O descanso do condor
do Oleo do Diabo
Arriscado usar, numa crônica sobre política latino-americana, o nome condor. Apesar de ainda ser um símbolo de liberdade e independência, a bela ave das cordilheiras andinas teve seu nome estigmatizado pela homônima operação de contra-insurgência realizada coletivamente pelas piores ditaduras da região. Mas eu insisto. Recuso-me a entregar tão facilmente um arquétipo poderoso e popular às mãos torpes de forças derrotadas. Ave mais nobre e mais livre das Américas, o condor é o maior pássaro do planeta. Suas asas têm envergadura superior a três metros, permitindo que ele voe longas distâncias sem sequer movimentá-las. O condor pode voar até trezentos quilômetros sem descanso. Mas o que isso significa perante a imensidão continental das montanhas onde ele vive? Em algum momento, o orgulhoso pássaro tem que descer e descansar.
A derrota de Eduardo Frei é o descanso do condor. Por mais competente que seja uma agremiação partidária, sempre haverá um período de cansaço, de esgotamento, de ânsia pelo novo. A esquerda chilena não foi derrotada neste domingo. Ganhou um desafio. Haveria derrota se o legado da esquerda chilena fosse um país devastado econômica e socialmente, disso resultando uma vitória eleitoral esmagadora para a oposição. Nada disso aconteceu no Chile. A esquerda entrega um país com índices solidamente positivos e perdeu por poucos milhares de votos. Saiu por cima, com dignidade e respeito. Não se radicalizou. Não caiu em armadilhas maniqueístas, realizando avanços onde devia fazê-los e mantendo políticas que achou sensato conservar.
As grandes mudanças não são necessariamente inversões. Nenhuma instância é mais dialética que a política. Todo governo é simultaneamente continuidade e superação. Ou continuidade e regresso.
É válido comparar o Chile ao Brasil. Os formuladores da campanha de Dilma Rousseff terão à sua disposição o exemplo da derrota da esquerda chilena para se precaverem contra algo semelhante por aqui.
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A esquerda latino-americana acumulou, nos últimos anos, uma longa série de vitórias. Muito além do que os mais otimistas jamais esperavam. Quem imaginaria, dez ou quinze anos trás, que a esquerda ganharia as eleições presidenciais em quase todos os países do continente? E que a primeira década do novo século, após os trágicos anos 90, assistiriam a um declínio da miséria tão acentuado?
Essas vitórias sucessivas, todavia, são o prefácio de derrotas futuras. É a lei da vida. A derrota no Chile serve à esquerda como advertência de seu próprio declínio. Ingenuidade achar que o PT ou qualquer outro partido de esquerda governará o Brasil indefinidamente. Então achei esse poema de um chileno que ganhou o Nobel de literatura, o socialista Pablo Neruda, que fala da necessidade de cairmos de vez em quando para não perdemos a perspectiva da altura. Ou mesmo por razão nenhuma. Porque há mistérios na vida que não compreendemos e seria arrogância e loucura pretender controlar tudo o que acontece. O poema alude também às desgraças políticas (e humanas) que varreram o continente. "Os copos se enchem e voltam / naturalmente a estar vazios / e às vezes de madrugada / morrem misteriosamente. Os copos e os que beberam."
A esquerda latino-americana não perdeu no Chile, porque sua maior vitória ainda é válida. Os gritos de júbilo pela volta da democracia ainda ecoam nas escarpas de Machu Picchu. As ditaduras direitistas não voltarão mais. E se voltarem encontrarão um ambiente social e institucional muito mais preparado para enfrentá-las.
Os povos latino-americanos são pacientes e fortes. Já enfrentaram séculos de opressão, miséria e totalitarismo. Não será a eleição pontual de um conservador que abaterá o seu espírito endurecido por tantos anos de sofrimento. Sem dúvida, tudo está muito bem; e tudo - diz Neruda - está muito mal.
De qualquer forma, vinte anos no poder é um sonho ainda distante da esquerda brasileira. Lula teve oito. Ainda teremos que nos preparar muito para sermos capazes de voar tão alto e tão longe quanto o condor andino.
O Berlusconi chileno
do Blog do Emir Sader
De tanto considerar-se um país da OCDE, distanciado da América Latina, o “tigre latinoamericano”, o Chile ganhou um Berlusconi. Esse é o molde de Sebastián Piñera, recém eleito presidente do Chile, fazendo com que a direita volte ao governo – depois de ter ocupado violentamente o poder, mediante uma ditadura militar, de 1973 a 1990.
Depois dos ditadores militares que representaram os interesses da direita e dos EUA na região, o neoliberalismo projetou um outro tipo de líder da direita: o empresário supostamente bem sucedido. Roberto Campos, entre outros, já dizia que o Estado e as empresas estatais deveriam funcionar com o mesmo critério das privadas: a busca do lucro, o critério custo-benefício, a competitividade. Empresas estatais deficitárias deveriam ser fechadas ou privatizadas – junto com as rentáveis também, já que não competiria ao Estado essa função.
Berlusconi foi eleito e reeleito, entre outras imagens, por essa: o empresário mais rico, o supostamente mais bem sucedido, da Itália. “Se deu certo dirigindo suas empresas, vai dar certo no Estado” – conforme a pregação liberal. “Vai passar o Estado a limpo”, “Vai cortar os gastos inúteis” (isto é, os não rentáveis economicamente). O Estado funcionar conforme o custo-benefício significa cortar recursos para políticas sociais, paga salários dos fucionários públicos, para investimentos de infra-estrutura. Daí o sucateamento do Estado, as privatizações, a mercantilização das relações sociais.
O empresário de sucesso no mercado seria o melhor agente para “passar a limpo” o Estado, fazer o tal “choque de gestão” – que os tucanos adoram. Aqui mesmo eles já apoiaram Antonio Ermírio de Morais, contra seu atual aliado, Orestes Quércia, para o governo de São Paulo.
No Chile, José Piñera, irmão e sócio do eleito presidente do Chile, foi o introdutor das malditas “reformas laborais”, um dois eixos do neoliberalismo, com seu suposto fundamental: gastar menos com remuneração salarial e elevar a superexploração do trabalho, como outras forma de transferência de recursos para os grandes empresários.
O Grupo Piñera ficou conhecido no Chile como dos que mais fez pela introdução do cartão de crédito no Chile, porém o grosso dos seus esforços esteve concentrada na expansão da Lan Chile, com a criação da Lan Peru e a compra de outras empresas latinoamericanas de aviação. Para se assemelhar mais ainda a Berlusconi, ainda que não seja torcedor do Colo-Colo, comprou o clube, como quem compra uma fábricas de empanadas.
Piñera não esconde suas afinidades com o presidente colombiano, Uribe, com quem tratará de fazer dobradinha, tentando isolar a Equador e a Bolívia na região andina e se apresentar, junto com o Peru, como um pólo ortodoxo neoliberal, intensificando as relações de livre comércio com os EUA. Mal sabe ele que os tempos de auge do neoliberalismo já ficaram para trás, que aventurar-se por esse caminho é deixar a economia chilena ainda mais fragilizada diante dos continuados efeitos da crise internacional, ainda para um pais que tem um TLC com os EUA – eixo dessa crise.
A derrota é muito dolorosa para o povo chileno. Mesmo se não colocássemos os governos da Concertação no bloco progressista na região – porque privilegiaram o Tratado de Livre Comércio com os EUA, mantiveram uma política econômica ortodoxa -, toda a esquerda sai derrotada. Porque, apesar das debilidades dos governos da Concertação – refletido agora no voto majoritário da direita, que incorpora amplos setores populares -, a esquerda não soube construir, nas duas décadas de democratização, uma alternativa antineoliberal no Chile. O povo chileno pagará caro esse erro da esquerda, que agora tem, pelo menos, a possibilidade de colocar em questão o modelo herdado do pinochetismo.
Os momentos de balanço de derrotas como essa se prestam para as divisões, para os oportunismos, para os radicalismos verbais. A esquerda chilena pode olhar para a América Latina para ver distintas expressões de governos populares e de blocos sociais e políticos que levam a cabo esses governos, como referência, para que o Chile volte a assumir seu lugar no processo de integração regional e de construção de alternativas efetivamente de esquerda, nas terras de Allende, Neruda e Miguel Enriquez.