sábado, 9 de junho de 2012

Olhos e corações voltados à Grécia

08/06/2012 - Maurício Caleiro
extraído do blog Cinema & Outras Artes

À medida que as eleições gregas entram em sua reta final, os olhos do mundo se voltam ao berço da democracia para acompanhar o que promete ser um dos mais emocionantes pleitos dos últimos tempos - e dos poucos a incluir a possibilidade concreta de eleger uma força política cuja plataforma inclui o rompimento com o programa de austeridade ditado pela Troika.

Pois, a nove dias das eleições, a Syriza (Coligação da Esquerda Radical) lidera, com 31% - e na condição de grande e entusiasmante novidade -, as projeções de votos, seguida pelos 25% da centro-direita (Nova Democracia) e pelos socialistas (só de nome) do PASOK, com 14%.

A confirmação da vitória da Syriza no próximo dia 17 seria uma enfática tradução político-eleitoral da derrota do receituário neoliberal anti-crise que a "comunidade europeia" lhe determinou, e cujo fracasso, do ponto de vista social, tem sido dramática e cotidianamente constatado pela população grega, que convive com índices de desemprego da ordem de 35% e com mais da metade dos jovens sem trabalho.


Economicismo desumano
A receita ditada pela Troika, além de coagir e humilhar a autonomia da democracia grega, impôs um brutal corte de salários, pensões e investimentos estatais, com alta redução do raio de ação do Estado e nenhuma preocupação com as graves consequências sociais decorrentes. A aplicação de tais medidas, caracterizadas por um neoliberalismo desabrido, tem envenenado ainda mais o tecido socioeconômico de uma nação empobrecida e aprofundado a crise. Para muito além das planilhas sobre dados macroeconômicos, a Grécia é hoje um país cuja classe média vem sendo dizimada e cujos pobres, sujeitos a fome e desnutrição, encontram-se entregues à própria sorte.

O mundo social do trabalho se esfacela, com sindicatos extramente enfraquecidos, a proliferação de “contratos informais” e o calote salarial institucionalizado (500 mil trabalhadores não estariam recebendo seus pagamentos).

Yorgos Mitralias
O cenário se deteriora: há falta de medicamentos para doenças graves e empresas farmacêuticas relutam cada vez mais a vender a prazo, segundo relata o The Guardian de hoje (08/06) (http://www.guardian.co.uk/world/2012/jun/08/greek-drug-shortage-worsens); nas cidades, proliferam mendigos e meninos de rua; grassam a fome e a desnutrição: “o país já se encontra em ruínas”, definiu o ativista Yorgos Mitralias, segundo relato de Mauricio Haschizume em matéria da Carta Maior (ver em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20282).

Assimetria de tratamentos
Um caso dramático se tornou o símbolo das medidas desumanas a que está sendo submetido o povo grego: o músico Antonios Perris, de 60 anos, se suicidou após ver-se na miséria e não conseguir que nenhum asilo aceitasse a mãe, que sofre de Alzheimer e esquizofrenia e pulou com ele do quinto andar de um prédio. Perris (foto abaixo) deixou uma carta, largamente negligenciada pela mídia corporativa, em que apela aos poderosos pelos pobres e para que os bancos cessem os despejos.

Enquanto, num flagrante desrespeito aos direitos humanos, o povo grego é pauperizado dessa maneira em nome da austeridade, o Banco Central Europeu injeta nada menos do que 1 trilhão de euros (R$ 2.532.000.000.000,00) em bancos do continente, cuja ação irresponsável no período imediatamente anterior à crise, “alavancando” empréstimos sem lastros, é uma das principais causas da débâcle financeira.


Mídia versus renovação
Não obstante tais discrepâncias, será instrutivo acompanhar, nessa reta final das eleições gregas, o esforço que os porta-vozes do mercado encrustados na mídia e por ela designados como “jornalistas especializados” farão para alardear, com um palavrório que, sob verniz técnico, mistura wishful thinking, lugares-comuns da Economia e não tão veladas ameaças, o caos e a expulsão do paraíso que fatalmente, segundo eles, incidirão sobre a Grécia caso a Syriza – caracterizada como o ninho do pior e mais irresponsável radicalismo - assome ao poder.

Até o momento, porém, o que as pesquisas de intenção de voto sugerem é que os eleitores têm se dado conta de que o paraíso neoliberal da Europa mal tem lugar para a plutocracia grega, quanto mais para os estratos médios e baixos, atirados à própria sorte.

O jovem candidato a primeiro-ministro pela Syriza, Alexis Tsipras (37, foto acima), já alertou que se a Europa cortar os fundos adicionais pré-acordados, a Grécia, sob seu comando, para de pagar a dívida. Mesmo caso a coligação não venha a ganhar as eleições (toc, toc, toc...), deve se constituir como uma nova força na arena grega - e, de qualquer maneira, já goza do mérito de ter trazido uma lufada de ar fresco a renovar o pensamento político no velho continente.


Novos rumos para a esquerda
Muito haveria para se dizer sobre a relação entre a paradoxal vigência do neoliberalismo como alegada panaceia para a Europa atual, a crise grega e a saudável novidade representada pela Syriza.

Mas a sensacional intervenção de Slavoj Žižek no comício da coligação, disponível adiante (com legendas em português lusitano), aborda essas e outras questões - como os impasses no interior da esquerda ou a recusa à passividade que as reações dos gregos à crise denotam - com tamanho brilhantismo, eloquência e originalidade que o melhor é encerrar por aqui, recomendando, com ênfase, que assistam ao vídeo "Intervenção de Slavoj Zizek no comício da Syrizaem: http://www.youtube.com/watch?v=4U2b9XChivc

Pois, falando para um público naturalmente entusiasmado, certamente grato por seu apoio e que compartilha muitos de seus ideais, o filósofo esloveno mostra-se particularmente inspirado, seja pela consistência de sua crítica ou pela intensidade de sua performance, com seu blending único de psicanálise e marxismo, seu inglês com sotaque caricatural, suas metáforas e comparações inusitadas e desconcertantes - tecidas muitas vezes a partir de filmes, canções e demais produtos culturais de massa (como a alusão a Coca-Cola e Pepsi para ilustrar a diferença entre Nova Democracia e PASOK) -, além de seus conceitos personalíssimos e desconcertantes - como, no caso, o de “democracia descafeinada”. Vale a pena ver o vídeo até o final.

http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/2012/06/olhos-e-coracoes-voltados-grecia.html

Outras fontes:
http://www.cryptome.org/2012-info/athens-protest/athens-protest.htm
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/06/o-dia-em-que-o-capitalismo-fez-mais-uma-vitima-fatal.html
http://www.whataboutclients.com/archives/2012/05/greeces_syriza_1.html




sexta-feira, 8 de junho de 2012

Depois dos bancos e da ditadura, a vez da mídia?

08/06/2012 - original extraído do Portal Carta Maior
Saul Leblon

Expoente de uma corajosa linhagem de intelectuais e jornalistas responsável por modificar a percepção da sociedade brasileira em relação à mídia, que graças a eles passou de referência a referido no debate político, Venício de Lima causa um estorvo adicional aos olhos e ouvidos adestrados na facilidade do ardil maniqueísta.

Professor aposentado de Ciência Política e Comunicação da UNB, com mais de oito livros sobre o tema, Venício açoita a direita e não poupa a esquerda com a inflexível defesa de uma verdadeira democracia que não pode existir sem diversidade e pluralidade de informação.

As análises que brotam dessa equidistancia engajada dispensam a frase exclamativa para privilegiar o dado, o fato, a legislação, o abuso e a sua consequência. Doem mais que pancada.

Há 24 anos, a Constituição brasileira determinou a criação de um Conselho de Comunicação Social no Congresso para auxiliar na implementação e regulação da mídia, dotando-a do escopo plural que a redemocratização preconizou. Não foi feito até hoje. O fato significativo de não ter sido feito 'até hoje', constitui justamente o objeto das arguições e análises do mais recente livro de Venício de Lima ("Política de Comunicações: um balanço dos governos Lula - 2003/2010" - editora Publisher Brasil). Nele, o intelectual que não desdenha do legado histórico do ciclo Lula, nem por isso alivia o rigor crítico quando se trata de responder à questão desdobrada nessa coletânea de artigos, leitura obrigatória para quem, a exemplo do que dizia Brizola, acredita que "enquanto houver poder equivalente ao da Rede Globo no país, não haverá democracia efetiva em nossa sociedade".

O aggiornamento dessa constatação na obra de Venício leva a seguinte indagação: "Os dois mandatos do Presidente Lula representaram um avanço para a democratização das comunicações?"

Mais incomodo que a dúvida é o fato de que o autor não hesita em incluir na árdua tarefa da resposta um minucioso levantamento de paradoxos entre o que a lei determina, aquilo que a esquerda sempre se propôs a fazer e o saldo de suas hesitações e recuos quando teve a chance de implementá-lo.

Venício é um intelectual suficientemente sofisticado para não dar a essa tomografia decibéis de um desabafo hegeliano. Não há vínculos entre a sua peneira histórica e os arroubos dos que tropeçam no próprio radicalismo ao vociferar contra uma realidade que desobedece idéias cerzidas à margem dos conflitos e circunstâncias da sociedade.
  
A desregulação persistente na área das comunicações no país não é uma excrescência alimentada pelo "petismo degenerado", como querem alguns. Ela é parte - talvez a mais sensível - de uma supremacia de interesses que fizeram da ausência do Estado em distintas dimensões da vida social, o credo legitimador de uma dominação reiterada a ferro, fogo, Cachoeiras, Policarpos e Dadás. O colapso da ordem neoliberal desde 2008 trincou essa blindagem que se esfarela agora nas ruas do mundo em múltiplas frentes. A atualíssima contribuição do novo livro de Venício inclui o mapeamento de todas as trancas e interditos, com as correspondentes chaves e alavancas legais e democráticas que agora, mais que nunca, estão maduras para serem acionadas no crepúsculo do poder neoliberal.

Mais de uma vez, porém, o autor recordará que não se trata apenas de um jogo mecânico de ajustes e encaixes lisos e frios como azulejar um banheiro. Há interesses que não se rendem. E outros cooptáveis. Numa síntese de como as coisas são e acontecem, e para que possam não se repetir nessa hora propícia, Venício de Lima desce às entranhas e vai buscar no livro escrito pelo ex-ministro Antônio Palocci ("Sobre formigas e cigarras" - Editora Objetiva, 2007), o relato de um diálogo pedagógico entre a mídia hegemônica e o poder ascendente. Nesse diálogo ocorrido em 2002, Palocci relata como consultou a Globo durante a elaboração da "Carta ao Povo Brasileiro", documento que o PT divulgaria em junho daquele ano, para tranqüilizar o mercado financeiro em relação a um eventual governo liderado por Lula.

No livro (páginas 31 e 32), o ex-ministro explica que, depois de preparar diferentes versões do documento, procurou empresários e formadores de opinião para dialogar sobre o assunto. Eis o trecho:

"Um deles foi o João Roberto Marinho, das Organizações Globo, a quem eu fora apresentado semanas antes.

Peguei o telefone e liguei para ele.

– Estamos com um problema sério nesta eleição – iniciei. Há uma percepção de crise econômica e estamos preocupados com isso. Estamos pensando em editar um manifesto com os nossos compromissos.

Com seu radar bastante atento às mudanças de humor do mercado, João Roberto abordou o assunto de forma franca:
– A crise é muito maior do que vocês estão pensando – ele disse, sem esconder sua preocupação. Há muita insegurança sobre o futuro e, por isso, acho muito bom vocês fazerem, sim, um manifesto.

Comentei as linhas gerais do documento e paramos justamente no ponto sobre o superávit das contas públicas.
– Se vocês não forem falar sobre isso – advertiu ele – é melhor nem soltar o documento. Afinal, é este o ponto sobre o qual o mercado está mais preocupado.
– E qual você acha que deve ser o compromisso do novo governo? – perguntei.
– Em minha opinião, deve ser algo um pouco acima de 4%, que é o que parece estar se tornando um consenso no mercado. O fato é que a dívida está ficando insustentável e se há algo que vocês devem criticar no atual governo é isso. O quadro fiscal é frágil."

Em seguida, Antonio Palocci lê trechos do documento para João Roberto Marinho.

"Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar seus compromissos".

– O que você acha? – perguntei.

– Um número forte poderia ser melhor – respondeu. Mas se há dificuldade para isso, o texto está bom. Acho que dá conta."

Depois de conversar com João Roberto Marinho, Antonio Palocci explica como alterou o documento:

"Achei melhor trocar a palavra 'enquanto', que dava noção de tempo, por 'o quanto', que dava noção de tamanho e da disposição de aumentá-lo, que era como o problema se colocava naquele momento."

Venício de Lima arremata o artigo com a seguinte observação de atualidade irretocável quando o governo Dilma parece próximo de, finalmente, levar à sociedade seu projeto de Regulação da Mídia:

"Quatro observações", dispara Venício Lima na sequência da citação.

Primeiro, se políticos querem "se acertar" com concessionários e/ou donos de grupos de mídia, está implícito, por óbvio, que acreditam que eles (os donos) determinam ou influenciam ou interferem no sentido das coberturas jornalísticas.

Segundo, tanto uns quanto outros – políticos e concessionários/donos – acreditam que a cobertura política da mídia determina ou influencia ou interfere no processo político.

Terceiro, se isso é verdade, uma cobertura política negativa dificulta o sucesso político ou, ao contrário, uma cobertura política favorável, ajuda, contribui.

Quarto, ambos – políticos e concessionários/donos de grupos de mídia – não parecem acreditar na existência de uma cobertura jornalística imparcial (ou nada disso seria necessário).

Finalmente, uma velha questão que se recoloca diante da realidade que, sabemos, existe tanto nos Estados Unidos como no Brasil: no caso dos concessionários dos serviços públicos de rádio e televisão, que existem para atender ao interesse coletivo e não ao interesse privado de indivíduos ou grupos – empresariais, religiosos ou quaisquer outros – não constituiria uma ameaça importante à democracia permitir que ocupem posição de tamanho poder como atores políticos nas democracias contemporâneas?

(do artigo "Candidatos se acertam primeiro com a mídia", de 09-09-2008; in Observatório da Mídia).


Postado por Saul Leblon
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1003

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Considere estes países


04/06/2012 - Escrito por Otaviano Helene
- original publicado no site Correio da Cidadania

O país A tem um sistema de ensino bastante orientado pelos e para testes aplicados periodicamente aos estudantes. Como o desempenho dos estudantes nesses testes é considerado fundamental, professores são premiados ou punidos em função dos resultados obtidos por seus alunos. Escolas podem ser entregues à eficiência da administração privada com o objetivo de melhorar o desempenho dos estudantes. Com a mesma finalidade, aulas de Artes, História e atividades físicas são reduzidas em favor das disciplinas incluídas nos testes. Esse país A aplica, entre investimentos públicos e privados, 7,4% do seu PIB em educação. E, ainda, as dificuldades econômicas desse país têm sido atribuídas aos professores, que preparam mal suas crianças e seus jovens. Por causa disso e considerando os resultados dos alunos, professores ineficientes devem ser descartados rapidamente e normas e leis que dificultam ou impedem isso devem ser (e têm sido) eliminadas.

No país B não há testes padronizados aplicados às crianças. Segundo um pesquisador acadêmico desse país, caso os professores fossem avaliados a partir de teste aplicados a seus alunos, eles simplesmente abandonariam a profissão “e não retornariam até que as autoridades abandonassem essa idéia maluca”. As escolas do país B são administradas apenas pelo setor público e professores e professoras são estáveis, sendo muito difícil removê-los de suas funções. Nesse país, os professores têm liberdade do que e de como ensinar, desde que os currículos nacionais sejam respeitados. Esse país aplica, no total, 7,0% do PIB em educação e sua renda per capita é cerca de 20% inferior à renda per capita do país A.

Como se saem os estudantes desses dois países quando submetidos aos testes padronizados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), (1), aplicados a estudantes de 15 anos de idade? Será que os estudantes do país A, mais rico e que tem suas escolas e professores orientados para os testes, se saem melhor? Não. Os estudantes do país B se saem melhor, até mesmo, muito melhor. Paradoxal?

Não. De fato, há aspectos fundamentais que explicam esse aparente paradoxo. Os países A e B são, respectivamente, os EUA e Finlândia (2) e os resultados obtidos no PISA aplicado em 2009 aparecem, resumidamente, na tabela 1. Os testes aplicados são em leitura, matemática e ciências e em cada um desses quesitos o desempenho dos estudantes é classificado em níveis de um a seis. Os valores que aparecem na tabela correspondem a médias simples dos resultados naquelas três áreas avaliadas. Todos os resultados mostram um desempenho significativamente melhor dos estudantes finlandeses. E além da média finlandesa ser significativamente superior à média estadunidense, aquele país tem um percentual muito menor de estudantes com desempenho muito baixo (abaixo do nível 1) e um percentual significativamente maior de estudantes classificados no nível mais alto (nível 6). E, mais ainda, e possivelmente refletindo a menor desigualdade de renda, a dispersão relativa das notas recebidas pelos estudantes finlandeses, de 16%, é menor do que a dispersão das notas dos estadunidenses, de 19%.

Tabela 1 – Resultados do PISA 2009 (médias simples dos resultados em leitura, matemática e ciências).

                     Porcentagem dos estudantes
                     Abaixo do nível 1      Nível 6      Média      Dispersão das notas (%)
Finlândia                 1,0                    3,3           544                    16
EUA                         4,3                    1,6           496                    19
 


O que pode explicar as diferenças entre os dois países?
Certamente, o modelo educacional dos dois países faz a grande diferença. Entretanto, tentou-se procurar explicações para a diferença de desempenho entre os dois países em várias causas, evitando culpar o estilo empresarial de administração escolar e baseado em avalições permanentes de estudantes e em premiações e punições aos professores com base no desempenho dos seus alunos e das escolas onde trabalham. Um dos argumentos foi baseado na maior homogeneidade étnica populacional da Finlândia, um argumento de viés racista. Entretanto, esse argumento não sobreviveu, uma vez que, entre os 65 países ou regiões participantes do PISA, havia países homogêneos e heterogêneos nos dois extremos da classificação. Ou seja, o desempenho não está correlacionado com a homogeneidade da população. Outro argumento baseou-se no tamanho relativo das duas populações, 314 milhões nos EUA e 5,4 milhões na Finlândia. Entretanto, esse argumento também não prosperou. Primeiro, porque, como no caso da heterogeneidade da população, há países populosos e não populosos distribuídos entre os de melhor e pior desempenho: não há uma correlação entre o tamanho do país e o desempenho de seus estudantes. Além disso, nos EUA, como em muitos países mais populosos, a educação é administrada autonomamente pelos estados e muitos deles têm populações bastante pequenas, menores do que a finlandesa.

As explicações estão em outros lugares. Uma delas é quanto às condições de trabalho dos professores. Embora em ambos os países os salários iniciais na carreira sejam aproximadamente os mesmo, após 15 anos de experiência, os professores finlandeses são mais bem pagos, existindo, portanto, alguma motivação de caráter econômico para se dedicar à profissão. Outro fator, ainda, é que na Finlândia há uma distribuição de renda bem mais homogênea que nos EUA e, portanto, rendas aproximadamente equivalentes nos dois países podem significar reconhecimentos sociais muito diferentes.

Outro aspecto diz respeito às condições (educativas e acadêmicas) de trabalho dos professores. Na Finlândia, idéias que incluem a cultura dos testes, dos vouchers (que permitem mercantilizar o acesso às escolas), do pagamento de professores por mérito medido pelo desempenho dos estudantes em testes padronizados e da competição e avaliação dos professores a partir do desempenho de seus alunos são totalmente rejeitadas. Provas são usadas apenas para informar aos professores o andamento do trabalho, jamais para classificar, punir ou recompensar alunos, escolas ou professores. Como a profissão é respeitada e há boas e agradáveis condições de trabalho, as instituições de formação de professores são bastante procuradas e formam excelentes profissionais.

Avaliações comparativas por meio de testes, prêmios e punições não fazem parte do panorama educacional finlandês. A responsabilidade e a liberdade de adaptar o ensino aos seus estudantes são práticas usuais das escolas, dos diretores e dos professores.


Investimentos públicos versus privados
E quanto ao financiamento? Afinal os EUA aplicam um percentual maior do seu PIB em educação, 7,4%, contra 7,0% na Finlândia. Há aqui outro paradoxo? Não. O financiamento da educação na Finlândia é quase totalmente público, com apenas 0,2% do PIB correspondendo a gastos privados. Nos EUA, os gastos privados chegam a 2,0% do PIB. Portanto, o gasto público anual por estudante em comparação com a renda per capita é mais alto na Finlândia do que nos EUA, como mostra a tabela 2. Aparentemente, a relevância dos investimentos por estudante parece estar relacionada não apenas ao valor total, mas, especialmente, à origem, pública ou privada da fonte.

(Vale a pena observar aqui que esse mesmo efeito da maior eficiência dos gastos públicos em relação aos privados existe também na área de saúde. Enquanto os EUA gastam em saúde, por pessoa, mais do que 15% de sua renda per capita, contra uma média da ordem de 9% a 10% nos países europeus mais avançados, os seus indicadores de saúde são piores. De fato, a mortalidade infantil nos EUA é mais do que 50% superior à dos países europeus mais avançados e a expectativa de vida é entre um e dois anos menor. Mais um paradoxo? Não. Novamente, a grande diferença é possivelmente devida ao fato de que mais do que a metade dos gastos nos EUA são privados, contra cerca da quinta parte nos outros países considerados. Parece, portanto, que, como em educação, os gastos privados em saúde são muito menos eficientes do que os gastos públicos no que diz respeito a se alcançarem os objetivos básicos que se esperaria.)

Tabela 2 – Investimentos públicos e privados em educação e investimentos públicos por estudante como percentual da renda per capita. (Fonte: UIS, Unesco Institute for Statistics)
                                                                                                                                              Finl   EUA
Investimentos públicos (% do PIB) ......................................................... 6,8   5,4
Investimentos privados (% do PIB) em instituições educacionais ................... 0,2   2,0
Investimentos públicos por estudante como porcentagem da renda/capita .... 29,6  21,7


Com quem devemos aprender?
A comparação entre os dois países, EUA e Finlândia, mostra que caminho tomar. Premiação e punição de professores e escolas baseadas no desempenho dos estudantes em testes padronizados, feitos à exaustão, não são boa idéia, até mesmo para se conseguir bom desempenho em testes padronizados! Professores muito bem formados, respeitados e com liberdade de trabalho são condições fundamentais para o bom funcionamento de um sistema educacional. Escolas administradas pelo setor público, por mais altissonante que possa parecer o discurso em favor de uma administração empresarial e eficiente, são melhores quando todas as demais condições são equivalentes. Respeito às necessidades dos estudantes, tanto individuais como coletivas, é outro caminho para se construir um bom sistema educacional. E, também, uma melhor distribuição de renda pode tanto contribuir para a qualidade de vida dos professores como para o desempenho dos estudantes.

Além dos fatores considerados, vários outros problemas afetam o sistema estadunidense de educação. Entre esses problemas estão: o fundamentalismo religioso, que interfere nos currículos das escolas; as limitações de recursos materiais e institucionais que impeçam que as desigualdades entrem nas escolas e afetem seu funcionamento; a existência de grandes contingentes populacionais marginalizados, em especial no que diz respeito a crianças vivendo em situação de pobreza; ensino superior pago, mesmo quando público, constituindo-se uma barreira a mais no caminho dos estudantes; tratamento negativamente diferenciado para crianças e jovens provenientes de famílias de imigrantes. Muitos desses fatores têm origem em princípios religiosos, políticos e ideológicos e como e com que intensidade cada um deles afeta negativamente o desenvolvimento educacional das crianças e jovens naquele país tem sido motivo de estudos acadêmicos.


Embora a comparação até aqui tenha sido apenas entre Finlândia e EUA, as conclusões se repetem quando examinamos outros países.

Por exemplo, entre quatro países latino-americanos similares em vários aspectos e cujas rendas per capita estão na faixa entre 9 e 12 mil dólares anuais (pelo critério PPC), Cuba, Venezuela, Brasil e Colômbia, os dois primeiros, menos afetados por políticas de avaliação quantitativa e por práticas liberais do tipo vauchers, mostram indicadores educacionais quantitativos e qualitativos melhores ou muito melhores do que os dois últimos.

Outros quatro países também similares quanto à renda per capita (próximas a 15 mil dólares) e demais características, Argentina, Uruguai, Chile e México, os dois primeiros, menos liberalizados e menos voltados a uma educação de resultados (nos testes), apresentam melhores desempenhos.

Cabe, assim, uma pergunta impertinente. Por que, apesar das evidências, imitamos, especialmente no estado de São Paulo, políticas e práticas educacionais e sociais que já se mostraram tão perniciosas em muitos países? Por que não aprendemos com aqueles que melhor acertam?

Notas:
(1) O PISA, Programme for International Student Assessment, é um teste padronizado, aplicado a cada três anos a estudantes de dezenas de países e que inclui avaliações de leitura, matemática e ciências.

(2) Parte das informações e das análises deste texto são baseadas no artigo Schools We Can Envy (Escolas que nós podemos invejar), escrito por Diane Ravitch e publicado no New York Review of Books em 8 de março de 2012. A autora ocupou cargos relativamente altos na Secretaria (equivalente ao nosso Ministério) de Educação dos EUA.
 
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7224:submanchete040612&catid=72:imagens-rolantes

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Corrupção e farsas

06/06/2012 - por Antonio Fernando Araujo

[Nota do Educom: embora entendamos que o tema "combate à corrupção" não deva ser Programa de Governo, sua manutenção é uma tarefa essencial e que se insere entre as obrigações chaves de qualquer um, tal como combater a sonegação de impostos (em volume de recursos, cerca de 28 vezes maior do que os desviados pela corrupção), a pedofilia, o contrabando, o racismo, etc. e até mesmo pagar em dia o funcionalismo, os fornecedores, assim como prover a merenda escolar de qualidade e de forma regular.

A grande mídia empresarial adora nos confundir. Capitaneada, como se diz, pela Família GAFE da Imprensa (Globo/Abril/Folha/Estadão) vende-nos a ideia de que somos os maiores pagadores de impostos do mundo, ao mesmo tempo em que despreza os estudos da The Heritage Foundation (sediada em Londres) que situa o Brasil em 31º lugar em carga tributária (dados de 2010), ou seja, existem 30 países com carga tributária maior que a do Brasil. Destes, 27 são países de grande desenvolvimento humano, europeus em geral.

Aproveitam então para incitar o clamor "- Ah, mas a população não vê o resultado dos impostos recolhidos", omitindo propositalmente as conclusões que mostram as análises comparativas com outros países, quando entram em cena não apenas o frio percentual que pouco diz e o volume de impostos recolhidos, mas, principalmente, o PIB de cada país e a correspondente arrecadação per capita. Neste capítulo e visto desta forma, o Brasil se situa em 52º lugar, segundo a mesma Fundação, em arrecadação per capita, e por conta disso recolhe 5 vezes menos impostos que os tais países mais desenvolvidos. E aí fica a pergunta: como prover serviços de Primeiro-Mundo com impostos de Terceiro?

Isso sem contar a maneira como essa mesma mídia suprime a natureza perversa que caracteriza a forma regressiva de recolhimento de impostos no Brasil, onde os pobres, relativamente, pagam mais impostos que os ricos. Isso tudo daria conhecimento ao público brasileiro da verdadeira dimensão do cenário de impostos no país e das verdadeiras causas do raquítico retorno comparativo em serviços proporcionados pelos governos nas 3 esferas. E mais: ciente do quanto os temas de cunho moral são sensíveis ao eleitor e com o indisfarçável intuito de desgastar, junto a esses eleitores, os governos (especialmente o federal) aos quais ela se opõe, espertamente tratou de eleger a corrupção como um "cancer" de grandes proporções, contaminando de tal forma o inconsciente coletivo, que foi capaz até de disseminar a ideia de que, não apenas somos o povo que mais paga imposto sem retorno, como ostentamos o troféu do país mais corrupto do mundo, como se todos os governos fossem lenientes com esse mal.

Nesse esforço de se destacar como um indisfarçável partido de oposição, como frisou Judith Brito, diretora da ANJ (Associação Nacional dos Jornais) e do diário Folha de São Paulo, as denúncias sempre foram seletivas, o destaque, as manchetes e as capas das revistas semanais se destinam apenas aos adversários políticos enquanto aos partidários amigos, como, de um modo geral o são, os governos do PSDB, quando citados, as denúncias se resumem apenas a uma breve nota e no dia seguinte não se fala mais nisso, a menos que a coisa fuja do controle e, pra não perder leitores e, mais tarde, ainda ser taxada de omissa (como foi O Globo, nas Diretas-Já, quando noticiou o comício em São Paulo como sendo uma comemoração pelo aniversário da cidade) se vê obrigada a aderir a grita geral.

Essa forma mentirosa, leviana e discriminatória de combater a corrupção, já por inúmeras vezes denunciada por jornalistas, juristas, sociólogos, por pessoas enfim, de uma estatura moral inquestionável, acaba de vir à tona, pelo menos em parte, com as denúncias em torno do "caso Veja-Demóstenes-Cachoeira", que de tão grande alcance em que se tornou já incomoda até os calcanhares do Procurador Geral da República e de um controverso ministro do STF.

Esse mesmo comportamento, inadequado à ética jornalística, foi o que não permitiu, sequer, que os leitores soubessem dos modestos avanços brasileiros no até então inédito combate à chaga da corrupção. Quase sempre protagonizado pela Polícia Federal (mais de 1.200 operações entre 2003 e 2010, contra menos de 100, entre 1995 e 2002 - conforme dados do Portal da PF) em todos os cantos do país, esse empenho na luta anti-corrupção - que além de empresários, incluiu funcionários públicos -, foi o fator que mais contribuiu para que, entre 2008 e 2010, víssemos elevada a pontuação brasileira de 3,5 para 3,7 e com ela a posição no "ranking" mundial avançar positivamente do 80º lugar para o 69º, na avaliação que, a cada ano, a empresa Transparência Internacional, sediada em Berlim, mede, objetivando classificar o que chamam de "percepção da corrupção", em cerca de 180 países. Tal medição que, inclusive, nos coloca melhor situados do que a poderosa China, não recebeu uma mínima citação dessa mídia, zelosa tanto na não citação dessas conquistas, quanto em esconder o nome, o logotipo e o CNPJ dos grandes corruptores (não de pequenos "bagres", como exibiu o Fantástico) e dos campeões brasileiros em sonegação de impostos, contumazes prevaricadores que só agem nas sombras.

Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, o que nos leva a publicar adiante trechos pinçados de três anos sucessivos e cronologicamente postados aqui, de alguns articulistas que tratam com seriedade desse assunto, visa dar aos leitores uma visão adicional, aquela que julgamos a mais adequada sobre o assunto, como uma espécie de complemento do que aqui escrevemos, no instante em que "bomba" no Congresso a CPMI do Cachoeira e está às portas o julgamento, pelo STF, do escândalo que ficou conhecido como "mensalão". Esperamos que seja uma contribuição positiva na medida em que, favorecendo o debate, também esclareça.]

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Mauro Santayana, jornalista e ex-adido cultural, em 24/02/2010
A crise da razão política e a maldição de Brasília

Todos os pensadores políticos, de Aristóteles a Hans Kelsen, passando por Maquiavel e os filósofos moralistas ingleses e franceses, advertem contra o mau exemplo dos grandes. Uma sociedade apodrece quando seus líderes perdem a virtude do mando. Perón usou – em meio à conspiração que o derrubaria – uma boa frase, quando descobriu que seu cunhado, depois da morte de Evita, estava praticando falcatruas: “Los gobiernos, como el pescado, empiezan a pudrirse por la cabeza”.

Aristóteles, em Ética a Nicômaco, assegura que o comportamento ético se adquire com o hábito de agir corretamente. O habito da virtude fortalece e aumenta a virtude, qualquer virtude, e ele dá o exemplo da coragem: é com o hábito de enfrentar o perigo que nos tornamos corajosos; e é quando nos tornamos corajosos que nos encontramos no máximo grau de enfrentar qualquer perigo. A mesma ideia serve para o processo septicêmico das sociedades políticas. É quando nos sentimos covardes que tememos até mesmo os ratos: e é a ousadia dos grandes corruptos que torna as sociedades lenientes com a corrupção.

Há muito tempo se diz que a boa-fé é a alma de um grande governo”, assim Montesquieu inicia uma de suas Cartas Persas, que serviram de modelo às Cartas Chilenas, de Tomás Antonio Gonzaga. Ele se refere, em seguida, a uma hipotética nação das Índias, naturalmente generosa, “pervertida em um instante, do menor de seus indivíduos ao maior deles, pelo mau exemplo de um ministro”. Montesquieu vai adiante: “Vi nascer, de repente, uma sede insaciável de riquezas. Vi formar-se, em um momento, detestável conjuração em busca do enriquecimento, não por um trabalho honesto e uma indústria generosa mas, sim, pela ruína do Estado e de seus concidadãos”.

O que define a ética de um homem de Estado é sua ação na defesa da sociedade que lidera, na busca da igualdade e da justiça. Mas, mesmo se for senhor das mais excelsas virtudes pessoais, ele terá que obedecer a uma vontade maior e acima de seus próprios valores: a lei.

Os legisladores estão fugindo dos princípios e valores aos quais se atavam. Esse é o caso, por exemplo, da situação de Brasília. Durante o governo militar, a cidade foi feudo de contubérnios entre os ditadores de turno, empreiteiros, jornalistas acomodados e servidores públicos de alto nível. O sistema de mordomias tornava a cidade a Ilha da Fantasia. Os grandes jantares, oferecidos pelos ministros, eram de invejar armadores gregos, com faisões, caviar Beluga, vinhos importados. Não havia limites para a ostentação. Um dos ministros, morando em residência do governo, mandou fazer uma piscina em forma de J, porque se chamava Jost.

Assim como o hábito da virtude consolida a virtude, o vício infla o vício, e Brasília se tornou cidade assolada pela corrupção. As “mordomiasdeixaram de existir com a redemocratização de 1985, por prévia determinação de Tancredo. Só o presidente e o vice-presidente têm hoje sua despensa abastecida pelos contribuintes. Mesmo assim, durante seu curto governo, Itamar foi cuidadoso com esse direito. Quando seus auxiliares almoçavam com o presidente, as despesas eram quase sempre divididas. Seu governo só ofereceu jantares protocolares aos chefes de Estado estrangeiros, nas visitas e reuniões oficiais, como as do Mercosul.

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Miguel do Rosário, filósofo, jornalista e blogueiro, em 17/09/2011
Ética e jogo político

Milhares de pessoas saem em todo Brasil para cobrar ética na política. O Globo divulga fotos na capa e na terceira e quarta páginas (as áreas mais nobres do jornal). A manchete diz: "Pelo país, protestos contra a corrupção". O subtítulo: "atos foram convocados pela internet".

Quem sou eu para ser contra protestos contra a corrupção?

No entanto, acho curioso que os jornais digam que "os atos foram convocados pela internet" se todos eles divulgaram data, local e até mapas na véspera.

É a mesma coisa que aconteceu em março de 1964. A imprensa fez uma grande campanha de mobilização da sociedade, através da força de seus instrumentos de comunicação de massa; entrevistava autoridades e entidades (as mesmas de hoje: OAB, ABI, Fiesp, Firjan...), que afirmavam apoiar a manifestação e que estariam presentes; e depois dizia que as pessoas haviam acorrido "espontaneamente".

Os órgãos de imprensa, que hoje formam a cabeça do "estamento" político da direita (conforme o conceito de Max Weber), querem associar-se às manifestações de massa para produzirem a impressão de que as suas ideias tem respaldo popular. Mas lhes interessa que essas manifestações não tenham líderes, não produzam organizações civis, que não sejam vinculadas a nenhum movimento social, partido político ou sindicato. Na matéria do Globo, deu-se destaque a hostilidade dos manifestantes a qualquer símbolo de alguma entidade civil organizada.

Quais são as propostas concretas que os manifestantes oferecem à sociedade?

Na verdade, uma manifestação contra a corrupção é como fazer uma manifestação contra a maldade: é uma manipulação da ingenuidade das pessoas.

Tenho me convencido, nos últimos tempos, que a sociedade manipulada pela mídia é inocente. Sinto-me cada vez mais inclinado a ver o que chamamos de classe média conservadora e alienada como vítima. Claro que o egoísmo entra em jogo aqui com muita força. Mas a partir do momento em que a informação disponibilizada para todo um grupo social vem somente de uma fonte, é inevitável que acarrete um processo de homogeneização (no caso, conservadora) ideológica de todo este grupo.

Ora, todos nós somos contra a corrupção. É saudável, da mesma forma, que a sociedade se mobilize para pedir reformas. O lado sombrio dessas manifestações, contudo, é que elas inscrevem-se na campanha sistemática da mídia para satanizar as instituições políticas.

Há muita corrupção no Brasil e ela deve ser combatida. Eu tenho prestado apoio aqui todo meu apoio à "faxina" da presidente, mesmo sabendo que a narrativa das ações governamentais tem sido em grande parte sequestrada por setores midiáticos de oposição. Não tem importância. Em política, assim como nas artes marciais, pode-se usar a força do adversário contra ele mesmo. A mídia quer fazer campanha contra a corrupção? Ótimo. A esquerda política pode dar o drible da vaca e usar isso para, de fato, fazer uma limpeza ética no país, investindo pesadamente em ações da Polícia Federal.

Na última vez que o governo federal fez isso, na era lulista, a mídia pediu arrego, assustada com o desfile de altos empresários, magistrados, políticos, entrando algemados em camburões. A mesma OAB que hoje apoia as manifestações contra a corrupção deu, na época, declarações de defesa aos empresários presos por sonegação de imposto. Não esqueço: presidente e diretores da OAB defendendo as falcatruas das proprietárias da Daslu. Não esqueço: editoriais e mais editoriais contra o "estado policial".

Na minha opinião, portanto, devemos apoiar as manifestações contra a corrupção, mas dar-lhes uma consequência. Vamos ampliar ainda mais a Polícia Federal. Vamos endurecer as leis contra políticos, funcionários públicos e empresários (sim, não esqueçamos os empresários!) envolvidos em prevaricação. Vamos exigir mais transparência nos gastos governamentais, em todas as esferas. Essa é uma agenda importante, até mesmo prioritária, porque se esses desvios não representam muita coisa (percentualmente falando) a nível federal, eles constituem uma verdadeira tragédia nos municípios.

Não há frase melhor para fechar esse post do que um misterioso verso de Arthur Rimbaud: "Enquanto recursos públicos se evaporam em festas de fraternidade, um sino de fogo rosa soa nas nuvens."

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Vladimir Safatle, professor da Faculdade de Filosofia da USP, em 02.05.2012
Política de uma nota só

Há várias maneiras de despolitizar uma sociedade. A principal delas é impedir a circulação de informações e perspectivas distintas a respeito do modelo de funcionamento da vida social. Há, no entanto, uma forma mais insidiosa. Ela consiste em construir uma espécie de causa genérica capaz de responder por todos os males da sociedade. Qualquer problema que aparecer será sempre remetido à mesma causa, a ser repetida infinitamente como um mantra.

Isto é o que ocorre com o problema da corrupção no Brasil. Todos os males da vida nacional, da educação ao modelo de intervenção estatal, da saúde à escolha sobre a matriz energética, são creditados à corrupção. Dessa forma, não há mais debate político possível, pois o combate à corrupção é a senha para resolver tudo. Em consequência, a política brasileira ficou pobre.

Não se trata aqui de negar que a corrupção seja um problema grave na vida nacional. É, porém, impressionante como dessa discussão nunca se segue nada, nem sequer uma reflexão mais ampla sobre as disfuncionalidades estruturais do sistema político brasileiro, sobre as relações promíscuas entre os grandes conglomerados econômicos e o Estado ou sobre a inexistência da participação popular nas decisões sobre a configuração do poder Judiciário.

Por exemplo, se há algo próprio do Brasil é este espetáculo macabro onde os escândalos de corrupção conseguem, sempre, envolver oposição e governo. O que nos deixa como espectadores desse jogo ridículo no qual um lado tenta jogar o escândalo nas costas do outro, isso quando certos setores da mídia nacional tomam partido e divulgam apenas os males de um dos lados. O chamado mensalão demonstra claramente tal lógica. O esquema de financiamento de campanha que quase derrubou o governo havia sido gestado pelo presidente do principal partido de oposição. Situação e oposição se aproveitaram dos mesmos caminhos escusos, com os mesmos operadores. Não consigo lembrar de nenhum país onde algo parecido tenha ocorrido.

Uma verdadeira indignação teria nos levado a uma profunda reforma política, com financiamento público de campanha, mecanismos para o barateamento dos embates eleitorais, criação de um cadastro de empresas corruptoras que nunca poderão voltar a prestar serviços para o Estado, fim do sigilo fiscal de todos os integrantes de primeiro e segundo escalão das administrações públicas e proibição do governo contratar agências de publicidade (principalmente para fazer campanhas de autopromoção). Nada disso sequer entrou na pauta da opinião pública. Não é de se admirar que todo ano um novo escândalo apareça.

Nas condições atuais, o sistema político brasileiro só funciona sob corrupção. Um deputado não se elege com menos de 5 milhões de reais, o que lhe deixa completamente vulnerável -para lutar pelos interesses escusos de financiadores potenciais de campanha. Isso também ajuda a explicar porque 39% dos parlamentares da atual legislatura declaram-se milionários. Juntos eles têm um patrimônio declarado de 1,454 bilhão de reais. Ou seja, acabamos por ser governados por uma plutocracia, pois só mesmo uma plutocracia poderia financiar campanhas.

Mas como sabemos de antemão que nenhum escândalo de corrupção chegará a colocar em questão as distorções do sistema político brasileiro, ficamos sem a possibilidade de discutir política no sentido forte do termo. Não há mais dis-cussões sobre aprofundamento da participação popular nos processos decisórios, constituição de uma democracia direta, o papel do Estado no desenvolvimento, sobre um modelo econômico realmente competitivo, não entregue aos oligopólios, ou sobre como queremos financiar um sistema de educação pública de qualidade e para todos. Em um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário internacional, nossa contribuição para a reinvenção da política em uma era nebulosa no continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de zero.

Tem-se a impressão de que a contribuição que poderíamos dar já foi dada (programas amplos de transferência de renda e reconstituição do mercado interno). Mesmo a luta contra a desigualdade nunca entrou realmente na pauta e, nesse sentido, nada temos a dizer, já que o Brasil continua a ser o paraíso das grandes fortunas e do consumo conspícuo. Sequer temos imposto sobre herança. Mas os próximos meses da política brasileira serão dominados pelo duodécimo escândalo no qual alguns políticos cairão para a imperfeição da nossa democracia continuar funcionando perfeitamente.