sábado, 18 de fevereiro de 2012

O MUNDO DOS “ZUMBIS”

 Laerte Braga




O incêndio numa prisão em Honduras matou perto de 400 presos. O “presidente” Pepe Lobo foi à tevê e em rede nacional disse que ia determinar a apuração dos fatos, punir os responsáveis e assistir às famílias dos mortos. A mídia domesticada – corrupta – não fala em presos políticos, mas em criminosos comuns.

No extinto estado do Espírito Santo, hoje dirigido por um fantoche do líder da principal máfia política local, um estudante foi preso por protestar contra o aumento das tarifas dos transportes coletivos urbanos e levado para um presídio de segurança máxima onde ficou por sete dias.

Foi preso pelos “bravos” soldados da PM – uma aberração em se tratando de polícia – e acusado da posse de explosivos. Não existiam esses. A transferência para um presídio de segurança máxima é a típica atitude de “autoridade H2o”. Ou o “teje preso”.

Honduras, com a deposição do presidente Manoel Zelaya vive um regime de terror imposto pelas elites que governam o país desde sua fundação e hoje se subordinam aos EUA. Nos arredores de Tegucigalpa, capital, está a maior base norte-americana na América Latina, conhecida como “escola de golpes”.

Lá foram planejados e montados golpes militares em vários países latino-americanos, um governo fora dos parâmetros traçados por Washington – caso de Zelaya – seria um complicador sem tamanho para os Estados Unidos.

Pepe Lobo é o típico representante de uma elite tacanha, bisonha e que ainda não descobriu nem a roda e nem o garfo e a faca. O fogo sim. Usa-o para eliminar inimigos do regime, misturados a uns poucos presos comuns (que são seres humanos e têm direitos básicos) e aí, em rede de tevê, contando com a cumplicidade da mídia domesticada – caso GLOBO no Brasil, RECORD, BAND, Folha de São Paulo, Veja, etc –, vende a idéia cristã e democrática que de fato preside Honduras e manda alguma coisa. Pode até mandar, mas depois de consultar o comandante da base norte-americana no país.

É mais ou menos como aqueles sargentos vendidos em massa pelos filmes patrióticos de Hollywood. Ironizados num anúncio de determinada marca de canos. Quem entra por esse tipo de cano são presos políticos. A avenida da “democracia” é pavimentada sobre corpos de adversários políticos e abençoada pelo crucifixo que criminosamente Pepe Lobo coloca ao alto do fundo que se presta ao seu discurso de “líder” cristão e democrático.

O governo de ultra-direita do Chile foi chamado a fornecer peritos para identificar os corpos carbonizados. O relatório final já está pronto, os “especialistas” vão apenas sacramentar a explicação do governo para a chacina.

Líderes católicos, entidades de direitos humanos denunciam a farsa e o crime hediondo. A mídia tradicional silencia.

O julgamento de Lindemberg Alves, um criminoso comum, vira manchete prioritária em todo o Brasil, na ânsia de alimentar a alienação dos “zumbis” conduzidos ao estilo Big Brother.

A prisão de um estudante em flagrante violação à lei num presídio de segurança máxima foi tão somente a costumeira tentativa de intimidar, coagir e assim buscar que os protestos contra o fantoche que imagina governar alguma coisa (Paulo Hartung governa o extinto Espírito Santo hoje um condomínio de máfias chamadas empresas), não aconteçam, os desmandos sejam acatados.

Notícias desse tipo de fato só fora da mídia de mercado. O silêncio é absoluto sobre assuntos assim. Tanto na mídia nacional, quando na estadual. São braços das quadrilhas.

Isso equivale a tratar o cidadão como objeto de segunda categoria na mentira de cada dia em redes de tevê, jornais e revistas.

Se listados os abusos – e são muitos os relatórios que condenam o Brasil por procedimentos abusivos de autoridades e polícia militar principalmente – contra direitos humanos, a quantidade de papel a ser gasta será absurda.

Pior que isso é o incitamento direto e indireto, via mídia, que direitos humanos são eufemismo para proteger criminosos. Abre espaços para barbáries em Honduras, no extinto Espírito Santo, em Guantánamo – campo de concentração montado pelos EUA em território ocupado de Cuba – e assim por diante. Mas vira “bandeira” quando um robô/jornalista defende assassinatos seletivos.

A afirmação feita pela presidente do Brasil, Dilma Roussef que “direitos humanos não podem ser uma arma ideológica”, a despeito dos rumos do governo, é precisa, correta.
Chegou-se a um ponto que o robô/jornalista – Caio Blinder – defende publicamente numa rede de tevê via satélite a validade e a necessidade dos assassinatos seletivos praticados por serviços secretos norte-americanos e israelenses, como forma de defender a “democracia”, a “paz”. E é secundado por um foragido da justi
ça brasileira o jornalista Diogo Mainardi. Não há espanto e nem indignação por um disparate desses.

A dose de anestesia aplicada pela mídia paralisa o que William Bonner chamou de “Homer Simpson, o público/vítima desse tipo de informação.

É o grande desafio das forças populares. Acordar, despertar desse estado as pessoas que a cada dia mais marcham como “zumbis” numa ordem desordenada que mantém intactos privilégios e leva o ser humano a uma condição de objeto/abjeto.

Os ataques do governo sírio contra rebeldes e mercenários financiados pelos norte-americanos vão ser sempre violação dos direitos humanos e o são numa boa medida (pelo caráter ditatorial do governo). A destruição da Líbia em nome de interesses de empresas e bancos do cartel ISRAEL/EUA TERRORISMO S/A foram divulgados como “missão libertadora”. A desordem na Líbia após a “ajuda humanitária” da OTAN (braço do terror capitalista) é de tal dimensão que as tribos brigam entre si e forças remanescentes do governo de Kadafi começam a ganhar espaço.

Na Grécia, um levante popular, protestos e luta contra pacotes impostos por bancos e grandes corporações, que sugam mais ainda os trabalhadores são vistos como manifestações de inconformismo diante do “estupro inevitável”. A necessidade de salvar a Comunidade Européia. O que é isso a não ser um arranjo das classes dominantes?

Cada vez mais, em países considerados “democráticos”, o poder popular é menor. Limita-se ao voto na presunção que isso é o bastante e ato contínuo os governantes entram na imensa bolha do capitalismo e só retornam ao mundo dos “zumbis” quando for novamente a hora de votar.

Não há quem seja “zumbi” por vontade própria, pelo menos nessa condição. Mas há um claro processo de formação de legiões de “zumbis” dóceis, servis à ordem dominante e em caso de reação a borduna. Seja em Honduras, no extinto Espírito Santo, no Egito, em qualquer canto do mundo onde prevaleça a informação que defende “assassinatos seletivos” pela “paz” e pela “democracia”.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Existe um novo ‘Pinheirinho’ no horizonte

Uma nova Pinheirinho sendo preparada - Enviado por luisnassif, qua, 01/02/2012 - 11:19 - Do Diário de S. Paulo - Luis nassif online


Em 35 dias, favela do Savoy, em Carapicuíba, será desocupada por polícia militar cumprindo ordem judicial - JUCA GUIMARÃES


Favela Jaguaré
A definição de pobreza ganha cores fortes numa das favelas mais carentes de um dos municípios mais pobres da Grande São Paulo. No próximo dia 6 de março, os cerca de cinco mil moradores que constituem as cinco mil famílias da favela do Savoy, em Carapicuíba, irão perder o lugar onde moram. A Polícia Militar fará uma ação de reintegração de posse no terreno de 300 mil m² onde fica a favela do Savoy desde 2003, mesmo ano em que começou a invasão da favela do Pinheirinho, em São José dos Campos, que também foi desocupada no último dia 22 pela PM e pela guarda municipal numa operação que mais pareceu uma praça de guerra e recebeu críticas até da presidente Dilma Rousseff.

Caminhar pelas vielas da Savoy requer equilíbrio e atenção redobrada. O terreno de terra batida é irregular e íngreme. Ratos, entulho e esgosto a céu aberto estreitam ainda mais o caminho. Porém, foi a única opção que as famílias encontraram para escapar do aluguel.

Parapicuíba

A história do início da favela ainda está fresca na memória dos moradores. “Aqui era uma mata fechada. Aconteciam estupros e era muito perigoso. Os moradores das favelas vizinhas que moravam de aluguel se uniram e invadiram. Foram semanas limpando o terreno removendo a terra. Até as crianças ajudaram”, contou a recepcionista Nilda dos Santos, 38 anos.

A Savoy Imobiliária Construtora administra o terreno e entrou na Justiça pela reintegração de posse. Desde 2005, em nome dos herdeiros do terreno, a Savoy tenta a desocupação da favela que ganhou o mesmo nome da empresa. “Não se pode ignorar a lei para reconhecer um direito. Entendo que as pessoas têm o direito à moradia, porém elas devem pleitear isto junto ao poder público e não invadir uma área privada”, disse Otávio Caetano, advogado da Savoy.

Fim do sonho

Favela Savoy
No último dia 25, os moradores da favela receberam a notificação da PM sobre a reintegração, marcada para começar às 6h de uma terça-feira. “A minha mulher não consegue mais dormir. Ela passa o tempo todo apreensiva contando os dias e as horas para a destruição de todos os nossos sonhos”, disse o auxiliar de limpeza Renildo da Silva, 54 anos. Há cinco na favela.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Outra novela do mensalão vem aí

16/02/2012 - Gilson Caroni Filho - Mensalão: o anúncio do grotesco midiático
blog Viomundo

A manchete do jornal O Globo, em sua edição de 15 de fevereiro de 2012 (“Marcos Valério é o primeiro condenado do Mensalão”), não deixa dúvidas quanto ao espetáculo que dominará páginas e telas depois do carnaval: à medida em que se aproxima o julgamento do processo que a imprensa chama de “escândalo da mensalão”, velhos expedientes são reeditados sem qualquer cerimônia que busque manter a aparência de jornalismo sério.

A condenação do publicitário por crimes de sonegação fiscal e falsificação de documentos públicos seria, mesmo que não surjam provas de conduta delituosa por parte dos réus, a senha para o STF homologar a narrativa midiática e não ficar maculado pela imagem de “pizza” que uma absolvição inevitavelmente traria à mais alta corte do país. Essa é a intimidação diária contida em artiguetes e editoriais.

Como destaca Pedro Estevam Serrano, em sua coluna para a revista CartaCapital, "o que verificamos é a ocorrência constante de matérias jornalísticas em alguns veículos que procuram nitidamente criar um ambiente de opinião pública contrária aos réus, apelando a matérias mais dotadas da verossimilhança dos romances que à verdade que deveria ser o mote dos relatos jornalísticos".

Os riscos aos pilares básicos do Estado Democrático de Direito são nítidos na empreitada. Serrano alerta para o objetivo último das corporações:
“E tal comportamento tem intenção política evidente, qual seja procurar criminalizar o PT e o governo Lula, pois ao distanciar o julgamento de sua concretude por relatos abstratos e simbólicos o que se procura pôr no banco dos réus não são apenas as condutas pessoais em pauta mas sim todo um segmento político e ideológico.”

A unificação editorial em favor da manutenção dos direitos do CNJ em votação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) não revela apenas preocupação com o indispensável controle externo do poder judiciário, mas o constrangimento necessário de juízes às vésperas de um julgamento que envolve, a construção política mais cara à mídia corporativa. No lugar do contraditório, a imposição de uma agenda. Ocupando o espaço da correta publicidade dos fatos, a recorrente tentativa de manipulação da opinião pública. A trama, no entanto, deve ser olhada pelo que traz de pedagógico, explicitando papéis e funções no campo jornalístico.

O pensamento único, para o ser, não basta ser hegemônico; tem que ser excludente. Não apenas de outros pensamentos, mas do próprio pensar. Parafraseando Aldous Huxley, “se o indivíduo pensa, a estrutura de poder fica tensa”. Na verdade, na sociedade administrada não pode haver indivíduo. Apenas a massa disforme, cujo universo cognitivo e intelectivo é, de alto a baixo, subministrado pelos detentores do poder social. É nessa crença que se movem articulistas, editores e seus patrões.

Em um sistema de dominação é essa, e nenhuma outra,, a função da “mídia”: induzir o espírito de manada, o não-pensar, o abrir mão da razão e aderir entusiasticamente à insensatez programada pelos que puxam os cordões. Os fracassos recentes não nos permitem desdenhar do capital simbólico que as corporações ainda detêm para defender os seus interesses e o das frações de classe a ela associadas.

Nesse processo, o principal indutor é o “Sistema Globo”, que o falecido Paulo Francis, antes de capitular, apropriadamente crismou como “Metástase”, pois de fato suas toxinas se espalham por todo o tecido social. Seus carros-chefe, que frequentemente se realimentam reciprocamente, são o jornal da classe média conservadora e, principalmente, o Jornal Nacional, meticulosamente pautado “de [William] Bonner para Homer [Simpson]“ que, de segunda a sábado, despeja ideologia mal travestida de notícia sobre dezenas de milhões de incautos.

E o que “deu” no Jornal Nacional “pauta” desde as editorias dos jornais impresso — O Globo por cima e o Extra por baixo — e das revistas, “da casa” ou de uma “concorrência” cujo único objetivo é ser ainda mais sensacionalista e leviana. Algumas vezes, o movimento segue o sentido inverso: uma publicação semanal produz a ficção que só repercute graças à reprodução da corporação.

Os outros instrumentos de espetaculosidade complementam o processo, impondo suas versões de pseudo-realidade: o Fantástico, ersatz dominical do JN; as novelas “campeãs de audiência”, com seus “conflitos” descarnados e suas “causas sociais” oportunisticamente selecionadas como desconversa; e, culminando, o Big Brother Brasil, a celebração máxima da total vacuidade.

Processo análogo vem sendo usado, há mais de duas décadas, para esvaziar e despolitizar a política, reduzindo-a às futricas de bastidores, ao “em off” e aos “papos de cafezinho”; e, em época eleitoral, à corrida de cavalões das pesquisas de intenção de voto que ocupam as manchetes, o noticiário, as colunas – ah, as colunas! – e até mesmo a discussão supostamente acadêmica. A não menos velha desconversa nacional: olha todo mundo pra cá, e pela minha lente, para que ninguém olhe pra lá.

Falar-se em “opinião pública”, nesse cenário, é um escárnio. “Opinião” pressupõe um espaço interno, em cada indivíduo, para reflexão, ponderação, crítica e elaboração, não controlado pelo poder social. “Pública” requer que exista uma esfera pública, de discurso racional entre iguais, aberto ao contraditório e não subordinado aos ditames do “mercado” ou subministrado de fio a pavio pelo braço “midiático” do mesmo poder. Nem uma nem outra condição pode existir em ambiente que tenta subjugar “corações e mentes”, induzindo-o sistemática e deliberadamente à loucura social.

Avançamos bastante, mas não nos iludamos: o que vem por aí é uma luta renhida. De um lado, o espetáculo autoritário. E, de outro, a cidadania e o Estado de Direito como permanente construção.

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PS do Viomundo:
Vimos de dentro o processo de dar pernas às capas da Veja. Elas pulavam direto para o Jornal Nacional de sábado e ganhavam a imprensa escrita na semana seguinte. A primeira novela do mensalão ocupou toda a campanha de reeleição de Lula, em 2006.

Em nome da equidade, a Globo dava 50 segundos para cada candidato. Tinha dia em que três candidatos atacavam o governo (150 segundos), contra 50 segundos de Lula.

Foi nesse período que o então editor de economia do Jornal Nacional em São Paulo, Marco Aurélio Mello, recebeu a ordem para “tirar o pé” da cobertura econômica (o crescimento da venda de cimento, no cálculo da Globo, era notícia positiva para Lula). Além disso, poderia atrapalhar a paginação do JN, que vinha carregada de matérias investigativas contra o governo.

Quando a pressão interna conseguiu emplacar uma única pauta sobre o escândalo das ambulâncias, que poderia atingir indiretamente o candidato do PSDB ao governo paulista, José Serra, ela foi feita, editada, mas nunca entrou no ar! O problema é que o escândalo das ambulâncias superfaturadas estava na conta do PT, apesar de Lula ter “herdado” o esquema do “governo anterior” (eufemismo da Globo quando era inconveniente falar em governo FHC ou governo do PSDB). A matéria arquivada tinha um único dado comprometedor: 70% das ambulâncias superfaturadas tinham sido entregues na gestão de José Serra como ministro da Saúde — e do sucessor que ele deixou na vaga quando concorreu ao Planalto, em 2002. Isso, sim, era de estragar a paginação do JN. Descrevi isso melhor no post "O que eu pretendia dizer na TV sobre as ambulâncias de Serra"  (http://www.viomundo.com.br/denuncias/o-que-eu-pretendia-dizer-na-tv-sobre-as-ambulancias-de-jose-serra.html).

A perseguição ao jornalista Lúcio Flávio Pinto

15/02/2012 - Do Balaio do Kotscho - Jornalista ameaçado: somos todos Lúcio Flávio

Caros leitores e colegas jornalistas, trabalhei durante muitos anos com um jornalista excepcional: Lúcio Flávio Pinto, um paraense de notável coragem, que dedicou toda sua vida pessoal e profissional a divulgar e defender a sua terra e a sua gente. É o maior especialista em Amazônia do jornalismo brasileiro.

É, acima de tudo, um estudioso, um trabalhador incansável, que não se conforma com as injustiças e as bandalheiras de que são vítimas a floresta e o povo que nela habita. Por isso, foi perseguido a vida toda pelos que ameaçam a sobrevivência desta região transformando as riquezas naturais em fortunas privadas.

Agora quem está ameaçado é o próprio Lúcio Flávio, na sua luta solitária contra dezenas de processos movidos pelos poderosos na Justiça para impedí-lo de continuar denunciando os assassinos da floresta.
Quem sempre esteve ao seu lado foi Raul Martins Bastos, nosso chefe no "Estadão", que me enviou na noite de segunda-feira a mensagem transcrita abaixo. É um libelo não só em defesa do grande jornalista, mas da nossa profissão permanentemente ameaçada nos tribunais.
Onde estão nesta hora as poderosas entidades patronais da mídia, como a ANJ e o nstituto Millenium, e seus arautos sempre tão preocupados na defesa da liberdade de imprensa e de expressão?
Lúcio está fora da grande imprensa há muitos anos, sobrevivendo com o seu "Jornal Pessoal", um quinzenário que produz sozinho. Talvez por isso não mereceça a atenção dos editorialistas dos jornalões e das entidades que costumam se manifestar nestas horas, como a OAB e a CNBB.
Cabe, portanto, a nós, jornalistas, sair em sua defesa como propõe o mestre Raul Bastos e sermos todos Lúcio Flávio nesta hora.

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"A indignidade que estão fazendo contra o jornalista Lúcio Flávio Pinto"
é o título do texto-apelo de Raul Bastos:

"Peço que você não deixe de ler esta nota. É a história de uma injustiça. Uma indignidade.

 
Lúcio Flavio Pinto é um jornalista de Belém do Pará que há quase vinte anos edita uma publicação chamada Jornal Pessoal. É um profissional excepcional e fonte obrigatória quando for ser escrita a verdadeira história da região dos anos 70 para cá. Trabalhou, entre outros lugares, na Realidade, no Correio da Manhã e, por longos anos, no O Estado de S.Paulo como principal repórter da região e coordenador geral da cobertura dos correspondentes da Amazônia. Nesse período teve vida acadêmica e deu cursos sobre a Amazônia em universidades dos Estados Unidos e da Europa.

O Jornal Pessoal ele faz sozinho, da apuração à edição. Não tem publicidade. Evidentemente, o jornal luta para se manter. Mas esse é o menor problema da vida do Lúcio Flávio.

O grande problema é a pressão sistemática que ele sofre dos poderosos da região por publicar matérias que denunciam indignidades e incomodam justamente os poderosos da região. Tentam calá-lo de várias maneiras, da intimidação à agressão, e ele tem resistido bravamente. Tentam sufocá-lo e calá-lo com 33 processos. Um deles está para ser concluído e tudo indica que poderá ser desfavorável.

Qual o "crime" do Lúcio Flávio Pinto?
O Lúcio publicou denúncias comprovadas de que estava ocorrendo uma enorme grilagem de terras na região. Com isso impediu que o empreiteiro CR Almeida fizesse na Amazônia a maior grilagem da história do Brasil. Em represália, foi processado por CR Almeida sob a alegação de ter sido chamado de pirata numa das matérias do Lúcio Flávio, o que julgou ofensivo.

Foi indo, foi indo e, agora, anos depois e por incrível que pareça, o caso está terminando assim:

Com o CR Almeida não aconteceu nada. Com o Lúcio, se avizinha uma condenação. Com essa condenação, a perda da primariedade, uma porta aberta para a intimidação absoluta.

Os amigos do Lúcio Flávio,entre os quais com muito orgulho me incluo, decidiram que ele não pode e nem vai ficar sozinho.

Vamos batalhar para tentar esgotar todas as possibilidades jurídicas do caso.
Vamos batalhar para que o caso ganhe espaço na imprensa e nas redes sociais. Vamos chamar a atenção da imprensa especializada e internacional para o caso.
Vamos batalhar, se por acaso ocorrer o pior, para que ele tenha recursos para enfrentar a situação.

O objetivo deste email é dar conhecimento do que está acontecendo e da nossa disposição de não deixar continuar acontecendo.

O objetivo deste email é pedir a sua ajuda. Primeiro, divulgando o que está acontecendo no seu veículo de comunicação, na sua coluna, nos sites, redes sociais. Depois, nos ajudando nas ações nas áreas da comunicações e mobilização que tomaremos diante de cada circunstância.

Para quem quiser mais informações do que aconteceu e do que está acontecendo ler o texto abaixo do próprio Lúcio.

Contando com você, muito obrigado e um abraço do Raul Bastos".

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O texto de Lúcio Flávio Pinto:

O Grileiro vencerá?
Em 1999 escrevi uma matéria no meu Jornal Pessoal denunciando a grilagem de terras praticada pelo empresário Cecílio do Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, com sede em Curitiba, no Paraná.

Sem qualquer inibição, ele recorreu a vários ardis para se apropriar de quase cinco milhões de hectares de terras no rico vale do rio Xingu, no Pará, onde ainda subsiste a maior floresta nativa do Estado, na margem direita do rio Amazonas, além de minérios e outros recursos naturais. Onde também está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, para ser a maior do país e a terceira do mundo.

Os 5 milhões de hectares já constituem território bastante para abrigar um país, mas a ambição podia levar o empresário a se apossar de área ainda maior, de 7 milhões de hectares, o equivalente a 8% de todo o Pará, o segundo maior Estado da federação brasileira. Se fosse um Estado, a "Ceciliolândia" seria o 21º maior do Brasil.

Em 1996, na condição de cidadão, ajudei a preparar uma ação de anulação e cancelamento dos registros das terras usurpadas por C. R. Almeida, com a cumplicidade da titular do cartório de registro de imóveis de Altamira e a ajuda de advogados inescrupulosos. A ação foi recebida e todos advertidos de que aquelas terras não podiam ser comercializadas, por estarem sub-judice, passíveis de nulidade.

Os herdeiros do grileiro podem continuar na posse e no usufruto da pilhagem, apesar dessa decisão, porque a grilagem recebeu decisão favorável de dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado. Deve-se salientar que essas foram as únicas decisões favoráveis ao grileiro.

Com o acúmulo de informações sobre o estelionato fundiário, os órgãos públicos ligados à questão foram se manifestando e tomando iniciativas contra o golpe. O próprio poder judiciário estadual interveio no cartório de Altamira e demitiu todos os serventuários que ali trabalhavam, inclusive a escrivã titular, por justa causa.
Todos os que o empresário processou na comarca de São Paulo foram absolvidos. O juiz observou que essas pessoas, ao invés de serem punidas, mereciam era homenagens por estarem defendendo o patrimônio público.

A justiça de São Paulo foi muito mais atenta à defesa da verdade e da integridade de um bem público ameaçada por um autêntico "pirata fundiário", do que a justiça do Pará, com jurisdição sobre o território esbulhado. C. R. Almeida considerou ofensiva à sua dignidade moral a expressão, "pirata fundiário", e as duas instâncias da justiça paraense sacramentaram a sua vontade.

Mesmo tendo provado tudo que afirmei fui condenado. A cabulosa sentença de 1º grau foi confirmada pelo tribunal, embora a ação tenha sido abandonada desde que Cecílio do Rego Almeida morreu, em 2008.

Depois de enfrentar todas as dificuldades possíveis, meus recursos finalmente subiram a Brasília em dezembro do ano passado. O recurso especial seguiu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, graças ao agravo de instrumento que impetrei (o Tribunal do Pará rejeitou o primeiro agravo; sobre o segundo já nada mais podia fazer).

Mas o presidente do STJ, em despacho do último dia 7, negou seguimento ao recurso especial. Alegou erros formais na formação do agravo: "falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante do pagamento das custas do recurso especial e do porte de retorno e remessa dos autos".

A falta de todos os documentos apontada pelo presidente do STJ me causou enorme surpresa. Vou tentar esclarecer a situação, sabendo das minhas limitações. Não tenho dinheiro para sustentar uma representação desse porte. Muito menos para arcar com a indenização.

Desde 1992 já fui processado 33 vezes. Nenhum dos autores exerceu o legítimo direito de defesa. O Jornal Pessoal reproduz todas as cartas que recebe, mesmo as ofensivas, na íntegra. Todos foram diretamente à justiça, certos de contarem com a cumplicidade daquele tipo de toga que a valente ministra Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, disse esconder bandidos, para me atar a essa rocha de suplícios, que, às vezes, me faz sentir no papel de um Prometeu amazônico.

Apesar de todas essas ações e do martírio que elas criaram na minha vida nestes últimos 20 anos, mantenho meu compromisso com a verdade, com o interesse público e com uma melhor sorte para a Amazônia, onde nasci. Não gostaria que meus filhos e netos (e todos os filhos e netos do Brasil) se deparassem com espetáculos tão degradantes, como o que vi: milhares de toras de madeira de lei, incluindo o mogno, ameaçado de ser extinto nas florestas nativas amazônicas, nas quais era abundante, sendo arrastadas em jangadas pelos rios por piratas fundiários, como o extinto Cecílio do Rego Almeida.

Depois de ter sofrido todo tipo de violência, inclusive a agressão física, sei o que me espera. Mas não desistirei de fazer aquilo que me compete: jornalismo. Algo que os poderes, sobretudo o judiciário do Pará, querem ver extinto, se não puder ser domesticado conforme os interesses dos donos da voz pública.

Decidi escrever esta nota não para pressionar alguém. Não quero extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do agravo, o que me surpreendeu e causou perplexidade, paciência: vou pagar por um erro que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do processo.

Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos que me apoiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um país decente.

Belém (PA), 11 de fevereiro de 2012
LÚCIO FLÁVIO PINTO - Editor do Jornal Pessoal

 
 
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COLABORE com Lúcio Flávio Pinto
 
 
Durante quase 21 anos o Jornal Pessoal existiu apenas na sua forma em papel. Não era por resistência à internet ou preconceito, mas conseqüência de uma de suas principais diretrizes editoriais: não aceitar receita de venda de anúncio. Excluindo a publicidade, que costuma representar 80% do faturamento de empresas jornalísticas convencionais, o jornal pretendia a independência total. Sua sobrevivência iria depender exclusivamente da disposição do leitor de comprar o jornal avulso. Esse procedimento não podia ser adotado na rede mundial de computadores, exceto se o jornal contasse com patrocinadores ocultos, os mecenas, geralmente suspeitos. Continuaremos a agir completamente às claras. Ao lançar o JP na internet, esperamos que seus leitores se disponham a fazer doações para mantê-lo no ar, com a mesma independência da versão impressa do jornal. De qualquer valor, as doações poderão ser feitas na conta informada abaixo. Trata-se de voluntariado pela causa do jornalismo comprometido com a verdade e o interesse público.
 
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webmaster @ julho 13, 2008

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O povo é uma rainha da Inglaterra

22 jan 2012 - Diego Viana - seu blog Para Ler sem Olhar


Princípio de 1651. Um respeitado editor, de nome Andrew Crooke, discute com um de seus autores o desenho que vai figurar no frontispício de um ainda inédito livro de filosofia política. O sujeito, fazendo esboços e gesticulando muito, quer representar a sociedade civil (ainda não existia a distinção entre a dita cuja e o Estado, como hoje) na figura de um monstro bíblico: o soberano seria a cabeça; o povo, o corpo.

Eles discutem e discutem. Desenhos são feitos e deitados fora. Finalmente, Thomas Hobbes consegue o frontispício que quer para seu Leviatã (ou “Matéria, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil”). Lá está o soberano, com uma fisionomia que lembra vagamente Cromwell, o rei Charles II e até, de longe, Jesus. Tem longos cabelos ondulados e bigode, porta uma coroa na cabeça, segura com firmeza a espada na mão direita e o cetro na esquerda.

E eis também o curioso torso, formado de corpos que dão as costas ao leitor: o povo tem os olhos voltados para o rei (porque o soberano, aqui, é indiscutivelmente um rei), como se caminhasse em sua direção. Abaixo, o campo e a cidade, bem governados como no painel de Lorenzetti exposto em Siena (link para o Painel de Lorenzetti exposto em Siena
Mais abaixo ainda, os símbolos e os meios do poder: as armas, a religião, a razão, as leis. Hobbes, numa época em que os emblemas imagéticos eram de rigor, insistiu enormemente nesse frontispício, porque lhe parecia a melhor representação possível de sua teoria do contrato social. De fato, a imagem se tornou um ícone nodular da política: quando alguém quer falar em absolutismo, ou mesmo em governo grande demais, logo crava: “Um Leviatã!”.



Princípios de 2012
Penso no publicitário que bolou o projeto reportado neste link (pra quem não tem paciência de clicar: são crianças fazendo autorretratos para formar a imagem da rainha Elisabeth, em celebração de seus 60 anos de reinado - http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120112_rainha-desenhos_rc.shtml)

E me pergunto se ele tinha em mente o frontispício de Hobbes. É claro que não. Também me pergunto em que medida ele conhece essa imagem. Provavelmente não se lembra dela, provavelmente não sabe de onde veio, mas sem dúvida, sendo inglês, passou os olhos por ela quando estudante. É um elemento cultural importante naquele país, para o bem e para o mal, queira ou não queira o publicitário.

Ou seja, o Leviatã não é uma referência para ele (espero que não; só se for um louco), nem é uma citação. O mais provável é que ele esteja navegando – bem preguiçosamente, diga-se de passagem – a onda de capas de revista e painéis de artistas plásticos que repetem esse procedimento. Mas, por uma dessas voltas que gosta de dar a história, essa rainha dos redemoinhos e dos destroços, eis que aquela outra rainha, a da Inglaterra, se vê representada quase da mesma maneira como o foi um dia o paradigma dos monarcas absolutos. Senão como um monstro marinho saído da Bíblia, ao menos como um mosaico de súditos.

Posso estar exagerando, mas não estou. Pelo menos no sentido de que os chefes do publicitário em questão deveriam ter percebido que essa associação era possível. Ou então, o mínimo que se poderia esperar era que os funcionários da monarquia britânica alertassem para comparações que eventualmente, ou certamente, viriam. Nem que fosse em algum rincão do mundo infestado de mosquitos, como aquele Brasil de PIB avantajado como nádegas de mulatas. Para ser honesto, não consigo evitar de associar esse silêncio a uma decadência cultural.

Falando em decadência: houve um tempo em que a rainha da Inglaterra era a pessoa mais poderosa do mundo, em particular uma rainha de nome Victoria. Hoje, “rainha da Inglaterra” é uma expressão que conota justamente o oposto: uma figura que não manda em ninguém. “Fulano é uma rainha da Inglaterra”: tem um cargo, ganha um dinheirão, mas é só um nome com um título pomposo, nada mais.

Impossível não prosseguir no paralelo, enxergando na brincadeira do Jubileu da Rainha algum tipo de metáfora com a situação da Europa, particularmente naquele que foi seu pais mais poderoso, a ponto de nem mesmo se considerar parte do continente. Inglaterra, o povo que esnobou o euro, mas nem por isso deixa de estar na merda… Agora tenta recuperar seu amor-próprio representando sua rainha da Inglaterra – a original, não aceite imitações – da mesma maneira como outrora representou o ápice da potência monárquica. Triste ironia, não?

A brincadeira está boa, então que prossiga. Será que dá para fazer alguma metáfora a partir do fato de que são crianças que estão preparando o retrato da rainha com seus próprios rostos? Sim, claro que dá. Certa vez, entrevistaram um sujeito que vive na Côte d’Azur e seria o herdeiro do trono russo se os bolcheviques não tivessem dado cabo do czarismo em 1917. Perguntaram ao tal sujeito com que olhos ele via a população russa, que até hoje não manifesta o menor desejo de restaurar os Romanov, mesmo 20 anos depois da queda do comunismo. Resposta, de bate-pronto: “eles são meus filhos” – assim mesmo, categórica, sem deixar margem a questionamentos.

A imagem paternal (ou maternal, no caso) dos reis é um velho topos monárquico. Aliás, não é significativo que um poder absoluto e orientador, mas não aristocrático, como o imaginado por George Orwell em 1984, seja representado não como um pai, mas como um “grande irmão”? O fato é que as nações, em outras eras, eram representadas como famílias, tendo o monarca como figura paterna. Ora, a imagem de um rei como pai traduz o princípio de que ele deve proteger, orientar, defender e até, em certas circunstâncias, sustentar seus súditos.

É claro que uma parte dessa imagem desbotou com a progressiva instalação de monarquias constitucionais. Mas sobrou alguma coisa, particularmente o aspecto simbólico da paternidade, (ou seria do patriarcalismo?), que de vez em quando reaparece em filigrana no discurso monárquico. “A Bélgica só não se esfacelou porque tem a figura unificadora de um rei”, “Juan Carlos garantiu a democracia na Espanha com a força de sua pessoa”, “Charles não pode ser rei porque não transmite a moralidade britânica”…

E eis que agora a presença de uma crise, mais do que econômica, sócio-histórica, associada à dificuldade em manter as ralés quietinhas, reúne as duas pontas da noção de realeza. Por um lado, as criancinhas, metonímia para o brioso ex-império, unindo forças para buscar alguma resposta – nem que seja uma auto-imagem pixelada – em sua grande-mãe, ícone da resistência, da identidade nacional, do poder inquebrantável e inamovível. Por outro, a constatação difusa, inconsciente, desconfortável da perda de soberania. Ali mesmo na coroa intrépida do Commonwealth, enfraquecida não pelo triunfo das instituições transnacionais, mas pelos imperativos da City, que selam um destino iniciado com as guerras coloniais e imperialistas da belle époque.

Já que enveredei por essas metáforas visuais, vou até o fim. Colocando-se na posição de criancinhas, de filhos, de corpos inocentes, desamparados e – eis a parte crucial – disponíveis, os ingleses tentam reconstruir, sem saber, a figura que melhor conhecem para representar uma soberania sólida, resistente, visível. Como quem molda um Golem, o inconsciente coletivo da velha Albion espera que a imagem sorridente de Elizabeth absorva a energia das criancinhas, assuma seu posto de Leviatã e esmague os inimigos, isto é, a crise, a decadência, os microscópicos esporos de rebelião que ameaçam constantemente se espraiar pelas ruas. Não deixa de ser, modus in rebus, uma mensagem de esperança…

Voltando um pouco a Hobbes: um outro livro seu oferece uma concepção mais nuançada da soberania e dessa assustadora figura do Leviatã. É o Cidadão, ou De Cive. Nesse texto, encontramos o seguinte trecho, ousado como poucos que já li, sublinhando a necessidade de distinguir entre o povo e a multidão para associar o poder civil de decidir e agir à própria existência de um povo:

“O povo é algo uno, com uma vontade una, e a quem se pode atribuir uma ação. Nada disso pode ser dito da multidão. O povo rege em todos os governos. Até em monarquias o povo comanda, porque a vontade do povo é a vontade de um homem; mas a multidão são os cidadãos, ou seja, os súditos. Na democracia e na aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas a corte é o povo. E na monarquia, os súditos são a multidão, e, por mais que soe paradoxal, o rei é o povo. (…) Fala-se no ‘grande número de homens’ como sendo o povo, ou seja, a cidade; dizem que a cidade se rebelou contra o rei (o que é impossível) e falam em vontade do povo, em vez de súditos descontentes que, passando-se por povo, agitaram os cidadãos contra a cidade, isto é, a multidão contra o povo.” (Capítulo XII – VIII)

Sem subscrever a Hobbes, o que aparece aqui é que o Leviatã do outro livro, que representa a soberania, não o Estado, pode ter múltiplas configurações, contanto que produza a unidade da legislação civil que salvaguarde a cidade do tão perigoso direito natural. Hobbes vê na monarquia absolutista o caminho mais certo, não necessariamente o único, para chegar a isso.

Hoje, os mecanismos legais são outros e ninguém precisa mais concordar com Hobbes, pelo menos quanto ao único caminho realmente viável que ele enxerga. Mas a imagem de que a sociedade consiste em formar um corpo uno em vontade e ação nunca foi inteiramente abandonada pela imaginação política, ao menos na tradição ocidental. Volta e meia algo assim é evocado: “governo de união nacional”, a “pátria indivisível” e assim por diante. O que varia é a estratégia para lidar com o dissenso, prova incontornável de que o estado de natureza está sempre aí, no coração de qualquer configuração civil (algo que Hobbes, por exemplo, nunca vislumbrou).

Montar um retrato da rainha com milhares de rostos de crianças, desenhados por elas mesmas, não deixa de ser a expressão de um tal desejo de unidade: “somos todos parte dessa nação”, “pertenço a algo que é maior do que eu” e assim por diante. Talvez seja o caso, porém, de destacar a diferença entre o retrato de Elizabeth e o frontispício do Leviatã. Afinal, um corpo não é um rosto e Hobbes deixou isso bem claro ao desenhar o soberano com a fisionomia de um rei e relegar o povo à configuração das entranhas e dos membros.

A idéia de que a multidão indistinta possa formar a própria cabeça, o ápice da soberania (palavra usada por Hobbes em sua própria tradução para o latim, bem como pelos demais autores da época: imperium) e do poder, é bem posterior a Hobbes e data do surgimento da tal “sociedade de massas”: a virada do século XIX para o XX. Essa tal “sociedade de massas” poderia ser um oximoro, ainda mais se levamos em conta a distinção que Hobbes faz aí acima entre o povo e a multidão. De fato, em toda a tradição do pensamento ocidental até fins do século XIX, o povo e a multidão (depois massa) eram conceitos opostos e conflitantes.

Quando surgiu a “sociedade de massas” (leia-se sociedade industrial, com produção e consumo de massa), foi preciso repensar essa distinção. Surgiram duas vias, falando grosseiramente. A primeira, não cronologicamente, eu diria, mas para a ordem desta exposição, é a via democrática, em que sobressaem a noção de opinião pública e os graduais esforços de organização da sociedade civil para ampliar o acesso a direitos – ou seja, à cidadania, a “ser povo” na acepção de Hobbes.

A segunda é a via autoritária, que vale sublinhar aqui. Nela, tenta-se reconquistar a unidade desejada por Hobbes não pela ampliação dos campos contemplados pela vida civil, mas pela fusão das massas no bojo do seu próprio comando. Não é à toa que todos os regimes extremamente autoritários do último século se apresentavam como “do povo” ou “dos trabalhadores”, fossem “de direita” ou “de esquerda”. O mais importante a frisar aqui é que, na grande maioria dos casos, foi a própria população que, a partir de um estado de desespero, buscou essa via autoritária, pediu por ela, entregou-se com um gozo às vezes catártico a sua figura de liderança absoluta.

Longe de mim dizer que o Reino Unido está à beira de um regime como as ditaduras que presenciamos no século XX. Mas o desejo seminal está lá. O “ovo da serpente”, digamos, está expresso na reação violenta aos saques do ano passado e na fusão de milhares de faces de crianças na imagem da rainha: ingleses infantilizados dissolvendo sua própria pele para entregar suas feições a um único e gigantesco rosto real.

A rainha da Inglaterra que continue sendo uma rainha da Inglaterra: seus traços aristocráticos não deixam de ser o arquétipo de qualquer monarquia, qualquer estrutura de comando através de um paradigma de unidade, qualquer Leviatã com cetro, coroa e espada. Mesmo enquanto ela inocentemente caça perdizes em Windsor, exercendo sua rainha-da-Inglaterra-ice, a fisionomia real serve plenamente de vetor para todos os outros elementos: o desespero, o orgulho ferido, o desejo de unidade, a necessidade de traçar fronteiras entre o de dentro e o de fora, a disposição em abrir mão de um pouco mais de individualidade – e de liberdade – em troca de um pouco mais de segurança. Enfim, a disponibilidade para fazer parte de uma grande família.

Exagerei no paralelo? Certamente, mas garanto que o possível, o potencial, é tão bem mais real do que seu opaco caso particular: o efetivo. Até porque a efetividade, sendo a concretização de um potencial, às vezes, dependendo das circunstâncias, pode atualizar os mais extremos dos potenciais. Basta, para isso, que as próprias circunstâncias sejam extremadas. Eventualmente acontece.

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