terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Bombas, disparos, gás lacrimogêneo, sprays de pimenta... 42 anos depois um novo AI-5, contra os pobres do Rio

Covardia da PM deixou 23 famílias sem casa. Fotos: Vladimir Santafé
Rodrigo Brandão, da Equipe do EDUCOM
Em pleno aniversário de 42 anos do Ato Institucional Nº 5, que a direita baixou em 13 de dezembro de 1968 para radicalizar de vez sua ditadura empresarial-militar (1964-85), o Rio de Janeiro do governador Sergio Cabral, aquele que virou "herói" do oligopólio da mídia por mandar a polícia e até o Exército massacrarem as favelas, teve mais uma prova de que nestas fronteiras foi instituído um outro AI-5. Cerca de uma centena de sem teto, entre homens, mulheres - algumas grávidas - e crianças, além de um grupo de militantes pelo direito a trabalho e moradia e um vereador presentes como apoios foram ontem escorraçados pelo Choque da PM de um prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) no centro do Rio abandonado há 20 anos, a base de pancadas de cassetetes, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e sprays de pimenta. Tudo isso sem que os "proprietários", o Ministério da Previdência, ou seja, a União, em última análise o povo brasileiro, em resumo sem que destes entes que nos representam tenha saído sequer um pedido de reintegração de posse.

O saldo da truculência liderada pelo capitão Thiago Machado, do Batalhão de Choque - quem com prepotência desembarcou na Praça da Cruz Vermelha aos berros de "vou liberar o prédio agora" e "tirem as mãos da minha viatura" - registra uma dezena de feridos, um estudante com perfurações na perna e no queixo depois de ser atingido por estilhaços de uma bala de borracha e sete ativistas detidos até as 4 horas desta madrugada na sede estadual da Polícia Federal, na Praça Mauá - todos irão responder a "processos" por "lesão corporal" e alguns, acredite, por "sequestro" e desacato a autoridade. Os acusados de "crimes" mais graves foram liberados sob fiança e ainda podem ser obrigados a indenizar policiais. Sergio Cabral e o prefeito do Rio, Eduardo Paes, já não fazem questão de esconder que seu projeto de "revitalização do Centro" tem o principal foco na expulsão de cariocas sem teto que vivem em diversas ocupações espalhadas pela região.

Mas qual seria o objetivo de toda essa operação de "limpeza" étnica e criminalização da pobreza? Respondemos. Preparar o que Sergio Cabral e seu assessor Eduardo Paes (o mesmo que anos antes de se candidatar disse não ver grandes problemas no controle de favelas por milícias de policiais) chamam de Corredor Olímpico, o entorno das sedes dos Jogos Rio 2016 e do principal palco da Copa do Mundo de 2014, o Maracanã, para a chegada de autoridades e atletas que estarão na cidade durante os megaeventos. Para Cabral e Paes, o Rio nunca foi, não é e sobretudo agora jamais o será de sua população, mas na verdade um cartão postal a ser maquiado e "revitalizado" através de "choques de ordem" e do Estado policial estruturado pelo secretário de Segurança, Mariano Beltrame e o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Não pode haver "obstáculos" a que a cidade - na verdade os empresários da cidade - aproveite essa grande oportunidade para faturar milhões de dólares. Os prédios abandonados do INSS no centro do Rio, em consequência do desmonte da estrutura do antigo Inamps - a assistência médica da Previdência vem sendo transferida ao SUS - tornaram-se autênticos latifúndios urbanos e, portanto, instrumentos táticos do movimento pela Reforma Urbana. Mas nem o governo federal, muito menos as instâncias executivas locais demonstram sensibilidade para aproveitar a oportunidade e desenvolver políticas sociais.

Protesto foi pacífico
A antiga agência do INSS localizada na Rua Mem de Sá, 234, já havia sido ocupada por sem teto ativistas no MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados) Pela Base, FIST (Frente Internacionalista dos Sem Teto) e Movimento Pela Moradia, sempre apoiados por Rede de Movimentos Pela Moradia, CMP (Central de Movimentos Populares) e Núcleo Estudantil de Apoio à Reforma Agrária em outras duas ocasiões nos últimos três anos. O resultado foi o mesmo em ambas as vezes. A Polícia Militar despejou brutalmente em questão de dias – ontem foi questão de horas - os sem teto, assim como na segunda-feira, com apoio da PF. Depois da remoção de 2009, bastante noticiada por causa da já ali demonstrada crueldade do capitão Thiago e seu Batalhão de Choque, o "proprietário" do latifúndio urbano - apuramos que o prédio está perto de ser recuperado pela União como execução de dívidas - mandou reforçar o trancamento dos acessos. Os ativistas lutam para construir ali o que será a Ocupação Guerreiros Urbanos e realizavam protesto pacífico em defesa do legítimo direito de morar, sob o lema "Ocupar, resistir, construir e produzir". Aí o Choque entrou em ação.

Estávamos nas primeiras horas do dia 13, que seria marcado por manifestações da esquerda em memória das vítimas do regime de 1964, quando dezenas de famílias de sem teto, juntamente com militantes na Guerreiros Urbanos, ocuparam o nº 234 da Rua Mem de Sá, nas cercanias da Praça da Cruz Vermelha, até 1990 agência do INSS. Com megafone e um carro de som cedido pelo Sindipetro-RJ, o apoio político cercou a entrada do prédio durante toda a manhã, enquanto divulgava para os transeuntes os objetivos da ação política. Acionada pelo vigia da noite, a polícia não demorou a chegar. Uma viatura foi estacionada junto à porta e deixada com o motor ligado todo o tempo, obrigando os ativistas que ali estavam, entre a P2 e o edifício, a suportarem forte calor e respirarem o monóxido de carbono da descarga. Um mutirão garantia o envio de alimentos e água - cortada após a ocupação - às famílias de sem teto. Enquanto a PM aguardava "ordens" e reforço, lideranças dos movimentos Pela Moradia e MTD Pela Base, defensores públicos do Núcleo de Terras e Habitação, bases de mandatos parlamentares do PSOL, o vereador Reimont Santa Bárbara (PT) e sindicalistas tentavam fazer contato com o Ministério da Previdência. Foi constatado que não haveria pedido de reintegração de posse, já que o imóvel está em litígio.

Violência e, mais cedo, tranquilidade. Foto abaixo: Lucas Duarte de Souza


"Estamos vivendo no Brasil uma situação fantasiosa, com projetos cosméticos para dizer que o governo faz política de habitação, como o 'Minha Casa, minha vida'. Mas no centro do Rio, onde sobram prédios públicos, sobretudo federais, ociosos há décadas, não se vê nenhuma iniciativa, nem para alojar moradores de rua nem para garantir sustentabilidade a quem já ocupou imóveis", protesta Hertz Leal, do Pela Moradia. "Tudo o que eles (as autoridades) querem no Rio é entregar esses prédios vazios, sem função social, à especulação imobiliária. Megaprojetos de habitação popular são custosos, mas até por isso abrem espaço a grandes obras e gastos com propaganda, trazendo dividendos políticos e ganhos para alguns", analisa. Apuramos que, segundo o Código Civil, todo imóvel tem que ter função social. Do contrário, torna-se passível de Reforma Urbana ou Agrária.

No final da manhã, chegou a tropa do Batalhão de Choque, com soldados usando coletes à prova de balas e fortemente armados. O comandante da tropa já desceu da viatura gritando que "ia liberar (o prédio) e pronto". Militantes, sem teto e até políticos e defensores públicos que isolavam a porta foram agredidos com cassetetes e sprays de pimenta contra os rostos. Quem se aproximava do local era rechaçado à base de gás lacrimogêneo e tiros com balas de borracha. O estudante de História Arthur Henrique tentou ajudar companheiros e recebeu estilhaços de uma bala de borracha atirada contra o solo. Após dar entrada no Instituto Nacional do Câncer com perfurações no queixo e na perna esquerda, foi liberado após sutura e aplicação de curativos. Isolado o acesso ao prédio, a PM passou a intimidar os trabalhadores sem teto e chegou a atirar bombas de gás lacrimogêneo, obrigando-os a deixarem as dependências. Mesmo após negociações, os desabrigados foram agredidos e atingidos por novas balas de borracha, antes de finalmente se dispersarem, voltando infelizmente a sua dura rotina cotidiana: sem casa, sem trabalho, sem comida. A desempregada Ana Cláudia, 35 anos, resumiu o horizonte do grupo: "Estou grávida de oito meses e tive que respirar esse gás (lacrimogêneo). Há vários idosos e crianças aqui. E agora, para onde a gente vai?"

Os movimentos fluminenses pela moradia anunciam que a luta, como bem definiram, através da qual sempre amadurecemos, continua. As famílias que os ativistas puderam reunir após as agressões policiais fizeram protesto em frente à sede regional do INSS, na Rua México. Ainda esta semana, sem teto, ativistas e outros apoios políticos devem preparar uma moção em desagravo aos detidos e processados e em protesto contra a truculência policial, o descaso com a problemática da moradia e a criminalização da pobreza que marcam a administração Sergio Cabral.

Mais de quatro décadas após a fatídica noite em que, num requintado salão do Palácio Laranjeiras, por triste coincidência no mesmo Rio de Janeiro, os generais ditadores e seus asseclas civis desferiram um golpe quase fatal em nossa República, cariocas e fluminenses vivem um novo AI-5. Agora as armas estão apontadas aos pobres e a quem mais ousar desafiar o Estado semifascista que Cabral, Paes e Beltrame orgulhosamente alardeiam nas mídias do mundo inteiro.

Vídeo: o despejo da Ocupação Guerreiros Urbanos