentativas de fazer uma recauchutagem na ditadura.

Traumatizados por mandatos cassados conforme as conveniências dos generais, os constituintes fizeram questão de reforçar suas prerrogativas.

Todo mundo adora Raul Seixas mas ninguém precisa cair no rock da metamorfose ambulante nessa matéria. E a tal segurança jurídica?

A Carta pode ser modificada, sim. Mas a palavra final está no artigo primeiro, aquele que diz que todo poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos.

Esta é a questão.
Padre Lopes Gama, o Carapuceiro
Por fim, uma observação. É curioso que uma descoberta relevante sobre um dos ministros mais influentes e respeitados do STF tenha sido obra de um tuiteiro anônimo. Não foi assim uma revelação bombástica. O voto estava lá, nos arquivos do STF.

O tuiteiro se apresenta com o pseudônimo de Stanley Burburinho, e deve ter lá seus motivos para não revelar a identidade.

O Brasil do início dos séculos XVII e XIX possuía vários personagens dessa natureza, que se escondiam atrás de nomes falsos e apelidos estranhos. O mais conhecido era um padre do Recife, chamado de O Carapuceiro, que publicava um panfleto com notícias políticas e denúncias.

Mas vivíamos sob o absolutismo, da Coroa portuguesa e depois sob a Constituição promulgada sob a espada de Pedro I.


A Censura era vista como um dado normal da vida pública, assim como o trabalho escravo.


Nada a ver com os tempos da Constituição de 1988, concorda?

Fonte:
http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/#post-4485
Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, não constam do texto original.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

STF: em 1995, Celso de Mello reconheceu separação de poderes

Cassação de mandatos é adiada no aniversário do AI-5 

Se, como já indicou, sacramentar a cassação dos deputados condenados pelo que a mídia convencionou chamar de "mensalão", o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello irá de encontro a seus próprios princípios. Em 1995, Mello acatou recurso do então vereador de Araçatuba (SP) Pedro Martinez de Souza (PPB), questionando a perda de seu mandato após condenação por crime eleitoral. O decano do STF proferiu então que um parlamentar somente poderia perder o mandato por ato da mesa legislativa, como assegura a Constituição. Celso de Mello contribuiu assim para formar a maioria que permitiu a Souza voltar à Câmara de Araçatuba em 1996. 

Por causa da internação de Mello esta manhã para tratar uma pneumonia, a definição da Corte sobre os mandatos foi adiada. Ele será o último ministro a se pronunciar na matéria, já que o sucessor de Cezar Peluso, Teori Zavascki, está impedidoNesta quinta, o Ato Institucional Nº 5 completa 44 anos. Entre 1968 e 1978, o AI-5 permitiu a cassação generalizada de mandatos pela ditadura.

Mello (ao fundo) e, abaixo, com Joaquim Barbosa. Fotos: FRP/ABr

Estão ameaçados de perda do mandato os deputados federais João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP). A votação do STF, que pode resultar na cassação dos três condenados na Ação Penal 470, está empatada em 4 a 4. Por remeter a decisão à Câmara votaram o relator-revisor Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia, Dias Toffoli e Rosa Weber. Votaram pela cassação imediata o relator e atual presidente da Corte Suprema Joaquim Barbosa, além dos ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello. 


No parágrafo 2º do artigo 55, a Constituição da República Federativa do Brasil diz que, caso ainda se encontre o sentenciado no exercício do cargo parlamentar por ocasião do trânsito em julgado desta decisão, "a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa".

Impasse e risco de crise institucional
A conclusão do julgamento da AP 470 foi interrompida na última segunda-feira, 10, quando a votação sobre cassar ou não os mandatos dos três parlamentares estava em 4 votos a 4. Toda a polêmica vem do fato de que a Constituição tem duas interpretações sobre o tema. A primeira refere-se à condenação em ação criminal, que é a hipótese para suspensão de direitos políticos. Na segunda interpretação é aberta exceção no caso de parlamentares, atestando que somente as respectivas Casas Legislativas podem decretar a perda de mandato após processo interno específico. 

No dia 6, a discussão começou na Corte Suprema com os votos do presidente da instituição e relator da ação, Joaquim Barbosa, e do ministro-revisor, Ricardo Lewandowski. Eles apresentaram votos opostos. Barbosa defende a perda de mandato imediata por condenação criminal, enquanto Lewandowski diz que não cabe ao Supremo a intervenção política. Sem o voto computado oficialmente, o ministro Celso de Mello sinalizou, nas duas últimas sessões, que deverá acompanhar o entendimento de Barbosa. Para o relator, a perda do mandato deve ser decretada judicialmente pelo STF, e ao Congresso Nacional cabe apenas ratificar a determinação.

O risco de que parlamentares tenham seus mandatos cassados por outro dos poderes da República provocou duras críticas. Esta semana o presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS), antecipou em entrevista coletiva que o Poder Legislativo reagiria com firmeza caso o Judiciário exorbitasse suas atribuições com cassação de deputados federais. A maioria dos líderes da Casa - até mesmo de partidos de oposição como o PSDB - manifestou apoio a Maia. Parlamentares do PT acusaram Joaquim Barbosa e os ministros que o seguiram no voto de tentar provocar uma crise institucional. Ao que tudo indica, a bola está com Celso de Mello e esperemos que seja coerente, marcando um gol para as instituições democráticas. (R.B., com Agência Brasil e portal '247')

Leia aqui o voto do ministro Celso de Mello há 17 anos.

Mais:
STF não cassa mandato de deputados condenados
Grotescos e malandros alimentam crise entre STF e Congresso

sábado, 22 de setembro de 2012

“Regulação da mídia não tem nada a ver com censura”


18/09/2012 - “Os grupos contrários à liberdade de expressão são os mesmos que empunham a bandeira da liberdade de expressão”
Venício Artur de Lima (*) em entrevista a Jonas Valente
– Brasília, pra Revista Desafios do Desenvolvimento - Edição Nº 73 - Ano 9 - 2012
- Revista mensal de informações e debates do IPEA (**)
- Reproduzido na edição 712 do Observatório da Imprensa
- Fotos de Venício, por Sidney Murrieta


Atualmente, Venício Artur de Lima é colunista dos sites Observatório da Imprensa e Agência Carta Maior. Nesta entrevista, Venício traça um panorama das políticas de comunicação e defende a importância de um novo marco regulatório para o setor.

O objetivo, segundo ele, é garantir a universalização da liberdade de expressão. Em suas palavras, o conceito foi apropriado pelos conglomerados de mídia, exatamente para impedir sua plena realização.

Um dos maiores especialistas brasileiros em políticas de comunicação analisa a forte monopolização do setor em nosso país. Segundo ele, a situação é um empecilho para a consolidação da democracia e um impedimento para que várias opiniões possam se manifestar no debate público.

Venício Lima aponta a saída: uma nova legislação que regulamente os artigos da Constituição referentes ao tema, levando-se em conta os avanços tecnológicos existentes desde então.

E observa: “Isso não tem nada a ver com censura”.


Desafios do Desenvolvimento (DD) - Alguns setores da sociedade defendem a necessidade de uma nova regulação do setor de comunicações em nosso país. Mas a proposta é atacada sob o argumento de que isso significaria um controle social da mídia, com risco de resultar em censura. Qual sua opinião a respeito?
Venício Lima - A expressão “controle social da mídia” entrou na narrativa da grande mídia por ocasião do 3o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), elaborado em 2009. Desde então, o termo passou a ser frequentemente associado a intenções da gestão de Lula ou de seus apoiadores, embora sua origem venha da segunda versão do Plano, elaborada no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A expressão “controle” é fartamente utilizada para outras políticas públicas inscritas na Constituição, como educação, saúde, assistência social, direitos dos idosos. Ela expressa um processo de descentralização da administração pública por meio da criação de conselhos com participação popular. A grande mídia satanizou a expressão e passou a identificá-la como tentativa de censura. Pergunto: em que proposta ou projeto essa expressão pode ser identificada com censura? Não existe isso.

DD - Como isso se dá em outros países?
Venício - A regulação da área não tem nada a ver com censura. Na Inglaterra, há não só um órgão estatal da radiodifusão, o Ofcom (Office of Communications), como uma agência de autorregulação, a PCC (Press Complaints Comission), que está sendo descontinuada para que surja outra com mais poder de interferência, depois do escândalo envolvendo o jornal News of the World, do grupo News Corporation, [de Rupert Murdoch].


[Na história brasileira, o liberalismo nunca foi democrático. Ele pensa a questão da liberdade apenas do ponto de vista da ausência de interferência do Estado. A liberdade é equacionada com a liberdade individual desde que o individuo não seja impedido de fazer o que quiser e a instituição adversária dessa liberdade é sempre o Estado]

DD - Mas por que os empresários de comunicação são contrários à regulação?
Venício - Porque está em jogo a própria ideia de liberdade. E, por extensão, do conceito de liberdade de expressão. Na história brasileira, o liberalismo nunca foi democrático. Ele pensa a questão da liberdade apenas do ponto de vista da ausência de interferência do Estado. A liberdade é equacionada com a liberdade individual desde que o individuo não seja impedido de fazer o que quiser e a instituição adversária dessa liberdade é sempre o Estado. Quando você traduz isso para área de política pública, e em particular para a área dos meios de comunicação, qualquer interferência do Estado é identificada como ausência de liberdade. A ideia de liberdade de expressão é um conceito encontrado na experiência democrática da Grécia de seis séculos antes de Cristo. Ela se realiza na medida em que há a participação do homem livre na elaboração das regras às quais ele deve se submeter. Ele é livre por participar da elaboração das regras que confirmam a sua liberdade. Não tem nada a ver com a ideia de ausência de interferência do Estado.

DD - Qual seria a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa?
Venício - A primeira associação entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa é totalmente inadequada. A liberdade de expressão aparece seis séculos antes de Cristo associada a uma capacidade de autogoverno, que hoje se aproximaria da ideia de cidadania. Já a liberdade de imprensa implica a existência da imprensa, que só aparece no final do século XV. Quando se estuda a história dos meios de comunicação, se pode ver como a ideia original de liberdade de expressão está longe dessa instituição que hoje se constitui de grandes conglomerados multimídia. O que há são as expressões das posições desses grupos empresariais. De forma nenhuma podem ser entendidas como portavozes da liberdade de expressão coletiva.

DD - Isso muda com a internet?
Venício - Sim, ela possibilita o surgimento de um espaço que pode ser acessado por qualquer um e se aproxima mais da ideia de universalização da liberdade de expressão do que a atuação de poucos grupos que fazem negócio com a atividade de mídia que reivindicam para si a expressão de uma opinião pública coletiva, a condição de representantes de uma diversidade de vozes. No caso brasileiro, na Constituição Federal, a expressão liberdade de imprensa só aparece uma vez, quando se trata da situação de Estado de Sítio. E inventaram essa da liberdade de expressão comercial, o que inclusive, do ponto de vista legal, é uma rebeldia contra a Carta de 1988. Os empresários que reivindicam esse conceito o fazem resistindo a normas constitucionais que preveem restrições à publicidade de alimentos nocivos à saúde, classificação indicativa para orientar horários de transmissão de programas e restrições à publicidade de cigarro e bebidas.

DD - Então a regulação estaria mais associada à liberdade de expressão sob uma perspectiva coletiva?
Venício - Quando você fala em regulação, no caso brasileiro, se fala em regulamentar primeiramente as normas da Constituição de 1988. A posição do governo Dilma parece ser clara em relação a isso. Os temas principais são a proibição da prática de monopólio e oligopólio e a prioridade à produção independente e regional. A segunda coisa é contemplar o avanço tecnológico imenso pelo qual passou a área depois da promulgação da Carta Magna. Esse avanço diluiu a divisão que havia entre telecomunicações e radiodifusão.

DD - Quais os critérios para orientar a regulação?
Venício - O grande critério deve ser aumentar o número de vozes que participam do debate público. Por isso, os conselhos [de comunicação social] são tão fundamentais. Eles possibilitam a ampliação da participação na gestão das políticas públicas.

DD - As regras existentes conseguem garantir a liberdade de expressão?
Venício - Para entender o modelo atual, é preciso discutir os vetos que o então presidente João Goulart havia feito ao projeto do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT). Eles foram derrubados por pressão dos empresários no Congresso, em 1962. Havia uma disputa de poder entre concessionários do serviço público e o poder concedente, vale dizer, entre o Poder Executivo e os radiodifusores. Os vencedores queriam – e conquistaram – prazos dilatados para as concessões (10 e 15 anos), renovação automática delas, ausência de penalidade (mesmo após julgamento pelo Poder Judiciário) em casos de divulgação de notícias falsas e assimetria de tratamento em relação a outros concessionários de serviços públicos – alteração da lei de mandado de segurança. A derrubada dos vetos se constituiu na espinha dorsal da regulação da radiodifusão no Brasil. 

Algumas dessas normas os radiodifusores conseguiram incluir na Constituição de 1988. Assim, para a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Albert), não há necessidade de novo marco. É como se nada justificasse uma mudança das regras de meio século atrás. A necessidade de uma nova regulação hoje, entre as várias razões, passa pela atualização da legislação em razão das mudanças tecnológicas.

DD - Quais são as principais insuficiências do modelo brasileiro?
Venício - A regulação atual perpetua um problema histórico da sociedade brasileira, que é a exclusão da imensa maioria da população da gestão da coisa pública. As questões básicas têm a ver com a impossibilidade da universalização da liberdade de expressão. E aí há o paradoxo: exatamente os grandes meios de comunicação, que impedem essa universalização, empunham a bandeira da liberdade de expressão.

DD - Que mecanismos o novo marco regulatório precisa criar?
Venício - É fundamental definir uma agência autônoma para a área de radiodifusão, que expresse a separação entre telecomunicações e radiodifusão. Isso existe nas principais democracias liberais do mundo. Outro ponto importante é a criação de conselhos estaduais de comunicação, como órgãos auxiliares do Poder Executivo. São fundamentais para o exercício da liberdade de expressão. Isso está previsto na Constituição em nível federal. Temos de regulamentar o Artigo 221 da Constituição, que trata da comunicação social. É preciso lutar para que as garantias do Artigo 5o também sejam incluídas. O direito de resposta é uma delas e está descoberto desde a derrubada da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal.

DD - Se a Constituição proíbe os monopólios, como os grandes grupos de mídia constituem seu poder?
Venício - Este é um dos temas mais graves: a concentração da propriedade, que passa pela questão da propriedade cruzada. Ela se forma quando um mesmo grupo num mesmo mercado é proprietário de jornal, detém concessões de rádio AM e FM e de televisão e, em seguida, passa a ter uma operadora de TV por assinatura e um portal de internet. Tanto os grupos nacionais como os regionais se formaram a partir da propriedade cruzada. 

No Brasil, nunca houve controle dessa prática. Uma nova regulação – a exemplo do que existe nos Estados Unidos e na Argentina – deveria prever normas que valessem com prazos para a desconstrução de monopólios já constituídos. O prazo dilatado da concessão provoca uma distorção no entendimento dos concessionários. Eles se julgam proprietários da concessão. A proprietária é a União.

DD - A formação de redes nacionais de TV e rádio aumenta o poder dos grandes grupos?
Venício - Segundo a legislação do setor, um grupo concessionário, que no limite pode ter cinco concessões na faixa VHF em todo o território nacional, exerce, pelo processo de filiação, um controle de fato sobre um conjunto enorme de emissoras. Só que a caracterização de rede não é bem definida pela legislação. Apesar do decreto 236 de 1967 apresentar uma provisão específica sobre o tema, a interpretação do órgão controlador, o Ministério das Comunicações, nunca considerou a filiação exercida pelos grandes grupos de mídia como sendo formação de rede, tanto na área de rádio quanto na de TV. Isso é um absurdo. No Brasil, a ausência de controle tem levado a formas de produção inéditas no mundo inteiro. Vamos pegar o exemplo de uma novela. Um grupo poderoso, mantém sob contrato os autores, os atores e os técnicos.

Os artistas que produzem as trilhas sonoras têm suas músicas nas novelas divulgadas pelo selo musical e pelos jornais e revistas do próprio grupo. É uma integração tanto vertical quanto horizontal completa. E isso sufoca a possibilidade de manifestação de outras vozes.

DD - Como é a relação dos grupos de mídia com o poder político e econômico?
Venício - Há um modelo tradicional de barganha política, consolidado na ditadura militar. Os coronéis eletrônicos exercem uma influência na formação da opinião pública de duas formas. A primeira é direta, porque controlam o acesso ao debate público. A segunda é indireta por impedirem eventuais concorrentes em uma disputa eleitoral de terem acesso a esse debate. Há um desvirtuamento do processo democrático, que favorece a esses grupos políticos em vez de facilitar a universalização da liberdade de expressão. Um dos pontos críticos na legislação brasileira, que favorece essa apropriação, é o artigo 54 da Constituição, que trata da presença de eleitos para cargos públicos em concessões de rádio e TV. Como o Congresso Nacional ratifica as concessões definidas pelo Executivo, existe a situação absurda de concessionários interferirem diretamente no processo de aprovação das licenças. Uma mesma pessoa é poder concedente e concessionário. Isso não pode existir.

DD - Como o sistema político de rádio e TV opera nesse universo?
Venício - A Constituição instituiu o princípio da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Desde a década de 1930, quando o Estado priorizou a exploração pela iniciativa privada, as concessões têm sido dadas especialmente a grupos privados. Na Carta, há a intenção de se buscar um equilíbrio entre os setores. Até há poucos anos não existia a figura de uma empresa pública, o que acontece com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). O fortalecimento do sistema público busca cumprir um preceito constitucional. Só que ele nunca foi regulamentado por completo. A EBC, com todos os problemas e os emperramentos, tem avançado. É um modelo em construção.

O que diz a Constituição?
O Capítulo V da Carta de 1988 é todo dedicado à Comunicação Social.


Alguns tópicos ainda não foram regulamentados por legislação ordinária, como o parágrafo 5º do Artigo 220. 

Aqui vão alguns trechos do Capítulo.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(...)
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º - Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

(...)
§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

(...)
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a fi nalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regio nal e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

(...)
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.

( ...)
§ 5º - O prazo da concessão ou permissão será de dez anos para as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão.

Art. 224. Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei”. 


Perfil
(*) Venício Artur de Lima é um dos mais reconhecidos analistas dos meios de comunicação no Brasil. Como professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), fez parte do grupo de docentes e pesquisadores que mostrou, de forma pioneira, a necessidade de políticas públicas para democratizar as comunicações, nos anos 1980. Como assessor do Congresso Nacional, acompanhou a batalha pela aprovação do capítulo da Comunicação Social da Constituição de 1988.

É autor de diversos livros, entre eles Mídia: teoria e política (Fundação Perseu Abramo, 2001), Liberdade de expressão X liberdade de imprensa – direito à comunicação e democracia (Editora Publisher Brasil, 2010), Regulação das comunicações – história, poderes e direitos (Editora Paulus, 2011) e Políticas de comunicação: um balanço dos governos Lula (2003-2010) (Editora Publisher Brasil, 2012).

(**) IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas 

Fontes:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed712_regulacao_da_midia_nao_tem_nada_a_ver_com_censura

http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2787:catid=28&Itemid=23

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A Constituição ignorada

18/09/2012 - Ano 16 - nº 712 do Observatório da Imprensa
Por Dalmo de Abreu Dallari (*)

A cobertura do Poder Judiciário pela imprensa, com noticiário minucioso e comentários paralelos, é uma prática muito recente, que pode ter efeitos benéficos em termos de dar maior publicidade a um setor dos serviços públicos que também está obrigado, como todos os demais, a tornar públicos os seus atos, seu desempenho administrativo e a utilização de seus recursos orçamentários.

Entretanto, as decisões judiciais têm várias peculiaridades, entre as quais está o direito de penetrar na intimidade das pessoas e das instituições quando isso for necessário para o bom desempenho do julgador, assim como o fato de que tais decisões, que podem ter gravíssimas consequências para pessoas, entidades e mesmo para toda a sociedade, são inevitavelmente influenciadas por uma escala individual de valores – tudo isso implica a configuração de características especiais, exclusivas das atividades judiciárias e bem diferentes das peculiaridades do Legislativo e do Executivo.

Só isso já seria suficiente para que se exigisse da imprensa uma atenção diferenciada para a cobertura das atividades do Judiciário. Acrescente-se, ainda, que pelas particularidades do processo de obtenção e uso de dados, assim como da fundamentação das decisões dos juízes e tribunais, é indispensável um preparo adequado dos editorialistas e jornalistas que irão publicar informações e opiniões sobre as atividades e as decisões do Judiciário, pois além do risco da existência de erros na matéria divulgada, o que já é altamente reprovável, graves consequências podem decorrer da divulgação de informações e comentários errados e mal fundamentados. Nesses casos a publicidade do Judiciário acarretará mais efeitos nocivos do que benéficos.

Matéria jurídica
O despreparo de importantes órgãos da imprensa para a cobertura do Judiciário tem ficado evidente, tanto pelo tratamento dado às matérias quanto pela ocorrência de erros e impropriedades relativamente a situações e ocorrência pontuais. Assim, por exemplo, num dos mais importantes órgãos da imprensa brasileira, o jornal O Estado de S.Paulo, que ultimamente passou a ser muito vigilante quanto às falhas do Judiciário e muito agressivo nos comentários a elas relativos, foi publicado, na edição de 22 de julho deste ano, num editorial da página 3 – que é um espaço nobre do jornal –, um comentário que, sob o título “A resistência da toga“, pretendia denunciar a persistência da doença do corporativismo no Judiciário.

Para comprovação do que ali se afirmava foi referida a resistência de juízes às boas inovações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, informando-se, textualmente, para esclarecimento dos leitores, que essa emenda “entre outras inovações, criou o instituto jurídico do mandado de injunção. Na época, entidades da magistratura acusaram esse mecanismo processual – cujo objetivo é agilizar as decisões judiciais, obrigando os tribunais inferiores a seguir a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal – de suprimir as prerrogativas e a autonomia dos juízes de primeira instância”.

Ora, basta uma simples leitura do artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição para se verificar a absoluta impropriedade da afirmação constante do editorial. Com efeito, nos termos expressos daquele inciso constitucional “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

Como fica mais do que evidente, quem escreveu o editorial não tinha conhecimento do assunto e não houve assessoria nem revisão de algum conhecedor. Provavelmente, o editorialista tinha ouvido falar que estavam sendo propostas inovações constitucionais para melhorar o Judiciário e uma delas dava efeito vinculante a certas decisões do Supremo Tribunal Federal, obrigando os órgãos do Poder Judiciário a seguirem a mesma orientação, o que tinha sido mal recebido por alguns integrantes do Poder Judiciário.

Trata-se, neste caso, da súmula vinculante, prevista entre as competências do Supremo Tribunal Federal no artigo 103-A da Constituição, inovação que absolutamente nada tem a ver com o mandado de injunção.

Houve erro evidente do editorialista, mas também ficou evidenciado o despreparo de um importante órgão da imprensa para a cobertura do Judiciário. Pode-se imaginar quantos equívocos dessa natureza podem estar contidos nas informações e nos comentários sobre matéria jurídica, que pretendem informar e formar os leitores, como se tem considerado inerente ao papel da imprensa.

Extensão inconstitucional
Há um ponto em que a imprensa poderia promover um sério debate, com base numa questão jurídica fundamental: por meio da Ação Penal 470, estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal, sem terem passado por instâncias inferiores, acusados que não tinham cargo público nem exerciam função pública quando participaram dos atos que deram base à propositura da ação pelo Ministério Público. Isso ficou absolutamente evidente no julgamento de acusados ligados ao Banco Rural, que, segundo a denúncia, sem terem cargo ou função no aparato público, interferiram para que recursos públicos favorecessem aqueles integrantes de um banco privado.

Ministro Ricardo Lewandowski

Essa questão foi suscitada, com muita precisão, pelo ministro Ricardo Lewandowski, na fase inicial do julgamento.

Entretanto, por motivos que não ficaram claros, a maioria dos ministros foi favorável à continuação do julgamento de todos os acusados pelo Supremo Tribunal.

No entanto, a Constituição estabelece expressamente, no artigo 102, os únicos casos em que o acusado, por ser ocupante de cargo ou função pública de grande relevância, será julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal e não por alguma instância inferior.

No inciso I, dispõe-se, na letra “b”, que o Supremo Tribunal tem competência para processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, “o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador Geral da República”. Em seguida, na letra “c”, foi estabelecida a competência originária para processar e julgar “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”.

Como fica muito evidente, o Supremo Tribunal Federal não tem competência jurídica para julgar originariamente acusados que nem no momento da prática dos atos que deram base à denúncia nem agora ocuparam ou ocupam qualquer dos cargos ou funções enumerados no artigo 102.

Para que se perceba a gravidade dessa afronta à Constituição, esses acusados não gozam do que se tem chamado “foro privilegiado” e devem ser julgados por juízes de instâncias inferiores. E nesse caso terão o direito de recorrer a uma ou duas instâncias superiores, o que amplia muito sua possibilidade de defesa. Tendo-lhes sido negada essa possibilidade, poderão alegar, se forem condenados pelo Supremo Tribunal, que não lhes foi assegurada a plenitude do direito de defesa, que é um direito fundamental da cidadania internacionalmente consagrado.

E poderão mesmo, com base nesse argumento, recorrer a uma Corte Internacional pedindo que o Brasil seja compelido a respeitar esse direito.

A imprensa, que no caso desse processo vem exigindo a condenação, não o julgamento imparcial e bem fundamentado, aplaudiu a extensão inconstitucional das competências do Supremo Tribunal e fez referências muito agressivas ao ministro Lewandowski – que, na realidade, era, no caso, o verdadeiro guardião da Constituição.

(*) Dalmo de Abreu Dallari é jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Fonte:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed712_a_constituicao_ignorada