quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A perseguição ao jornalista Lúcio Flávio Pinto

15/02/2012 - Do Balaio do Kotscho - Jornalista ameaçado: somos todos Lúcio Flávio

Caros leitores e colegas jornalistas, trabalhei durante muitos anos com um jornalista excepcional: Lúcio Flávio Pinto, um paraense de notável coragem, que dedicou toda sua vida pessoal e profissional a divulgar e defender a sua terra e a sua gente. É o maior especialista em Amazônia do jornalismo brasileiro.

É, acima de tudo, um estudioso, um trabalhador incansável, que não se conforma com as injustiças e as bandalheiras de que são vítimas a floresta e o povo que nela habita. Por isso, foi perseguido a vida toda pelos que ameaçam a sobrevivência desta região transformando as riquezas naturais em fortunas privadas.

Agora quem está ameaçado é o próprio Lúcio Flávio, na sua luta solitária contra dezenas de processos movidos pelos poderosos na Justiça para impedí-lo de continuar denunciando os assassinos da floresta.
Quem sempre esteve ao seu lado foi Raul Martins Bastos, nosso chefe no "Estadão", que me enviou na noite de segunda-feira a mensagem transcrita abaixo. É um libelo não só em defesa do grande jornalista, mas da nossa profissão permanentemente ameaçada nos tribunais.
Onde estão nesta hora as poderosas entidades patronais da mídia, como a ANJ e o nstituto Millenium, e seus arautos sempre tão preocupados na defesa da liberdade de imprensa e de expressão?
Lúcio está fora da grande imprensa há muitos anos, sobrevivendo com o seu "Jornal Pessoal", um quinzenário que produz sozinho. Talvez por isso não mereceça a atenção dos editorialistas dos jornalões e das entidades que costumam se manifestar nestas horas, como a OAB e a CNBB.
Cabe, portanto, a nós, jornalistas, sair em sua defesa como propõe o mestre Raul Bastos e sermos todos Lúcio Flávio nesta hora.

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"A indignidade que estão fazendo contra o jornalista Lúcio Flávio Pinto"
é o título do texto-apelo de Raul Bastos:

"Peço que você não deixe de ler esta nota. É a história de uma injustiça. Uma indignidade.

 
Lúcio Flavio Pinto é um jornalista de Belém do Pará que há quase vinte anos edita uma publicação chamada Jornal Pessoal. É um profissional excepcional e fonte obrigatória quando for ser escrita a verdadeira história da região dos anos 70 para cá. Trabalhou, entre outros lugares, na Realidade, no Correio da Manhã e, por longos anos, no O Estado de S.Paulo como principal repórter da região e coordenador geral da cobertura dos correspondentes da Amazônia. Nesse período teve vida acadêmica e deu cursos sobre a Amazônia em universidades dos Estados Unidos e da Europa.

O Jornal Pessoal ele faz sozinho, da apuração à edição. Não tem publicidade. Evidentemente, o jornal luta para se manter. Mas esse é o menor problema da vida do Lúcio Flávio.

O grande problema é a pressão sistemática que ele sofre dos poderosos da região por publicar matérias que denunciam indignidades e incomodam justamente os poderosos da região. Tentam calá-lo de várias maneiras, da intimidação à agressão, e ele tem resistido bravamente. Tentam sufocá-lo e calá-lo com 33 processos. Um deles está para ser concluído e tudo indica que poderá ser desfavorável.

Qual o "crime" do Lúcio Flávio Pinto?
O Lúcio publicou denúncias comprovadas de que estava ocorrendo uma enorme grilagem de terras na região. Com isso impediu que o empreiteiro CR Almeida fizesse na Amazônia a maior grilagem da história do Brasil. Em represália, foi processado por CR Almeida sob a alegação de ter sido chamado de pirata numa das matérias do Lúcio Flávio, o que julgou ofensivo.

Foi indo, foi indo e, agora, anos depois e por incrível que pareça, o caso está terminando assim:

Com o CR Almeida não aconteceu nada. Com o Lúcio, se avizinha uma condenação. Com essa condenação, a perda da primariedade, uma porta aberta para a intimidação absoluta.

Os amigos do Lúcio Flávio,entre os quais com muito orgulho me incluo, decidiram que ele não pode e nem vai ficar sozinho.

Vamos batalhar para tentar esgotar todas as possibilidades jurídicas do caso.
Vamos batalhar para que o caso ganhe espaço na imprensa e nas redes sociais. Vamos chamar a atenção da imprensa especializada e internacional para o caso.
Vamos batalhar, se por acaso ocorrer o pior, para que ele tenha recursos para enfrentar a situação.

O objetivo deste email é dar conhecimento do que está acontecendo e da nossa disposição de não deixar continuar acontecendo.

O objetivo deste email é pedir a sua ajuda. Primeiro, divulgando o que está acontecendo no seu veículo de comunicação, na sua coluna, nos sites, redes sociais. Depois, nos ajudando nas ações nas áreas da comunicações e mobilização que tomaremos diante de cada circunstância.

Para quem quiser mais informações do que aconteceu e do que está acontecendo ler o texto abaixo do próprio Lúcio.

Contando com você, muito obrigado e um abraço do Raul Bastos".

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O texto de Lúcio Flávio Pinto:

O Grileiro vencerá?
Em 1999 escrevi uma matéria no meu Jornal Pessoal denunciando a grilagem de terras praticada pelo empresário Cecílio do Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, com sede em Curitiba, no Paraná.

Sem qualquer inibição, ele recorreu a vários ardis para se apropriar de quase cinco milhões de hectares de terras no rico vale do rio Xingu, no Pará, onde ainda subsiste a maior floresta nativa do Estado, na margem direita do rio Amazonas, além de minérios e outros recursos naturais. Onde também está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, para ser a maior do país e a terceira do mundo.

Os 5 milhões de hectares já constituem território bastante para abrigar um país, mas a ambição podia levar o empresário a se apossar de área ainda maior, de 7 milhões de hectares, o equivalente a 8% de todo o Pará, o segundo maior Estado da federação brasileira. Se fosse um Estado, a "Ceciliolândia" seria o 21º maior do Brasil.

Em 1996, na condição de cidadão, ajudei a preparar uma ação de anulação e cancelamento dos registros das terras usurpadas por C. R. Almeida, com a cumplicidade da titular do cartório de registro de imóveis de Altamira e a ajuda de advogados inescrupulosos. A ação foi recebida e todos advertidos de que aquelas terras não podiam ser comercializadas, por estarem sub-judice, passíveis de nulidade.

Os herdeiros do grileiro podem continuar na posse e no usufruto da pilhagem, apesar dessa decisão, porque a grilagem recebeu decisão favorável de dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado. Deve-se salientar que essas foram as únicas decisões favoráveis ao grileiro.

Com o acúmulo de informações sobre o estelionato fundiário, os órgãos públicos ligados à questão foram se manifestando e tomando iniciativas contra o golpe. O próprio poder judiciário estadual interveio no cartório de Altamira e demitiu todos os serventuários que ali trabalhavam, inclusive a escrivã titular, por justa causa.
Todos os que o empresário processou na comarca de São Paulo foram absolvidos. O juiz observou que essas pessoas, ao invés de serem punidas, mereciam era homenagens por estarem defendendo o patrimônio público.

A justiça de São Paulo foi muito mais atenta à defesa da verdade e da integridade de um bem público ameaçada por um autêntico "pirata fundiário", do que a justiça do Pará, com jurisdição sobre o território esbulhado. C. R. Almeida considerou ofensiva à sua dignidade moral a expressão, "pirata fundiário", e as duas instâncias da justiça paraense sacramentaram a sua vontade.

Mesmo tendo provado tudo que afirmei fui condenado. A cabulosa sentença de 1º grau foi confirmada pelo tribunal, embora a ação tenha sido abandonada desde que Cecílio do Rego Almeida morreu, em 2008.

Depois de enfrentar todas as dificuldades possíveis, meus recursos finalmente subiram a Brasília em dezembro do ano passado. O recurso especial seguiu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, graças ao agravo de instrumento que impetrei (o Tribunal do Pará rejeitou o primeiro agravo; sobre o segundo já nada mais podia fazer).

Mas o presidente do STJ, em despacho do último dia 7, negou seguimento ao recurso especial. Alegou erros formais na formação do agravo: "falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante do pagamento das custas do recurso especial e do porte de retorno e remessa dos autos".

A falta de todos os documentos apontada pelo presidente do STJ me causou enorme surpresa. Vou tentar esclarecer a situação, sabendo das minhas limitações. Não tenho dinheiro para sustentar uma representação desse porte. Muito menos para arcar com a indenização.

Desde 1992 já fui processado 33 vezes. Nenhum dos autores exerceu o legítimo direito de defesa. O Jornal Pessoal reproduz todas as cartas que recebe, mesmo as ofensivas, na íntegra. Todos foram diretamente à justiça, certos de contarem com a cumplicidade daquele tipo de toga que a valente ministra Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, disse esconder bandidos, para me atar a essa rocha de suplícios, que, às vezes, me faz sentir no papel de um Prometeu amazônico.

Apesar de todas essas ações e do martírio que elas criaram na minha vida nestes últimos 20 anos, mantenho meu compromisso com a verdade, com o interesse público e com uma melhor sorte para a Amazônia, onde nasci. Não gostaria que meus filhos e netos (e todos os filhos e netos do Brasil) se deparassem com espetáculos tão degradantes, como o que vi: milhares de toras de madeira de lei, incluindo o mogno, ameaçado de ser extinto nas florestas nativas amazônicas, nas quais era abundante, sendo arrastadas em jangadas pelos rios por piratas fundiários, como o extinto Cecílio do Rego Almeida.

Depois de ter sofrido todo tipo de violência, inclusive a agressão física, sei o que me espera. Mas não desistirei de fazer aquilo que me compete: jornalismo. Algo que os poderes, sobretudo o judiciário do Pará, querem ver extinto, se não puder ser domesticado conforme os interesses dos donos da voz pública.

Decidi escrever esta nota não para pressionar alguém. Não quero extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do agravo, o que me surpreendeu e causou perplexidade, paciência: vou pagar por um erro que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do processo.

Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos que me apoiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um país decente.

Belém (PA), 11 de fevereiro de 2012
LÚCIO FLÁVIO PINTO - Editor do Jornal Pessoal

 
 
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COLABORE com Lúcio Flávio Pinto
 
 
Durante quase 21 anos o Jornal Pessoal existiu apenas na sua forma em papel. Não era por resistência à internet ou preconceito, mas conseqüência de uma de suas principais diretrizes editoriais: não aceitar receita de venda de anúncio. Excluindo a publicidade, que costuma representar 80% do faturamento de empresas jornalísticas convencionais, o jornal pretendia a independência total. Sua sobrevivência iria depender exclusivamente da disposição do leitor de comprar o jornal avulso. Esse procedimento não podia ser adotado na rede mundial de computadores, exceto se o jornal contasse com patrocinadores ocultos, os mecenas, geralmente suspeitos. Continuaremos a agir completamente às claras. Ao lançar o JP na internet, esperamos que seus leitores se disponham a fazer doações para mantê-lo no ar, com a mesma independência da versão impressa do jornal. De qualquer valor, as doações poderão ser feitas na conta informada abaixo. Trata-se de voluntariado pela causa do jornalismo comprometido com a verdade e o interesse público.
 
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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O povo é uma rainha da Inglaterra

22 jan 2012 - Diego Viana - seu blog Para Ler sem Olhar


Princípio de 1651. Um respeitado editor, de nome Andrew Crooke, discute com um de seus autores o desenho que vai figurar no frontispício de um ainda inédito livro de filosofia política. O sujeito, fazendo esboços e gesticulando muito, quer representar a sociedade civil (ainda não existia a distinção entre a dita cuja e o Estado, como hoje) na figura de um monstro bíblico: o soberano seria a cabeça; o povo, o corpo.

Eles discutem e discutem. Desenhos são feitos e deitados fora. Finalmente, Thomas Hobbes consegue o frontispício que quer para seu Leviatã (ou “Matéria, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil”). Lá está o soberano, com uma fisionomia que lembra vagamente Cromwell, o rei Charles II e até, de longe, Jesus. Tem longos cabelos ondulados e bigode, porta uma coroa na cabeça, segura com firmeza a espada na mão direita e o cetro na esquerda.

E eis também o curioso torso, formado de corpos que dão as costas ao leitor: o povo tem os olhos voltados para o rei (porque o soberano, aqui, é indiscutivelmente um rei), como se caminhasse em sua direção. Abaixo, o campo e a cidade, bem governados como no painel de Lorenzetti exposto em Siena (link para o Painel de Lorenzetti exposto em Siena
Mais abaixo ainda, os símbolos e os meios do poder: as armas, a religião, a razão, as leis. Hobbes, numa época em que os emblemas imagéticos eram de rigor, insistiu enormemente nesse frontispício, porque lhe parecia a melhor representação possível de sua teoria do contrato social. De fato, a imagem se tornou um ícone nodular da política: quando alguém quer falar em absolutismo, ou mesmo em governo grande demais, logo crava: “Um Leviatã!”.



Princípios de 2012
Penso no publicitário que bolou o projeto reportado neste link (pra quem não tem paciência de clicar: são crianças fazendo autorretratos para formar a imagem da rainha Elisabeth, em celebração de seus 60 anos de reinado - http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120112_rainha-desenhos_rc.shtml)

E me pergunto se ele tinha em mente o frontispício de Hobbes. É claro que não. Também me pergunto em que medida ele conhece essa imagem. Provavelmente não se lembra dela, provavelmente não sabe de onde veio, mas sem dúvida, sendo inglês, passou os olhos por ela quando estudante. É um elemento cultural importante naquele país, para o bem e para o mal, queira ou não queira o publicitário.

Ou seja, o Leviatã não é uma referência para ele (espero que não; só se for um louco), nem é uma citação. O mais provável é que ele esteja navegando – bem preguiçosamente, diga-se de passagem – a onda de capas de revista e painéis de artistas plásticos que repetem esse procedimento. Mas, por uma dessas voltas que gosta de dar a história, essa rainha dos redemoinhos e dos destroços, eis que aquela outra rainha, a da Inglaterra, se vê representada quase da mesma maneira como o foi um dia o paradigma dos monarcas absolutos. Senão como um monstro marinho saído da Bíblia, ao menos como um mosaico de súditos.

Posso estar exagerando, mas não estou. Pelo menos no sentido de que os chefes do publicitário em questão deveriam ter percebido que essa associação era possível. Ou então, o mínimo que se poderia esperar era que os funcionários da monarquia britânica alertassem para comparações que eventualmente, ou certamente, viriam. Nem que fosse em algum rincão do mundo infestado de mosquitos, como aquele Brasil de PIB avantajado como nádegas de mulatas. Para ser honesto, não consigo evitar de associar esse silêncio a uma decadência cultural.

Falando em decadência: houve um tempo em que a rainha da Inglaterra era a pessoa mais poderosa do mundo, em particular uma rainha de nome Victoria. Hoje, “rainha da Inglaterra” é uma expressão que conota justamente o oposto: uma figura que não manda em ninguém. “Fulano é uma rainha da Inglaterra”: tem um cargo, ganha um dinheirão, mas é só um nome com um título pomposo, nada mais.

Impossível não prosseguir no paralelo, enxergando na brincadeira do Jubileu da Rainha algum tipo de metáfora com a situação da Europa, particularmente naquele que foi seu pais mais poderoso, a ponto de nem mesmo se considerar parte do continente. Inglaterra, o povo que esnobou o euro, mas nem por isso deixa de estar na merda… Agora tenta recuperar seu amor-próprio representando sua rainha da Inglaterra – a original, não aceite imitações – da mesma maneira como outrora representou o ápice da potência monárquica. Triste ironia, não?

A brincadeira está boa, então que prossiga. Será que dá para fazer alguma metáfora a partir do fato de que são crianças que estão preparando o retrato da rainha com seus próprios rostos? Sim, claro que dá. Certa vez, entrevistaram um sujeito que vive na Côte d’Azur e seria o herdeiro do trono russo se os bolcheviques não tivessem dado cabo do czarismo em 1917. Perguntaram ao tal sujeito com que olhos ele via a população russa, que até hoje não manifesta o menor desejo de restaurar os Romanov, mesmo 20 anos depois da queda do comunismo. Resposta, de bate-pronto: “eles são meus filhos” – assim mesmo, categórica, sem deixar margem a questionamentos.

A imagem paternal (ou maternal, no caso) dos reis é um velho topos monárquico. Aliás, não é significativo que um poder absoluto e orientador, mas não aristocrático, como o imaginado por George Orwell em 1984, seja representado não como um pai, mas como um “grande irmão”? O fato é que as nações, em outras eras, eram representadas como famílias, tendo o monarca como figura paterna. Ora, a imagem de um rei como pai traduz o princípio de que ele deve proteger, orientar, defender e até, em certas circunstâncias, sustentar seus súditos.

É claro que uma parte dessa imagem desbotou com a progressiva instalação de monarquias constitucionais. Mas sobrou alguma coisa, particularmente o aspecto simbólico da paternidade, (ou seria do patriarcalismo?), que de vez em quando reaparece em filigrana no discurso monárquico. “A Bélgica só não se esfacelou porque tem a figura unificadora de um rei”, “Juan Carlos garantiu a democracia na Espanha com a força de sua pessoa”, “Charles não pode ser rei porque não transmite a moralidade britânica”…

E eis que agora a presença de uma crise, mais do que econômica, sócio-histórica, associada à dificuldade em manter as ralés quietinhas, reúne as duas pontas da noção de realeza. Por um lado, as criancinhas, metonímia para o brioso ex-império, unindo forças para buscar alguma resposta – nem que seja uma auto-imagem pixelada – em sua grande-mãe, ícone da resistência, da identidade nacional, do poder inquebrantável e inamovível. Por outro, a constatação difusa, inconsciente, desconfortável da perda de soberania. Ali mesmo na coroa intrépida do Commonwealth, enfraquecida não pelo triunfo das instituições transnacionais, mas pelos imperativos da City, que selam um destino iniciado com as guerras coloniais e imperialistas da belle époque.

Já que enveredei por essas metáforas visuais, vou até o fim. Colocando-se na posição de criancinhas, de filhos, de corpos inocentes, desamparados e – eis a parte crucial – disponíveis, os ingleses tentam reconstruir, sem saber, a figura que melhor conhecem para representar uma soberania sólida, resistente, visível. Como quem molda um Golem, o inconsciente coletivo da velha Albion espera que a imagem sorridente de Elizabeth absorva a energia das criancinhas, assuma seu posto de Leviatã e esmague os inimigos, isto é, a crise, a decadência, os microscópicos esporos de rebelião que ameaçam constantemente se espraiar pelas ruas. Não deixa de ser, modus in rebus, uma mensagem de esperança…

Voltando um pouco a Hobbes: um outro livro seu oferece uma concepção mais nuançada da soberania e dessa assustadora figura do Leviatã. É o Cidadão, ou De Cive. Nesse texto, encontramos o seguinte trecho, ousado como poucos que já li, sublinhando a necessidade de distinguir entre o povo e a multidão para associar o poder civil de decidir e agir à própria existência de um povo:

“O povo é algo uno, com uma vontade una, e a quem se pode atribuir uma ação. Nada disso pode ser dito da multidão. O povo rege em todos os governos. Até em monarquias o povo comanda, porque a vontade do povo é a vontade de um homem; mas a multidão são os cidadãos, ou seja, os súditos. Na democracia e na aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas a corte é o povo. E na monarquia, os súditos são a multidão, e, por mais que soe paradoxal, o rei é o povo. (…) Fala-se no ‘grande número de homens’ como sendo o povo, ou seja, a cidade; dizem que a cidade se rebelou contra o rei (o que é impossível) e falam em vontade do povo, em vez de súditos descontentes que, passando-se por povo, agitaram os cidadãos contra a cidade, isto é, a multidão contra o povo.” (Capítulo XII – VIII)

Sem subscrever a Hobbes, o que aparece aqui é que o Leviatã do outro livro, que representa a soberania, não o Estado, pode ter múltiplas configurações, contanto que produza a unidade da legislação civil que salvaguarde a cidade do tão perigoso direito natural. Hobbes vê na monarquia absolutista o caminho mais certo, não necessariamente o único, para chegar a isso.

Hoje, os mecanismos legais são outros e ninguém precisa mais concordar com Hobbes, pelo menos quanto ao único caminho realmente viável que ele enxerga. Mas a imagem de que a sociedade consiste em formar um corpo uno em vontade e ação nunca foi inteiramente abandonada pela imaginação política, ao menos na tradição ocidental. Volta e meia algo assim é evocado: “governo de união nacional”, a “pátria indivisível” e assim por diante. O que varia é a estratégia para lidar com o dissenso, prova incontornável de que o estado de natureza está sempre aí, no coração de qualquer configuração civil (algo que Hobbes, por exemplo, nunca vislumbrou).

Montar um retrato da rainha com milhares de rostos de crianças, desenhados por elas mesmas, não deixa de ser a expressão de um tal desejo de unidade: “somos todos parte dessa nação”, “pertenço a algo que é maior do que eu” e assim por diante. Talvez seja o caso, porém, de destacar a diferença entre o retrato de Elizabeth e o frontispício do Leviatã. Afinal, um corpo não é um rosto e Hobbes deixou isso bem claro ao desenhar o soberano com a fisionomia de um rei e relegar o povo à configuração das entranhas e dos membros.

A idéia de que a multidão indistinta possa formar a própria cabeça, o ápice da soberania (palavra usada por Hobbes em sua própria tradução para o latim, bem como pelos demais autores da época: imperium) e do poder, é bem posterior a Hobbes e data do surgimento da tal “sociedade de massas”: a virada do século XIX para o XX. Essa tal “sociedade de massas” poderia ser um oximoro, ainda mais se levamos em conta a distinção que Hobbes faz aí acima entre o povo e a multidão. De fato, em toda a tradição do pensamento ocidental até fins do século XIX, o povo e a multidão (depois massa) eram conceitos opostos e conflitantes.

Quando surgiu a “sociedade de massas” (leia-se sociedade industrial, com produção e consumo de massa), foi preciso repensar essa distinção. Surgiram duas vias, falando grosseiramente. A primeira, não cronologicamente, eu diria, mas para a ordem desta exposição, é a via democrática, em que sobressaem a noção de opinião pública e os graduais esforços de organização da sociedade civil para ampliar o acesso a direitos – ou seja, à cidadania, a “ser povo” na acepção de Hobbes.

A segunda é a via autoritária, que vale sublinhar aqui. Nela, tenta-se reconquistar a unidade desejada por Hobbes não pela ampliação dos campos contemplados pela vida civil, mas pela fusão das massas no bojo do seu próprio comando. Não é à toa que todos os regimes extremamente autoritários do último século se apresentavam como “do povo” ou “dos trabalhadores”, fossem “de direita” ou “de esquerda”. O mais importante a frisar aqui é que, na grande maioria dos casos, foi a própria população que, a partir de um estado de desespero, buscou essa via autoritária, pediu por ela, entregou-se com um gozo às vezes catártico a sua figura de liderança absoluta.

Longe de mim dizer que o Reino Unido está à beira de um regime como as ditaduras que presenciamos no século XX. Mas o desejo seminal está lá. O “ovo da serpente”, digamos, está expresso na reação violenta aos saques do ano passado e na fusão de milhares de faces de crianças na imagem da rainha: ingleses infantilizados dissolvendo sua própria pele para entregar suas feições a um único e gigantesco rosto real.

A rainha da Inglaterra que continue sendo uma rainha da Inglaterra: seus traços aristocráticos não deixam de ser o arquétipo de qualquer monarquia, qualquer estrutura de comando através de um paradigma de unidade, qualquer Leviatã com cetro, coroa e espada. Mesmo enquanto ela inocentemente caça perdizes em Windsor, exercendo sua rainha-da-Inglaterra-ice, a fisionomia real serve plenamente de vetor para todos os outros elementos: o desespero, o orgulho ferido, o desejo de unidade, a necessidade de traçar fronteiras entre o de dentro e o de fora, a disposição em abrir mão de um pouco mais de individualidade – e de liberdade – em troca de um pouco mais de segurança. Enfim, a disponibilidade para fazer parte de uma grande família.

Exagerei no paralelo? Certamente, mas garanto que o possível, o potencial, é tão bem mais real do que seu opaco caso particular: o efetivo. Até porque a efetividade, sendo a concretização de um potencial, às vezes, dependendo das circunstâncias, pode atualizar os mais extremos dos potenciais. Basta, para isso, que as próprias circunstâncias sejam extremadas. Eventualmente acontece.

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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Brasil que não se vê na TV

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012 - Laurindo Lalo Leal Filho, Revista do Brasil 
postado no blog do Miro

O Brasil que se vê na TV está restrito ao Rio e à São Paulo, salvo raras exceções. Exibem-se nas novelas e nos telejornais, lindas paisagens e graves problemas urbanos dessas metrópoles para todo o país.

Fico a me perguntar o que interessa ao morador de Belém o congestionamento da Marginal do Tietê, exaustivamente mostrado pelas redes nacionais de TV? Não haveria fatos locais muito mais importantes para a vida dos telespectadores do Pará do que as mazelas da capital paulista?

No entanto, o conteúdo que vai ao ar não é determinado pelos interesses ou necessidades do telespectador e sim pela lógica comercial. Para o empresário de TV local é mais barato e mais lucrativo reproduzir o que a rede nacional de televisão transmite, inserindo alguns comerciais da região, do que contratar profissionais para produzir seus próprios programas.

Para as grandes redes trata-se de uma economia de escala: com um custo fixo de produção, o lucro cresce à medida em que os anúncios são veiculados num número crescente de cidades.

Isso ocorre porque como qualquer outra atividade comercial a lógica do capital é a da concentração, regra da qual a televisão, movida pela propaganda, não escapa. Só que a TV não é, ou não deveria ser, apenas um negócio como outro qualquer.

Por transmitir valores, idéias, concepções de mundo e de vida, ela é também um bem cultural e não uma simples mercadoria. Dai a necessidade de ser regulamentada e ter os seus serviços acompanhados de perto pela sociedade.

Como concessões públicas, as emissoras têm obrigação de prestar esses serviços de maneira satisfatória, atendendo às necessidades básicas de informação e entretenimento a que todos tem direito. Caso contrário, caberiam reclamações, processos e punições, como ocorre em quase todas as grandes democracias do mundo.

Aqui, além de não existirem órgãos reguladores capazes receber as demandas do público e dar a elas os devidos encaminhamentos, não temos uma legislação capaz de sustentar esse processo. Por aqui vale tudo.

E quem perde é a sociedade, empobrecida culturalmente por uma televisão que a trata com desprezo. Diretores de emissoras chegam a dizer, preconceituosamente, que “dão ao povo o que o povo quer”.

Um caso emblemático da falta que faz essa legislação é o da produção e veiculação de programas regionais. Se o mercado concentra a atividade televisiva no eixo Rio-São Paulo, cabe a lei desconcentrá-lo, como determina artigo 221 da Constituição, até hoje não regulamentado.

Sua tramitação é seguidamente bloqueada no Congresso por parlamentares que representam os interesses dos donos das emissoras de TV.

Em 1991 a então deputada Jandira Feghali apresentou um projeto de lei estabelecendo percentuais de exibição obrigatórios para produção regional de TV no Brasil. Doze anos depois, em 2003, após várias concessões feitas para atender aos interesses dos empresários, o texto foi aprovado na Câmara e seguiu para o Senado, onde dorme um sono esplendido até hoje.

São mais de vinte anos perdidos não apenas para o telespectador, impossibilitado de ver o que ocorre na sua cidade e região. Perdemos também a oportunidade de abrir novos mercados de trabalho para produtores, jornalistas, diretores, atores e tantos outros profissionais obrigados a deixar suas cidades em busca de oportunidades limitadas nos grandes centros.

Mas se os interesses empresariais das emissoras bloqueiam esse florescimento artístico e cultural, as novas tecnologias estão abrindo brechas nessas barreiras. O barateamento e a diminuição dos equipamentos de captação de imagens impulsionaram o vídeo popular e a internet vem sendo um canal excelente de divulgação desses trabalhos.

Combina-se a vontade e a capacidade de fazer televisão fora das emissoras tradicionais com a necessidade do público de acompanhar aquilo que acontece perto de sua casa ou de sua cidade.

O que não descarta a necessidade da existência de programação regional nas grandes emissoras, como forma de tornar o Brasil um pouco mais conhecido pelos próprios brasileiros.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Os EUA na segunda armadilha de Bin Laden

08/02/2012 - Immanuel Wallerstein - Tradução: Antonio Martins em seu blog
Outras Palavras


Wallerstein antecipa: depois de perder influência sobre o Paquistão, Washington arrisca-se a ficar sem aliado ainda mais estratégico: a Arábia Saudita

Em outubro de 2001, logo depois do 11 de Setembro, escrevi o seguinte:

“Os regimes [do Paquistão e Arábia Saudita] apoiam-se numa coalizão entre as elites modernizantes pró-ocidentais e um establishment islâmico extremamente conservador, com bases populares. Os regimes mantêm-se estáveis por serem capazes de articular esta combinação. E podem alimentá-la graças à ambivalência de suas políticas e pronunciamentos públicos."
“Os Estados unidos dizem agora que chega de ambiguidades. Esta posição pode prevalecer, é claro. Mas no processo, os regimes saudita e paquistanês poderão descobrir que sua base popular está irremediavelmente erodida…"
“Considere que este pode ter sido o plano de Bin Laden. O objetivo de sua própria missão suicida pode ter sido conduzir os Estados Unidos a tal armadilha”

Acredito que Bin Laden conseguiu agora o que planejou no Paquistão. O fim das ambiguidades acabou significando que o país já não opera geopoliticamente em favor dos interesses dos Estados Unidos. Bem ao contrário! Tomou distância e está promovendo, no Afeganistão e não só lá, políticas às quais os EUA opõem-se firmemente. Falta, agora, o segundo objetivo.

Que está ocorrendo na Arábia Saudita? Não há dúvidas de que, de alguma maneira, o país passou a agir mais independentemente dos Estados Unidos do que fizera nos últimos 70 anos. Mas não houve, ainda, uma ruptura definitiva, como no Paquistão. Ela ocorrerá, em futuro próximo? Penso que talvez.

Analise os múltiplos dilemas internos do regime. A riqueza de cerca de 10% dos sauditas provocou o crescimento agudo das demandas por “modernização” do Estado. São mais visíveis em temas ligados às mulheres (direito ao emprego e a conduzir carros). Mas tais reivindicações por mais direitos são a ponta de um iceberg, de um clamor mais amplo pelo afrouxamento das restrições impostas pela ortodoxia wahhabista. À medida em que o rei se move numa trajetória contínua, mas cautelosa, para atender a estas demandas, ele antagoniza-se ainda mais com o establishment religioso – que está se tornando muito inquieto.

Além disso, as elites “modernizantes” têm outras queixas. O governo saudita é, essencialmente, uma gerontocracia, conduzida por homens na faixa dos 70 e 80 anos. No curioso sistema de sucessão o regime lembra o da antiga União Soviética. Há algo similar a uma votação, no processo sucessório – mas ela se dá entre uma dezena de pessoas, ou um pouco mais. A probabilidade de que o poder passe para gente na faixa dos 50 e 60 é extremamente baixa, se não inexistente. Repare, no entanto, que este grupo de “jovens”, mesmo que formado apenas no interior da família real, cresceu consideravelmente em número, e está impaciente. Isso pode levar a uma séria cisão no próprio topo da elite? É bem possível que sim.

O regime saudita maneja algo como um estado de bem-estar social para os cidadãos comuns. Porém, as desigualdades de renda e riqueza estão crescendo, como em toda parte. E pequenas redistribuições, de tempos em tempos, não vão acalmar as camadas inferiores, mas apenas aguçar seu apetite por novas demandas. Os extratos médios e baixos podem inclusive (surpresa, surpresa!) ecoar os apelos da Primavera Árabe por “democracia”.

E há uma minoria xiita. Afirma-se que ela representa apenas cerca de 10% da população; mas é provável que seja maior e – mais importante – está estrategicamente localizada no sudeste do país, sobre as maiores reservas de petróleo. Por que tais xiitas seriam os únicos, nas nações do Oriente Médio dominadas por sunitas, a não lutar por suas reivindicações identitárias?

O regime saudita tem tentado jogar um papel de destaque na geopolítica da região. Está insatisfeito com as políticas e aspirações do Irã e com a intransigência do presidente Assad, na Síria. Mas, no frigir dos ovos, comporta-se de modo muito moderado, em relação a estes temas. Teme as consequências de guinadas bruscas. E julga as políticas norte-americanas orientadas demais pelos interesses internos dos EUA, e por seus infinitos compromissos com Israel.

Os sauditas têm sido muito “razoáveis” também com Israel. Não creem que esta moderação tenha sido bem recompensada – quer por Israel, quer pelos Estados Unidos. Podem estar prontos, agora, para apoiar o Hamas de forma muito mais aberta. Não enxergam nada “razoável” nas políticas do governo israelense, nem perspetiva alguma de que estas políticas sejam alteradas em breve.

Este quadro não contribui para um regime politicamente estável. Certamente, não ajuda a manter as “ambiguidades” que permitiram ao regime ser, no passado, um aliado inabalável dos Estados Unidos na região.

 A segunda armadilha irá se fechar?

sábado, 11 de fevereiro de 2012

A década da educomunicação?

Alexandre Sayad* - 07/02/12 - Portal do Aprendiz

Em dezembro de 2011, a Universidade de São Paulo (USP) organizou, como já tem virado um costume, o III Simpósio Brasileiro de Educomunicação, que reúne profissionais e pesquisadores da interface entre a educação e comunicação de diversas partes da America Latina. Participei de uma mesa de debates cujo título chamava a atenção para a década da educomunicação que se fechava (2001/2011), que teria começado quando a USP começou a sistematizar esse novo campo, assim chamado por eles, e a sociedade civil, em organizações como as que compõem a Rede CEP, iniciado a disseminação da prática Brasil afora.
Achei simpático o nome da sessão (“A década da educomunicação”), mas tentarei aqui levar aqui meu pensamento para além disso.

Sim, as práticas de comunicação e educação jamais estiveram tão presentes em escolas e comunidades. O último levantamento do MEC aponta que cerca de cinco mil instituições adotaram as mídias escolares como ação dentro do programa Mais Educação – uma ação que nasceu no bojo da Rede CEP. Em outro campo, comunidades por todo o país tem re-valorizado o caráter educativo intrínseco a seus membros, estruturas e aparelhos, por meio de programas que, como o bairro-escola, resgatam a relevância social que a educação informal e não-formal perderam para o currículo escolar nas últimas décadas.

No entanto, olhando atentamente para a história, o papel da universidade no campo da educomunicação parece percorrer um caminho contrário ao que exerce naturalmente: tem organizado uma prática um tanto quanto “mundana” e mais antiga que o conceito.

Na verdade, os acadêmicos têm exercido o papel importante em dar contorno a um novo campo e a sistematizar ações que estão ativas muito anteriormente a criação desse novo conceito. Ou seja, as práticas (agora chamadas educomunicativas) datam da década de cinquenta no Brasil, por meio das comunidades eclesiais de base; só em 2001 passaram a freqüentar as salas de aula nas pós-graduações.

Considerá-las existentes a partir de 2001 seria o mesmo que passar a acreditar que o graffiti nasceu em meados dos anos oitenta, quando algumas galerias de Nova York chamaram seus artistas a expor, levando ao Olimpo essa forma de arte. Na verdade, já tinha vinte anos à época.

O mais interessante no caso não diz respeito ao passado, mas ao futuro. Quem acredita que essa década foi a da educomunicação pode não estar preparado para o que há de vir de dentro das empresas – essas ainda pouco lembradas como atores importantes dentro do campo.

Se considerarmos o olhar da educomunicação como um comprometimento a uma comunicação de qualidade, esse movimento só está nascendo no ambiente corporativo. Cada vez mais empresas emprestarão sua credibilidade e marca apenas para a comunicação que tiver o mínimo de comprometimento com seus processos, fruto de uma onda de responsabilidade social corporativa que iniciou-se há mais de quinze anos. Está nascendo uma espécie de curadoria de qualidade.
Por outro lado, o desafio permanente das empresas em aproveitar idéias e talentos de todos os envolvidos para melhor desenvolver o negócio pode enxergar na educomunicação uma ferramenta muito útil na área de sua gestão.

Considerando passado e futuro, a década da educomunicação não foi e nem é; me parece que o conceito está começando a se emaranhar na sociedade e as surpresas maiores ainda estão mesmo por vir.

*Alexandre Sayad, jornalista especializado em Direitos Humanos, colaborou com O Estado de S.Paulo e Rádio Eldorado. Coordena programas de Civic Midia, com a Universidade de Harvard.

Estatais loteadas e mal geridas são o prato feito para a privataria

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012 - Episódio da Casa da Moeda mostra que o loteamento de cargos reflete um sistema de governo degenerado
Pedro Porfírio em seu blog

Luiz Felipe Denucci Martins, demitido da Casa da Moeda por pressão dos próprios patronos.

 Eu aceitei a indicação. Eu não conhecia esta pessoa, nunca tinha visto antes.” (Ministro Guido Mantega sobre o presidente da Casa da Moeda, demitido por pressão dos próprios padrinhos.)

É duro ter que admitir que no regime militar havia mais escrúpulo na escolha de gestores públicos do que nesta democracia em que o recato é carta fora do baralho. É duro, deprimente e desanimador.

Essa comparação me atormentou o cérebro nesse episódio da demissão do presidente da Casa da Moeda, Luiz Felipe Denucci Martins, um espertinho que fez seu pé de meia em paraísos fiscais só com as propinas dos fornecedores, segundo reportagens documentadas do conhecimento público.

E que só teria caído em desgraça porque seus padrinhos do PTB estavam inconformados com seu estilo de meter a mão e não servir-lhes o quinhão correspondente. Se ele tivesse sido menos ganancioso e reconhecesse que toda indicação política tem sua contrapartida (muitas vezes pecuniária), provavelmente permaneceria lépido e fagueiro, literalmente com a mão na massa – a fabricação de nossa moeda, na casa onde, felizmente, existe um pessoal técnico altamente crítico e consciencioso.
Dizem que, de fato, esse senhor saiu do bolso do colete do próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega. E ele havia sugerido ao líder do PTB, deputado Jovair Arantes, que o chancelasse, condição sem a qual seria difícil consumar o ato de nomeação.

O deputado, que não é diferente dos apadrinhadores nos governos loteados, não iria pôr seu jamegão no papelucho a troco de um caloroso muito obrigado. O muito obrigado que acontece nessas tratativas tem o endosso da moeda sonante, mormente em se tratando logo do manuseio a vivo e a cores do próprio papel moeda.

Foi um ex-deputado de esquerda, militar cassado, quem fez a comparação. Naqueles tempos em que nos habituamos a só lembrar as mazelas, as estatais eram menos susceptíveis ao assalto de prepostos de terceiros, embora, provavelmente, sofressem outro tipo de pressão e servissem de forma mais discreta para acomodar interesses de alguns bolsões influentes.

Nos regimes ditos democráticos, esperaríamos mais transparência e mais critérios no trato da máquina pública.

Os governos coligados são composições que presumem a divisão de responsabilidade entre os partidos aliados. Mas uma coisa é dividir responsabilidade, outra coisa, bem oposta, é consolidar irresponsabilidades, através da entrega de nichos do poder a quem não tem nada a ver com o peixe.

A sustentabilidade de um governo que depende de composições no Legislativo não podia chegar ao fundo do poço em maus hábitos descaradamente eivados de má fé. Maus hábitos que se cristalizaram na filosofia “é dando que se recebe” popularizada por um deputado de direita, Roberto Cardoso Alves, que, embora tenha se notabilizado na tropa de choque do regime militar, acabou indo ser ministro da Indústria no últimos dois anos do governo Sarney, aquele que sempre esteve por cima da carne seca - seja como presidente da ARENA pró-ditadura, seja como conselheiros dos governos pós-ditadura, nos quais manteve a capitania hereditária do Maranhão, indo ganhar o mandato de senador pelo Amapá, estado que nunca vira mais gordo antes de fraudar seu domicílio eleitoral.

É claro que nem só os políticos praticam o esporte das indicações de cartas marcadas. É público e notório que o Ministério das Comunicações sempre foi feudo do todo poderoso Roberto Marinho e seus herdeiros. Tanto que ao nomear Miro Teixeira para lá, em seu primeiro governo, o Sr. Luiz Inácio surpreendeu o próprio Brizola, chefe do partido que entraria no governo por essa janela.

As alianças partidárias, como já disse, presumem parcerias no governo, mas em função de um programa comum de gestão e metas. E não um loteamento de “porteiras fechadas”.

Essa parceeria só seria correta se limitada aos cargos eminentemente políticos, nunca a diretoria de estatais ou a fundações e órgãos em áreas típicas de especialistas e funcionários de carreira, como nas estatais, na educação, saúde e segurança pública.

Mais uma vez vejo-me na obrigação de reconhecer melhores hábitos entre os militares, inclusive nos dias de hoje. Se o Ministério da Defesa é entregue a um civil por opção política, suponho que os cargos nas Forças Armadas, inclusive em seus comandos respeitem critérios de mérito – no mínimo considere carreiras e hierarquias.

A partidarização sem limites da administração pública está na raiz da desmoralização do Estado e na disseminação dos discursos privatizantes. Falo com conhecimento de causa, pois já ocupei cargos no primeiro escalão da Prefeitura do Rio de Janeiro.

E lembro que tive de demitir um “líder comunitário” logo no início da minha segunda passagem pela Secretaria de Desenvolvimento Social porque ele se achava acima do bem e do mal, em função de sua relação pessoal com o prefeito. E olha que, a bem da verdade, tive toda a liberdade de formar a equipe, aproveitando pessoas capazes de filiações diferentes e sem filiação nenhuma.

Além desse caso da Casa da Moeda, que é por si um péssimo indício de escolhas destituídas de compromissos institucionais com o Estado, há uma corrida de apadrinhados para alguns cargos na Petrobrás, a maior empresa brasileira, com um orçamento igual ao do Estado de São Paulo, o mais rico da federação, que está trocando de presidente. Até uma diretoria nova foi criada para acomodar um antigo dirigente do PT que, por sinal, já foi presidente da estatal.

Ao ver essa corrida, lembro-me do pleito do deputado Severino Cavalcanti, aquele que perdeu a presidência da Câmara por ter recebido propina do dono do restaurante terceirizado. À época, com o comando dos deputados como trunfo, indicou o apadrinhado Djalma Rodrigues para a “diretoria que fura poços”.

Essa é a mais gorda fatia da estatal: sozinha, soma dois terços do seu orçamento, tem 16 mil empregos diretos, outros 130 mil indiretos e investim 
entos previstos de US$ 5 bilhões ao ano no período de 2005 a 2015. Por sinal, está ganhando novo diretor, com a aposentadoria de Guilherme Estrella.
As experiências desgastantes no seu primeiro ano de governo, em que a mídia deitou e rolou, conseguindo derrubar quem tinha e quem não tinha culpa no cartório, devem ter servido de lição. É hora da presidenta de livrar-se de más companhias.

Assim como propus que repensássemos as cidades com honestidade, carinho e afeto, aproveito o ensejo para fazer a mesma exortação em relação à administração pública. O pior que pode acontecer, como efeito colateral, é sair repetindo a receita desmascarada das privatizações, como no caso dos aeroportos, objeto dos mais cálidos desejos de grupos econômicos interessados em negócios sem concorrência, sobre os quais recorram a todos os expedientes para engordar suas carteiras. Mas essa é outra história sobre a qual falarei ainda.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Meu nome é medo

08.02.12 - Frei Betto* - Adital

Meu propósito é dominar corações e mentes. Incutir em cada um o medo do outro. Medo de estender a mão, tocar em cumprimento a pele impregnada de bactérias nocivas.

Medo de abrir a porta e receber um intruso ansioso por solidariedade e apoio. Com certeza ele quer arrancar-lhe algum dinheiro ou bem. Pior: quer o seu afeto. Melhor não ceder ao apelo sedutor. Evite o sofrimento, tenha medo de amar.

Quero todos com medo da comunidade, do vizinho, do colega de trabalho. Medo do trânsito caótico, das rodovias assassinas, dos guardas que intimidam e achacam. Medo da rua e do mundo.

Convém trancar-se em casa, fazer-se prisioneiro da fragilidade e da desconfiança. Reforce a segurança das portas com chaves e ferrolhos; cubra as janelas de grades; espalhe alarmes e eletrônicos por todos os cantos.

Faça de seu prédio ou condomínio uma penitenciária de luxo, repleta de controles e vigilantes, e no qual o clima de hostilidade reinante desperte, em cada visitante, uma ojeriza ao prazer da amizade.

Tema o Estado e seus tentáculos burocráticos, os pesados impostos que lhe cobra, as forças policiais e os serviços de informação e espionagem. Quem garante que seu telefone não está grampeado? Suas mensagens eletrônicas não são captadas por terceiros?

O mais prudente é evitar ser transparente, sincero, bem humorado. Sua atitude pode ser interpretada como irreverência ou mesmo ameaça ao sistema.

Fuja de quem não se compara a você em classe, renda, cultura e cor da pele; dos olhos invejosos, da cobiça, do abraço de quem pretende enfiar-lhe a faca pelas costas.

Tenha medo da velhice. Ela é prenúncio da morte. Abomine o crescimento aritmético de sua idade. Jamais empregue o termo "velho"; quando muito, admita "idoso".

Tema a gordura que lhe estufa as carnes, a ruga a despontar no rosto, a celulite na perna, o fio branco no cabelo. É horrível perder a juventude, a esbeltez, o corpo desejado!

Tenha medo da mais terrível inimiga: a morte. Ela se insinua quando você fica doente. Saiba que ninguém está interessado em sua saúde. Em seu bolso, sim. Basta adoecer para verificar como haverão de humilhá-lo os serviços médicos e os planos de saúde.

Não se mova! Por que viajar, abandonar o conforto doméstico e se arriscar num acidente de ônibus, navio ou avião? Nunca se sabe quando, onde e como os terroristas atacarão. Quem diria que numa bucólica ilha da pacífica Noruega o terror provocaria um genocídio?

Meu nome é medo. Acolha-me em sua vida! Sei que perderá a liberdade, a alegria de viver, o prazer de ser feliz. Mas darei a você o que mais anseia: segurança!

Em meus braços, você estará tão seguro quanto um defunto em seu caixão, a quem ninguém jamais poderá infligir nenhum mal, nem mesmo amedrontá-lo.


 *Frei Betto é assessor de movimentos sociais, escritor, autor de "Calendário do poder" (Rocco), entre outros livros.