terça-feira, 5 de março de 2013

Discurso de Pepe Mujica no Rio de Janeiro

20/06/2012 - original do “Discurso de Pepe Mujica en Río”, por ocasião da Rio+20 (junho/2012)
- extraído do El Heraldo, da Argentina, de 21-11-2012
Tradução: Christina Iuppen

“El discurso ya se está considerando histórico, Mujica habló ante una audiencia de mandatarios que con desgano escucharon las verdades brutales que les decía, recien a días del discurso, la prensa internacional y el mundo comienzan a tener en cuenta que no fue un simple discurso el que dijo el presidente uruguayo.” (El Heraldo)

Autoridades presentes de todas as latitudes e organismos, muito obrigado. Muito obrigado ao Brasil e à Senhora sua Presidente, Dilma Roussef. Muito obrigado também à boa-fé manifestada por todos os oradores que me precederam.

Expressamos a íntima vontade, como governantes, de apoiar todos os acordos que esta nossa pobre humanidade possa subscrever. No entanto, permitam-nos fazer algumas perguntas em voz alta.

Tem-se falado por toda a tarde do desenvolvimento sustentável. De retirar as imensas massas da pobreza.

Que nos vem à mente?

O modelo de desenvolvimento e consumo que queremos é o modelo atual das sociedades ricas?

Faço-me esta pergunta: que aconteceria com o planeta se os indianos tivessem a mesma proporção de carros por família que têm os alemães?

Quanto oxigênio nos restaria para respirar?

Mais claro: tem o mundo os elementos materiais para possibilitar que 7 ou 8 bilhões de pessoas possam ter o mesmo grau de consumo e desperdício que têm as mais opulentas sociedades ocidentais?

Será isto possível?

Ou teremos que dar-nos outro tipo de discussão?

Criamos esta civilização em que vivemos: filha do mercado, filha da competição, que redundou num portentoso e explosivo progresso material.

Mas a economia de mercado criou sociedades de mercado. E nos deparamos com esta globalização cujo olhar alcança todo o planeta.

Estamos governando esta globalização ou é ela que nos governa a todos?

É possível falar de solidariedade e de que ‘estamos todos juntos’ numa economia embasada na competição sem piedade?

Até onde vai nossa fraternidade?

Não digo isto para negar a importância deste evento. Pelo contrário: o desafio que temos pela frente é de uma magnitude e caráter colossais, e a grande crise que temos não é ecológica, é política.

O homem não governa hoje as forças que desencadeou, mas essas forças desatadas governam o homem. E a vida.

Não viemos ao planeta para desenvolver-nos, simples e generalizadamente. Viemos ao planeta para ser felizes. Porque a vida é curta e se nos esvai. E bem nenhum vale tanto como a vida. Isto é elementar.

Mas a vida me vai escapar, trabalhando e trabalhando para consumir um ‘plus’, e a sociedade de consumo é o motor disto. Porque, definitivamente, se se paralisa o consumo, detém-se a economia, e se se detém a economia aparece o fantasma da estagnação para cada um de nós.

Mas é esse hiper-consumo que vem agredindo o planeta.

E é preciso gerar esse hiper-consumo, fazer com que as coisas durem pouco, porque é preciso vender muito. E uma lâmpada elétrica, então, não pode durar mais de 1000 horas acesa.

Mas há lâmpadas que podem durar 100 mil horas acesas! Mas essas não, não podem ser feitas; porque o problema é o mercado, porque temos que trabalhar e temos que manter uma civilização de ‘use-o e jogue-o fora’. E assim estamos em um círculo vicioso.

Estes são problemas de caráter político.

Indicam-nos que é tempo de começar a lutar por outra cultura.

Não se trata de reivindicarmos a volta do homem às cavernas, nem de erguer um monumento ao atraso. Mas não podemos seguir, indefinidamente, governados pelo mercado: temos nós que governá-lo.

Por isto digo, em minha humilde maneira de pensar, que o problema que temos é de caráter político.

Os velhos pensadores – Epicuro, Sêneca, e também os aymarás, definiam: ‘pobre não é o que tem pouco, mas o que necessita infinitamente muito’. E deseja ainda mais. Essa é uma chave de caráter cultural.

Sendo assim, vou saudar o esforço dos acordos que se façam. E vou acompanhá-los, como governante.

Sei que algumas coisas que estou dizendo ‘rangem’. Mas precisamos dar-nos conta de que a crise da água e da agressão ao meio ambiente não é causa.

A causa é o modelo de civilização que montamos. O que temos que repensar é nossa forma de viver.

Pertenço a um pequeno país muito bem dotado de recursos naturais para viver. No meu país há pouco mais de 3 milhões de habitantes.

Mas há uns 13 milhões de vacas, as melhores do mundo. E uns 8 ou 10 milhões de estupendas ovelhas.

Meu país é exportador de comida, de lácteos, de carne. É uma peneplanície, e quase 90% de seu território é aproveitável.

Meus companheiros trabalhadores lutaram muito pelas 8 horas de trabalho. E estão conseguindo agora as 6 horas. Mas o que tem 6 horas consegue dois trabalhos e, portanto, trabalha mais do que antes.

Por quê? Porque tem que pagar uma quantidade de coisas: a moto, o carro, quotas e quotas e, quando acorda, vê que é um velho cuja vida se foi.

E fica a pergunta: é esse o destino da vida humana?

Apenas consumir?

Essas coisas que digo são muito elementares: o desenvolvimento não pode ser contra a felicidade.

Tem que ser a favor da felicidade humana, do amor à terra, do cuidado com os filhos, junto aos amigos. E ter, sim, o essencial. Precisamente porque é o mais importante tesouro que temos.

Quando lutamos pelo meio ambiente, temos que recordar que o primeiro elemento do meio ambiente se chama ‘felicidade humana’.

Fonte:
http://www.elheraldo.com.ar/noticias/79643_discurso-de-pepe-mujica-en-rio.html

Não deixe de ler:
- “É preciso sair do capitalismo” – Marcela Valente (entrevista com o escritor francês Hervé Kempf)
- Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte final 6/6 - UM JOGO EM QUE NEM TODOS TRAPACEIAM - Antonio Fernando Araujo

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Ajufe, AMB e Anamatra emitem comunicado sobre declarações de Joaquim Barbosa

02/03/2013 - Nota pública extraída do sítio da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil)

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), entidades de classe de âmbito nacional da magistratura, a propósito de declarações do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) em entrevista a jornalistas estrangeiros, na qual Sua Excelência faz ilações sobre a mentalidade dos magistrados brasileiros, vêm a público manifestar-se nos seguintes termos:

1. Causa perplexidade aos juízes brasileiros a forma preconceituosa, generalista, superficial e, sobretudo, desrespeitosa com que o ministro Joaquim Barbosa enxerga os membros do Poder Judiciário brasileiro.

2. Partindo de percepções preconcebidas, o ministro Joaquim Barbosa chega a conclusões que não se coadunam com a realidade vivida por milhares de magistrados brasileiros, especialmente aqueles que têm competência em matéria penal.

3. A comparação entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público, no que toca à “mentalidade”, é absolutamente incabível, considerando-se que o Ministério Público é parte no processo penal, encarregado da acusação, enquanto a magistratura – que não tem compromisso com a acusação nem com a defesa – tem a missão constitucional de ser imparcial, garantindo o processo penal justo.

4. A garantia do processo penal justo, pressuposto da atuação do magistrado na seara penal, é fundamental para a democracia, estando intimamente ligada à independência judicial, que o ministro Joaquim Barbosa, como presidente do STF, deveria defender.

5. Se há impunidade no Brasil, isso decorre de causas mais complexas que a reducionista ideia de um problema de “mentalidade” dos magistrados.

As distorções – que precisam ser corrigidas – decorrem, dentre outras coisas, da ausência de estrutura adequada dos órgãos de investigação policial; de uma legislação processual penal desatualizada, que permite inúmeras possibilidades de recursos e impugnações, sem se falar no sistema prisional, que é inadequado para as necessidades do país.

6. As entidades de classe da magistratura, lamentavelmente, não têm sido ouvidas pelo presidente do STF. O seu isolacionismo, a parecer que parte do pressuposto de ser o único detentor da verdade e do conhecimento, denota prescindir do auxílio e da experiência de quem vivencia as angústias e as vicissitudes dos aplicadores do direito no Brasil.

7. A independência funcional da magistratura é corolário do Estado Democrático de Direito, cabendo aos juízes, por imperativo constitucional, motivar suas decisões de acordo com a convicção livremente formada a partir das provas regularmente produzidas.

Por isso, não cabe a nenhum órgão administrativo, muito menos ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a função de tutelar ou corrigir o pensamento e a convicção dos magistrados brasileiros.

8. A violência simbólica das palavras do ministro Joaquim Barbosa acende o aviso de alerta contra eventuais tentativas de se diminuírem a liberdade e a independência da magistratura brasileira.

A sociedade não pode aceitar isso. Violar a independência da magistratura é violar a democracia.

9. As entidades de classe não compactuam com o desvio de finalidade na condução de processos judiciais e são favoráveis à punição dos comportamentos ilícitos, quando devidamente provados dentro do devido processo legal, com garantia do contraditório e da ampla defesa.

Todavia, não admitem que sejam lançadas dúvidas genéricas sobre a lisura e a integridade dos magistrados brasileiros.

10. A Ajufe, a AMB e a Anamatra esperam do ministro Joaquim Barbosa comportamento compatível com o alto cargo que ocupa, bem como tratamento respeitoso aos magistrados brasileiros, qualquer que seja o grau de jurisdição.

Brasília, 2 de março de 2013.

NELSON CALANDRA - Presidente da AMB
NINO OLIVEIRA TOLDO - Presidente da Ajufe
RENATO HENRY SANT’ANNA - Presidente da Anamatra

Fonte:
http://www.ajufe.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4863

Não deixe de ler:
- Dez medidas são possíveis para aprimorar a Justiça - João Baptista Herkenhoff
- O Congresso Nacional pode sustar decisões do STF? - Nazareno Fonteles
- Imprensa e toga: a tentação do golpe - Gilson Caroni Filho

Tudo a ver:
- Dois passos adiante - Theófilo Rodrigues e Antonio Fernando Araujo
- Na ABI, o retrocesso do judiciário, o lulismo e o interior profundo deste país - Universidade Nômade
- A República, o STF e o Parlamento - Mauro Santayana

Nota:
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domingo, 3 de março de 2013

Dez medidas são possíveis para aprimorar a Justiça

24-02-2013 - João Baptista Herkenhoff (*)
- sítio da Revista Consultor Jurídico

Frei Leonardo Boff diz que os momentos de crise são a grande oportunidade para os avanços e a superação.

Podem exercer este efeito positivo: a crise que castiga a pessoa, cada um de nós, em particular; ou a crise que alcança instituições, fases históricas ou mesmo países.

Esta reflexão inaugural conduz o espírito a uma reflexão posterior e consequente: um momento de crise do Poder Judiciário pode ser o mais acertado e próprio para refletir sobre caminhos que permitam uma melhoria da Justiça.

Proponho dez medidas para aprimorar a Justiça, como passo a expor.

São medidas, a meu ver, perfeitamente exequíveis, desde que haja boa vontade.

1) Arejar os tribunais — Nada de sessões secretas, exceto para questões que envolvam a privacidade das pessoas (casos de família e outros).

Nada de exigência de roupas e calçados para ingressar nos recintos judiciais. Nada de vedar o acesso da imprensa aos julgamentos. Que todas as decisões e votos sejam abertos e motivados.

2) Dar rapidez aos julgamentos — É possível fazer com que a Justiça seja mais rápida. Que as partes em conflito aleguem e façam provas, como é certo, mas que se alterem as leis de modo que não se fraude a prestação jurisdicional através de recursos abusivos. Que se acabe com o recurso obrigatório nas decisões contra o Poder Público, pois isso é admitir que todos os procuradores de Estado sejam desonestos.

Mesmo que a decisão seja injusta e incorreta deixariam de recorrer, por corrupção. O duplo grau de jurisdição, nessas hipóteses, contribui para sobrecarregar as pautas dos tribunais. Que se mudem também práticas que não estão nas leis mas estão nos hábitos e que entravam a Justiça, transformando-a numa traquitana, como disse Monteiro Lobato.

3) Humanizar a Justiça — A Justiça não lida com objetos, mas com pessoas, dramas humanos, dores. O contato das partes com o juiz é indispensável, principalmente nos casos das pessoas mais humildes que ficam aterrorizadas com a engrenagem da Justiça.

Kafka desenhou com genialidade o sufocamento do ser humano pelas artimanhas do processo judicial. O apelo de ser escutado é um atributo inerente à condição humana. Tratar as partes com autoritarismo ou descortesia é uma brutalidade inaceitável.

4) Praticar a humildade — O que faz a Justiça ser respeitada não são as pompas, as reverências, as excelências, as togas, mas a retidão dos julgamentos. Na última morada, ser enterrado de toga não faz a mínima diferença. Neste momento final, a mais alta condecoração será a lágrima da viúva agradecendo ao magistrado, em silêncio, a Justiça que lhe foi feita.

Por que não se muda a designação dos chamados Poderes para Serviços? Serviço Executivo, Serviço Legislativo e Serviço Judiciário. São mesmo serviços, devem ser entendidos como serviços a que o povo tem direito.

5) Democratizar a Justiça — Começar pela democratização da eleição dos presidentes dos tribunais. Todos os magistrados, mesmo os de primeiro grau, devem poder votar. Um magistrado de primeiro grau pode ser eleito para dirigir a corte, regressando a seu lugar ao completar o mandato.

Um presidente de tribunal não é apenas aquela pessoa que preside às sessões, mas é alguém que exerce a presidência de um órgão do Poder.

6) Alterar o sistema de vitaliciedade — O magistrado não se tornaria vitalício depois de dois anos de exercício, mas através de três etapas: dois anos, cinco anos e sete anos.

A cada etapa haveria a apreciação de sua conduta, com a participação de representantes da sociedade civil porque não seria apenas o julgamento técnico (como nos concursos de ingresso), mas o julgamento ético (exame amplo do procedimento do juiz).

7) Combater o familismo — Nada de penca de parentes na Justiça. Concursos honestos para ingresso na magistratura e também para os cargos administrativos. Neste ponto a Constituição de 1988 regrediu em comparação à Constituição de 1946.

A Constituição de 1946 proibia que parentes tivessem assento num mesmo tribunal. A Constituição de 1988 proíbe parentes apenas na mesma turma. Se o tribunal tiver cinco turmas será possível que cinco parentes façam parte de um mesmo tribunal, desde que um parente em cada turma.

8) Aumentar a idade mínima para ser juiz — O cargo exige experiência de vida, não demanda apenas conhecimentos técnicos.

9) Fazer da Justiça uma instituição impoluta — A corrupção é sempre inaceitável. Dentro da Justiça, brada aos céus.

Um magistrado corrupto supera, em baixeza moral, o mais perigoso bandido.

10) Colocar os juízes perto dos litigantes — Se o habitante da periferia tem de subir escadas de mármore, para alcançar suntuosas salas, em palácios ainda mais suntuosos, a fim de pleitear e discutir direitos, essa difícil caminhada leva a uma ruptura do referencial de espaço, que é referencial de cultura, referencial de existência.


(*) João Baptista Herkenhoff é juiz de Direito aposentado e professor na Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo.

Fonte:
http://www.conjur.com.br/2013-fev-24/joao-herkenhoff-dez-medidas-sao-possiveis-aprimorar-justica

Não deixe de ler:
- Ajufe, AMB e Anamatra emitem comunicado sobre declarações de Joaquim Barbosa

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

sábado, 2 de março de 2013

Na surdina, Congresso pode dar um golpe nos trabalhadores

21/02/2013 - Leonardo Sakamoto em seu blog

Para atender à determinação do Supremo Tribunal Federal, de que o veto de Dilma Rousseff à alteração das regras de distribuição de royalties do petróleo só possa ser analisado após a análise de outros 3 mil vetos, o Congresso está desenterrando alguns esqueletos. Alguns com cara bem feia.

Há parlamentares que, na surdina, estão se articulando para que um dos vetos presidenciais, em especial, seja derrubado: o que trata da chamada Emenda 3.

A emenda, que integrou o projeto que criou a Super Receita, propõe que auditores fiscais federais não possam apontar vínculos empregatícios entre empregados e patrões, mesmo quando forem encontradas irregularidades.

Apenas a Justiça do Trabalho, de acordo com o texto, é que estaria autorizada a resolver esses casos.

Na prática, a nova legislação tiraria o poder da fiscalização do governo, o que dificultaria o combate ao tráfico de pessoas, ao trabalho escravo, ao trabalho infantil e a terceirizações ilegais que burlam direitos do trabalhador.

Originalmente, a emenda foi proposta atendendo à solicitação de empresas de comunicação e de entretenimento que contratam funcionários por meio de pessoas jurídicas, conhecidas como “empresas de uma pessoa só”.

O problema é o efeito colateral que isso pode criar para o restante da sociedade.

O Congresso Nacional aprovou a emenda, mas o então presidente Lula a vetou em março de 2007.

Na época, trabalhadores foram às ruas para apoiar o veto – milhares de metalúrgicos fizeram passeatas na região do ABC, metroviários cruzaram os braços e bancários protestaram na capital paulista.

Com as manifestações, a medida foi posta em compasso de espera, uma vez que assustaram deputados e senadores favoráveis à medida.

Agora, como parte da discussão sobre o pacote de vetos, reapareceram articulações, contando com a breve memória do brasileiro e com a dificuldade de analisar atentamente uma única matéria quando são milhares os vetos discutidos ao mesmo tempo.

Em um país onde milhões de pessoas são tratadas como ferramentas descartáveis, a fiscalização do trabalho desempenha um papel fundamental.

Ela não é perfeita, mas sem esse aparato de vigilância, as relações de trabalho seriam bem piores do que realmente são.

A desregulamentação não levaria necessariamente à auto-regulação pela sociedade, como profetizam alguns economistas, mas sim ao caos.

Se, com regras minimamente vigiadas, você – trabalhador – já é maltratado, imagine sem.

De acordo com procuradores e juízes do Trabalho ouvidos por este blog, no campo, por exemplo, a aprovação dessa proposta ajuda muito fazendeiro picareta que monta uma empresa de fachada para o seu contratador de mão-de-obra empregar safristas.

Dessa forma, ele se livra dos direitos trabalhistas, que também nunca serão pagos pelo “gato”, o contratador – boa parte das vezes tão pobre quanto os peões. E consegue concorrer aqui dentro e lá fora sem reduzir sua margem de lucro. Que em nosso país é mais sagrado que todos os santos e orixás.

Nas cidades, isso facilitaria e muito a manutenção de oficinas de costura que contratam trabalhadores de forma precária ou os submetem a condições análogas às de escravo, muitos dos quais imigrantes latino-americanos pobres que vêm produzir para os cidadãos brasileiros.

Oficinas que, não raro, surgem apenas para que a responsabilidade dos custos trabalhistas saiam das costas de oficinas maiores e de grandes magazines.

Você não vê o escravo em sua roupa, mas ele está lá.

Além de beneficiar os empregadores que querem terceirizar seus empregados (ou legalizar os já terceirizados), a Emenda 3 pode funcionar como ponta-de-lança para outras mudanças.

Abre a porteira para regularizar de vez a situação das pessoas que ganham pouco, batam cartão e respondam a um chefe, mas que são obrigados a criar uma empresa para ganhar o salário e ficar sem os direitos trabalhistas.

Se o bolo de dinheiro fosse distribuído de forma justa entre patrões, chefes e empregados em uma empresa, a defesa do veto da Emenda 3 não seria tão necessária. Mas não é o que acontece.

Colocar a Emenda 3 em vigor também pode aumentar ainda mais o rombo da previdência, pois ela tende a levar a uma diminuição no carregamento do INSS. Idem para o FGTS, cujo caixa financia a casa própria e banca o Programa de Aceleração do Crescimento.

Isso abre a porteira a outros projetos draconianos destinados a resolver os problemas que seriam causados pela Emenda 3, como reduzir os reajustes das aposentadorias a fim de economizar.

Projetos como a Emenda 3 fazem parte de uma mesma política para diminuir o poder que o Estado tem de garantir que o empresariado tenha um patamar mínimo de bom senso.

Com o aumento da competição, cresce também a precarização do trabalho e com ela o discurso da necessidade de desregulamentação, ou seja: pá de cal nos direitos adquiridos e vamos embora que o mundo é uma selva.

Durante as manifestações de apoio ao veto à Emenda 3 em 2007, uma retórica se tornou constante em círculos empresariais e entre alguns colegas da área de economia: de que era um absurdo trabalhadores fazerem greve que não fosse por emprego e salário, mas por política trabalhista.

Em outras palavras, protestar por água e pasto, é horrível, mas vá lá. Já a luta para que o aumento da capacidade de competitividade das empresas não seja feito engolindo os trabalhadores é uma atitude deplorável. “Esse país não quer crescer”, diziam eles.

Nesse ritmo, não me espantaria – num futuro não muito distante – ver anúncios estampados em página dupla nas revistas semanais de circulação nacional dizendo: “O Banco X pensa em seus empregados. Ele paga 13º salário. Isso sim é responsabilidade social”.

E nossos filhos olharão para aquilo e, espantados, perguntarão: “pai, mãe, o que é emprego?

Fonte:
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/02/21/na-surdina-congresso-pode-dar-um-golpe-nos-trabalhadores/


Não deixe de ler:
- Jean Salem, uma filosofia para transformar o mundo - Milton Pinheiro
- O mito do capitalismo “natural” - Rafale Azzi
- Europeus reagem ao neoliberalismo que empobrece o povo - Mario Augusto Jakobskind
- Agenda que falta ao movimento sindical - Marcos Verlaine

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Uma filosofia para transformar o mundo

25/02/2013 - Jean Salem (*), uma filosofia para transformar o mundo
- Milton Pinheiro (**), de Paris (França) para a revista Brasil de Fato
- Tradução: Ernesto Pichler

Jean Salem é um daqueles intelectuais humanistas, cada vez mais raros, que são homens de cultura integrada”.

O elogio desferido por Miguel Urbano Rodrigues aconteceu em outubro de 2012, ao comentar o lançamento da edição portuguesa do livro "A Felicidade ou a Arte de Ser Feliz Quando os Tempos São Difíceis", do escritor francês.

Lutar pela felicidade, de acordo com Salem, também autor de "Lênin e a Revolução", é um dever em meio à escalada da barbárie capitalista.

Filho do revolucionário e escritor Henri Alleg, o filósofo escreve artigos para diversos jornais franceses e estrangeiros.

Quanto às lutas concretas em que se envolve, elas visam essencialmente, segundo ele, à reconstrução de um movimento autenticamente revolucionário na França e no mundo.

Ao Brasil de Fato, Salem lança luz sobre o que foi a França de Nicolas Sarkozy e o que é a de François Hollande (ao lado com Dilma).

Tece considerações acerca das lutas sociais na Europa que pecam por falta de coordenação política.

Fala da imagem midiática do Brasil na Europa, mas enfatiza a visão segundo a qual ele, de fato, nos compreende.

Brasil de Fato – Você é um filósofo que estuda os materialistas na filosofia grega e romana; marxista ligado às lutas dos trabalhadores em seu país e no mundo, a exemplo de seu apoio ao MST no Brasil, foi sempre vinculado às ideias comunistas. Quem é o intelectual orgânico Jean Salem, sua história e suas lutas?

Jean Salem – Tenho, de fato, dedicado uma dúzia de anos e mais de uma dúzia de livros a estudar de maneira intensa o materialismo antigo: aquele de Demócrito, de Epicuro e de Lucrécio.

No meio dos anos de 1980, enquanto tudo parecia colapsar ao lado dos Partidos Comunistas da Europa, e do “socialismo real”, eu decidi enfrentar os trabalhos acadêmicos sobre esse assunto.

Mais que compor uma milésima tese sobre Marx, eu tentei (como o próprio Marx em sua tese de doutorado) conhecer mais de perto esses autores que ousaram enfrentar os preconceitos religiosos e que já estavam decididos a levantar um canto do véu, ou seja, a propor uma visão racional de tudo o que nos cerca. Uma visão que permanece compatível com a ciência moderna.

Tenho também dedicado leituras a Maupassant, à Renascença italiana, à felicidade e tenho organizado diversos livros de filosofia e de lógica matemática.

Agora, você me pergunta sobre minhas lutas. Elas são muitas: eu me encontro na Coréia, em Portugal, na América Latina,  em congressos ou reuniões animadas pelos progressistas. Tomando o cuidado, sempre, de não cair no que eu chamaria de “jet-altermundismo”: muitos se perdem nele, outros aí se corrompem.

O projeto de Sarkozy, completamente enquadrado na ação imperialista pelo mundo, em especial no norte da África, foi derrotado eleitoralmente. Mas como fica a França com François Hollande?

É evidente que Sarkozy (ao lado com Angela Merkel) encarnou um estilo de chefe de Estado de cultura medíocre, vulgar até, rompendo com a tradição de uma França onde, durante longo tempo, se quis crer que os notáveis deveriam aparecer como mais que simples representantes do meio de negócios.

Sarkozy, que se vangloria de o denominarem “Sarkozy, o americano” [entenda-se, dos EUA], tudo fez para alinhar a política francesa com a da Casa Branca.

Antes mesmo de assumir a presidência da república, em maio de 2007, [ainda que já ocupasse o cargo de Ministro do Interior] frequentava assiduamente a embaixada americana em Paris.

E ele não hesitava em criticar a posição oficial da França – da França que em fevereiro de 2002 vetou, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a tentativa dos EUA aprovar a invasão do Iraque. Teve papel auxiliar nas guerras empreendidas pelo império no norte da África.

Quanto à política interna, Sarkozy tentou limitar o direito de greve, “reformou” as aposentadorias, inflou os sentimentos xenófobos e exacerbou a psicose da delinquência, assim como os temores mais primitivos. Promoveu uma redução das despesas públicas que desmantelou a saúde pública, desorganizou a Universidade, oprimindo-a cada dia mais.

O governo François Hollande, o que mudou? Muito pouco.

Mas a única medida, a única, que parecia fazer pender um pouco à esquerda o seu governo foi a tentativa de taxar em 75% os ganhos suplementares de uma pessoa rica, o que geraria pelo menos 100 milhões de euros de receita.

Mas essa medida foi declarada inconstitucional por um dos bastiões do conservadorismo: o Conselho Constitucional.

Quanto à atitude francesa face à situação na Síria, ela foi mais extrema e unilateral do que Obama!

Eis que a pequena guerra levada pelo senhor Hollande ao Mali vem completar o quadro de comportamento dessa esquerda de direita, essa “esquerda” que parece cada vez mais à direita.

Quais são as lutas que têm pautado os trabalhadores franceses e europeus?

As lutas existem, é claro. Ainda que elas se “beneficiem” de um impressionante silêncio midiático. Elas se dão “com as costas na parede”, como dizemos em francês.

Os trabalhadores da PSA Peugeot Citroën, em Aulnay, na periferia de Paris, fizeram greve para protestar contra o plano de licenciamento que os ameaça. E a direção da fábrica recorreu ao lock out, ou seja, ela fechou provisoriamente as portas!

Mas as lutas seguem, bem e belas, eu repito!

Em maio de 2012 os portugueses pararam massivamente; a Itália conheceu uma greve geral acompanhada de manifestações impressionantes;

os gregos foram às ruas contra os planos da União Europeia e do FMI;

os jovens na Espanha e os “indignados” em geral conseguiram que falassem deles, tanto pela ação surpresa, quanto por surpreender os sindicatos, que estavam muito ocupados em negociar uma redução da idade de aposentadoria a fim de assegurar a “paz social” visando tranquilizar “os mercados”.

A questão não é tanto de ausência e lutas, mas de falta de coordenação, de perspectiva: nós estamos morrendo, literalmente, por falta de organização, por ausência de um partido digno de seu nome!

Como professor da Sorbonne, você tem sido responsável por um ciclo de cursos sobre o marxismo. Quais são as presenças mais importantes de teóricos desse campo de pensamento?

Nós lançamos em 2005 um seminário intitulado “Marx no século XXI”, na Sorbonne. Para afirmar ali a presença do marxismo, que diziam morto há tempos.

A ideia que preside a apresentação desse seminário era um pouco análoga àquela que conduziu Lênin a fundar seu jornal Iskra, um jornal destinado a reunir, a agrupar mil energias até então dispersas na Rússia dos czares.

Para nós, se trata de convidar todos aqueles que trabalharam, ou pensavam trabalhar, “no seu canto”, isoladamente, nas condições atuais de pesquisa na França e no exterior: pois, aqui, particularmente, as pesquisas marxistas foram durante longo tempo marginalizadas, senão censuradas.

Claro que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey, ou a de Georges Labica, André Tosel, Daniel Bensaid, Michel Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes momentos do seminário!

Você é um intelectual acadêmico vinculado ao pensamento marxista e comunista com uma importante história de vida: é filho do legendário comunista Henri Alleg (foto). O que você nos diz sobre a vida deste revolucionário internacionalista?

Meu pai nos deu a imagem de um homem que triunfou sobre seus torturadores, redigindo um livro, A Questão.

Ele os denunciou e fez saber, a todo mundo, qual era o método ao qual se costumava recorrer na Argélia durante a guerra colonial; e que a história e as lutas dos povos demonstraram que o sistema colonialista, inelutavelmente, deveria colapsar.

Henri Alleg é filho de uma inglesa e de um polonês, judeus, que se encontraram em Londres e vieram para Paris. Mas ele se apaixona pela Argélia, onde se fixa.

Depois de ser militante e membro do Partido Comunista argelino, ele se torna, em 1950, diretor do jornal Argélia Republicana, onde militou em favor da independência.

E é como jornalista comunista que sofreu as perseguições e as torturas durante anos de prisão, e depois [após sua fuga] enfrentou o exílio nos países socialistas.

Meu pai seguiu seu combate internacionalista trabalhando como redator, e depois como secretário geral do jornal L’Humanité. De suas grandes reportagens na China, nos EUA, na União Soviética, em Cuba, ele extraiu numerosos livros. O último é seu livro de memórias, "Memória argelina", publicado em 2005, pela editora Stock.

Como intelectual e militante comunista você deve viajar por várias partes do mundo. O que nos diz sobre as lutas dos trabalhadores? Há algo de novo no front?

Sim, tenho tido a felicidade de ser convidado por universidades em todo o mundo. E tenho participado de muitas reuniões, algumas vezes acadêmicas, porém mais frequentemente políticas. Isso abre horizontes à reflexão.

Na China pude constatar que o problema da poluição nas cidades não se reduz, nem um pouco, a um tema de propaganda inventada pelas redações ocidentais.

Vi também o extraordinário progresso desse país, que o Império cerca de maneira já ameaçadora.

Na Rússia se pode ver os efeitos do capitalismo selvagem imposto a partir do golpe de 1991: lojas abertas 24 horas por dia, sete dias por semana; reino do business e da corrupção generalizada; desigualdades ainda mais gritantes que na França, etc.

Mas eu fiquei impressionado, recentemente, pela seriedade e organização dos camaradas coreanos, que organizaram em setembro último, em Seul, um importante fórum internacional.

Eles estão lidando com um modelo quase acabado de “democracia” completamente formal: uma lei dita de “segurança nacional” (que durante muito tempo era chamada simplesmente de “lei anticomunista”) permite, de fato, que o governo jogue na cadeia qualquer um que diga uma palavra que seja a favor da reunificação com o norte, qualquer um que denuncie o sistema de forma um pouco mais radical.

Pude ver, nesse país longínquo (que a China e o Japão nos fazem quase esquecer), homens e mulheres dos quais a determinação, a coragem e a qualidade humana me lembraram as belas figuras de comunistas que, na minha juventude, eu admirava.

Como analista de profunda convicção internacionalista, qual a sua análise sobre o Brasil e qual a mensagem que você deixaria para aqueles que lutam pela emancipação humana, em nosso País?

Dei aulas, durante algumas semanas, na USP, e dei algumas conferências na Universidade São Judas Tadeu. Foi em 2007. Devorei sua literatura (Machado de Assis me agrada tanto quanto Sterne e certos romancistas franceses que, como Crébillon, por exemplo, eu aprecio particularmente).

Sem querer dar lições e menos ainda ser um intelectual que emite julgamentos sem conhecer grande coisa sobre o que fala, o que eu posso dizer é que a imagem “midiática” do Brasil mudou radicalmente nos últimos 20 anos.

Do Brasil dos trabalhadores superexplorados, que durante muito tempo nosso imaginário ocidental prontamente reduzia ao Nordeste, e a sua miséria apavorante, do Brasil que era descrito, por exemplo, em Cacau, de Jorge Amado, passamos a um Brasil que nossas mídias apresentam como um país em pleno progresso, como um gigante em formação, como um “concorrente” muito sério para as economias cambaleantes da velha Europa, e etc.

Essa evolução foi acompanhada por uma unanimidade alardeando sem qualquer nuance a política do governo Lula.

Quando o Tesouro estadunidense, os grandes bancos de negócios e as agências de classificação dirigem louvações a vocês, é normal que a mídia do sistema trate o Brasil com uma deferência entusiasta.

Já a questão da corrupção foi enfocada de passagem por nossa mídia oficial.

Em compensação, se fala muito pouco, na Europa, das desigualdades abissais que subsistem no Brasil.

(*) Jean Salem é filósofo, militante das lutas anticapitalistas e comunistas, estudioso da filosofia materialista greco-romana, professor da Universidade de Paris I (Sorbonne), onde coordena o seminário “Marx no Século XXI” e é diretor do Centro Para a História do Pensamento Moderno.

(**) Milton Pinheiro é Professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor da revista Novos Temas.

Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/node/12085

PS Educom:
"Isso abre horizontes à reflexão", garante o autor. Lido o artigo, que tal darmos uma espiada para o universo desses brasis afora? "A questão", prossegue ele, "não é tanto de ausência e lutas, mas de falta de coordenação, de perspectiva: nós estamos morrendo, literalmente, por falta de organização, por ausência de um partido digno de seu nome!"

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Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O mito do capitalismo “natural”

19/02/2013 - por Rafael Azzi - extraído do blog Outras Palavras

O banqueiro e sua esposa, de Marinus van Reymerswaele
Há séculos, a ideia de que o ser humano é “em essência” egoísta-competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão derrubando tal crença.

O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta.

Diversos pensadores, como o economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há muito a fazer a respeito.

Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que somos  essencialmente individualistas e agressivos.

Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a satisfação egoísta de seus próprios interesses.

As principais instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos sobre a natureza humana.

O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade privada.

O homem é então considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”.

Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca do próprio interesse.

Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em eterna batalha em busca de poder e de bens materiais.

A narrativa histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.

O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue, sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e sobrevive sem o auxílio de outras pessoas.

Porém, o que não está dito é que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas.

Além disso, ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de outras pessoas e outras gerações.

Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por um conjunto de teorias científicas.

O darwinismo social é uma interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana. Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade humana.

Dessa forma, características como individualismo, agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução. Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o modelo natural a ser adotado.

Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista.

Já se observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na sobrevivência de espécies sociais.

Recentes estudos de sociobiologia vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um dos animais mais sociais que existe.

Não é difícil comprovar esse fato: vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de coletividade e de comunidade.

Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia.

Os neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo algo.

Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação ou duplicação interna dos atos de outros.

Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos colocar no lugar de outra pessoa.

Pode-se dizer que, ao observar alguém sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também. Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.

A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do sentimento de nacionalismo.

O problema é que, ao mesmo tempo em que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo grupo.

Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado diferente, distante e, eventualmente, intolerável.

Tais rótulos limitam a capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza humana.

Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o questionamento.

Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um menino de rua”.

Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma realidade distante da nossa.

Portanto, ao estimular constantemente o egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.

Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento, mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.

Fonte:
http://www.outraspalavras.net/2013/02/19/o-mito-do-capitalismo-natural/

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.