terça-feira, 2 de julho de 2013

Entrevista com Giuseppe Cocco

25/06/2013 - Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles
- entrevista especial com Giuseppe Cocco
- Instituto Humanitas Unisinos

Foto: Marcelo Say - Epa
Não estamos diante da “falência da política. Ao contrário, trata-se da persistência da política! Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção”, avalia o cientista político.

Confira a entrevista.

Na tentativa de compreender as razões que levaram milhares de cidadãos brasileiros às ruas, o sociólogo Giuseppe Cocco, que estuda o conceito de multidão abordado pelo italiano Antônio Negri, elenca algumas possibilidades.

Na avaliação dele, o ciclo de “revoluções 2.0”, com base na internet, “começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais”.

Outro aspecto importante é o fato de jovens brasileiros só terem conhecido “o Brasil de Lula”.

E dispara: “No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do ‘novo modelo’ econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo”.

De acordo com Cocco, havia e há no Brasil “um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ele assinala que os protestos ganharam força a partir do Movimento Passe Livre [http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521290-movimento-passe-livre-vai-para-a-periferia] porque “a questão dos transportes e, mais em geral, do serviços é estratégica para o trabalho metropolitano”.

E esclarece: “Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma ‘empregabilidade’. Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (‘Vem Pra Rua’) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação”.


Foto: amaivos.uol.com.br
Giuseppe Cocco (foto) é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova.
É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne).
É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne).
Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Manifestações sociais massivas descontentes com a política e a economia iniciaram no Oriente, na Espanha, em Wall Street. E agora chegam ao Brasil. Por quê? O que estas manifestações sociais representam?

Giuseppe Cocco – Podemos logo começar dizendo que o que caracteriza essas manifestações é que elas não representam exatamente nada ao passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressam e constituem tudo.

O primeiro elemento é este: elas têm uma dinâmica intempestiva, fogem a qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou os sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia radical articulada entre as redes e as ruas: autoconvocação e debates nas redes sociais, participação massiva às manifestações de rua, capacidade e determinação de enfrentar a repressão e até capacidade de construção e autogestão de espaços urbanos como foram a Praça Tahrir, as acampadas espanholas e as tentativas do Occupy Wall Street e, enfim, a Praça Taksim em Istambul, na Turquia.

Para cada uma dessas ondas e dessas que chamamos de “primaveras”  houve um estopim específico, mas todas dispõem de uma mesma base social (por mais diferenciadas que sejam as trajetórias socioeconômicas dos diferentes países) e dos mesmos processos de subjetivação.

No caso do Brasil, todo mundo sabe que o estopim foram os protestos contra o aumento do preço das passagens nos transportes públicos. Como foi o caso de outras marchas, a manifestação em São Paulo foi violentamente reprimida pela Polícia Militar. Só que dessa vez a faísca não se apagou numa “marcha da liberdade” e incendiou São Paulo e todo o país. Mas saber que o estopim foi esse não nos permite avançar na análise.

Por que agora? É difícil responder e talvez a característica própria desse tipo de movimento é que ninguém sabe propor razões “objetivas” indiscutíveis. Contudo, podemos avançar três explicações: a primeira explicação tem a forma de um segundo “estopim” e é a quase coincidência do episódio da repressão da marcha pelo passe livre em São Paulo com a renovação das primaveras árabes e do 15M espanhol nas lutas duríssimas da multidão turca na Praça Taksim, em Istambul (não por acaso, na segunda manifestação carioca, que já reunia 10 mil pessoas, um dos gritos era: “acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia”);

uma segunda explicação está no fato que esse ciclo de “revoluções 2.0” começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais; a terceira explicação é mais consistente e a mais importante e diz respeito ao que são essas “novas gerações” no Brasil de hoje, ou seja, essas gerações de jovens que só conheceram o Brasil de Lula. O que é incrível e até irônico é que o próprio PT não tenha previsto isso e ainda hoje seja incapaz de enxergar esse dado importantíssimo.

IHU On-Line – Quais as aproximações e diferenças entre as manifestações brasileiras e as que vêm ocorrendo em outros países?

Giuseppe Cocco – As aproximações são mais importantes do que as diferenças, que apenas enfatizam a qualidade específica de cada evento.

Num primeiro nível, há em comum a articulação entre as redes e as ruas como processo de autoconvocação das marchas e manifestações que ninguém consegue representar, sequer as organizações que se encontraram no cerne da primeira chamada: a tentativa de “empoderar” os rapazes do Movimento pelo Passe Livre em São Paulo (“oficializados” pela presença no Roda Viva e a negociação com prefeitura e estado) mostrou que eles não controlam nem dirigem um movimento que se autorreproduz de maneira rizomática (as manifestações aconteciam ao mesmo tempo sem respeitar qualquer tipo de “trégua”).

Num segundo nível, há em comum o esgotamento da representação política. No Brasil, esse fenômeno foi totalmente subavaliado pela “esquerda” e, sobretudo, pelo PT porque não o entenderam (e não o entendem).

Inicialmente pensaram que fosse um problema das autocracias do Norte da África (Tunísia e Egito); depois que fosse a incapacidade dos socialistas espanhóis (PSOE) de responder de maneira soberana às injunções das agências internacionais de notação ou do Banco Central Europeu.

Depois pensaram que o 15M espanhol não consegue encontrar uma nova dinâmica eleitoral ao passo que o partido de Beppe Grillo mostrou na Itália um fenômeno eleitoral totalmente novo e desgovernado.

Em seguida, pensaram que o Egito e a Tunísia foram normalizados eleitoralmente pelo islamismo conservador e aí aparece o levante turco contra o governo islâmico moderado.

No Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a reeleição quase plebiscitária do Paes, no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do “novo modelo” econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo.

O que a esquerda como um todo, e o PT no Brasil não entenderam, é que a crise da representação é geral (mesmo que ela tenha sintomas e manifestações diferenciadas), e que os levantes da multidão no Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão, entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira autorreferencial de pensar por parte dos governos e dos partidos políticos.

Num terceiro nível há a principal proximidade entre todos esses movimentos: a base social dessa produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracteriza o capitalismo cognitivo.

As redes que protestam e se constituem nas ruas de Madri, Lisboa, Roma, Atenas, Istambul, Nova York e agora de todas as cidades brasileiras são formadas pelo trabalho imaterial: estudantes, universitários, jovens precários, imigrantes, pobres, índios, ou seja a composição heterogênea do trabalho metropolitano.

Não por acaso, por um lado, uma de suas formas principais de luta foi a “acampada” ou o “occupy” e, por outro, os levantes turco e brasileiro tiveram como estopim a defesa das formas de vida da multidão do trabalho metropolitano: a defesa do parque contra a especulação imobiliária (a construção de um shopping) em Istambul, e a luta contra o aumento do custo dos transportes, no caso do Brasil.

Diante dessas aproximações, as diferenças são bem menores, embora elas existam (e sejam até óbvias).

Podemos apreender essas diferenças do ponto de vista das condições objetivas da cada país e do ponto de vista de como cada um desses movimentos foi transformando (ou não) a fase destituinte em momento constituinte. Assim, o 15M espanhol se apresenta como a experiência que mais conseguiu durar apesar de não ter revertido as políticas econômicas. As revoluções árabes foram normalizadas pelas vitórias eleitorais conservadoras, mas os levantes se tornam endêmicos.

Na Turquia e ainda mais no Brasil, não sabemos – literalmente – o que vai acontecer. É no plano das condições objetivas que encontramos a maior diferença: na Espanha e, em geral, no mediterrâneo as revoluções são marcadas pelos processos de “desclassificação” das classe médias.

No Brasil é exatamente o contrário: tudo isso acontece no âmbito e no momento da emergência da “nova classe média”.

Só que essa nova composição de classe é, na realidade, a nova composição do trabalho metropolitano, lutando pelos parques ou pelos transportes públicos: ascendendo socialmente, os pobres brasileiros se tornam o que as classes médias europeias se tornam, descendo: a nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles.

IHU On-Line – Além do aumento do preço das passagens, quais são os outros motivos que desencadearam as manifestações?

Giuseppe Cocco – Podemos elencar duas respostas. A primeira é a seguinte: se pensarmos bem, essa pergunta encontra sua resposta numa sua simples reformulação: “por que nas cidades e metrópoles brasileiras não há mais lutas e mais levantes pelo sem número de motivos que a justificariam?"

No Brasil, não faltam razões! Uma vez que “pegou” é só escolher, a lista é infinita.

Vou trazer apenas um exemplo, contando uma anedota: um dia fui assistir a um Fórum da UPP Social (que hoje não existe mais) em duas favelinhas da Zona Norte, bem precárias. Toda a parafernália dos governos estadual e municipal estava mobilizada, com seus carros de função, para dar sentido à pacificação. Os poucos moradores que falaram colocaram dois problemas essenciais: primeiro, disseram, vivemos no meio do esgoto; segundo, os policiais agem de maneira violenta e arbitrária.

As dezenas de secretários e outros servidores presentes não conseguiram dizer nada sobre como seria resolvido esse problema básico do saneamento. Saindo da favelinha, passei por uma centena de adolescentes que ficava sem fazer nada na entrada e, no caminho de volta ao Centro do Rio, a 5 minutos de carro, passei na frente de uma obra gigantesca, faraônica: o Maracanã!

A pergunta de cima encontra uma resposta bem igual a que colocava Keynes em 1919: “nem sempre as pessoas aceitam morrer em silêncio”.

Havia no Rio de Janeiro e no Brasil (e continua havendo) um sem número de movimentos de protesto e resistência, em particular por causa dos efeitos dos megaeventos, e hoje esses movimentos se juntaram, confluindo com a multidão da nova composição do trabalho metropolitano.

No Rio, os manifestantes sempre se juntam para dirigir invectivas pesadas ao governador Sergio Cabral e ao prefeito Eduardo Paes.

Chegamos assim à segunda resposta: o movimento foi mesmo pelos 0,20 centavos! 

Só que esse “pouco” é na realidade “muito”. Por quê?
Porque a questão dos transportes e, mais em geral, dos serviços é estratégica para o trabalho metropolitano. Os operários fordistas lutavam por salários e horários. Os trabalhadores imateriais têm como fábrica a metrópole e lutam pela qualidade de vida da qual dependerá a inserção deles em um trabalho que não é mais um emprego, mas uma “empregabilidade”.

Os operários fordistas lutavam para reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; os trabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de uma montadora (“Vem Pra Rua”) para ressignificar os agenciamentos produtivos que se desenham na circulação.

Os operários fordistas lutavam contra o trabalho. Os trabalhadores imateriais lutam no terreno da produção de subjetividade. É na circulação que a subjetividade se produz e produz valor e renda.

IHU On-Line – Os manifestantes deixam claro que são apartidários, não querem violência e não têm lideranças. Como interpreta esse discurso? Como pensar um novo modelo político a partir dessas características?

Giuseppe Cocco – Com certeza, uma das dimensões constitutivas da Revolução 2.0 é a crise da representação e essa é uma questão central.

Precisamos lembrar que a antecipação da revolução 2.0 como crítica radical da representação é sul-americana.

O “Que se vayan todos” argentino antecipou em 10 anos o “No nos representan” espanhol.

Só que as dimensões dessa crise são processadas pelo discurso oficial – ou seja, partidário – de maneira invertida. E essa inversão não é por acaso.

Aliás, os últimos desdobramentos do movimento (as agressões contra os partidos de esquerda nas manifestações do dia 20 de junho) nos mostram muito bem como funciona essa inversão.

Os partidos (sobretudo aqueles que estão no governo) dizem que esses movimentos são limitados porque recusam os partidos, não são “orgânicos”, porque têm uma “ideologia” que os recusa e, portanto, são potencialmente antidemocráticos. Obviamente, isso é correto. Só que, a afirmação correta esconde duas belas falsificações.

A primeira também é óbvia: os “grupos” que rezam por uma crítica fundamentalista da representação têm pouca consistência social e nenhuma capacidade de determinar, sequer influenciar, movimentos desse tamanho.

A segunda falsificação é uma consequência dessa primeira: os partidos atribuem a crise da representação a um processo e a uma crítica que viria de fora, quando na realidade os maiores e únicos responsáveis dessa crise são eles!

E a responsabilidade está na indiferenciação da clivagem direita/esquerda, ou seja, no fato de os governos mudarem e continuarem fazendo as mesmas coisas, inclusive com a reciclagem das mesmas figuras políticas.

Assim, o PSOE espanhol atribuiu ao 15M sua derrota eleitoral, quando na realidade o 15M é apenas a consequência do fato que os socialistas espanhóis faziam a mesma política econômica da direita.

É exatamente o que acabou acontecendo no Brasil de Lula e, sobretudo, de Dilma. O movimento que nasceu com a luta contra o aumento recusa as dimensões autoritárias e arrogantes das coalizões e desses consensos que reúnem direita e esquerda na reprodução dos interesses de sempre.

É o Haddad que devia representar o novo e se apresenta junto ao Alckmin para juntos dizerem a mesma coisa: que a redução da tarifa terá um custo (sic!).

É a coalizão conservadora que governa o estado e a prefeitura do Rio, e onde o PT planeja e executa remoções de pobres, desrespeitando a própria LOM.

São as alianças espúrias com os ruralistas de um ministro de esquerda.

É a condução autoritária das megaobras e dos megaeventos.

É a entrega da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a um fundamentalista que, exatamente no dia seguinte da grande manifestação da segunda-feira, fez votar o projeto de Lei que define a homossexualidade como uma doença.

A esquerda e a incapacidade
A extrema esquerda ou a esquerda radical erram quando pensam que estão “salvas” dessa situação.

Os partidos de esquerda são incapazes de entender que esse movimento se forma na recusa – confusa, flutuante, ambígua e até perigosa – do partido, da organização separada, da bandeira. Isso porque a recusa é geral, não faz distinções e funciona como rejeição de qualquer plataforma ideológica preparada e determinada por lógicas de aparelhos separados: nisso há uma percepção de que um dos problemas da política é a construção de aparelhos que tendem – antes de tudo – a reproduzir a si mesmos.

A agressão de um grupo organizado ao bloco de bandeiras do PSTU, do PSOL e do PCB na marcha da quinta feira, 20 de junho, quebrou as ilusões de que a crise seria somente do PT e assustou todo o mundo.

Contudo, nesse episódio lamentável encontramos, mais uma vez, o funcionamento perverso da lógica da representação. Os grupos agressores eram claramente organizados e tinham esses objetivos tão claramente quanto o processo de organização indica as manipulações mais podres. Todas as análises e denúncias que imediatamente foram produzidas identificaram esses grupos (que claramente agiam a mando de algum desenho de provocar essa situação) com a manifestação em geral.

Sem partidos
Na realidade, o apoio genérico dos jovens à palavra de ordem “sem partidos! não tem nenhuma significação linear e ainda menos “fascista”. 

Paradoxalmente, a recusa dos partidos, inclusive dos “radicais” e de suas bandeiras, é a recusa – claro, confusa e contraditória – da homologação de direita e esquerda e uma demanda para uma “verdadeira esquerda”.

Essa demanda não é idealista e não pode ser travada com linguagens e símbolos obsoletos (as bandeiras vermelhas, por exemplo).

Para reerguer as bandeiras vermelhas, é preciso deixá-las em casa por um bom momento! A bandeira vermelha precisa abandonar sua dimensão ideal e transcendente (ou seja, vazia) e voltar a ser interna (imanente) às linguagens das lutas como eles são.

Nesse terreno é possível e necessário construir outra representação e, sobretudo, reforçar a democracia.

IHU On-Line – O senhor publicou recentemente no Twitter que “as lutas da multidão em São Paulo e no Rio são o melhor resultado dos governos Lula. Tão bom que ninguém no PT foi capaz de antecipar”. Pode nos explicar essa ideia? Trata-se da falência da política?

Giuseppe Cocco – Começando do final: não estamos diante da “falência da política". Ao contrário, trata-se da persistência da política!

Diante de tudo que os partidos de esquerda fazem para fornecer munições ao velho discurso antidemocrático e moralista da elite, esses movimentos mostram que a política está viva, apesar dos Felicianos, dos Aldos, da tecnocracia neodesenvolvimentista e da corrupção!

Ser contra o moralismo da direita não significa achar “graça” nos comportamentos imorais da esquerda no poder. Trata-se apenas de não cair nas armadilhas da direita, mas num esforço de conjunção ética dos fins e dos meios.

Esse movimento, qualquer seja seu desfecho, é o movimento da multidão do trabalho metropolitano, o mais puro produto dos 10 anos de governo do PT.

Vamos aprofundar e esclarecer essa afirmação em dois momentos.

Num primeiro momento, essa afirmação é uma valoração positiva dos governos Lula e Dilma. Uma avaliação positiva não porque tenham sido de “esquerda” ou socialistas, mas porque eles se deixaram atravessar – sem querer – por uma série de linhas de mudança: políticas de acesso, cotas de cor, políticas sociais, criação de empregos, valorização do salário mínimo, expansão do crédito.

A esquerda radical julgava essas políticas exatamente como agora – ironicamente nesse caso até o PT – julgam a questão das “bandeiras”: idealmente.

Lula está implementando outro modelo, outra sociedade, socialista?” se perguntava e criticava. Ora, ninguém implementa modelo alternativo, mesmo quando se está no governo. Apenas pode ter a sensibilidade de apreender as dinâmicas reais que, na sociedade, poderão amplificar-se e produzir algo novo.

Os governos Lula e Dilma associaram o governo da interdependência na globalização com a produção, tímida e real, de uma nova geração de direitos e de inclusão produtiva. Estatisticamente, isso se traduziu na mobilidade ascendente dos níveis de rendimento de mais de 50 milhões de brasileiros e pela entrada de novas gerações nas escolas técnicas e universidades.

Lula não quis saber de bandeiras e até declarou que ele “nunca tinha sido socialista”. Ficou dentro da sociedade indo atrás das linguagens, dos símbolos e das políticas que entendia.

Na virada da década de 2010, esse processo se consolidou em dois fenômenos maiores: o primeiro é eleitoral e tem o nome de “lulismo”, ou seja, a capacidade que Lula tem de ganhar e, sobretudo, fazer ganhar eleições majoritárias: começando pela presidente Dilma e chegando ao prefeito Haddad;

o segundo é o regime discursivo da emergência de uma “nova classe média”, com base nos trabalhos do economista Marcelo Neri.

Com a crise do capitalismo global (2007-2008) e a chegada de Dilma ao poder, o discurso da “nova classe média” foi além das preocupações do marketing eleitoral, para tornar-se a base social de uma virada que vê, no papel do Estado junto das grandes empresas, o alfa e o ômega de um novo modelo desenvolvimentista (neodesenvolvimentista).

Economia
Sociologicamente, o objetivo do neodesenvolvimentismo é transformar os pobres em “classe média”, e para isso é preciso economicamente de um Brasil Maior, capaz de se reindustrializar.

O governo Dilma chegou a baixar os juros e multiplicou os subsídios às indústrias produtoras de bens de consumo duráveis, em particular de carros, e à construção civil.

O que o movimento afirmou e certificou foi a dimensão ilusória desse suposto modelo (isso não significa que o modelo não será implementado; significa apenas que ele perdeu a patina de consenso que o legitimava e deverá apresentar-se como cada vez mais autoritário).

No plano macroeconômico, a inflexão tecnocrática não deu muito certo, pois a tentativa de mexer nos juros resultou na volta da inflação dos preços (que está na base da revolta). A inflação dos juros e aquelas dos preços se reapresentaram como as duas faces de um impasse renovado que só uma mobilização produtiva (da qual não há sinal) pode resolver .

Nova classe média não existe
No plano sociológico, a “nova classe média” não existe, porque o que se constitui é uma nova composição social cujas características técnicas são de trabalhar diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole.

A figura econômica (a “média” da faixa de renda) esconde o conteúdo sociológico de uma inclusão produtiva que não passa mais pela prévia implementação na relação salarial.

Esse trabalho dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos serviços).

A qualidade da inserção produtiva desse trabalho depende diretamente dos direitos prévios aos quais têm acesso e que, ao mesmo tempo, ele produz, como, por exemplo, poder circular pela metrópole.

É exatamente essa composição técnica e social do trabalho metropolitano o que constitui a outra face da “nova classe média” oriunda do período Lula.

Ao mesmo tempo em que ela foi a base eleitoral das sucessivas derrotas do neoliberalismo, ela é também hoje, na sua recomposição política, a oposição ao neodesenvolvimentismo.

Para ela, a questão da mobilidade urbana tem a mesma dimensão que tinha o salário para os operários ao mesmo tempo em que o segmento estratégico é aquele dos serviços.

As cidades e metrópoles brasileiras – e não a reindustrialização – constituem o maior gargalo, ao mesmo tempo social, político e econômico.

A ideologia e a coalizão de interesses que estão com a presidente Dilma não mostraram, até agora, a menor capacidade de enxergar esse dado.

Mais do que isso, essa nova composição do trabalho imaterial e metropolitano produz, a partir de formas de vida, outras formas de vida.

Por isso, o movimento do passe livre, como aquele de Istambul que defendia um parque, foi juntando todos os focos de resistência que existem nas metrópoles, até se espalhar – como está fazendo nesse momento, dramaticamente e assustadoramente – pelas periferias onde nunca teve manifestação de massa nenhuma.

O que esse “levante” da multidão do trabalho imaterial nos mostra é que o “legado” destes últimos dez anos de governo está em disputa, e que o mais interessante é ficar por dentro dessas alternativas, em vez de querer colocar uma ou outra bandeira.

A política e os movimentos estão dentro e contra. Por exemplo, pensemos a questão dos megaeventos, das copas e olimpíadas.

Muitos dos focos de resistência nas metrópoles são movimentos que criticam os gastos com obras, estádios, favelas que resistem contra as remoções etc. 

Ao mesmo tempo, a possibilidade de o movimento ter acontecido sem uma repressão brutal, por enquanto, se deve também à Confederation Cup. Mais uma vez, o conflito é dentro e contra.

IHU On-Line – O que é possível vislumbrar para o cenário político a partir das manifestações?

Giuseppe Cocco – Creio que o evento é tão potente e imprevisto que ninguém saberá responder a essa pergunta. Sobretudo neste momento: a cada dia e talvez a cada hora mudam alguns dados fundamentais.

O que podemos dizer é que o cenário eleitoral de 2014 até 2018 estava desenhado e as variáveis vislumbradas eram aquelas macroeconômicas. O movimento se convidou para essa discussão. Só que não há ninguém que possa sentar nessa eventual mesa dizendo que o representa.

A terra tremeu e continua tremendo, só que a fumaça levantada não nos deixa ainda ver quais prédios cairão e quais ficarão em pé. Nesse cenário, podemos fazer duas conjeturas.

Numa primeira, a presidente Dilma pode abrir pela esquerda, por exemplo, com uma reforma ministerial que colocaria pessoas qualificadas e altamente progressistas em ministérios-chave como a Justiça, Cidade e Transportes, MinC e Educação, convocando a sociedade a se constituir – em todos os níveis possíveis – em assembleias participativas para discutir as urgências metropolitanas.

Na segunda (que me parece ser aquela anunciada pelo pronunciamento do dia 21 de junho), ela se limita a reconhecer a existência de outra composição social no movimento e a construção de um grande pacto sobre os serviços públicos, mas não anuncia nada de novo a não ser algumas bandeiras de longo prazo (a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação) e enfatiza a questão da ordem: repressão dos “violentos” e respeito pelos megaeventos (ou seja, mais repressão).

E isso depois dos fatos bem sombrios da quinta-feira (aparição desses grupos pagos para agredir os partidos e, no Rio, repressão generalizada da manifestação perseguindo a centenas de milhares de participantes durante toda a dispersão).

O cenário que vislumbro é pessimista: parece-me que boa parte dos militantes de esquerda está caindo na armadilha das “bandeiras”, e que isso acabará por realmente entregar o movimento à direita e, por cima, haverá repressão, eventualmente também das opiniões.

Nesse cenário muito provável, para salvar a si mesmos e evitar uma renovação geral, as burocracias e outros fisiologismos encastelados nos diferentes governos e coalizões, estão destruindo as possibilidades de uma grande renovação da esquerda e levando todo o mundo de roldão no buraco que será o resultado eleitoral de 2014.

Foto: Natália Scholz
Mas quero muito estar errado.
Se for verdade que estou errado, serão as lutas da multidão que o dirão e o cenário que elas têm de enfrentar é muito, muito complexo.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/521331-mobilizacao-reflete-nova-composicao-
tecnica-do-trabalho-imaterial-das-metropoles-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco


Leia também:http://www.brasileducom.blogspot.com.br/2013/06/alipio-freire-fortalecer-presidente.html

http://www.brasileducom.blogspot.com.br/2013/06/o-extase-da-conexao-nas-ruas.html

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Datafolha registra criminalização da política e romaria pró-Marina


A pesquisa divulgada neste domingo indica a ação pesada dos fiéis da balança, a mídia e os evangélicos, conforme havíamos previsto. Os evangélicos na organização da campanha por Marina e contra Dilma, e a mídia com a instrumentalização dos protestos a seu favor. Eles irão continuar operando contra a presidenta até o dia do pleito, não importa o que ela faça. Simplesmente porque defendem outro projeto para o país.

Marcelo Salles (*)  Carta Maior
   
A pesquisa Datafolha para intenção de voto divulgada neste domingo (30) foi realizada num momento de plena ebulição popular e, portanto, seu resultado deve ser analisado a partir dessa perspectiva. Dilma passou de 51 a 30, Marina foi de 16 para 23, Aécio de 14 a 17 e Eduardo de 6 para 7. Ou seja, dos 21 pontos perdidos pela presidenta, sete foram para Marina, três para Aécio e um para Eduardo, num total de onze pontos transferidos para adversários. A outra metade, dez pontos, engrossa a fileira dos "desiludidos" com a política, que alcança 24, justamente o aspecto mais amplificado pelas corporações de mídia durante os protestos - o que encontra-se em consonância com sua eterna pauta de criminalização da Política e seus representantes.

DATAFOLHA 30/06/2013 - Intenção de voto para presidente em 2014

30 - Dilma Rousseff
23 - Marina Silva
17 - Aécio Neves
07 - Eduardo Campos
24 - Branco, nulo ou indeciso

Obs: os números divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo somam 101 pontos, ao invés de 100, como nos levantamentos anteriores.

Pesquisas de intenção de voto são um retrato do momento e, portanto, nunca são estáticas. Um ponto importante a ser destacado é que, muito provavelmente, a conjuntura em que foi realizada não poderia ter sido pior para Dilma. A presidenta, eleita democraticamente pelo povo para governar o país, não fugiu às suas responsabilidades: foi para a televisão, falou diretamente aos cidadãos, afirmou que seu governo está ouvindo as vozes das ruas e reafirmou compromissos importantes com o desenvolvimento do país.

No entanto, com milhões de pessoas nas ruas e tantas pautas diferentes em voga, as insatisfações, de modo geral, tendem a recair sobre quem está no comando, mesmo que várias das reivindicações não estivessem sendo dirigidas à esfera federal de governo.

Se é verdade que o momento foi o mais delicado possível, é muito provável que os próximos levantamentos registrem uma recuperação nas intenções de voto da presidenta. Isso, claro, desde que a Economia não entre em colapso e o governo mantenha o foco na Agenda Social - dar continuidade ao combate à miséria, à garantia dos direitos humanos e ao diálogo com os movimentos organizados, sem, no entanto, ficar refém de interesses estrangeiros que instrumentalizam, geralmente através de ONGs, um sem número de grupos sociais.

Como registrei há três meses, era preciso ficar especialmente atento a duas variáveis de lá até as eleições - mídia e evangélicos. Disse que eles seriam os fiéis da balança em 2014. Naquele mesmo texto, dividi o período que nos separa das eleições em três momentos: o primeiro seria de março/13 a outubro/13, quando todos os partidos devem estar constituídos e aqueles que pretendem se candidatar a cargos de deputado, senador, governador e presidente precisam estar devidamente registrados em suas agremiações. O segundo período seria de outubro/13 a março/14, quando termina o prazo para desincompatibilização de cargos públicos, o que deixará o cenário praticamente definido. E o terceiro e último período seria o que transcorre de março/14 até outubro/14, quando ocorrem as articulações finais e a tem início a campanha propriamente dita.

Ao analisarmos o avanço de Marina Silva, vemos claramente o papel do fator "evangélicos", cuja atuação tem sido determinante no recolhimento das assinaturas para a fundação de seu partido. Como registrei no último artigo, seu avanço nas intenções de voto era esperado, não pelos protestos, mas porque a militância em massa nas ruas colocaria seu nome na boca do povo. Além disso, ela encontra uma vasta camada da sociedade que recentemente ascendeu socialmente, mas sem qualquer ideologia, sendo, portanto, vulnerável a mensagens de cunho religioso e/ou a chamadas "politicamente corretas". É possível que Marina continue no movimento ascendente, caso seus militantes permaneçam nas ruas e ela consiga o registro do partido em tempo hábil para disputar as eleições, o que lhe dará direito a tempo de televisão e recursos financeiros adicionais.

Já o caso de Aécio Neves é diferente. Ele vem avançando lentamente, mas com consistência. Em março tinha 10, no início de junho foi a 14, passando agora a 17. Ocorre que nos dois intervalos ele foi beneficiado pela variável "mídia", que no primeiro momento teve a seu favor a conjugação do programa de seu partido na televisão com os boatos sobre o fim do Bolsa Família, culminando com sua eleição para a presidência do PSDB (tudo com ampla divulgação pelas corporações de mídia); agora, durante os protestos, Aécio apareceu, também em propaganda partidária de rádio e tv, convidando os brasileiros para conversar sobre o Brasil. É possível que siga crescendo, mas dificilmente vai tirar pontos de Dilma ou Marina; terá que disputar os indecisos.

Como venho afirmando desde março, não era conveniente fazer o jogo do "já ganhou" que se ouviu de parte da esquerda quando Dilma despontou com 57 pontos. Dizia que faltava muito para as eleições e, até lá, muita coisa podia acontecer. Aconteceu justamente a ação pesada dos fiéis da balança, a mídia e os evangélicos, conforme havíamos previsto. Os evangélicos na organização da campanha por Marina e contra Dilma, e a mídia com a instrumentalização dos protestos a seu favor. Eles irão continuar operando contra a presidenta até o dia do pleito, não importa o que ela faça. Simplesmente porque defendem outro projeto para o país.

(*) Marcelo Salles é jornalista. No twitter é @MarceloSallesJ


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domingo, 30 de junho de 2013

A esquerda não pode piscar

Por Saul Leblon - Carta Maior
   
O Brasil ingressa num ciclo de turbulência do qual a democracia participativa poderá emergir como parteira de uma sociedade mais equilibrada e justa.

Mas a esquerda não pode piscar.

A disputa fratricida, hoje, é o coveiro das esperanças nacionais.

Nos anos 50, um pedaço das forças progressistas só foi perceber o seu lado no jogo quando o povo já incendiava os carros do jornal 'O Globo', em resposta ao tiro com o qual Getúlio encerrou a sua resistência e convocou a das massas.

Ontem, como agora, o enclausuramento ideológico, o acanhamento organizativo e a dispersão programática pavimentam o caminho da ameaça regressiva.

É a hora da verdade de toda uma geração.

Cabe-lhe sustentar um novo desenho progressista para o desenvolvimento do país.

Um notável volume de investimentos é requerido para adequar a logística social e a infraestrutura às dimensões de uma nação que incorporou milhões de pobres ao mercado de consumo nos últimos anos.

Agora lhes deve a cidadania.

O novo giro da engrenagem terá que ocorrer num momento paradoxal.

A recuperação norte-americana encoraja as apostas no fim da crise, mas complica a mecânica do crescimento na periferia do mundo, encarecendo o custo do capital.

Asfixiada antes pela valorização do Real, a indústria brasileira agora é o canal de transmissão da alta do dólar nos índices de preços, por conta das importações.

Dotado de uma base fabril atrofiada pelo irrealismo cambial, o país importa quase 25% das manufaturas que consome.

A sangria transfere empregos ao exterior e corrói o principal irradiador de inovação em um sistema produtivo, ademais de fragilizar as contas externas.

O déficit comercial da indústria este ano alcançará o equivalente a 20% das reservas cambiais.

É só um vagalhão da tempestade perfeita que cobra respostas em várias frentes: prover a infraestrutura, combater a inflação, resgatar a industrialização, dar progressividade ao sistema tributário, ajustar o câmbio, modular o consumo.

Tudo junto e com a mesma prioridade.

A urgência das ruas sacudiu essa equação que há menos de um mês tornava a economia cada vez mais permeável a uma transição de ciclo preconizada pelo conservadorismo.

Com um título sugestivo, ‘Um Plano para Dilma’, coube ao editorial da Folha de 02/06, como já comentou Carta Maior, enunciá-la em detalhes.

O ‘plano’ consistia em impor ao país o projeto derrotado em 2002, 2006 e 2010.

A saber: arrocho fiscal e monetário; entrega do pré-sal às petroleiras internacionais; redução dos gastos sociais e dos ganhos reais de salários; renúncia ao Mercosul e adesão aos tratados de livre comércio.

Essa plataforma envelheceu miseravelmente nas últimas horas.

Mas não foi arquivada.

O interesse conservador que antes pretendia usar o governo para escalpelar as ruas, subtraindo-lhe conquistas e recursos na ordenação de um novo ciclo, agora quer usar as ruas para desidratar o governo.

A bipolaridade reflete a ansiedade típica de quem sabe que joga a carta do tudo ou nada.

Não por acaso, o jornalismo a serviço do dinheiro já constata receoso: ‘o que a rua pede colide com o que o mercado pretende'.(Valor Econômico)

Curto e grosso: o espaço para um ajuste convencional se estreita na rota de colisão entre a agenda do Estado mínimo e a da Democracia Social.

Quem dará coerência ao desenvolvimento brasileiro a partir de agora? -- perguntava Carta Maior há menos de um mês.

Antes turva, a resposta desta vez emerge mais limpa.

A nova coerência macroeconômica terá que ser buscada na correlação de forças redesenhada pelas grandes multidões que invadiram as ruas nas últimas semanas.

Emparedado pela lógica conservadora o governo Dilma passou a ter escolhas (leia a advertência de Paulo Kliass e a análise das opções orçamentárias feita por Amir Khair; nesta pág)

E o PT ganhou a chance de se reinventar, explicitando uma agenda clara para o passo seguinte da história.

Sua e a do país.

O bônus não autoriza o conjunto das forças progressistas a adotar a agenda da fragmentação suicida.

O focalismo cego às interações estruturais é confortável como um conto de fadas, em que a varinha de condão substitui as prioridades orçamentárias.

O descompromisso com partidos e organização dá leveza e audiência na mídia conservadora.

Mas levam ao impasse autodestrutivo e à inconsequência histórica.

Em entrevista ao correspondente de Carta Maior em Londres, Marcelo Justo, o pesquisador Paolo Gerbaldo, do Kings College, lembra que os indignados do Cairo rechaçaram os partidos na praça Tahrir. E abriram caminho a um governo desastroso da Irmandade Muçulmana no Egito (leia nesta pág).

Não se faz política sem poder; não se conquista poder sem disputar o Estado.

A responsabilidade de interferir num processo histórico pressupõe a adoção de balizas e estruturas que impeçam o retrocesso e assegurem coerência às mudanças.

Sem alianças aglutinadoras, nada feito.Sem construir linhas de passagem entre o real e o ideal, semeia-se angústia e decepção.

O jogo é pesado.

Limites estritos à ação convergente do Estado (mínimo) foram erguidos em todo o mundo nos últimos 30 anos.

A liberdade dos capitais manteve nações, projetos, partidos e governos sob chantagem impiedosa.

Domínios insulares foram instalados no interior do aparato público.

O conjunto elevou a tensão política que explode periodicamente, como agora --como em 2002, em 2006 e em 2010-- quando os mercados blindados se preparam para enfrentar a democracia insatisfeita nas urnas.

Teoricamente, essa é a hora em que o bancário e o banqueiro tem o mesmo peso no escrutínio do futuro.

Na prática, a locomotiva dos grandes levantes populares é que delimita a fronteira da democracia social em cada época. A urna, em geral, dá o acabamento do processo.

A alavanca brasileira, no caso, foram os levantes operários do ABC paulista dos anos 70/80 e a luta cívica contra a ditadura militar.

Nasceria daí o PT.

E o subsequente ciclo de governos do partido, caracterizado pela negociação permanente do divisor entre os dois domínios, o do dinheiro e o dos interesses gerais da sociedade.

Negociou-se ‘sem romper contratos’ durante os últimos 12 anos.

Com acertos, equívocos e hesitações fartamente listados.

Ainda assim, o saldo configura ‘um custo Brasil’ intolerável aos interesses acantonados no polo oposto do braço de ferro.

Um dado recente do Ipea explica essa rejeição: a renda dos 10% mais pobres cresceu 550% mais rápido do que a dos 10% mais ricos, no Brasil dos últimos 12 anos.

Avançar à bordo da composição de forças que delimitou a ação progressista até aqui tornou-se cada dia mais penoso.

Não apenas por conta do esgotamento real de um ciclo econômico.

Mas também porque se descuidou de prover a sociedade de canais democráticos para comandar o passo seguinte do processo.

A ausência de regulação que assegurasse um sistema audiovisual pluralista entregou a opinião pública à Globo.

A negligência com a organização democrática dos segmentos mais beneficiados pelas políticas públicas estreitou o seu foco nas gôndolas dos supermercados.

Faltava a locomotiva da história apitar outra vez para esticar os limites do possível na discussão do novo ciclo de crescimento que o país requer.

Foi o que as ruas fizeram.

A presidenta Dilma viu o bonde passar e não hesitou. Reagiu na direção certa.

Ao propor uma reforma plebiscitária para redesenhar os perímetros da democracia, deixou implícito --queira ou não-- que a soberania popular é também o único impulso capaz de harmonizar as balizas do novo ciclo de desenvolvimento.

Não é pouco o que se tem sobre a mesa.

Vive-se um meio fio histórico.

De um lado, há a chance de uma ruptura efetiva do desenvolvimento brasileiro com a camisa de força do neoliberalismo.

De outro, a espiral descendente dos impasses pode jogar o país no abismo de uma recaída ortodoxa devastadora.

O tempo urge.

Terão as lideranças progressistas discernimento e prontidão suficiente para negociar uma agenda comum feita de bandeiras, fóruns e ações que ordenem essa travessia?

A ver.

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sábado, 29 de junho de 2013

O que querem dizer as manifestações nas ruas do Brasil?


Por Leonardo Boff em 28/06/2013, no seu Blog

Estive fora do pais, na Europa, a trabalho e constatei o grande interesse que todas  as midias daqui conferem às manifestações no Brasil. Há bons especialistas na Alemanha e França que emitem juízos pertinentes. Todos concordam nisso, no caráter social das manifestações, longe dos interesses da política convencional. É o triunfo dos novos meios e congregação que são as midias sociais.



 O grupo da libertação e a Igreja da libertação sempre mantaiveram viva a memória antiga do ideal da democracia, presente nas primeiras comunidades cristãs até o século segundo pelo menos. Repetia-se o refrão clássico:”o que interessa a todos, deve poder ser discutido e decidido por todos”. E isso funcionava até para a eleição dos bispos e do Papa. Depois se perdeu esse ideal nas nunca foi totalmente esquecido: o ideal democrático de ir além da democracia delegatícia ou representativa e chegar à democracia participativa, de baixo para cima, envolvendo o maior número possível de pessoas, sempre esteve presente no ideário dos movimentos sociais, das comunidades de base,dos Sem Terra e de outros.



 Mas nos faltavam os instrumentos para implementar efetivamente essa democracia universal, popular e participativa. Eis que esse instrumento nos foi dado pelas redes das várias mídias sociais. Elas são sociais, abertas a todos. Todos agora tem um meio de manifetar sua opinião, agregar pessoas que assumem a mesma causa e promover o poder das ruas e das praças.



 O sistema dominante ocupou todos os espaços. Só ficaram as ruas e as praças que por sua natureza são de todos e do povo. Agora surgiram a rua e a praça virtuais, criadas pelas midias sociais. O velho sonho democrático segundo o qual o que interessa a todos, todos tem direito de opinar e contribuir para alcançar um objetivo comum, pode em fim ganhar forma.



 Tais redes socias podem desbancar ditaduras como no Norte da Africa, enfrentar regimes repressivos como na Turquia e agora mostram no Brasil que são os veículos adequados de revindicações sociais,sempre feitas e quase sempre postergadas ou negadas:  transporte de qualidade (os vagões daCentral do Brasil tem quarenta anos), saúde, educação, segurança, saneamento básico. São causas que tem a ver com a vida comezinha, cotidiana e comum à maoria dos motais. Portando, coisas da Política em maiúsculo.



 Nutro a convicção de que a partir de agora se poderá refundar o Brasil a partir de onde sempre deveria ter começado, a partir do povo mesmo que já encostou nos limites do Brasil feito para as elites. Estas costumavam fazer políticas pobres para os pobres e ricas para os ricos. Essa lógica deve mudar daqui para frente.



 Ai dos políticos que não mantiverem uma relação orgânica com o povo. Estes merecem ser varridos da praça e das ruas.



Escreveu-me um amigo que elaborou uma das interpretações do Brasil mais originais e consistentes, o Brasil como grande feitoria e empresa do Capital Mundial,Luiz Gonzaga de Souza Lima.  Seu livro se intituia: “A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada” ( RiMa, S.Bernardo-SP, 2011). Permito-me citá-lo:”Acho que o povo esbarrou nos limites da formação social empresarial, nos limites da organização social para os negócios. Esbarrou nos limites da Empresa Brasil. E os ultrapassou. Quer ser sociedade, quer outras prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil, quer uma sociedade de humanos, coisa diversa da sociedade dos negócios. É a Refundação em movimento”.



 Creio que este autor captou o sentido profundo e para muitos ainda escondido das atuais manifestações multitudinárias que estão ocrrendo no Brasil. Anuncia-se um parto novo. Devemos fazer tudo para que não seja abortado por  aqueles daqui e de lá de fora que querem recolonizar o Brasil e condená-lo a ser apenas um fornecedor de commodities para os países centrais que alimentam ainda uma visão colonial do mundo, cegos para os processos que nos conduzirão fatalmente à uma nova consciência planetária e a exigência de uma governança global.



 Problemas globais exigem soluções globais. Soluções globais pressupõem estruturas globais de implementação e orientação. O Brasil pode ser um dos primeiros nos quais esse inédito viável pode começar a sua marcha de realização. Dai ser importante não permitirmos que o movimento seja desvurtuado. Música nova exige um ouvido novo.



 Todos são convocados a pensar este novo, dar-lhe sustentabilidade e faze-lo frutificar num Brasil mais integrado, mais saudável, mais educado e melhor servido em suas necessidades básicas.



 http://leonardoboff.wordpress.com/2013/06/28/o-que-querem-dizer-as-manifestacoes-nas-ruas-do-brasil/

Leonardo Boff desde Munique/Paris 24/06/2013

Leia também:http://www.brasileducom.blogspot.com.br/2013/06/desmilitarizacao-da-policia-pauta.html
Alipio Freire faz outra leitura sobre as manifestações nas ruas do Brasil. Veja
http://brasileducom.blogspot.com.br/2013/06/alipio-freire-fortalecer-presidente.html

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Alípio Freire: Fortalecer a presidente Dilma e aprofundar a democracia


Por Alípio Freire, no Brasil de Fato

Há uma nítida tentativa da direita e ultradireita brasileiras de desestabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff, coro coadjuvado e alimentado pela grande mídia internacional (especialmente dos EUA e Inglaterra) com o slogan “CHANGE BRAZIL” (Muda Brasil); animado por estrelas da envergadura de Lady Gaga e outras peruas e chesters da mesma granja; e com a adesão de figuras do naipe de Mark Zuckerberg – o homem do “fez-se-buque”.

Felizmente a resistência contra a ditadura do pós-64 foi cantada por Carlinhos Lyra, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Gonzaguinha, João Bosco, Aldir Blanc, Fausto Nilo, Belchior, Fagner, Milton Nascimento, Capinam, Tom Zé, Torquato, Gil, Caetano – e interpretadas por, além dos próprios autores, ninguém menos que Nara Leão, Elis Regina, Odete Lara, Beth Carvalho, Zezé Mota, Elba Ramalho, MPB-4, Quarteto em Cy, Gal, Bethânia e tantas outras figuras, igualmente protagonistas daquela saga.

E não se trata de brincadeira ou retórica: os movimentos podem sempre ser medidos pela qualidade das representações que produzem. O golpe e a ditadura de 1964, por exemplo, tiveram – como epígono da arte (representação/comunicação) e da estética que produziram – Don e Ravel…

Mas vamos aos fatos.

Há mais de década, o Movimento Passe Livre (MPL), tem se manifestado regularmente em várias cidades do Brasil, quando do aumento das passagens dos transportes. Neste ano, em São Paulo, o movimento voltou às ruas e, antes de qualquer tentativa de diálogo ou negociação por parte das autoridades locais (governador e prefeito), que viajaram para Paris, despejou-se violenta repressão contra os manifestantes, protagonizada pela Polícia Militar paulista, imediatamente apoiada e aplaudida desde a França pelos senhores Geraldo Alckmin (PSDB) e Fernando Haddad (PT) – para não falarmos da grande mídia comercial de Pindorama, useira e vezeira em glorificar todas as medidas e violências contra a classe trabalhadora e o povo. Coroando o desastre, o ministro da Justiça – senhor José Eduardo Cardozo (PT), disponibilizou “forças nacionais” para reforçar a razia iniciada pela PM.

Sinal verde para uma repressão sem limites

Com relação ao governador Alckmin, nenhuma novidade: é este o tratamento cotidiano que a sua PM dispensa impunemente aos habitantes dos bairros populares de São Paulo. O ministro Cardozo e o prefeito Haddad, porém, deram um passo a mais com relação à postura que têm assumido: passaram do estágio do habitual e eloquente silêncio pusilânime, para um apoio explícito e desavergonhado à ação da PM.

Assim, o sinal verde estava dado pelas principais autoridades responsáveis pela contenção (e mesmo punição) dos agentes do Estado que violam os direitos constitucionais de liberdade de opinião e manifestação pacífica dos cidadãos deste País.

Autorizada e estimulada a reprimir com violência os protestos, a PM prepara com requintes nova performance: na manifestação (sempre pacífica) do MPL, dias depois, na avenida Paulista, em formação de parede, a polícia parte para cima dos manifestantes. A formação em parede – diferentemente da formação em cunha, que visa à dispersão – é utilizada para o confronto. E foi em parede que marcharam para o confronto contra os cidadãos que se manifestavam.

Ou seja, o objetivo claro era o de terra arrasada. Mais ainda: ao mesmo tempo em que avançavam, os policiais quebravam e incendiavam suas viaturas e outros próprios públicos e particulares, secundados por personagens à paisana, “skinheads” e outras formações da direita e dos fascistas – integralistas ou não. Preparavam assim, certamente orquestrados, o álibi para o terror que semeavam na avenida. Algo como o argumento de “reação armada” que costumam sempre alegar para suas vítimas nas periferias, mortas com um tiro na nuca.

O milagre da multiplicação de manifestantes

E foi desse modo que prosseguiam os confrontos, até que um dia, em menos de 12 horas – “de repente, não mais que de repente” –, como se numa Epifania, como se resultado de uma Revelação, a grande mídia comercial uníssona, passa a defender os manifestantes e atacar seus agressores. Também o governador Alckmin muda de posição frente à ação policial, e o prefeito Fernando Haddad silencia. Ao mesmo tempo – e é aqui que entram a Gaga e suas gaguetes – a mídia dos EUA lança seu lema “MUDA BRASIL”, o que transborda para outros países.

Mas, “muda” para onde?

A grande mídia comercial não apenas apoia os manifestantes. Oferece seus préstimos, em termos de pautar suas reivindicações. Sempre na vanguarda da canalhice, a revista Veja (edição de 19 de junho) estampa na capa: “A REVOLTA DOS JOVENS – Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?”

Jornais, rádios, TVs, Datenas e outros passam a convocar e/ou estimular os cidadãos a participarem das manifestações. O jornal O Estado de S. Paulo insta todos a cederem seus wi-fi a serviço da causa. Centenas de milhares lotam as ruas e avenidas de São Paulo. Mas as organizações populares e/ou de esquerda perdem o rumo e o controle dos protestos que reúne caoticamente todas as insatisfações difusas da cidade, com palavras de ordem plantadas pela grande mídia, entre as quais, a questão da corrupção começa a se destacar. Não faltou sequer a invocação da nossa Vestal de Ébano: “Corruptos fora. Joaquim Barbosa agora”. Até faixas pedindo a volta da ditadura estiveram presentes.

Nesse interim, o prefeito FH reúne o Conselho da Cidade. Vários conselheiros (e pelo menos uma das conselheiras) educadamente tentam convencê-lo a revogar o aumento. Mas o prefeito FH permanece irredutível. Não negocia. Somente passados alguns dias depois de uma reunião com a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (seu Criador), o prefeito aceita voltar atrás com relação ao aumento. A essa altura, porém, o MPL e as forças populares e de esquerda já haviam perdido a batalha do controle das ruas de São Paulo.

A lamentável performance do prefeito FH

O prefeito FH decide então anunciar a queda dos 20 centavos, lado a lado com o governador Geraldo Alckmin. O governador fala primeiro, e anuncia que decidiu revogar o aumento das passagens dos trens e metrô. O prefeito FH fala em seguida, anuncia que também os ônibus voltarão à tarifa anterior, mas se recusa a utilizar qualquer expressão que possa significar “revogar”, “recuar” ou “voltar atrás”.

A cena torna-se patética: uma arrogância descabida, uma empáfia grotesca que desconhece que sua candidatura é filha de uma decisão apenas da cúpula partidária, sem qualquer discussão nas (já esfrangalhadas) instâncias ou mecanismos democráticos do seu partido, e que grande parte da sua votação se deve ao prestígio do seu Criador e outra (talvez até maior), aos eleitores que, conscientes, escolhem o candidato “menos pior” ou, no caso da última eleição paulistana, eleitores que não votaram nele, mas contra o senhor José Serra.

A postura do prefeito paulistano, estimulando inicialmente a repressão e adiando o quanto pode sua decisão de atender aos reclamos do MPL – esquecendo (se é que conhece) o projeto Tarifa Zero, brilhantemente elaborado pelo secretário de Transportes Lúcio Gregori (gestão da prefeita Luiza Erundina), gerou o tempo necessário à organização da direita, sua intervenção orquestrada junto às manifestações populares, fazendo com que estas inchassem, criando sérios problemas para a presidenta Dilma e a falsa conclusão junto a setores da esquerda e dos movimentos populares, de um “ascenso do movimento de massas”, que os pode levar a desastrosas estratégias e táticas.

O que percebemos é um ascenso da direita e da ultradireita fascista, e é indispensável que nos preparemos desde já para reverter esse perigoso quadro que poderá sempre extrapolar os limites da disputa eleitoral do próximo ano, e até implicar rupturas institucionais “legais”, do tipo que vimos acontecer em Honduras e, ainda mais recentemente, no Paraguai.

O silêncio oficial dos partidos políticos chega a ser constrangedor – especialmente o do PT, e a omissão dos poderes da República nas três esferas (exceto o Executivo Federal representado pela presidenta Dilma) tangencia o criminoso.

O desconserto das quatro estações

Em plena véspera do Inverno no Hemisfério Sul, sentimos no ar o perfume da Primavera Árabe, aparentemente induzido por nomes tipo Kassab, Alckmin e Haddad. Mas – se nos detivermos um pouco, rapidamente perceberemos que não parte daí o odor que paira no ar. Até o começo da queda dos governos árabes, os EUA haviam semeado (e toda a mídia capitalista internacional amplificou) que, depois da “Queda do Muro”, a única ditadura que sobrara no Ocidente era Cuba. E de repente, “como por encanto”, descobriram quase uma dezena de déspotas nos países árabes.

Impressionante como esses dissimulados ditadores conseguiram passar despercebidos dos serviços de inteligência dos EUA e das civilizadas potências europeias. Sim, personagens sinistras, figuras realmente perigosas! A sorte da humanidade é que o princípio do direito dos povos à sua autodeterminação, conforme esteve inscrito pelo menos inicialmente na Carta da ONU, parece ter sido banido ou caído em desuso, e a Casa Branca, vigilante, tem tomado sempre as medidas necessárias à garantia da Leiademocracia em todo o mundo.

Parece-nos que, exceto a democrática Arábia Saudita, ali nada sobrava. Foram então tomadas as providências primaveris. Certamente, por mera coincidência, os tais ditadores primaverizados assentavam-se sobre milhões de barris de petróleo e/ou passagens de gasodutos e oleodutos.

Com os sucessivos acontecimentos envolvendo a Venezuela, o Paraguai, a Argentina e agora este “Change Brazil”, a esperança é que não venhamos a ter um novo Frio Inverno no Cone Sul.


Leia também:http://leonardoboff.wordpress.com/2013/06/28/o-que-querem-dizer-as-manifestacoes-nas-ruas-do-brasil/

Desmilitarização da polícia, a pauta urgente

ECOS DO PROTESTO

Por Sylvia Debossan Moretzsohn* em 27/06/2013 na edição 752 do Observatório da Imprensa

   
A truculência na repressão indiscriminada e gratuita a manifestantes que participaram de várias das passeatas nos últimos dias, desde a quinta-feira sangrenta (13/6) na Avenida Paulista, impôs a urgência de uma velha demanda: a desmilitarização das polícias e a discussão sobre o papel dessa instituição num Estado democrático.

A indignação contra a violência policial se espalhou imediatamente nas redes sociais, muitas vezes acompanhada de vídeos incontestáveis: soldados lançando bombas de gás e disparando balas de borracha contra pessoas que esperavam a abertura dos portões do metrô para voltar para casa, ou estavam em bares, ou observavam o movimento e levantavam as mãos, encurraladas pela polícia.

A avalanche de denúncias, entretanto, animou muita gente a lembrar um detalhe essencial, que teve o poder de síntese de um slogan: na favela, as balas não são de borracha. Noutras palavras: os que sentiram agora o peso das forças da ordem precisam acordar para a gravidade do que ocorre cotidianamente na periferia social.

A propósito, o site da ONG Justiça Global resume, no início do artigo em que defende a desmilitarização das polícias: “A polícia que reprime as manifestações é a mesma que executa pessoas nas favelas e periferias e a mesma que implanta nos morros as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)” (íntegra aqui).

O exemplo mais recente veio agora mesmo, na segunda-feira (24/6): no início da tarde, uma pequena manifestação de jovens na Praça das Nações, em Bonsucesso, no Rio, convocada pelo Facebook, levou a PM a mobilizar, segundo O Globo, “250 homens e até um blindado”, o famoso “caveirão”, para “garantir a segurança e coibir saques”. No início da noite, teria havido um início de arrastão e, para perseguir os bandidos, os policiais iniciaram uma “operação” nas favelas do chamado Complexo da Maré. Resultado: um morador morto, logo depois um sargento do Bope e, em seguida, a chacina. Total oficialmente reconhecido até quarta-feira (26/7): nove mortos.

A palavra de ordem pela desmilitarização da polícia ressurgiu com força depois disso: na manhã da quarta-feira, estava nos precários cartazes de papelão presos nas grades do prédio da Secretaria de Segurança, onde um grupo de moradores se reuniu para protestar. E foi incorporada pelos que se mobilizam para a passeata marcada para quinta-feira (27), no Centro do Rio.

Os métodos da polícia

Quem participou dos protestos no Rio de Janeiro pôde conhecer, se já não sabia, os métodos da repressão. No dia 17/6, incapaz de cercar e conter os que depredavam a Assembleia Legislativa, policiais começaram a prender indiscriminadamente pessoas que apenas assistiam ou documentavam o ato: a maioria jovens universitários, mas também um morador de rua. “Algumas mochilas foram retidas, mochilas que depois apareceram, na delegacia, com pedras e outras coisas que foram colocadas lá como provas”, anotou Carmen Astrid, uma das presas. Filha de exilados políticos chilenos, ela não se dizia surpresa, apenas não entendia qual era a acusação: “Me sentia no Processo de Kafka. Se um policial diz que você fez algo, é a palavra dele que vale”.

Dias depois, na entrevista coletiva de que participou, após a soltura dos jovens, o fundador da ONG Rio da Paz, cujo filho também tinha sido preso, declarou:

“Eu me senti negro, pobre, morador de favela, numa viela escura de uma comunidade pobre. Porque, ao pedir informação para o policial, era como se eu estivesse falando com um androide. Com uma estátua de mármore, com um boneco de gesso. Nenhuma explicação, nenhuma justificativa”.

Na passeata do dia 20/6, foi ainda pior: depois do início do confronto, na frente do prédio da prefeitura do Rio, grupos de vândalos saíram quebrando vidraças, postes, sinais de trânsito, destruindo ônibus, tocando fogo nas ruas. A polícia, entretanto, investiu em quem nada tinha a ver com isso. Muitos procuraram abrigo em dois prédios da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que funcionam no Centro – a Faculdade de Direito e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) – e só conseguiram sair de lá em segurança muitas horas depois, após a intervenção da OAB e do Ministério da Justiça.

Pai de uma das jovens que estava no IFCS, o professor João Batista de Abreu relatou:

“Os que embarcariam no metrô foram orientados por advogados a não saltar na estação do Largo do Machado. Do lado de fora da estação, por volta de 21h, havia um cerco de 15 policiais fardados aguardando os que desembarcavam. Ao lado deles, três homens fortes, todos com cassetetes na mão, ameaçavam espancar os que saíssem correndo, no que eles considerassem atitude suspeita. Quando interpelados por uma senhora de 65 anos, começaram a destratá-la, dizendo que ela deveria estar em casa. Havia um forte sentimento de que eles tinham recebido carta branca para agir. O comentário geral é de que esses homens, à paisana e sem identificação, teriam sido contratados pela Companhia do Metrô para agredir os estudantes. Como não pertencem aos quadros do Metrô, seria mais fácil depois escondê-los”.

Pessoas que se reuniram em bares na Lapa foram agredidas. Jovens que aguardavam a abertura dos portões do metrô foram atacados, apesar dos pedidos de paz. Mais grave: a polícia chegou a disparar balas de borracha e bombas de gás contra o Hospital Souza Aguiar, para onde iam os feridos ou aqueles que tentavam fugir do caos.

A médica Daniela Judice, que trabalha ali, comentou:

“Meu plantão acaba às 20h. Tentávamos sair quando, de repente, gritaria e fumaça entrando pelo hospital. O gás pimenta subiu pelas escadas até alcançar a pediatria, no sétimo andar. Vários funcionários passaram mal. Mães e crianças aspirando aquele horror. No SÉTIMO andar! Nos isolamos no CTI. Conseguimos sair de lá às 22h15. Passo pela Presidente Vargas, que parecia vítima de um tornado”.

(Breve observação sobre o comportamento do maior telejornal do país, que no dia seguinte conseguia a proeza de veicular um compacto com uma seleção dos “melhores momentos” dos atos de vandalismo: quatro minutos de cenas de destruição, sem narração. Apenas no sábado (22/6), o Jornal Nacional abriu espaço para as denúncias que desde o início circulavam nas redes sociais, inclusive com vários vídeos sobre o descalabro da repressão policial. Ainda assim, a apresentação cercou-se da cautela do condicional: falava nos “abusos que teriam sido cometidos por policiais militares”, apesar das evidências).

O discurso terrorista e discriminatório

Ao analisar o comportamento da polícia no tumulto em frente à Assembleia Legislativa, diante de cenas em que um policial descarrega uma metralhadora para o alto, o comentarista do RJTV Rodrigo Pimentel, ex-membro do Bope – inspirador do “capitão Nascimento”, personagem do filme Tropa de Elite –, declarou: “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano...”.

Porque, como sabemos, favela não é ambiente urbano, é território livre para a barbárie.

Para quem tem alguma memória, Pimentel repetia então o raciocínio do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, sobre uma operação policial na favela da Coreia, Zona Oeste do Rio, há alguns anos, quando traficantes que tentavam fugir foram mortos com tiros disparados de um helicóptero: “Um tiroteio na Coreia é uma coisa, em Copacabana é outra”.

O próprio Beltrame, na coletiva sobre os excessos policiais nas manifestações da semana passada, declarou, medindo as palavras: “De nada adianta demonizar a polícia. A polícia é a que o Estado brasileiro tem. Demonizar a polícia talvez seja benéfico para vândalo”.

O mesmo discurso terrorista de sempre, que silencia toda crítica, para afastar a hipótese de que essa crítica sirva ao “inimigo”. Quem não está conosco está contra nós.

A questão estrutural

Quando discursou em rede nacional na noite de sexta-feira (21/6), após os conflitos que marcaram os protestos ao longo da semana em todo o país, a presidente Dilma Rousseff fez o discurso da lei e da ordem: saudou o “vigor” das manifestações mas condenou enfaticamente os “arruaceiros”. Não deu uma palavra sobre a brutalidade policial, que foi flagrante e precisaria ser enfaticamente condenada por uma questão de princípio, embora, evidentemente, a administração das polícias seja uma tarefa para os governadores.

Esse aspecto do discurso, em particular, mereceu muitas críticas nas redes sociais, exatamente por parte daqueles que apontavam a necessidade de aproveitar a indignação da classe média para alertar sobre a violência cometida cotidianamente contra os pretos e pobres.

Porém o problema é estrutural, e uma visita a um artigo do falecido criminalista Augusto Thompson ajudaria a esclarecer. Ele mostra que os policiais são treinados para incorporar o estereótipo de criminoso, associado à pobreza e à cor da pele, e afirma que a polícia que temos é a que convém ao sistema: “Venal, submissa ao jogo das pressões, atrabiliária, preconceituosa”.

O criminalista indica ainda as armadilhas discursivas que desviam o foco da questão estrutural: bastaria apresentar a “podridão policial” como problema conjuntural, fruto de defeitos e vícios individuais, e anunciar o saneamento – ou, como popularmente se diz, a “faxina”.

“Logo o órgão começará a cumprir suas atribuições de forma limpa, justa, correta, quando, então, viveremos no melhor dos mundos. Ciclicamente promovem-se campanhas de depuração nas hostes policiais, aplicam-se mais recursos no setor, aprimoram-se equipamentos, garantindo-se que já, já, a perfeição será atingida”.

(Bem a propósito, o secretário Beltrame, diante dos “possíveis excessos” cometidos na Maré, declarou: “Essas coisas têm de ser apuradas. Temos aqui mais de 1.500 policiais expulsos. Isso não é problema e, se tiver que expulsar mais, vamos expulsar”.)

Luta de classes

Thompson aponta a manobra operada através dos meios de comunicação com o objetivo de convencer a população de que a questão relativa à distribuição de uma justiça criminal perversa decorre de mero acidente, “ou, ainda, em último caso, porque de um povo que não presta fica inviável recrutar gente de bem para integrar o corpo policial (‘cada povo tem a polícia que merece’)”.

O resultado é que as pessoas esquecem que o problema está nos próprios fundamentos do sistema, feito para funcionar exatamente assim, e gastam suas energias “em brados de revolta contra a polícia que atualmente existe”.

Diante dos acontecimentos das últimas semanas, estaríamos, talvez, em condições de levantar essas questões estruturais: porque finalmente as pessoas estão percebendo o que é esta polícia é que precisaríamos, urgentemente, protestar e exigir o fim desta polícia, ou então não estaremos vivendo no que minimamente se poderia chamar de democracia.

Porém, passada a indignação inicial, talvez tudo volte a ser como sempre. Os acontecimentos na Maré, que vararam a madrugada de segunda para terça-feira, oferecem uma boa oportunidade para saber de que lado estamos e o que queremos de fato.

Afinal, como disse um poeta da periferia paulistana durante uma das recentes manifestações em São Paulo, “esta não é uma luta qualquer; é uma luta de classes”.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/desmilitarizacao_da_policia_a_pauta_urgente

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O êxtase da conexão nas ruas



por Muniz Sodré*

Uma cena exemplar. Um conhecido repórter dispõe-se a cobrir na rua um momento do protesto quando um dos manifestantes o proíbe de trabalhar. Ante a ponderação do jornalista de que nem a ditadura o havia impedido, o outro retruca: “Eu sou o povo, sou eu quem decide sobre quem trabalha ou não”.

O episódio pode servir de paradigma para o ethos de incerteza a propósito das manifestações de rua que se espalham como rastilho de pólvora por já mais de cem cidades do país. A frase do manifestante pode ser lida tanto como uma insólita afirmação de soberania popular quanto como um exemplo da velha truculência daqueles que no passado assumiam o poder absoluto em nome do povo – algo como um pequeno Stalin redivivo.

A verdade, porém, é que ainda não há um guia para a perplexidade (ou, como disse um colunista, para “o mundo da total complexidade”) que se abateu não apenas sobre políticos e jornalistas, mas também sobre alguns acadêmicos a propósito das manifestações de rua. Quando arriscam explicações, estas oscilam entre uma difusa indignação com o estado de coisas e a atração pela pura e simples ausência de finalidade. Uma coisa é certa: a finalidade inicial, que era protestar contra o aumento da passagem de ônibus (já atendida pelas principais prefeituras) foi ultrapassada por um fenômeno ainda pouco palpável do ponto de vista público.

Convocaram-se especialistas estrangeiros em comunicação, a exemplo do sociólogo espanhol Manuel Castells, autor de alentados volumes sobre as redes, que não hesitou em eleger a internet como protagonista dos acontecimentos. De fato, um dos vários slogans (hashtags, diz-se agora) brandidos por manifestantes dizia: “Saímos do Facebook”.Algo assim como aquela conhecida cena de A Rosa Púrpura do Cairo,em que Woody Allen faz o personagem sair da tela e entrar na vida real. A tela é agora a rede social, seus personagens teriam ganhado a rua.

Discurso ininterrupto

Mas aí é possível levantar alguma dúvida. De fato, mesmo com a ressalva de que se devem pôr ao lado da internet outras motivações sociais, permanece a impressão de que, na opinião absoluta dos especialistas, a internet é “a condição necessária para os movimentos sociais nos dias de hoje”. Não seria esta uma necessidade tíbia, mero “castelo” no ar dos argumentos? Suponhamos que, numa pequena cidade, se convocassem as pessoas por megafone a uma manifestação. Seria “megafônica” a essência desse movimento?

Só para variar um pouco o ramerrão argumentativo, pensemos na hipótese, mesmo provisória, de que o sucesso fabuloso da tecnologia eletrônica possa estar toldando a plena percepção dos fenômenos sociais. Isto não é novo na história ocidental. O velho e atualíssimo Karl Marx já havia observado que “as revoluções burguesas, como as do século 18, precipitam-se rapidamente de sucesso em sucesso, seus efeitos dramáticos ultrapassam um ao outro, homens e coisas parecem envoltos em resplendores de diamante, o entusiasmo que chega ao êxtase é o estado permanente da sociedade – mas são de breve duração” (18 de Brumário de Luis Napoleão).

É de extraordinária pertinência esse “homens e coisas envoltos em resplendores de diamante”, esse “entusiasmo que chega ao êxtase”, pois a tecnologia eletrônica – produto notável da consciência hegemônica – propicia a todos, a todos nós, um entusiasmo extático. Não se trata de nenhuma grande mensagem transmitida, nenhuma revelação partilhada, pois toda essa história de conteúdo na mídia se resume na popularíssima expressão americana bullshit. Trata-se mesmo do êxtase da conexão.E dificilmente se entra em êxtase de olhos abertos. Não à toa, um dos cartazes da manifestação de rua pedia à polícia: “Não atirem nos meus sonhos!”

Não há dúvida, entretanto, de que a internet é um poderoso recurso de mobilização de jovens e adultos, principalmente jovens de classe média. Em outras palavras, é um extraordinário “megafone”. Têm razão aqueles que disseram ter saído do Facebook.Politicamente, a rede tem seus problemas, pois agora se sabe que informa sobre seus peões aos serviços americanos de espionagem. Comercialmente, nunca foi tão bem: segundo o site Olhar Digital, a rede digital atingiu, nos últimos 28 dias, a marca de um milhão de anunciantes ativos, assim como a marca de 16 milhões de pequenas empresas que frequentam regularmente as suas páginas. Os pequenos anunciantes são fundamentais para os negócios: no ano passado, injetaram 32 bilhões de dólares nos cofres da empresa, que ainda conta com outras receitas publicitárias.

Só que a influência de uma rede social sobre o seu “público” é diferente daquela que teria a mídia jurássica, e de nada vale buscar ali explicações para o comportamento coletivo nas ruas por parte de seus membros ativos. Talvez, porém, uma frase em outro cartaz forneça alguma pista: “País mudo é um país que não muda”. O que dizer então do discurso ininterrupto da televisão, do rádio, da enxurrada de revistas e das próprias redes sociais? A se levar a sério o cartaz, tudo isso não diz nada. É o “falatório” temido por filósofos.

Arrogância visível

O cartaz proclama um desejo de mudança. Mas mudar por que, é o que perguntava semana passada o El País:

“O Brasil está pior do que há dez anos? Não, está melhor. Pelo menos, é mais rico, tem menos pobres, e aumentam os milionários. É mais democrático e menos desigual. Como se explica então que a presidenta Dilma Rousseff com um consenso popular de 75% – um recorde que chegou a superar o do popular Lula da Silva – possa ter sido vaiada repetidamente na estreia da Copa das Confederações em Brasília por quase 80.000 torcedores de classe média que puderam dar-se ao luxo de pagar até 400 dólares por um ingresso?”

Para o prestigiado jornal espanhol, os protestos contra o aumento dos preços de ônibus por jovens que em sua maioria têm carros, os aplausos aos manifestantes por parte da classe média “C” que está ascendendo economicamente, os aparentes protestos contra a Copa por parte de gente que sempre se orgulhou de seu futebol e assim por diante – tudo isso seria estranho num país invejado até pela Europa e pelos Estados Unidos por seu desemprego quase nulo.

O próprio jornal, entretanto, arrisca uma resposta. Chegados à nova classe média, os pobres teriam tomado consciência de ter dado um salto qualitativo na esfera do consumo e agora querem mais. Mais o quê?

“Serviços públicos de primeiro mundo, ensino de qualidade, hospitais dignos sem filas desumanas, políticos menos corruptos, partidos que não sejam meros negócios privados, uma polícia que não atue como na ditadura e uma sociedade menos excludente. Definitivamente, querem “aquilo que aprenderam a desejar para ser mais felizes ou menos infelizes do que foram no passado”.

Isso é, evidentemente, pura especulação. Dizeres de cartazes podem ser sintomáticos, mas não realmente explicativos, pois é bastante provável que componham apenas um cenário estético para as incursões. Na realidade, ainda é muito cedo para se ter alguma clareza sobre o que realmente move os manifestantes. Nesse meio tempo, fazem-se apostas teóricas no advento de uma nova era, em que não é mais o futuro (portanto, nada de projetos políticos) e sim o presente que importa. E para compreendê-lo, diz-se, seriam necessárias novas ferramentas e narrativas.

Para a turma da euforia tecnológica, as ferramentas estariam nos posts dos sites.Exemplo de narrativa nova é a do sociólogo Michel Maffesoli, um apaixonado pelo Brasil e bastante conhecido nos círculos acadêmicos, para quem os jovens manifestantes são aquilo que ele chama de “a sociedade oficiosa”, ou seja…

“…a sociedade au noir, na sombra, escondida, que não se sente mais representada. Mas que não vai afrontar a sociedade oficial. E vai criar os seus próprios espaços, as suas utopias intersticiais: um lugar para se encontrar, cantar, eventualmente protestar, tirar proveito das reuniões para estar junto. O tripé dos valores modernos da sociedade oficial é: razão, trabalho e progresso. A nova geração acentua não o trabalho, mas a criação. Não o progresso, mas o presente. Não a razão, mas a imaginação”.

Bem, aqui no Brasil, o oficioso está decididamente afrontando o oficial. No fosso entre o oficial e o oficioso, cava-se o espaço para uma indignação que pode ser pacífica ou violenta. A pacífica foi anunciada anos atrás pelo francês Stéphane Hessel (1917-2013), num livrinho consumido por centenas de milhares de pessoas. Chamava-se Indignem-se!, publicado na coleção “Os que andam contra o vento”. Indignar-se contra o quê? Para ele, contra o poder do dinheiro, “que nunca foi tão grande, insolente e egoísta”.

Aqui, apenas a violência parece dar a medida real do grau de indignação nas manifestações brasileiras. Há algumas pistas, mas não palavras fortes. Também não há lideranças, mas “referências”, conforme a definição de suas “não-lideranças”. Realmente, não se sabe quem comanda, mas isso não deve ser recebido como algo tão estranho assim, já que também não se sabe muito bem quem é o verdadeiro poder no Brasil. A presidente manda em seus ministros, que não parecem mandar em nada, ao mesmo tempo em que é evidente não estarem as fontes do poder presidencial na figura da presidente, e onde estão ninguém sabe bem ao certo. Visível mesmo é arrogância dos executivos secundada pela surdez da classe política. Aliás, antiga surdez e nova mudez, porque ninguém tem visto político falando muito nestes dias. Onde se esconderiam os falastrões de sempre?

Espetáculo da violência

Quanto aos manifestantes nas ruas, não são todos exatamente os “jovens” de que fala o sociólogo, e sim um amálgama indefinido de gente saída da “Matrix” (a internet, as redes sociais), membros de pequenos partidos sem votos (mas beneficiários do Fundo Partidário), vândalos, bandidos mascarados que depredam e saqueiam, enfim o chienlit de que falou De Gaulle em maio de 1968. Talvez a violência seja uma resposta à costumeira ação policial, mas é também parte do espetáculo da revolta: na tevê e nas redes sociais, gera imagens que repercutem. Vale lembrar Rivarol, cronista da Revolução Francesa, para quem a revolução terminou quando chegou ao fim o espetáculo das execuções pela guilhotina. Mas também vale lembrar que a violência serve à velha direita golpista.

Nada disso invalida, porém, a potência da experiência que tomou de assalto as ruas – a experiência da revolta. Re-volta, ao pé do étimo, significa o retorno a um sentido que se perdeu, daí a sua possibilidade de mover-se por um ideal ético no rumo de uma renovação política. As massas revoltam-se para obter alguma coisa. Mas não está claro o que pretende obter a revolta de agora ­­­– nem sequer se pretende mesmo alguma coisa. Não há reivindicações; as demandas, se há, são fragmentárias.

O certo mesmo é que algo transbordou, o “saco” coletivo encheu diante da arrogância do poder, da impunidade dos puníveis, da indiferença das classes dirigentes ao desmantelamento da vida nas cidades (imobilidade urbana, criminalidade epidêmica, exorbitância dos impostos, preços atuais enlouquecidos por causa da futura festa olímpica) e também do falatório vazio da mídia (carros de tevê e jornalistas foram apupados). Indignado, o “espírito comum” virou Poltergeist, essa entidade mítica que às vezes perturba a tranquilidade das casas e, agora, das ruas.

Ora, essa metamorfose, a despeito daqueles que só enxergam a sua superfície eletrônica, também parece-nos justamente o contrário da catatonia verborrágica das redes sociais, onde o sujeito apõe a sua assinatura digital num manifesto qualquer e, de consciência limpa, agenda a balada. Manifestação é coisa anticatatônica, porque se faz com mãos e pés, com o confronto dos corpos num território concreto, sob a forma de um “nós” inquietante, monstruoso, chamado multidão. Esta última é uma besta que dorme e, uma vez acordada, pode dar medo.

Por isso, há algum alento humano na redescoberta do poder das ruas, ainda que tudo isso possa ser efêmero. A revolta de maio de 1968 na França começou a acabar quando a ela se juntaram organizações políticas e quando as ações de rua passaram a visar mais a sua reprodução midiática do que a real contestação do poder. Ou seja, quando se converteram no espetáculo da violência.

Por enquanto, como ninguém parece saber muito bem o que acontece, também não sei por que me vem à cabeça o poema “Gaúcho” do tão esquecido Ascenso Ferreira: “Riscando os cavalos!/ Tinindo as esporas!/ Través das coxilhas!/ Saí de meus pagos em louca arrancada!/ – Para quê?/ – Para nada!”

* Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

** Publicado originalmente no site Observatório da Imprensa.

Fonte:Site Envolverde

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Mídia e crise de representação, tudo a ver



Não é a primeira vez em nossa história política recente que a grande (velha) mídia se autoatribui o papel de formadora e de expressão da vontade das ruas – vale dizer, da “opinião pública”. Embora consiga disfarçar com competência suas intenções, tudo indica que, ao proceder assim, a velha mídia na verdade agrava – e não atenua – a crise de representação política.

Por Venício Lima
 
(*) Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

Muito se tem escrito sobre a importância das novas TICs (tecnologias de informação e comunicação) para as manifestações de junho, ao mesmo tempo aparentemente anárquicas e organizadas. Procuro, ao contrário, identificar questões específicas relativas ao papel da grande (velha) mídia em todo esse complexo processo.

Redes sociais vs. grande (velha) mídia
Em texto anterior (ver “As manifestações de junho e a mídia”) chamei atenção para um paradoxo que se observa nas manifestações que pipocam por todo o país.

Apesar de “conectados” pelas redes sociais na internet e, portanto, de não se informarem, não se divertirem e não se expressarem (prioritariamente) através da grande (velha) mídia, os milhares de jovens que detonaram os protestos dela dependem para alcançar a visibilidade pública, isto é, para serem incluídos no espaço formador da opinião pública.

É a grande (velha) mídia, sobretudo a televisão, que (ainda) controla e detém o monopólio de “tornar as coisas púbicas” – e assim, além de dar visibilidade, ela é indispensável para “realimentar” o processo e permitir a continuidade das manifestações.

Vale dizer, as TICs (sobretudo as redes sociais virtuais acessadas via telefonia móvel) não garantem a inclusão dos jovens – e de vários outros segmentos da população brasileira – no debate público cujo monopólio é exercido pela grande (velha mídia). A voz deles não é ouvida publicamente.

Crise de representação
Emerge, então, um indicador novo da crise de representação política que, como se sabe, não é exclusiva da democracia brasileira, mas um sinal de esgotamento de instituições tradicionais das democracias representativas no mundo contemporâneo.

A ausência de sintonia crescente ou o descolamento da grande (velha) mídia da imensa maioria da população brasileira vem sendo diagnosticada faz tempo. Além disso – ao contrário do que ocorre em outras democracias –, no Brasil a grande (velha) mídia praticamente não oferece espaço para o debate de questões de interesse público. Aliás, salvo raríssimas exceções na mídia impressa, não oferece nem mesmo um serviço de ouvidoria (ombudsman) que acolha a voz daqueles que se considerem não representados.

Dessa forma, a ampla diversidade de opiniões existente na sociedade não encontra canais de expressão pública e não tem como se fazer representar no debate público formador da opinião pública.

Não estariam criadas condições para alimentar a violenta hostilidade revelada nas manifestações contra jornalistas, equipes de reportagem e veículos identificados com emissoras de TV da grande (velha) mídia?

Peculiaridades brasileiras
Em entrevista recente, o professor Wanderley Guilherme dos Santos chamava atenção para o fato de que “as classes C e D têm uma representação majoritária na sociedade em diversos sindicatos, entidades etc., mas são minoritárias na representação parlamentar de seus interesses. Ou seja, (...) elas tem menos capacidade de articulação no âmbito das instituições [políticas] do que as classes A e B” (cf. Insight Inteligência, fev-mar 2013).

Esse déficit na representação política do Parlamento, acrescido da exclusão histórica de vozes no debate público e a consequente corrupção da opinião pública talvez nos ajude a compreender, pelo menos em parte, a explosão das ruas nas últimas semanas.

Mudança radical
O que se observa, no entanto, na cobertura que a grande (velha) mídia tem oferecido das manifestações é uma mudança radical. O que começou com veemente condenação se transformou, da noite para o dia, não só em tentativa de cooptação, mas de instigar e pautar as manifestações, introduzindo bandeiras aparentemente alheias à motivação original dos manifestantes.

Aparentemente a grande (velha) mídia identificou nas manifestações – iniciadas com um objetivo específico, a redução das tarifas de ônibus na cidade de São Paulo – a oportunidade de disfarçar o seu papel histórico de bloqueadora do acesso público às vozes – não só de jovens, mas da imensa maioria da população brasileira. Mais do que isso, identificou também uma oportunidade de “descontruir” as inegáveis conquistas sociais dos últimos dez anos em relação ao combate à desigualdade, à miséria e à pobreza.

Não é a primeira vez em nossa história política recente que a grande (velha) mídia se autoatribui o papel de formadora e, simultaneamente, de expressão da vontade das ruas – vale dizer, da “opinião pública”.

Embora consiga disfarçar com competência suas intenções, tudo indica que, ao proceder assim, a grande (velha) mídia na verdade agrava – e não atenua – a crise de representação política.

Se não existem as condições para a formação de uma opinião pública democrática – de vez que a maioria da população permanece excluída e não representada no debate publico – não pode haver legitimidade nos canais institucionalizados (partidos políticos) através dos quais se escolhe os representantes da população.

Ademais, tudo isso ocorre no contexto histórico de uma cobertura política sistematicamente adversa que tem, ao longo dos anos, ajudado a construir uma cultura política que desqualifica tanto a política como os políticos (ver “As manifestações de junho e a mídia”).

O que fazer?
Na semana em que o ministro das Comunicações do governo Dilma Rousseff concede duvidosa entrevista e é celebrado pela revista Veja, símbolo de resistência a qualquer inciativa de regulamentação das comunicações no país, talvez uma das consequências da atual crise seja a adesão dos manifestantes à coleta de assinaturas para “uma lei para expressar a liberdade” promovida pelo FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (ver aqui).

É inadiável que uma reforma política inclua a regulação das comunicações e exista condições para formação de uma opinião pública onde mais vozes sejam ouvidas e participem do debate público – vale dizer, para que mais brasileiros sejam democraticamente representados.

A ver.

Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros.

Fonte: Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6166