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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Nossas cidades são bombas socioecológicas


A urbanista da USP Ermínia Maricato não se surpreende com o fato de o transporte ter sido o estopim das manifestações que vêm ocorrendo nas cidades brasileiras. Nesta entrevista, ela fala sobre o caos urbano e quase tudo que o compõe, como mobilidade, mercado imobiliário, interesses das corporações, condições de vida e saúde.

 Por Rose Spina, da revista 'Teoria e Debate

São Paulo - Não foi por falta de aviso! A urbanista Ermínia Maricato há alguns anos chama a atenção para os impasses na política urbana brasileira e alerta para o fato de nossas cidades serem verdadeiras bombas-relógio. Professora colaboradora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, da qual foi titular por mais de 35 anos, e professora visitante da Unicamp, Ermínia foi secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003-2005) e de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo (1989-2002), no governo Luíza Erundina. A autora de O Impasse da Política Urbana no Brasil (Editora Vozes), que integra o Conselho da Cidade de São Paulo, diante de tantos obstáculos para uma verdadeira reforma urbana, não quer mais saber de cargos, quer ser movimento social, ir para a rua.

Alguma surpresa com o fato de as manifestações ocorridas em junho terem como estopim a situação do transporte coletivo?

Ermínia Maricato: Nenhuma. Eu estou surpresa de ver tanta gente surpresa com essa explosão, que é principalmente de classe média, mas não só. E sobre ter o transporte como o estopim. Há alguns anos falamos que o transporte é uma das principais questões. Também não estou surpresa de a direita estar na rua. Ao contrário, estava perplexa de ver a organização da direita nos veículos de comunicação, em eventos e fóruns que tenho frequentado e até em conselhos, como o de Desenvolvimento Urbano, por exemplo. Estou muito impressionada com o que está acontecendo com o chamado desenvolvimento urbano. Trata-se de uma involução, principalmente em função do mercado imobiliário.

Construímos, nos termos do capitalismo da periferia, cidades que são bombas socioecológicas devido à incrível desigualdade e segregação – nos últimos anos, com o boom imobiliário, a prioridade dada aos automóveis, às obras viárias, e ainda elevamos o grau dessa febre, com os megaeventos, a Copa. Realmente, as cidades estão entregues ao caos, a interesses privados, e as condições de vida da maioria estão piorando muito.

Por que você trata desenvolvimento como involução?

Ermínia: Existe um projeto para o crescimento do país. Nós tivemos as décadas perdidas e voltamos a investir em políticas públicas recentemente, e em transporte urbano não voltamos a investir. Existe um investimento que acompanha a Copa, mas, política de transporte urbano em nível nacional, nós não temos desde a década de 1980. Houve recuo nos investimentos em políticas públicas, habitação, saneamento e transportes, que estruturam as cidades. Em 2003, houve um retorno do investimento em saneamento, em torno de R$ 3 bilhões. Depois, em 2005, um retorno do investimento em habitação e saneamento. Em 2007, obras de infraestrutura urbana, com o PAC, e, em 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida.

Como a recuperação do investimento se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e imobiliária, acontece do jeito que o diabo gosta. A apropriação principalmente da renda imobiliária e fundiária se dá por interesses privados e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151% em São Paulo e 185% no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma explosão no Brasil inteiro de preço do metro quadrado com despejos violentos, política que não esperávamos que fosse voltar tão rapidamente.

São Paulo teve episódios emblemáticos no ano passado.

Ermínia: Sim, mas há muitos incêndios e despejos em favelas. E uma das principais forças ligadas ao crescimento econômico e vinculada a essa tragédia é a mobilidade urbana. O transporte coletivo está em ruínas, não foi recuperado nos últimos trinta anos. E o automóvel entra fortemente no cenário com todas as consequências que estamos vendo.

O capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente, empresas de construção pesada priorizando o que decidem. Isso é incrível porque há cidades onde oferecem ao prefeito uma obra e não precisa ter Plano Diretor, nada... a obra sai e pronto! Se a obra é prioridade ou não, se está no Plano Diretor ou não, tanto faz.

Em São Paulo, a ampliação da Marginal Tietê é uma obra que contraria completamente a visão dos urbanistas sobre o que é prioritário. Do ponto de vista ambiental, então, é um desastre impermeabilizar ainda mais as margens do rio. Uma obra que custou R$ 1,7 bilhão. E pasmem! O ex-prefeito Gilberto Kassab deixou licitado um túnel de R$ 3 bilhões, que nem servirá para ônibus. Faz parte da operação urbana Águas Espraiadas. Felizmente pude falar sobre isso no Conselho da Cidade.

Vivemos uma situação de desmando nas cidades brasileiras. A política urbana realmente sumiu do cenário nacional. Política urbana não é um monte de obras.

O Movimento pela Reforma Urbana está organizado?

Ermínia: Está recuado e muito focado em uma demanda pontual: casa própria e financiamento para o movimento. Não há discussão de uma política ampliada.

Nossos anos dourados foram com a política do modo petista de governar, que não sei por que foi esquecido até pelos municípios. Ao olhar para a cidade ilegal, constatamos que os trabalhadores a construíram assim porque ganhavam pouco e esse deveria ser nosso lugar prioritário de ação. Então construímos uma política para recuperar a cidade ilegal.

No que consistiu essa política?

Ermínia: Prioridade à área construída ilegal, desurbanizada, esquecida pelos governos e planos anteriores. Eram bairros inteiros, periféricos, onde não existia lei. Favelas, áreas degradadas, e era preciso evitar riscos, como enchentes, desmoronamentos, epidemias, a condição insalubre e melhorar os padrões de esgoto, drenagem, coleta de lixo...

Pavimentação e equipamento de educação foram uma das coisas mais revolucionárias que fizemos na gestão Marta Suplicy. Construímos teatro, cinema, natação, dança, arte, esporte. Nosso trabalho ficou conhecido no mundo, por causa da arquitetura de habitações, pelo know how de urbanização de favelas.

Além de encontrar essa cidade ilegal e dar um outro padrão a ela, fomos em busca de outras formas de arquitetura, habitação e legislação. Nós temos um arcabouço institucional e legal, que o mundo não entende por que reclamamos.

Quais leis compõem esse aparato legal?

Ermínia: Constituição Federal, Estatuto da Cidade, famoso no mundo inteiro, Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades, Conselho das Cidades, lei federal de consórcios públicos, Plano Nacional de Habitação, lei federal de saneamento, lei de resíduos sólidos e a última é de mobilidade.

Então, onde está o problema?

Ermínia: Temos grande quantidade de conselhos, algo em torno de 20 mil. Uma enorme variedade de conferências, municipal, estadual, federal, criança, adolescente, idoso, educação, cultura... Está todo mundo ocupado no institucional. O PT está absolutamente incluído no institucional. O resultado da convocação do partido que não cobriu a Avenida Paulista de vermelho deve soar como uma luz. Eu mesma fiquei impressionada. Cadê a militância? Ela está ocupada. E a militância que foi às ruas, que não está no espaço institucional, é despolitizada, o que também é nossa responsabilidade. “Nunca fomos tão participativos”, como digo em meu livro O Impasse da Política Urbana no Brasil. Há novas instituições e um novo arcabouço legal. Tivemos muitas conquistas sociais: aumento do salário mínimo, bolsa família... Mas isso se esgotou.

E onde foi parar a reforma urbana? Não havia uma proposta?

Ermínia: Em 1979 e 1980 o país cresceu muito, depois houve queda e uns voozinhos de galinha. Com o governo Lula o país cresce. Mas esse crescimento com base na indústria automobilística deveria ter sido mais bem avaliado, pois as cidades pagariam um preço muito alto. E o pior: para criar pouco mais de 20 mil empregos durante um certo tempo, uma vez que a lógica desse tipo de indústria é desempregar.

A partir de 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento e em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Com o primeiro decola a atividade de construção pesada e com o segundo a construção residencial.

Se atentarmos para a relação do PIB brasileiro e o da construção, observamos que, em 2008, o primeiro foi de 5,2%, enquanto o segundo foi de 7,9%. Em 2010, o PIB brasileiro vai a 7,5% e o da construção a 11,6%.

O PAC se destina a financiar a infraestrutura econômica (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e toda a infraestrutura de geração e distribuição de energia) e a infraestrutura social (água, esgoto, drenagem, destino do lixo, recursos hídricos, pavimentação). Finalmente o Estado reconhecia a cidade ilegal e o passivo urbano, buscando requalificar e regularizar áreas ocupadas ilegalmente. Com o Minha Casa, Minha Vida é diferente. Retoma-se a visão empresarial da política habitacional, ou seja, de construção de novas casas, apenas, sem levar em consideração o espaço urbano em seu conjunto, e muito menos a cidade já comprometida pela baixa qualidade.

Com a finalidade explícita de enfrentar a crise econômica de 2008, o programa apresenta pela primeira vez uma política habitacional com subsídios do governo federal, e para tanto foi bem-sucedido.

A taxa de desemprego na construção diminuiu muito comparada ao desemprego em outras atividades. Isso não é pouco importante, a questão está nas empresas de construção e incorporação. Em 2007, dezessete delas abriram capital na bolsa de valores, compraram um estoque de terras e estavam justamente aguardando fundos para a construção de moradias. O programa responde a essa necessidade e as empresas passaram imediatamente a construir febrilmente.

O financiamento habitacional cresceu 65% de 2009 a 2010, e no ano seguinte, 42%. O montante de subsídio concedido de 2008 a 2009 foi de aproximadamente R$ 14 bilhões. Quando as empresas entram o salto é vertiginoso. Esse subsídio foi parar no preço da terra, porque na verdade no déficit de moradia da baixa renda, até três salários, não se mexeu ainda.

Essa também é sua crítica ao programa?

Ermínia: É. O programa nesse período incluiu a classe média, de cinco a dez salários mínimos. Mas a reprodução da desigualdade e da segregação se deu pela forma agressiva com que os capitais imobiliários reassumiram o mercado de terras expulsando, com despejos violentos ou incêndios nunca bem explicados favelas ou ocupações ilegais situadas em áreas com potencial de valorização.

A elevação de preço do metro quadrado no Rio foi de quase 185% e em São Paulo de 151%. Há pessoas que fazem esse acompanhamento, como o pessoal do blog Fogo no Barraco, que mapeia os incêndios em favelas e a valorização imobiliária. Há também o Observatório de Remoções de São Paulo, sobre despejos, criado por nossos pesquisadores.

A favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes, está localizada na linha de uma operação urbana prevista da Lapa ao Brás, feita por um escritório americano. Eles tomaram conta!

E a região da Cracolândia?

Ermínia: Lá ficou claro que se tratava de um programa do Kassab com o Serra, Nova Luz, que o Fernando Haddad suspendeu. É outro ponto dessa linha Lapa-Brás.

Há também investimento pesado na Barra Funda, Campos Elísios. A máquina do crescimento utiliza capital imobiliário, empresa de construção pesada, interesses de determinados setores... As empreiteiras tomaram conta da cidade. Elas, que também são financiadoras de campanha, já estavam presentes na coleta de lixo, na energia, na mineração, estão passando para o setor imobiliário.

O que você diz dos efeitos do estresse urbano nas populações de nossas cidades?

Ermínia: Vamos aos dados: 30% da população de São Paulo sofre de depressão, ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. É uma pesquisa da USP.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentam transtornos mentais, nos doze meses anteriores à pesquisa. Ansiedade afetou 19,9% dos entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o trânsito tem a ver com isso. Isso é uma bomba.

Dois grupos se mostram especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família. Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico. Há filmes que mostram bem essa realidade, por exemplo, Os Doze Trabalhos, de Ricardo Elias.

Qual é o tempo médio das viagens?

Ermínia: O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2:42 horas. Para um terço da população esse tempo é de mais de 3 horas. Um quinto leva mais de 4 horas, ou seja, passa uma boa parte da vida nos transportes, seja ele um carro de luxo, seja em um ônibus ou trem superlotado, o que é mais comum e atinge os moradores da periferia metropolitana.

Em São Paulo, em 2011, morreram em acidentes de trânsito 1.365 pessoas, 45,2% (617) delas atropeladas, o que revela a insegurança de pedestres, e 512 motociclistas. Ou seja, as vítimas são os pedestres e motociclistas, mas quem causa a morte são os carros, responsáveis por 83% das ocorrências.

Contando ninguém acredita, mas a velocidade média dos automóveis em São Paulo, entre 17 e 20 horas, em junho de 2012, foi de 7,6 km/h – quase a mesma de uma caminhada a pé. Durante a manhã a velocidade é de 20,6 km/h – de uma bicicleta. É um absurdo!

Os congestionamentos na capital paulista, onde circulam 5,2 milhões de automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros de vias. Todas as cidades de porte médio e grande estão apresentando congestionamentos devido à enorme quantidade de veículos que entram nelas a cada dia. O consumo é incentivado pelos subsídios dados pelo governo federal e alguns estaduais para a compra de automóveis. Em 2001, em doze metrópoles brasileiras, somavam 11,5 milhões; em 2011, 20,5 milhões. Nesse mesmo período e nessas mesmas cidades o número de motos passou de 4,5 milhões para 18,3 milhões. Em diversas metrópoles, o de automóveis dobrou nesse período.

Em todos os lugares onde vou a grita é geral. Estive no Sindicato dos Engenheiros, em Recife, e todo mundo reclamando do tempo que gastava no trânsito. Se a classe média alta está com esse discurso, imagine como estão os trabalhadores das periferias.

E os dados de poluição também são importantes. Segundo o professor da Universidade de São Paulo, Paulo Saldiva, estima-se que para cada dez microgramas de poluição retirado do ar há um aumento de oito meses na expectativa de vida. Aproximadamente 12% das internações respiratórias em São Paulo são atribuídas à poluição do ar, um em cada dez infartos é resultado da associação entre tráfego e poluição – 76% dela gerada pelos automóveis. Os atuais níveis de poluição do ar respondem por 4 mil mortes prematuras ao ano na cidade de São Paulo. Trata-se, portanto, de um tema de saúde pública.

Como você identifica a atuação dos três poderes com relação à política urbana?

Ermínia: Eles ignoraram. Não é competência do governo federal, por exemplo, tratar do uso e ocupação do solo. Tudo fica a cargo dos municípios: Plano Diretor, Lei de Uso do Solo, transporte urbano, saneamento urbano. Mas o governo federal não colocou transporte urbano na agenda nem no período em que estivemos lá. Essa foi uma das lutas que tentamos encampar. A mobilidade é tão importante quanto a saúde.

Até para moradia se dá um jeito. A população se instala em algum lugar, ocupa área de mananciais, Serra do Mar, beira de córrego, mas, quando está morrendo, não tem jeito. Então saúde e transporte são urgentes.

E qual é a solução?

Ermínia: A reforma urbana é uma agenda. É preciso garantir a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade, o controle público sobre a propriedade e o uso da terra e dos imóveis – conforme competência legal constitucional –, e tornar os transportes coletivos, e o não motorizado, como prioridade da matriz de mobilidade urbana.

As nossas empresas de transporte são um grande problema. Fernando Haddad pegou um “rabo de foguete”, mas teve apoio do Conselho da Cidade, para abrir a caixa-preta dos transportes.

A presidenta Dilma anunciou o Plano Nacional de Mobilidade. Temos de ir para a rua, porque eu, por exemplo, não quero mais cargo. Quero ser movimento social, sociedade civil, porque não adianta ir para o governo se a sociedade não empurra. Acabará fazendo o jogo dos caras...

Você se refere aos governos de coalizão?

Ermínia: Como é que conseguíamos fazer tanta coisa sem coalizão, na época do modo petista de governar nos municípios? O transporte, hoje, atinge todo mundo, porque quem tem carro também está parado.

As pessoas sentem isso, que a cidade está entregue. Você não vê em lado nenhum que tem uma força do bem conduzindo para algum lado. Isso faz uma sociedade entrar em caos... Qual é a maior causa dessa crise hoje? É o avanço imobiliário que está totalmente descontrolado e avançando sobre a periferia também, empurrando os pobres. A cidade está se espalhando.

Falamos sobre o arcabouço legal, mas como é o desempenho do Judiciário no cumprimento do que está estabelecido?

Ermínia: O Judiciário é extremamente conservador. Tenho quarenta anos de ação em política urbana e o número de sentenças que já vi serem dadas contra a lei impressiona. Se é que podemos dizer que um juiz dá uma sentença ilegal – é surpreendente. Uma hipótese que já levantei é que o Judiciário não conhece a legislação urbanística. Dei aula para o Ministério Público de vários estados. Sempre tem pessoas bem avançadas. Por exemplo, a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, pelo menos durante um certo período, era mais avançada, e setores do Ministério Público de São Paulo ligados ao meio ambiente e à questão urbana, também.

Mas o Brasil é um país continental, como se dá isso por aí afora?

Ermínia: Minhas pesquisas apontam um país em que a fraude registrária é regra. No mais das vezes em propriedades contíguas a limitação não confere. As propriedades registradas no Pará dão cinco vezes o território do estado. O Incra tem documentos muito bons, inclusive de governos da década de 1990, sobre fraudes em desapropriações. São comuns as fraudes ligadas à questão fundiária, o que se estende à cidade. Há shopping centers em área da União, loteamentos, como Alphaville, que tem parte na área da União. Em São Paulo o bairro São Miguel Paulista ocupou áreas indígenas.

Há um discurso dos ruralistas aparentemente rigoroso por parte de suas lideranças, principalmente a deputada Kátia Abreu, mas uma condição do latifúndio é de invasão de terra. O principal objetivo na aprovação do Código Florestal é a regularização de terras, porque o registro de terras no país é uma barafunda. Ao mesmo tempo, o Judiciário e a mídia acusam o MST de ocupar, derrubar árvores. A Globo mostrou ao Brasil inteiro o MST derrubando árvores, em uma propriedade supostamente de uma empresa de laranjas, só que era uma propriedade grilada, questionada pelo Ministério Público Federal. É propriedade da União.

E qual é a relação reforma agrária e reforma urbana?

Ermínia: É impossível separar as duas coisas porque, atualmente, o que se vê em vários países é que para segurar a expansão urbana se faz uma agricultura urbana, que tem um papel urbanístico e ambiental muito importante na absorção das águas de chuva e não deixa a cidade inundar. São Paulo, segundo o ambientalista Hans Schreier, que está no Canadá, é a maior área impermeabilizada do mundo. O Rio Tietê acabou também tendo a margem mais impermeabilizada por uma obra viária recente. Só a permeabilização do solo é que pode melhorar, porque fazer obra, tipo piscinão, contenções, tem limite. A manutenção é ruim.

Além do papel ambiental, a agricultura urbana evita que o alimento viaje. João Pedro Stédile disse outro dia que em Manaus se come o tomate de Mogi das Cruzes. Isso é um crime. Por que isso se podemos ter o alimento próximo da cidade, principalmente o perecível, na merenda escolar, fresco e sem veneno? O Brasil se tornou o grande país consumidor de agrotóxico no mundo.

Temos florestas no sul do município de São Paulo, temos mata ainda. Uma das propostas é conservar e fazer uma agricultura orgânica nessa região. Os sonhos a gente nunca abandona.

E o comportamento do Legislativo quanto a todos esses temas elencados aqui?

Ermínia: O Legislativo é um caso seriíssimo. Há o capitalismo global de um lado e o clientelismo do outro. Quando eu estava no Ministério das Cidades, aparecia muito deputado pedindo asfalto – em uma quadra, rua, cidade –, era a maior reivindicação de emenda. Fizemos até uma cartilha para tentar politizar os deputados e explicar pelo menos que era preciso instalar a rede de água e esgoto antes de fazer o asfalto.

Sem reforma política não dá. Agora temos de ir para a rua. Criamos um Ministério das Cidades pra quê? Mais um espaço para ser moeda de troca? A esse arcabouço legal e institucional precisa corresponder uma correlação de forças favorável, senão é inútil. O Estatuto da Cidade é festejado no mundo inteiro e nós não conseguimos aplicá-lo.

Todos esses serviços urbanos estão no âmbito dos municípios. Mas em muitos casos a solução de grandes problemas extrapola essa esfera. Não faltam instrumentos para organizar esse tipo de demanda?

Ermínia: Sim, muitas dessas questões são metropolitanas. A única ressalva que eu faria em lei federal é que deveríamos ter um tratamento unificado sobre o que é metrópole e como administrá-la. A Constituição de 1988 remeteu aos estados a questão metropolitana. Então cada um resolveu ou deixou de resolver de um jeito. Há estados que consideram cidades médias metrópoles e estados que não consideram a cidade principal metrópole. Manaus não era região metropolitana e Blumenau era. Não dá para resolver, por exemplo, questões de esgoto, água, transporte, moradia.

E os impactos dos megaeventos nas cidades?

Ermínia: Os megaeventos são como o aumento da febre. Porque junto com megaevento vem um tsunami de capitais para o país, engordam e vão embora. Esses capitais vêm com certas regras, mas nem todas são interessantes para o país, que acaba ficando com elefantes brancos. É o que está acontecendo na África do Sul, na Grécia, na China, onde ocorreram eventos esportivos.

No Brasil, o estádio de Natal por exemplo, já não lotava. Só que o colocaram abaixo e estão construindo outro com o dobro do tamanho. O governo não está investindo, mas toda a infraestrutura de transporte é em função das Copas. Servirá para a população ou só para quem vai do aeroporto para os hotéis?

Mas a situação não é diferente em cada estado?

Ermínia: Sim, é diferente, mas há abuso em todos os estados. Onde há maior arbitrariedade de intervenção na cidade é no Rio de Janeiro. Estão fazendo com que a população pobre saia do centro e vá para o fim do mundo. Há casas do Minha Casa, Minha Vida só para remoção de risco e em consequência da Copa. Tem áreas das quais as pessoas foram retiradas que estão vazias. Pobre desvaloriza.

Você tem esperança de que é possível mudar?

Ermínia: A esperança sempre tem de estar nas gerações que estão vindo, porque para quem tem a minha idade o tempo é limitado. A nossa cabeça é um patrimônio. Somos educados, aprendemos, vivemos experiências e adquirimos certa sabedoria. Eu sempre achei que a educação para os direitos humanos é fundamental e deve começar nas crianças, e agora acho isso mais importante do que nunca.

Há alguns anos, quando eu ia para a periferia, pensava que perderíamos uma geração, porque ninguém estava dando suporte para aquela criançada. Mas estou muito mais otimista depois que as manifestações explodiram. Porque eu acho que a direita neste país, apesar de muito agressiva, não tem condições de dar um golpe. A esquerda, sim, está em condições de se reorganizar e voltar a trabalhar de forma menos institucional e mais preocupada com o social.

Você tem ido para as periferias?

Ermínia: No momento, não, mas acho que tem uma vida na periferia mais interessante do que antes. Mano Brown e Emicida estão entre as lideranças mais importantes do país. Pela cultura, eles discutem tudo, especulação imobiliária e também a questão urbana. Essa efervescência me dá esperança. É afirmação de identidade, reivindicação de melhores condições de vida. É uma tentativa de enfrentar esse abismo que é o tráfico na periferia. Um cara como Mano Brown, que não se vende para a Globo, para mim é um herói.

Fonte: Carta Maiorhttp://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22499

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Mudança no Código Florestal é licença para novas tragédias, alertam ambientalistas

Maurício Thuswohl, na Rede Brasil Atual
RIO - Ainda sob o impacto da tragédia que já provocou mais de 800 mortes e soma quase 500 desaparecidos na Região Serrana do Rio de Janeiro, lideranças do movimento socioambientalista de todo o Brasil alertam que, se aprovadas no Congresso Nacional, as mudanças sugeridas no Código Florestal brasileiro por setores ruralistas servirão como uma espécie de licença para que ocorra em outros pontos do país o mesmo pesadelo que acometeu as cidades fluminenses de Nova Friburgo, Petrópolis, Teresópolis, Bom Jardim e Sumidouro.

Elaborado pelo deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), o relatório que impõe mudanças no Código Florestal sugere, entre outras coisas, a redução das Áreas de Proteção Permanente (APPs) nas margens dos rios dos atuais 30 metros para apenas cinco metros. Outra mudança proposta é a permissão de supressão de vegetação nos topos de morros (acima da cota 100), assim como a flexibilização da ocupação das encostas para fins de produção agrícola. A relação do texto de Aldo com a catástrofe da Região Serrana do Rio é, portanto, clara e evidente, afirmam os ambientalistas.

"A ligação entre o desastre que aconteceu na Região Serrana e as tentativas de mudança da implementação do Código Florestal em áreas urbanas e rurais propostas pelo deputado Aldo Rebelo é que a aprovação dessas mudanças será uma espécie de licença para sacramentar o acontecimento de novas tragédias como esta que tivemos agora ou a que tivemos em Angra dos Reis e Niterói em 2010", afirma Ivan Marcelo Neves, coordenador-executivo do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente (FBOMS).

Coordenador do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá), Renato Cunha segue a mesma linha de raciocínio: "Essa mudança no Código Florestal prevista no substitutivo do Aldo Rebelo realmente nos preocupa muito porque a flexibilização da legislação ambiental, e do Código Florestal especificamente, pode vir a agravar essas conseqüências dos desastres que vêm acontecendo - e que acaba de acontecer na Região Serrana do Rio de Janeiro - porque ele tenta flexibilizar o uso das encostas, das áreas alagadiças, das Áreas de Preservação Permanente, diminuindo esses espaços que devem ser preservados, diminuindo a questão da Reserva Legal das propriedades".

Um dos mais experientes ambientalistas brasileiros, Cunha afirma que tentar flexibilizar o Código Florestal é o oposto daquilo que realmente deveria estar sendo feito no país: "Alterar o código pode ser um marco fundamental para esses desastres virem realmente a ter conseqüências muito maiores. O que a gente tem que aprender no Brasil é a adotar políticas e legislações e planos e projetos para minimizar as causas e os efeitos dessas questões naturais que ocorrem, e não mudar a lei para beneficiar um grupo pequeno como, por exemplo, os empresários do agronegócio", critica.

Outra voz experiente do movimento socioambientalista brasileiro, o líder indígena Marcos Terena também associa a tentativa de mudar o Código Florestal à tragédia da Região Serrana do Rio: "Essa proposta que está no Congresso fere totalmente, do ponto de vista indígena, a questão do respeito à força da natureza. O exemplo clássico disso é a irresponsabilidade de setores governamentais quando permitem que pessoas que não tem onde morar, não tem onde dormir, construam suas habitações em áreas que depois se transformam em áreas de risco", diz.

Marcos Terena também faz um alerta: "A natureza não compromete a vida do ser humano, mas as pessoas constroem situações que afetam sua própria segurança, como aconteceu na Região Serrana do Rio de Janeiro. Então, essa proposta de mudança do Código Florestal que está em Brasília deve ser brecada porque se for aprovada vai aumentar a possibilidade de grandes catástrofes e trazer conseqüências muito agressivas fisicamente e espiritualmente para o povo brasileiro".

'Tragédia anunciada'
Pedro Aranha, ex-coordenador da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) e um dos mais ativos ambientalistas do Rio de Janeiro, ressalta que, para o movimento, a tragédia na Região Serrana não foi algo inesperado: "O que a gente viu na Região Serrana foi a crônica de uma tragédia anunciada. Todo mundo sabia que um dia isso iria acontecer. Nós do movimento ambiental denunciamos há pelo menos dez anos a ocupação do Vale do Cuiabá, em Itaipava, que foi uma das áreas mais devastadas pelas águas. Mas, infelizmente, acabou acontecendo o que a gente previa. Então, a alteração do Código é dizer: olha, vão acontecer várias tragédias iguais a essa e elas vão estar permitidas na lei".

Aranha faz um alerta sobre o discurso, utilizado pelos ruralistas, de que a alteração do Código Florestal servirá apenas para sintonizar a lei com aquilo que já é realidade: "Os ruralistas dizem que querem apenas legitimar algo que já está consolidado, só que o que aconteceu agora na Região Serrana foi o ‘algo consolidado’ em Área de Preservação Permanente, ao qual eles se referem, que desabou todo e matou muita gente. Não podemos mais permitir construção irregular acima da cota 100 ou em margem de rio e ver a população ali achando que aquilo está certo e a prefeitura vir cobrar IPTU e as empresas privadas, atrás de lucros, virem logo instalar água e luz. É uma lógica do capital perverso".

A tragédia na Região Serrana repercutiu até mesmo entre os ambientalistas da Amazônia. Representante em Brasília do GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), rede que engloba mais de 600 entidades da região, Vitor Mamede é outro que faz associação entre o ocorrido neste início de ano no Rio de Janeiro e a luta política pela alteração do Código Florestal: "Eu acredito que, devido ao fato de a proteção das encostas não ser mais considerada como Área de Proteção Permanente nessa nova proposta do Código Florestal, isso pode realmente fazer com que novas tragédias aconteçam. Outra questão muito problemática diz respeito às áreas de Reserva Legal, pois essa proposta de alteração do Código Florestal visa a beneficiar mais uma vez os grandes produtores e os agricultores patronais", diz.

Áreas urbanas
A responsabilidade dos administradores públicos também é questionada pelos ambientalistas. Ex-secretário-executivo do Ibama no Rio de Janeiro, o analista ambiental Rogério Rocco lembra que alguns estados e municípios brasileiros já adotaram leis semelhantes às propostas no relatório de Aldo Rebelo: "Os prefeitos são os maiores defensores da abolição do Código Florestal em áreas urbanas. E assim se posicionam em aliança com o mercado imobiliário, que busca a otimização máxima do território para a construção civil. As imagens registram com muita precisão que as áreas atingidas pelas chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro são exatamente as margens de rios, as encostas e os topos de morro, que se constituem sob o regime de preservação permanente".

Pedro Aranha segue na mesma linha de Rocco: "O que os defensores da alteração do código querem hoje é legitimar a ocupação desordenada, principalmente nos espaços urbanos, das Áreas de Preservação Permanente e das margens de rios. Essa lógica absurda que a gente vive hoje tem nas prefeituras suas grandes defensoras, porque elas querem captar os recursos do IPTU, enquanto o imposto rural vai para o governo federal e não para o município. Então, os prefeitos também querem alterar essas áreas de preservação, ocupar esses espaços", acusa.

Ivan Marcelo Neves vai ainda mais longe: "Muita coisa poderia ter sido evitada. Tem que haver responsabilização civil e criminal de alguma forma para todos que contribuíram para essa desgraça. A legislação ambiental vigente pode estar aquém do que a gente almeja para o nosso Brasil, mas ela responderia para minimizar um pouco os efeitos dessa desgraça na população e no meio ambiente como um todo. O que a gente vê é uma ação irresponsável dos legisladores, do Executivo e do Judiciário também, que muitas vezes é conivente com as irregularidades. É um arsenal de demagogia".

O secretário-executivo do FBOMS também criticou o governador Sérgio Cabral: "Estudos acadêmicos já foram enviados ao governo, como, por exemplo, um estudo feito pela PUC. Se o governador é tão preocupado com as áreas de risco como diz ser, não deveria ter baixado decreto abrindo para a especulação imobiliária em Angra dos Reis, assim como ele tem um decreto estadual de 2010 que diminui as faixas de proteção ambiental nas margens dos rios", denuncia.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Desastres causados por chuvas podem aumentar se novo Código Florestal for aprovado

Danilo Augusto, da Radioagência NP
SÃO PAULO - As tragédias causadas pelas chuvas que atingem o Brasil podem aumentar se forem aprovadas as propostas de mudanças no Código Florestal. A afirmação é do engenheiro florestal e integrante da Via Campesina, Luiz Zarref. Entre os pontos polêmicos, o texto que propõe mudanças no atual Código, de autoria do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), deixa de considerar topos de morros como áreas de preservação permanente. Esses locais foram os mais afetados por deslizamentos de terra no Rio de Janeiro.

O projeto já foi aprovado em uma Comissão Especial e está pronto para ser votado pelo Plenário. Para Zarref, a proposta de redução de 30 para 15 metros das áreas de preservação nas margens de rios provocará erosão, ampliando os alagamentos.

“Sem essa área, rapidamente uma tromba d'água se forma. Isso porque a chuva cai em uma área que está desprotegida, fato que aumenta rapidamente o nível do rio. Essas quantidades anormais de água crescem muito mais rapidamente, de que quanto se tem uma área protegida, como está no Código atual."

Ainda segundo Zarref, a tragédia que até o momento já vitimou quase 700 pessoas no Rio é um reflexo da não preservação das áreas com vegetação.

“O que aconteceu no Rio de Janeiro não é só por causa da degradação do topo do morro, de fato foi um nível de chuva muito alto. Porém, com certeza, foi agravado pela devastação, principalmente nas áreas de preservação permanente. A natureza que antes comportava até mesmo uma tempestade, hoje não comporta mais."

Zarref também enfatiza que mesmo com as áreas ocupadas irregularmente, há estudos que mostram que ainda existem soluções para o problema, sem a necessidade de remoção das famílias.

“Em algumas áreas você pode fazer trabalhos de drenagem, galerias pluviais ou até mesmo recuperação florestal. Agora existem áreas de instabilidade geológicas que de fato vai ter que ser construído juntamente com a comunidade um reassentamento das famílias. Essas famílias foram empurradas historicamente para essas regiões. A maioria dessas pessoas são pobres. Então tem que haver uma solução que respeite esse processo histórico."

domingo, 16 de janeiro de 2011

Ermínia Maricato: Os prisioneiros da especulação imobiliária

Luiz Carlos Azenha, do blog 'Vi o mundo'
Num evento recente do qual participei estava lá a arquiteta Ermínia Maricato. Ela pediu a palavra para dizer que, infelizmente, os movimentos sociais haviam se desarticulado na luta pela “reforma urbana”. Disse que o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, tratava do subsidiário sem atacar o principal. Que, na verdade, o programa tinha sido responsável por inflacionar o estoque de terras, beneficiando a especulação imobiliária.

As tragédias do Rio de Janeiro e de São Paulo, além da inépcia generalizada — bombeiros sem equipamento para iluminação noturna, Defesa Civil dependente de aparelhos celulares, prefeituras que só agem (quando agem) para remediar as tragédias — demonstram o quanto somos reféns dos interesses imobiliários, que ao mesmo tempo determinam as leis de ocupação locais E financiam a mídia e as campanhas eleitorais.

Na entrevista abaixo, concedida antes das tragédias do Rio e de São Paulo à Caros Amigos, Ermínia faz previsões sombrias sobre o futuro das cidades se nada for feito. Meu pessimismo neste tema tem relação com o fato de que tanto o PT quanto o PSDB são almas gêmeas quando se trata da reforma urbana: ninguém fala do assunto para ver se o problema some.

Especulação da terra inviabiliza moradia popular
originalmente publicado na revista 'Caros Amigos'

Participaram: Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Júio Delmanto, Lúia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana Merlino.

A arquiteta Ermínia Maricato tem uma longa trajetória de reflexão teórica e enfrentamento dos problemas urbanos, como profissional e como militante do PT. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), foi também secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005). Na entrevista a seguir ela faz uma análise profunda e reveladora da situação caótica das cidades brasileiras. Vale a pena ler.

Hamilton Octávio de Souza – Onde você nasceu? O que estudou? Fale sobre a sua trajetória.
Ermínia Maricato – Eu nasci no interior do Estado de São Paulo, em uma cidade chamada Santa Ernestina, mas vim muito cedo para São Paulo. Meu pai foi camponês, mas se tornou um pequeno empresário, tinha uma granja de aves. A família é três quartos italiana e um quarto portuguesa. Nós tivemos que vir para São Paulo porque a minha mãe tinha uma doença, hoje eu sei que é psíquica, mas no interior nós não sabíamos bem o que era. Com 5 anos eu vim para São Paulo, estudei em escola pública, que era maravilhosa, morei no Brás e, enfim, sempre gostei muito de estudar, minha mãe não queria que eu estudasse, o meu pai me deu toda a força, acho que não tem tanta novidade aí. Foi um período em que era possível um filho de europeu, mesmo que viesse do campo, era fácil ter ascensão social em São Paulo. Foi o que aconteceu com o meu pai, ele amealhou um certo patrimoniozinho, então não é a mesma condição que o filho de camponês brasileiro, que tem origem muitas vezes na herança escrava, uma condição diferente. Bem, eu fiz química industrial no nível médio, comecei a faculdade de física na USP, depois é que eu passei para arquitetura; mas hoje eu acho que errei, estou muito apaixonada pela terra, por agricultura, por agricultura orgânica. Atualmente pertenço a uma associação que tem uma gleba de Mata Atlântica e nós estamos fazendo um pomar de frutas em extinção da Mata Atlântica, esse é o meu hobby atual. Então eu estou tão encantada, tão impressionada com a força e a exuberância da Mata Atlântica que fico pensando como nós conseguimos destruir essa riqueza.

Lúcia Rodrigues – Como surgiu essa ideia?
A associação já existia. Eu cheguei em um amigo e falei: acho que a gente devia comprar um pedaço de mata para deixar lá. E aí ele falou: mas eu já estou em um lugar que tem isso e tal. Aí eu fui, me encantei, entrei na diretoria. Temos uma médica homeopata como presidente, temos várias tribos ali, temos sete nascentes de água, então nós estamos trabalhando no tratamento e distribuição dessa água e agora nós passaremos a discutir o lixo, o esgoto.

Tatiana Merlino – Onde é?
Fica a uma hora de São Paulo, em São Lourenço da Serra. Então é a minha paixão atual e eu fiquei muito impressionada de como é que eu não fui para a agricultura, pois tem muito a ver com a questão ambiental. Eu comi uma fruta quando era criança e morava no interior que chamava pindaíva, é uma fruta lindíssima, vermelha, parece uma fruta do conde, ela é de uma árvore muito alta e aí eu falei: Mas cadê a fruta? Não existe mais. Então eu fui pesquisar e consegui, depois de muito procurar, achar uma muda da pindaíva, hoje nós plantamos quatro mudas lá no vale e aí tem outras frutas que eu nem sei o que são, comprei outras mudas, fui atrás, agora eu estou pesquisando isso. Lá tem uns malucos que entram na mata, pegam semente, estão plantando, tem um pessoal interessante. Eu gosto mais de falar disso do que falar de cidade, meu Deus do céu. O que eu quero deixar de fundamental em relação a questão urbana é que as cidades vão piorar.

Lúcia Rodrigues – Mais ainda?
Muito, muito.

Lúcia Rodrigues – Por que, professora?
Porque não tem nada sendo feito para contrariar o rumo.

Júlio Delmanto – As cidades que você diz não são só as grandes, né?
Não só as grandes, porque as cidades que mais crescem atualmente são as médias no Brasil, não são as metrópoles, as metrópoles deram uma recuada, desde a década de 80 as metrópoles estão crescendo menos e as cidades médias estão crescendo mais.

Tatiana Merlino – Nada está sendo feito nos âmbitos federal, estadual e municipal?
Não é só uma questão de governo. Primeiro não é uma questão restrita a governo, é uma questão do capitalismo periférico, eu quero fazer questão de falar isso porque muita gente fala: ah! falta vontade política! Eu vou dizer que tem problemas que são estruturais. Um deles: o mercado residencial, no capitalismo periférico, atinge uma pequena parte da população. Até 2004, quando começa uma mudança na política habitacional, da qual eu fiz parte, o mercado brasileiro produzia para 20% da população. Em São Luís (MA) é para 10% da população. Eu fico pensando, pela minha experiência, que São Paulo, por exemplo, chega a 40% da população, mas quando você vai para São Luís ou Belém (PA), o mercado não chega a 10% da população. O mercado, esse sim, segue a lei, que tem um investimento, às vezes tem um financiamento, ou às vezes até mesmo a empresa incorpora o teu financiamento, você faz um projeto que é aprovado na prefeitura de acordo com a legislação de código de obras, legislação de parcelamento do solo, legislação de zoneamento, aí isso é lançado, tem compradores que também podem ter um financiamento. Isso é o que? No Canadá, na Europa, nos EUA isso atinge de 70 a 80% da população. No Canadá isso é muito claro: 30% da população precisa de subsídio para comprar moradia. Aqui no Brasil é o oposto: tem 70% da população. Varia de cidade, de região, se tem uma classe média maior, esse número é maior, se você tem uma classe média menor, como as cidades do Norte e Nordeste, esse número é menor. Então, vivemos em uma sociedade em que uma parte da população se vira, ela não se integra ao mercado e não tem política pública para chegar nela. O financiamento, o investimento público habitacional ampliou muito a partir de 2004, é impressionante o aumento nos últimos anos. Mas na sociedade brasileira a classe média não entra no mercado. O que quer dizer que a classe média não entra no mercado? O policial, o funcionário da USP, o professor secundário mora em favela, isso é uma coisa comum. Então, o Brasil é um país típico de capitalismo periférico, onde um trabalhador regularmente empregado, com estabilidade no emprego, que é o caso de um funcionário público, não tem acesso à moradia no mercado.

Tatiana Merlino – Esse “se vira” a que você se referiu é equivalente ao déficit habitacional que há no Brasil?
É mais do que o déficit.

Tatiana Merlino – Qual é o déficit habitacional hoje do Brasil?
Olha, o déficit deve estar entre os 7 e 8 milhões, o déficit é sempre uma coisa que deve ser discutida, né? O que você considera déficit? Uma das questões que discutimos no ministério, por exemplo, é que o IBGE considera déficit a convivência de famílias e às vezes é uma decisão sua conviver com mais de uma família. Então, devo ou não considerar isso déficit? O que eu quero dizer é o seguinte: “parte da população brasileira se vira” significa que ela arruma terra, eu tenho muita restrição para usar a palavra invadindo, porque os movimentos sociais não gostam, digamos que ocupando ilegalmente, mas esse ocupando ilegalmente é uma coisa muito vasta. E construindo as próprias casas, como o Chico de Oliveira mostrou em um artigo que ficou clássico, em 1972, que essa autoconstrução, essas ocupações ilegais não eram uma coisa espontânea ou decisão deles, aquilo era o resultado do rebaixamento da força de trabalho, quer dizer uma força de trabalho que não ganha para comprar uma casa, para pagar para alguém construir, mas não dentro da lei, não é dentro do mercado, não consegue comprar a terra. E a terra é um capítulo a parte. Então essa condição de ilegalidade é geral no Brasil. Tem um município perto de Belém, Ananindeua, ou outros municípios na periferia de Recife, Salvador, Fortaleza, onde 90% dos domicílios são ilegais. Quando você chega à região metropolitana de Fortaleza o próprio IBGE dá 33% da chamada sub-habitação. Nós temos alguns estudos, não temos dados fidedignos, mas isso já mostra um pouco o que é a realidade brasileira. Quanto por cento da população brasileira mora em favela? Tem alguns trabalhos que mostram que há uma grande diferença de uma cidade para outra no Brasil, mas que a exceção que seria uma casa ilegal, construída completamente fora da lei em uma terra ocupada de forma completamente irregular, construída aos poucos, sem qualquer conhecimento de engenheiro ou arquiteto etc., é regra, não é mais exceção. Veja bem, o que era para ser exceção virou regra e o que era para ser regra virou exceção.

Tatiana Merlino – Essa é uma característica do capitalismo periférico?
É. Você vê isso no mundo inteirinho e varia um pouco em cada país. A Argentina, que já teve uma condição muito melhor socialmente na América Latina, agora está em uma situação dramática. Na Argentina você tinha menos disso, algo em torno de 20 ou 30 anos atrás, ela era mais formal, a cidade na Argentina. Fui convidada para ir a um encontro sobre moradores de rua na Argentina, eles ficaram encantados com a nossa política de morador de rua e aí eu falei: Bom, mas vocês não tinham porque vocês não tinham morador de rua e no Brasil tem há muito tempo. Se você vai para o Chile você tem uma formalidade maior na cidade, tem uma classe média mais forte. Agora o resto, Bolívia, Venezuela, que eu andei pelos morros em volta de Caracas, o próprio México, você tem uma situação que é pior do que algumas metrópoles brasileiras, porque o Brasil tem algumas coisas que são mais ricas e algumas coisas que são mais pobres.

Hamilton Octávio de Souza – Mas esse processo não está sendo revertido?
Ao contrário, as cidades do mundo estão se empobrecendo. Se você pegar a África é impressionante o que está acontecendo.

Hamilton Octávio de Souza – E São Paulo? O que acontece em São Paulo?
São Paulo está assim: o município concentra, se não me engano, 22% da população que ganha acima de 20 salários mínimos do Brasil. Então você tem uma grande concentração de renda em São Paulo, Ribeirão Preto, Santos, e Brasília – no plano piloto. Então você tem uma condição de expulsão da população desses municípios mais ricos.

Hamilton Octávio de Souza – A favelização aqui tem sido crescente, não tem? Desde a década de 50?
Mas muito mais nas periferias. Se eu pegar Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica da Serra, Embu, Embu-Guaçu, você tem uma periferização com o aumento da violência, com uma queda geral de índices e a gente trabalha com média, o que é complicado.

Lúcia Rodrigues – A concentração do capital é o que está levando ao empobrecimento das cidades, é isso?
Não é só. Você tem assim uma tradição de desigualdade histórica, você tem nesses países essa questão estrutural da informalidade tanto no trabalho quanto na ocupação do solo, então nós temos ilhas que são cidades do primeiro mundo, isso é tudo inadequado. Por isso que eu acho engraçado dizer que a questão é técnica. Na verdade nós copiamos a lei de zoneamento, toda a legislação do primeiro mundo e aí a gente garante uma ilha onde o resto não cabe. Para inserir a população pobre nessa cidade eu preciso transformar o conjunto, isso foi o que discutimos no Fórum Urbano Mundial e no Fórum Social Urbano.

Júlio Delmanto – Existe alguma diferença entre esses países que são chamados em desenvolvimento em relação ao resto da periferia?
Sim. O Brasil é diferente. É uma economia forte. É um player internacional. Ele passou de “nada dava certo” para “país do futuro” ou “do presente”. Mas a desigualdade é uma coisa escandalosa no Brasil. A África do Sul me impactou porque ela saiu do apartheid, em que a segregação, diferentemente da nossa, era jurídica. Então você não podia ir para a cidade se você fosse negro, a menos que você tivesse um passe. Vencer essa segregação quando o Mandela ganhou parecia fácil. Mas existe um problema que está atingindo todo o terceiro mundo que é a questão da terra. A questão da terra não foi superada com a luta contra o apartheid. Aliás, foi uma coisa que me impressionou muito, que eu ouvi de vários líderes: se a terra tivesse entrado em negociação, a paz não acontecia.

Hamilton Octavio de Souza – O que é a questão da terra? É a terra urbana?
É a terra urbana e rural. A terra está na essência da alma brasileira. A desigualdade no Brasil passa essencialmente pela questão fundiária. Campo e cidade. Só terminando a história dessa segregação, não tem nenhum mistério. Uma parte da população constrói as casas, constrói fora da lei e não tem lugar nas cidades. Às vezes os planos diretores não disseram onde os jovens iam morar, porque todo plano diretor é seguido de uma lei de zoneamento e a lei de zoneamento é lei para o mercado, e a nossa população tá fora do mercado. Então os urbanistas estão trabalhan do em um espaço de ficção, com realidade de ficção. Aliás, essa ausência dos engenheiros nem se fala. Eu quero falar depois do estrago que a engenharia fez em São Paulo.

Lúcia Rodrigues – Essas leis que você citou funcionam?
Nada. O estatuto da cidade é um sucesso no mundo. Do Brasil para o mundo. Eu sou convidada a consultoria internacional o tempo todo por conta do estatuto da cidade. Eu fui a poucos lugares, mas para onde eu fui eu falei que não está sendo aplicado no Brasil. Não está sendo aplicado.

Tatiana Merlino – Existe uma política habitacional para resolver essa questão do controle do solo?
Lei nós temos. O estatuto da cidade é ótimo. Constituição Federal nós temos. Só que nós não aplicamos a função social da propriedade. Só terminando aquilo. A nossa lógica é que a mão de obra barata de que o Celso Furtado falava muito, que garante a exportação de riqueza, que garante uma elite conspícua, que é patrimonialista, que se agarrou a este Estado e fez dele o que fez, tem a lógica de que nós temos que ter uma mão de obra absolutamente rebaixada no seu preço para poder segurar essa relação.

Lúcia Rodrigues – Mas isso não é anticapitalista? Por que se você tem gente ganhando mais, injeta força e fluxo no mercado.
É engraçado isso. Porque o Ford descobriu que os operários precisavam ganhar melhor para que o capitalismo fosse melhor em 1905, início do século 20. Não é essa a lógica no Brasil. Inclusive uma das coisas que nós nos perguntamos é se o capitalismo brasileiro, principalmente a burguesia nacional, porque as transnacionais não estão nem aí se vão esgotar as reservas, se as cidades vão virar um negócio inviável, pretende se tornar viável. O capitalismo no Brasil não está preocupado em viabilizar. As nossas cidades estão ficando inviáveis. O automóvel está inviabilizando não só São Paulo, mas todas as cidades brasileiras. Brasília está também com um problema seríssimo de trânsito. Então você tem um problema que também é estrutural. A indústria automobilística é responsável por 20% do PIB do mundo, se eu colocar a exploração de petróleo, a distribuição de petróleo, toda a indústria da borracha, das autopeças. E todas as obras nas cidades são uma questão de infraestrutura para o automóvel andar. Quebrar esse modelo é o que seria necessário para incorporar os pobres.

Lúcia Rodrigues – E como se quebra esse modelo?
Vamos primeiro falar da terra. Porque esse “como se quebra esse modelo” é uma reflexão muito difícil para eu fazer depois que eu saí do governo federal. A terra no Brasil durante vários séculos, a propriedade da terra, esteve ligada à detenção de poder social, político e econômico. É interessante perceber em uma cidade como São Paulo como é que a área de proteção dos mananciais, que é uma área protegida por lei federal, estadual e municipal e planos de tudo quanto é tipo, está sendo ocupada. O poder de polícia sobre o uso do solo tem cinco organismos: a Sabesp, a Cetesb, Eletropaulo, o poder municipal sobre o parcelamento do solo, e a Polícia Florestal. Todo mundo é responsável pela fiscalização. Então não falta lei, não falta plano. É bem importante deixar isso claro. Estou cansada de ouvir gente dizendo que falta planejamento, falta plano diretor. Não falta nada. E não falta lei no papel. O que falta é que essa população tem que morar em algum lugar. E ela vai morar onde? Então pensa na população que chega na cidade de São Paulo. O centro está se esvaziando. Isso parece incrível, aliás, em todas as cidades brasileiras grandes. Então nós temos em área de proteção dos mananciais, já vi secretário de meio ambiente falar em um milhão e quinhentas mil pessoas. E já ouvi gente da Empresa Metropolitana de Planejamento falar em dois milhões de pessoas. É uma ligeira margem de dúvida. Isso mostra que nós não sabemos quantas pessoas moram na área de proteção dos mananciais. Mais

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Nota de repúdio à agressão policial contra uma Defensora Pública no Rio de Janeiro

Do website da ANADEP
A Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) vem a público manifestar seu repúdio à operação policial para desocupação do prédio do INSS, na cidade do Rio de Janeiro, que vitimou a Defensora Pública do Estado Adriana Britto, conforme noticiado na primeira página do Jornal O Globo de 14 de dezembro de 2010.

O direito à moradia é um direito social e deve ser respeitado pelos agentes do estado, principalmente quando conjugado com a função social da propriedade, conforme estabelece a Constituição da República.

A Defensora Pública Adriana Britto estava no local para tentar uma solução pacífica para o problema quando foi injustamente agredida com spray de pimenta, em uma ação policial totalmente desproporcional e violadora de direitos e prerrogativas.

A agressão por parte dos agentes policiais atinge diretamente a função institucional da Defensoria Pública, que deve promover os direitos humanos e defender judicial e extrajudicialmente os necessitados, como expressão e instrumento do regime democrático.

O problema habitacional existente no Rio de Janeiro certamente não será solucionado com ações desta natureza, com total desrespeito pelos agentes policiais aos direitos humanos e sociais.

Assim, a Associação Nacional dos Defensores Públicos expediu ofícios para os órgãos competentes dos governos Federal e Estadual, requerendo a imediata apuração dos fatos, especialmente a injusta agressão sofrida pela Defensora Pública.


André Luiz Machado de Castro
Presidente da ANADEP

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Bombas, disparos, gás lacrimogêneo, sprays de pimenta... 42 anos depois um novo AI-5, contra os pobres do Rio

Covardia da PM deixou 23 famílias sem casa. Fotos: Vladimir Santafé
Rodrigo Brandão, da Equipe do EDUCOM
Em pleno aniversário de 42 anos do Ato Institucional Nº 5, que a direita baixou em 13 de dezembro de 1968 para radicalizar de vez sua ditadura empresarial-militar (1964-85), o Rio de Janeiro do governador Sergio Cabral, aquele que virou "herói" do oligopólio da mídia por mandar a polícia e até o Exército massacrarem as favelas, teve mais uma prova de que nestas fronteiras foi instituído um outro AI-5. Cerca de uma centena de sem teto, entre homens, mulheres - algumas grávidas - e crianças, além de um grupo de militantes pelo direito a trabalho e moradia e um vereador presentes como apoios foram ontem escorraçados pelo Choque da PM de um prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) no centro do Rio abandonado há 20 anos, a base de pancadas de cassetetes, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e sprays de pimenta. Tudo isso sem que os "proprietários", o Ministério da Previdência, ou seja, a União, em última análise o povo brasileiro, em resumo sem que destes entes que nos representam tenha saído sequer um pedido de reintegração de posse.

O saldo da truculência liderada pelo capitão Thiago Machado, do Batalhão de Choque - quem com prepotência desembarcou na Praça da Cruz Vermelha aos berros de "vou liberar o prédio agora" e "tirem as mãos da minha viatura" - registra uma dezena de feridos, um estudante com perfurações na perna e no queixo depois de ser atingido por estilhaços de uma bala de borracha e sete ativistas detidos até as 4 horas desta madrugada na sede estadual da Polícia Federal, na Praça Mauá - todos irão responder a "processos" por "lesão corporal" e alguns, acredite, por "sequestro" e desacato a autoridade. Os acusados de "crimes" mais graves foram liberados sob fiança e ainda podem ser obrigados a indenizar policiais. Sergio Cabral e o prefeito do Rio, Eduardo Paes, já não fazem questão de esconder que seu projeto de "revitalização do Centro" tem o principal foco na expulsão de cariocas sem teto que vivem em diversas ocupações espalhadas pela região.

Mas qual seria o objetivo de toda essa operação de "limpeza" étnica e criminalização da pobreza? Respondemos. Preparar o que Sergio Cabral e seu assessor Eduardo Paes (o mesmo que anos antes de se candidatar disse não ver grandes problemas no controle de favelas por milícias de policiais) chamam de Corredor Olímpico, o entorno das sedes dos Jogos Rio 2016 e do principal palco da Copa do Mundo de 2014, o Maracanã, para a chegada de autoridades e atletas que estarão na cidade durante os megaeventos. Para Cabral e Paes, o Rio nunca foi, não é e sobretudo agora jamais o será de sua população, mas na verdade um cartão postal a ser maquiado e "revitalizado" através de "choques de ordem" e do Estado policial estruturado pelo secretário de Segurança, Mariano Beltrame e o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Não pode haver "obstáculos" a que a cidade - na verdade os empresários da cidade - aproveite essa grande oportunidade para faturar milhões de dólares. Os prédios abandonados do INSS no centro do Rio, em consequência do desmonte da estrutura do antigo Inamps - a assistência médica da Previdência vem sendo transferida ao SUS - tornaram-se autênticos latifúndios urbanos e, portanto, instrumentos táticos do movimento pela Reforma Urbana. Mas nem o governo federal, muito menos as instâncias executivas locais demonstram sensibilidade para aproveitar a oportunidade e desenvolver políticas sociais.

Protesto foi pacífico
A antiga agência do INSS localizada na Rua Mem de Sá, 234, já havia sido ocupada por sem teto ativistas no MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados) Pela Base, FIST (Frente Internacionalista dos Sem Teto) e Movimento Pela Moradia, sempre apoiados por Rede de Movimentos Pela Moradia, CMP (Central de Movimentos Populares) e Núcleo Estudantil de Apoio à Reforma Agrária em outras duas ocasiões nos últimos três anos. O resultado foi o mesmo em ambas as vezes. A Polícia Militar despejou brutalmente em questão de dias – ontem foi questão de horas - os sem teto, assim como na segunda-feira, com apoio da PF. Depois da remoção de 2009, bastante noticiada por causa da já ali demonstrada crueldade do capitão Thiago e seu Batalhão de Choque, o "proprietário" do latifúndio urbano - apuramos que o prédio está perto de ser recuperado pela União como execução de dívidas - mandou reforçar o trancamento dos acessos. Os ativistas lutam para construir ali o que será a Ocupação Guerreiros Urbanos e realizavam protesto pacífico em defesa do legítimo direito de morar, sob o lema "Ocupar, resistir, construir e produzir". Aí o Choque entrou em ação.

Estávamos nas primeiras horas do dia 13, que seria marcado por manifestações da esquerda em memória das vítimas do regime de 1964, quando dezenas de famílias de sem teto, juntamente com militantes na Guerreiros Urbanos, ocuparam o nº 234 da Rua Mem de Sá, nas cercanias da Praça da Cruz Vermelha, até 1990 agência do INSS. Com megafone e um carro de som cedido pelo Sindipetro-RJ, o apoio político cercou a entrada do prédio durante toda a manhã, enquanto divulgava para os transeuntes os objetivos da ação política. Acionada pelo vigia da noite, a polícia não demorou a chegar. Uma viatura foi estacionada junto à porta e deixada com o motor ligado todo o tempo, obrigando os ativistas que ali estavam, entre a P2 e o edifício, a suportarem forte calor e respirarem o monóxido de carbono da descarga. Um mutirão garantia o envio de alimentos e água - cortada após a ocupação - às famílias de sem teto. Enquanto a PM aguardava "ordens" e reforço, lideranças dos movimentos Pela Moradia e MTD Pela Base, defensores públicos do Núcleo de Terras e Habitação, bases de mandatos parlamentares do PSOL, o vereador Reimont Santa Bárbara (PT) e sindicalistas tentavam fazer contato com o Ministério da Previdência. Foi constatado que não haveria pedido de reintegração de posse, já que o imóvel está em litígio.

Violência e, mais cedo, tranquilidade. Foto abaixo: Lucas Duarte de Souza


"Estamos vivendo no Brasil uma situação fantasiosa, com projetos cosméticos para dizer que o governo faz política de habitação, como o 'Minha Casa, minha vida'. Mas no centro do Rio, onde sobram prédios públicos, sobretudo federais, ociosos há décadas, não se vê nenhuma iniciativa, nem para alojar moradores de rua nem para garantir sustentabilidade a quem já ocupou imóveis", protesta Hertz Leal, do Pela Moradia. "Tudo o que eles (as autoridades) querem no Rio é entregar esses prédios vazios, sem função social, à especulação imobiliária. Megaprojetos de habitação popular são custosos, mas até por isso abrem espaço a grandes obras e gastos com propaganda, trazendo dividendos políticos e ganhos para alguns", analisa. Apuramos que, segundo o Código Civil, todo imóvel tem que ter função social. Do contrário, torna-se passível de Reforma Urbana ou Agrária.

No final da manhã, chegou a tropa do Batalhão de Choque, com soldados usando coletes à prova de balas e fortemente armados. O comandante da tropa já desceu da viatura gritando que "ia liberar (o prédio) e pronto". Militantes, sem teto e até políticos e defensores públicos que isolavam a porta foram agredidos com cassetetes e sprays de pimenta contra os rostos. Quem se aproximava do local era rechaçado à base de gás lacrimogêneo e tiros com balas de borracha. O estudante de História Arthur Henrique tentou ajudar companheiros e recebeu estilhaços de uma bala de borracha atirada contra o solo. Após dar entrada no Instituto Nacional do Câncer com perfurações no queixo e na perna esquerda, foi liberado após sutura e aplicação de curativos. Isolado o acesso ao prédio, a PM passou a intimidar os trabalhadores sem teto e chegou a atirar bombas de gás lacrimogêneo, obrigando-os a deixarem as dependências. Mesmo após negociações, os desabrigados foram agredidos e atingidos por novas balas de borracha, antes de finalmente se dispersarem, voltando infelizmente a sua dura rotina cotidiana: sem casa, sem trabalho, sem comida. A desempregada Ana Cláudia, 35 anos, resumiu o horizonte do grupo: "Estou grávida de oito meses e tive que respirar esse gás (lacrimogêneo). Há vários idosos e crianças aqui. E agora, para onde a gente vai?"

Os movimentos fluminenses pela moradia anunciam que a luta, como bem definiram, através da qual sempre amadurecemos, continua. As famílias que os ativistas puderam reunir após as agressões policiais fizeram protesto em frente à sede regional do INSS, na Rua México. Ainda esta semana, sem teto, ativistas e outros apoios políticos devem preparar uma moção em desagravo aos detidos e processados e em protesto contra a truculência policial, o descaso com a problemática da moradia e a criminalização da pobreza que marcam a administração Sergio Cabral.

Mais de quatro décadas após a fatídica noite em que, num requintado salão do Palácio Laranjeiras, por triste coincidência no mesmo Rio de Janeiro, os generais ditadores e seus asseclas civis desferiram um golpe quase fatal em nossa República, cariocas e fluminenses vivem um novo AI-5. Agora as armas estão apontadas aos pobres e a quem mais ousar desafiar o Estado semifascista que Cabral, Paes e Beltrame orgulhosamente alardeiam nas mídias do mundo inteiro.

Vídeo: o despejo da Ocupação Guerreiros Urbanos



quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

É dia 13. Movimentos sociais convocam para ato no Rio de Janeiro contra despejos

Quando o assunto é direito à moradia o cenário no Rio de Janeiro não é promissor. As remoções tem aumentado. E mega-eventos como a Copa de 2014 prometem fazer o número de pessoas expulsas de suas casas aumentar proporcionalmente à especulação imobiliária. Por isso, militantes de diversas ocupações convocam para o Ato Contra os Despejos, Remoções e Latifundiários Urbanos na próxima segunda, dia 13.

Todas as organizações políticas, coletivos, instituições, sindicatos e indivíduos que tem críticas ao modelo de cidade da exclusão que está sendo implantado no Rio de Janeiro estão convidados a participar do ato. A concentração será às 8 horas da manhã, em frente ao Prédio Abandonado do INSS localizado na Rua Riachuelo, 48, Lapa.


Fontes: Movimento Pela Moradia e Agência Petroleira de Notícias