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sábado, 9 de novembro de 2013

A vitória do Bolsa Família

02/07/2012 - Atualizado em 03/08/2012
- Luis Nassif on line
Coluna Econômica - GGN


Ao completar 10 anos recentemente o Programa Bolsa Família apresenta-se como a mais bem sucedida das iniciativas sociais do governo Lula, não importa o que digam adversários e porta-vozes abrigados na mídia empresarial conservadora.

Essa é a razão que nos leva a publicar o texto abaixo - de um ano e pouco atrás -, cujas linhas revelam-se ainda atuais e cada vez mais merecedoras de conhecimento e reflexão. (Blog Educom)
    

Se houve um vitorioso na Conferência Rio+20 foram as políticas de transferência de rendas do país e, entre elas, especificamente o Bolsa Família.

A agenda da pobreza acabou indo para o centro do documento final da conferência.

E em todo lugar em que se discutia o tema, a experiência brasileira era apontada como a mais bem sucedida, em vários aspectos: efetividade (não gera dependência), os beneficiários trabalham, há o emponderamento das mulheres, melhor frequência escolar e desempenho das crianças.

Hoje em dia, há pelos menos duas delegações internacionais por semana visitando o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), segundo informa a Ministra Tereza Campello, para saber mais detalhes da experiência.

Com 9 anos de vida e 13,5 milhões de famílias atendidas, com riqueza de séries históricas, estatísticas e avaliações, o BF conseguiu desmentir várias lendas urbanas:

Lenda 1 – o BF criará preguiçosos acomodados.
Os levantamentos comprovam que maioria absoluta dos adultos beneficiados trabalha na formalidade e na informalidade.

Lenda 2 – as beneficiárias tratarão de ter mais filhos para receber mais auxílio.
O último censo comprovou redução geral da natalidade no país, mais ainda no nordeste, mais ainda entre os beneficiários do BF.

Lenda 3 – um mero assistencialismo sem desdobramentos.
Nos estudos com gestantes, as que recebem BF frequentam em 50% a mais o pré-natal; as crianças nascem com mais peso e altura; houve redução da mortalidade materna e infantil. Há maior frequência das crianças às escolas.

Agora, através do Programa Brasil Carinhoso, se entra no foco do foco, as famílias mais miseráveis com crianças de 0 a 6 anos. No total, 2,7 milhões de crianças.

Em 9 anos, atendendo 13,5 milhões de família, o BF consegue uma avaliação refinada e de segurança para todos os parceiros.

Com Brasil Carinhoso pretende-se chegar a 2,7 milhões de crianças, em famílias pobres com filhos entre 0 e 6 anos de idade.

A grande preocupação da presidente, explica Tereza Campello [foto], é que essas crianças não podem esperar: qualquer impacto da pobreza sobre sua formação, qualquer problema nutricional as afetará por toda a vida

Essas famílias representam 40% dos extremamente pobres do país. Primeiro, se levantará sua renda atual. O Brasil Carinhoso complementará até atingir R$ 70,00 per capita por mês.

Hoje em dia, não há um técnico de renome que tenha ressalvas maiores ao Bolsa Família. As críticas estão concentradas em colunistas sem conhecimento maior de metodologia de políticas sociais, de estatísticas.

No início do governo Lula, havia duas vertentes de discussão sobre políticas sociais.

Uma, a do universalismo inconsequente, a do distributivismo sem metodologia – cujo representante maior era Frei Betto e seu Fome Zero.

A outra, um modelo metodologicamente sofisticado, tem como figura central (na parte de focalização) o economista Ricardo Paes de Barros [foto].

Prevaleceu um misto do modelo, com as estatísticas sendo utilizadas para focalizar melhor os benefícios. Foi esse modelo que acabou consagrando universalmente o BF.

As críticas desinformadas - 1
Conhecido por sua militância conservadora, o colunista Merval Pereira [foto] (o Globo e CBN) apresentou como contraponto ao Bolsa Familia o que ele considerou uma proposta alternativa de esquerda.

“O Fome Zero/Bolsa-Família, do jeito que estava montado pela turma do Frei Betto, era um projeto de reforma estrutural, da estrutura do Estado. Frei Betto queria fazer comissões regionais sem políticos, para distribuição do Bolsa-Família, e a partir daí fazer educação popular”.

As críticas desinformadas - 2
Continua o revolucionário Merval:
“ Era um projeto muito mais de esquerda, muito mais voltado para mudanças estruturais da sociedade. O Bolsa-Família hoje é um programa para manter a dominação do governo sobre esse povo necessitado. Patrus transformou-o num instrumento político espetacular, que foi o começo da força do lulismo”.

O conceito de educação popular significa fora da rede oficial, levando mensagens populares aos alunos.

As críticas desinformadas – 3
O que Merval descreve, em seu discurso, é modelo similar ao do MST e sua universidade popular. 

A troco de quê um comentarista claramente conservador de repente se põe a defender modelos revolucionários que levem a “mudanças estruturais na sociedade”?

Primeiro, a necessidade de ser negativo em relação a tudo. Segundo, o despreparo para tratar com temas técnicos. 

Empunha o primeiro argumento que lhe vem à mão, mesmo sendo contra tudo o que defende.

As críticas desinformadas – 4
Quando foi lançado, o Fome Zero nem podia ser tratado como programa. Era um amontoado de iniciativas caóticas cerca de slogans vazios.

O objetivo seria mobilizar a sociedade para receber ajuda, sem nenhuma preocupação com logística de distribuição, com levantamentos estatísticos. Não havia a preocupação mínima de integrar o auxílio com educação, meio social. 

Não gerou sequer um documento expondo qualquer filosofia.

As críticas desinformadas – 5
Todo defeito que Merval vê na BF era constitutivo do tal Fome Zero.


E as principais críticas ao Fome Zero vinham justamente dos economistas “focalistas”, aqueles que em geral são mais acatados nos círculos políticos que Merval frequenta.

Na época, defendia-se a focalização como maneira de focar os gastos nos mais necessitados, evitando desperdícios. A crítica contrária era a dos universalistas – que queriam políticas sociais para todos.

As críticas desinformadas – 6
O que o BF fez foi incorporar toda a ciência dos indicadores dos focalistas, montar sistemas exemplares de acompanhamento e avaliação, e universalizar o atendimento a todos os miseráveis. 

É essa visão, amarrada a metodologias de primeiro nível, que a transformou em modelo universal de políticas sociais, perseguido por países africanos, asiáticos, por ONGs europeias e norte-americanas.

Para consultas veja também:
- Fecundidade por Grandes Regiões e Faixas de Renda Domiciliar nos Censos Demográficos 2000 e 2010
- Considerações sobre possíveis impactos das ações do Brasil Carinhoso sobre a fecundidade
- Taxas de mortalidade infantil por região e faixa de renda domiciliar per capita entre os censos de 2000 e 2010

Fonte:
http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-vitoria-do-bolsa-familia


Especial sobre o Programa Brasil Carinhoso
Benefício reduz em 62% a extrema pobreza na primeira infância

Pagamento do Brasil Carinhoso começou em junho [2012], chegando a 1,97 milhão de famílias

O dia 18 de junho representa um marco na luta contra a pobreza no Brasil. A partir desse dia, 1,97 milhão de famílias começaram a receber o novo benefício do programa Bolsa Família, concebido para acabar com a extrema pobreza na primeira infância.

O novo benefício é calculado de modo a garantir renda mensal per capita (computados os recursos próprios e os benefícios) acima da linha de extrema pobreza de R$ 70 para todas as famílias do programa, com filhos de 0 a 6 anos, que permaneciam na extrema pobreza mesmo depois de receber as transferências tradicionais do Bolsa Família.

Estimativas feitas a partir do Censo 2010 indicam que, com o novo benefício, a extrema pobreza das crianças de 0 a 6 anos deve cair 62%. A extrema pobreza em todas as faixas etárias deve cair quase 40%, já que o benefício alcança não apenas as crianças, mas todas as pessoas de suas famílias.

Essa novidade faz parte da Ação Brasil Carinhoso (ABC), lançada em maio pela presidenta Dilma Rousseff, no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria (BSM). O diagnóstico que embasou o BSM mostra que crianças e adolescentes de até 15 anos representam 40% da população que vive na extrema pobreza.

“Nesse universo (0 a 15 anos), o foco na primeira infância era necessário e urgente porque essa é a fase mais decisiva para o crescimento e desenvolvimento do ser humano, e passa muito rápido, mas suas marcas permanecem ao longo da vida”, ressalta o secretário nacional de Renda de Cidadania, Luís Henrique Paiva.

Valores e famílias beneficiadas – O novo benefício não possui valor máximo. Seu objetivo é fazer com que todas as famílias beneficiárias com integrantes na primeira infância superem a extrema pobreza, mesmo as mais numerosas – que estão se tornando cada vez menos comuns. A taxa média de fecundidade no Brasil está abaixo da necessária para a reposição da população. Entre as famílias do programa, a média de filhos equivale à taxa de reposição, e não há qualquer indício de reversão dessa tendência.

Para 1,97 milhão de famílias que começam a receber o novo benefício, o valor médio do Bolsa Família passará de R$ 153 para R$ 237. Cerca de 90% dessas famílias receberão até R$ 352 e 99% receberão até R$ 532. Apenas 16 mil famílias receberão valor maior que esse, o que representa 0,1% dos 13,5 milhões de famílias do programa. São justamente as famílias maiores, que mais precisam de apoio para que as crianças possam se alimentar bem, estudar e crescer saudáveis.

O benefício médio para todas as famílias do programa aumentou de R$ 120 para R$ 134.

Impactos do Bolsa Família

Estudos comparativos mostram que a focalização do Bolsa Família nos mais pobres está entre as melhores para programas internacionais do mesmo tipo. Esses estudos também apontam que a extrema pobreza seria um terço maior, não fossem as transferências do programa.


A segunda rodada de avaliação de impacto do programa Bolsa Família registrou impactos positivos na educação das crianças beneficiárias (tanto na frequência escolar quanto na própria taxa de aprovação); na saúde, tanto das crianças (aumento da vacinação em dia e do aleitamento materno) quanto das gestantes (aumento do número de consultas de pré-natal); e na autonomia das mulheres (são as mães, sempre que possível, que recebem o benefício).

Tudo isso resulta de um programa com orçamento de R$ 20 bilhões em 2012, que representa menos de 0,5% do PIB, o que o coloca como solução extremamente eficiente no combate à extrema pobreza.

O programa Bolsa Família, que se tornou referência internacional no combate à pobreza, está entre os mais avaliados e auditados no governo federal. Batimentos e checagens de informações são feitos anualmente.

A lista de beneficiários é pública e está disponível em: 

Para evitar exploração indevida das informações sobre as famílias, a legislação do programa define que seus demais dados só podem ser repassados a terceiros para fins de implantação de políticas públicas ou de realização de estudos e pesquisas.

sábado, 31 de agosto de 2013

Severinas: as novas mulheres do sertão

29/08/2013 - por Eliza Capai (*), para a Agência Pública (**)
- extraído do site Envolverde

Cada um tem que saber o seu lugar: a mulher tem qualidade inferior, o homem tem qualidade superior.”

É bem assim que fala, sem rodeios, um dos homens mais respeitados do município de Guaribas, no sertão do Piauí, pai de sete filhos (seis mulheres e um homem). “O homem é o gigante da mulher”, completa “Chefe”, como é conhecido Horacio Alves da Rocha na comunidade.

Para chegar a Guaribas são dez horas desde a capital, Teresina, até a cidadezinha de Caracol. Dali, 40 minutos de estrada de terra cercada de 
caatinga até o jovem município, fundado em 1997.

Titulares do Bolsa Família, as sertanejas estão começando a transformar seus papéis na família e na sociedade do interior do Piauí e se libertando da servidão ao homem, milenar como a miséria.

Em 2003, Guaribas foi escolhida como piloto do programa Fome Zero. Tinha então o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, 0,214 – para efeito de comparação, o país com pior IDH do mundo é Burundi, na África com índice 0,355.

Hoje, Guaribas tem 4.401 habitantes, 87% deles recebendo o Bolsa Família. São 933 famílias beneficiadas, com renda média mensal de R$ 182. 

O IDH saltou para 0,508.
Em todo o Brasil, o Bolsa Família atende a 13,7 milhões de famílias – sendo que 93,2% dos cartões estão em nome de mulheres. São elas que recebem 
e distribuem a renda familiar.

Eu vivi a escravidão”, diz Luzia Alves Rocha, 31 anos, uma das seis filhas de Chefe. Aos três meses, muito doente, ela foi dada pelo pai para os avós criarem. Quando eles morreram, uma tia assumiu a menina. “Achei que ela não ia aguentar aquela vida de roça: era vida aquilo?”, pergunta a tia Delci.

Luzia trabalhou na roça, passou fome, perdeu madrugadas subindo a serra para talvez voltar com água na cabaça. “Quando tinha comida a gente comia, se não, dormia igual passarinho”, diz. Trabalhava sem salário, sem nenhum direito trabalhista, sem saber como seria a vida se a seca não passasse e a chuva não regasse o feijão e a mandioca. Era “a escravidão”.

Luzia Alves Rocha, 31 anos, fez laqueadura depois do segundo filho: “Se não a vida ia ser mais pior”, explica. Num outro momento, ela comemora: “Minha filha hoje já alcançou coisas que eu não alcancei.

Quando a seca piorou, Luzia pensou em migrar para São Paulo. Foi então que chegou o programa social do governo: “Com esta ajudinha já consigo levar”, diz. Luzia decidiu ficar em Guaribas. Os filhos estudam. O marido e ela cuidam da roça.

A libertação da ‘ditadura da miséria’ e do controle masculino familiar amplo sobre seus destinos permite às mulheres um mínimo de programação da própria vida e, nesta medida, possibilita-lhes o começo da autonomização de sua vida moral. O último elemento é fundante da cidadania”, analisam os pesquisadores Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, da Universidade de Campinas e da Universidade Federal de Santa Catarina, no livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania.

Durante a pesquisa, eles ouviram beneficiários do programa observando as transformações decorrentes do Bolsa-Família – em especial na vida das mulheres. Chegaram à conclusão que a mudança é grande: “Quando você tem um patamar de igualdade mínimo, você muda a sociedade. Claro que as coisas não são automáticas. Isto não pode ser posto como salvação da nação, mas é um começo.

Luzia conseguiu realizar o sonho de diversas das mulheres ouvidas pela socióloga Walquiria Leão. Ela juntou R$ 50 e seguiu para o hospital da cidade vizinha, de São Raimundo Nonato para fazer laqueadura das trompas: “se tivesse mais filho a vida ia ser mais pior”.

Segundo Walquíria, o desejo de controlar a natalidade foi manifestado por diversas das mulheres que ela entrevistou entre 2006 e 2011 em Alagoas, Vale do Jequitinhonha, Piauí, Maranhão e Pernambuco.

Serena, uma das filhas de Luzia, tem 8 anos e está na terceira série. Ela ajuda a arrumar a casa, já sabe cozinhar, ajuda na roça. Mas não perde suas aulas. Logo depois de cantar o alfabeto e os números, diz que quer ser “advogada e médica”. Quando perguntada sobre casamento, a pequena afirma, com a mão na cintura: “eu não vou casar, vou ser sol-tei-ra…”, diz, demorando nas sílabas.

Em maio o valor do Bolsa Família de Luzia saltou de R$ 70 reais para R$ 212. A mãe comemora: “Agora já posso comprar as coisas para minha filha: a sandália dela arrebentou e pude comprar outra”. No pé da menima, o calçado que custou R$ 7,50. “Primeiro comprei para a menina, num outro mês compro pra mim”, explica Luzia, com os pés descalços.

“Minha sina”
Do outro lado do vale que liga o centro de Guaribas ao bairro Fazenda, Norma Alves Duarte, 44 anos, vive numa casa de dois quartos. Na sala, paredes mal rebocadas mostram as marcas da massa corrida. No canto, um pequeno móvel com uma TV.

A vida toda ela ajudou a mãe doente, quase não estudou – cursou até a segunda série. Como todas as mulheres dali, as atividades de criança incluíam colher feijão, pegar lenha e buscar água no olho d’água, que fica a dois quilômetros.

Norma Alves Duarte, 44 anos, depois de falar que é casada com homem vaidoso e bebedor, emenda: “Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.

Norma tem 12 irmãos, 2 filhos e vive com o segundo marido – o primeiro a abandonou depois de 20 dias. “Era pau e cachaça. Aí depois arrumei o pai 
destes meninos. É bom mas é doido, vaidoso o velho, bebedor… Ele é bruto demais, ignorante que só. Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.”

“Esta palavra, sina, faz parte do que nós chamamos de cultura da resignação e acho que ela foi de fato rompida com o Bolsa Família”, diz a socióloga Walquiria Leão.

No início do programa, Norma ganhava R$ 42 com seu cartão. Agora “tira” R$ 200. “Mudou, porque eu pego meu dinheirinho, compro minhas coisas, assim mesmo ele (o marido) xingando. Eu não dou ele, ele tem o dele. Ele não me dá nenhum real, bota para comer dentro de casa mas não me dá nem um real, nem dez centavos.”

Para Walquíria Leão, “a renda liberta a pessoa de relações privadas opressoras e de controles pessoais sobre sua intimidade, pois a conforma em uma função social determinada, permitindo-lhe mais movimentação e, portanto, novas experiências”.

Mais divórcios
Ao saírem da miséria, “da espera resignada pela morte por fome e doenças ligadas à pobreza”, nas palavras de Walquiria, estas mulheres começam a 
protagonizar suas vidas.

Elenilde Ribeiro, 39 anos, vive em Cajueiro, bairro de Guaribas onde a água ainda não chegou mas o Bolsa Família já: “Tiro R$ 134 no meu cartão mas para mim está sendo mil.”

No vilarejo de Cajueiro, a uma hora do centro de Guaribas por uma estrada de terra esburacada, a água ainda não chegou às casas. Elenilde Ribeiro, 39 anos, caminha com a sobrinha por um areial com a lata na cabeça, outra na mão. É ela quem cria a menina. “Não quero que ela sofra como eu sofri”, diz.

Chegando na casa, o capricho se mostra nos paninhos embaixo de copos metálicos, na estante com fotos de família, o brasão do Palmeiras, e um gato de louça ao lado da imagem de Jesus. Do lado de fora, o banheiro – onde se usa caneca e penico –, um pátio bem varrido, uma horta suspensa, e uma pilha de lenha que Elenilde mesma coleta e quebra, apontando: “está aqui meu botijão de gás”.

Os olhos de Elenilde marejam quando conta ter sido abandonada pelo marido há treze anos, mas seu tom de voz muda ao falar do papel da renda em sua vida. “Tiro R$ 134 no meu cartão Bolsa Família mas para mim está sendo mil. Porque com este dinheirinho eu tenho o dinheiro certo para comprar (na venda) e o dono me confia. E eu sei que com isso, com ele me confiar, eu já estou comendo a mais”, explica.

Elenilde também se livrou de trabalhar na roça dos outros em troca de uma diária de R$ 5. “Eu quando pego o meu dinheiro (do cartão) vou na venda, pago a conta mais velha e espero pela vontade do vindião, aí ele vai e me franqueia… E eu vou e compro de novo”.

Segundo Walquíria Leão, isso tem ajudado a mulher a conquistar um novo papel na comunidade. “A experiência anterior de vida era sempre de ser desrespeitada, desconsiderada porque ela não tinha dinheiro”.

No final da mesma rua, Domingas Pereira da Lima, 28 anos, não se arrepende de ter abandonado o marido. “Ele ficava namorando com uma e com outra e eu num resisti, vim embora”.

Prendendo o choro, ela continua: “Deixava eu com as crianças e se tacava no meio do mundo. A vida não é fácil mas vou levando a vida devagarzinho aqui.” Desde então, Domingas cuida dos quatro filhos com o apoio das irmãs e da mãe.

Em 2003, quando chegou o Fome Zero, foram solicitados 993 divórcios no Piauí. Em 2011 o número saltou para 1.689 casos. Dos casos não consensuais, 134 foram requeridos por mulheres em 2003; em 2011 esse número saltou para 413 – um aumento de 308%.

Ainda assim, na pequena Guaribas, a mulher ficar presa em casa em dias de festa, o alcoolismo e a infidelidade masculina são histórias contadas com naturalidade. “Vixi, aqui se conta nos dedos as mulheres que não apanham do marido”, é comum as mulheres dizerem.

Na delegacia da cidadezinha, o delegado explica que por ali o clima é sempre “muito tranquilo, sem nenhuma ocorrência. Só umas brigas de casal, coisa que a gente aconselha e eles voltam” diz.

Mirele Aline Alves da Rocha é uma das que se conta nos dedos. Aos 18 anos, a bonita jovem explica: “Apesar da minha idade já ser avançada para os daqui, eu não estou nem aí para o que eles falam. Eu quero é estudar”.

A maioria das amigas se casaram aos 13 anos. Já Mirele, solteira, cursa o 
terceiro ano do Ensino Médio na escola estadual de Guaribas, onde vive com a tia – os pais moram no município de Cajueiro.

O cartão do Bolsa Família está no nome da mãe, que recebe R$ 102 por Mirele e pelo caçula de nove anos. Ambos estudam. “Eu vejo a realidade da minha mãe e não quero seguir pelo mesmo caminho. Eu quero estudar para ter um futuro, para ser independente, para não ficar dependendo de um homem”, decreta a jovem.

No primeiro bimestre de 2013, em Guaribas, a frequência escolar atingiu o percentual de 96,23%, para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos –
o equivalente a 869 alunos – e 82,29% para os jovens entre 16 e 17 anos, de um total de 175.

Mirele vai fazer o Enem e “ver o que dá”. Para cursar faculdade ela terá que sair de Guaribas mas planeja se graduar e voltar: “Gosto mesmo é daqui”.

Nunca é demais lembrar que nossa pobreza não é um fato contingente, mas deita raízes profundas na nossa história e na forma de conduzir politicamente as decisões estatais”, avalia Walquiria.

O Bolsa Família deveria se transformar em política publica, não mais política de um governo”.

É um processo, um avanço que mal começou. E ainda é muito insuficiente. Mas quem narra uma história tem que ser capaz de narrar todos os passos desta história”, finaliza.

(*) Eliza Capai é documentarista independente, autora do filme Tão Longe é Aqui. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.

(**) Publicado originalmente no site Agência Pública.

Fonte:
http://envolverde.com.br/sociedade/severinas-as-novas-mulheres-do-sertao/

sábado, 25 de maio de 2013

Cobertura rala, redações alienadas



Por Luciano Martins Costa em 24/05/2013 na edição 747

Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 24/5/2013

   
O Globo reproduz, na edição de sexta-feira (24/5), resumo de artigo publicado no dia 15/5 na versão digital da revista britânica The Lancet, que os clichês da imprensa chamam de "a Bíblia da medicina". O texto informa que o programa Bolsa Família reduziu a mortalidade de crianças de zero a cinco anos de idade no Brasil, no período de 2004 a 2009.

O artigo, assinado pelos pesquisadores Davide Rasella, Rosana Aquino, Carlos Santos, Rômulo Paes-Souza e Maurício Barreto, está disponível em inglês, gratuitamente, no no site da publicação da publicação, para leitores registrados. Segundo o estudo, o programa social de transferência condicional de renda contribuiu com 17% na redução da mortalidade infantil em todo o Brasil.

Nos 2.800 municípios com maior número de beneficiários, os pesquisadores constataram que houve uma queda de 19,4% no número de óbitos, e uma das conclusões é de que a transferência de renda para a população miserável tem contribuição decisiva para melhorar a expectativa de vida da população em geral, particularmente por diminuir o total de mortes relacionadas à pobreza, como desnutrição e diarreia, além dos casos de problemas respiratórios.

Os pesquisadores consideram que o efeito positivo foi mais forte porque o governo não apenas manteve o programa como aumentou a área de cobertura no período estudado. Com maior visibilidade, as condições de vida da população mais pobre puderam ser melhoradas com outras iniciativas, como a inserção das famílias em programas oficiais de vacinação, acompanhamento pré-natal e outras medidas preventivas.

O artigo também observa que, mesmo um subsídio de baixo valor, como é o caso do Bolsa Família, produz efeitos significativos porque representa um reforço substancial, proporcionalmente à renda das famílias mais vulneráveis. Por outro lado, os pesquisadores consideram que foi possível produzir um estudo consistente pela grande disponibilidade de informações de qualidade adequada em muitos municípios atendidos pelo Bolsa Família. Além disso, concluem que a exigência de que os beneficiários do programa levem as crianças regularmente aos postos de saúde e as gestantes façam o acompanhamento pré-natal, como condições para receber a ajuda financeira, teve um efeito educativo de largo espectro sobre as famílias mais pobres.

De olhos vendados

O artigo foi publicado na revista científica há mais de uma semana. O Globo foi o único dos grandes jornais a dar algum espaço para o assunto, que foi tema de seminário em Brasília na quinta-feira (23/5). De modo geral, a imprensa tem evitado confrontar os resultados de certas políticas públicas adotadas a partir de 2003, como o Bolsa Família, a diplomacia menos dependente dos Estados Unidos, o fortalecimento dos bancos estatais como estratégia para estimular a concorrência no sistema financeiro, pela oferta de crédito, e outras mudanças que fazem a diferença entre o modelo adotado após o Plano Real e as políticas implementadas na última década.

Mesmo considerando que a mortalidade infantil começou a cair mais fortemente há quinze anos, o que faz justiça a medidas tomadas ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, os jornais não parecem interessados em analisar as políticas sociais. Nem mesmo para reconhecer o trabalho desenvolvido pela falecida ex-primeira dama Ruth Cardoso, que deu uma contribuição fundamental para a compreensão dos efeitos econômicos e políticos de programas sociais: seu livro intitulado Comunidade Solidária: fortalecendo a sociedade, promovendo o desenvolvimento, publicado em 2002, é tido como inspirador de alguns dos autores do Bolsa Família.

Além disso, têm acontecido desde 2006 importantes seminários anuais sobre os resultados econômicos das políticas de distribuição condicional de renda, muitos deles promovidos por um instituto cultural ligado a um dos grandes bancos privados do país, com sucessivas demonstrações de que a orientação social da economia reduz desigualdades e produz mais riqueza do que o modelo inspirado na absoluta liberdade do mercado.

Curiosamente, é o Valor Econômico, principal jornal especializado em economia e negócios, que tem dado mais destaque a essa questão. A imprensa generalista hegemônica segue achando que o Bolsa Família é uma herança das políticas clientelistas tradicionais – sendo que esse cordão umbilical já havia sido cortado por Ruth Cardoso ao oficializar o papel das organizações não-governamentais no desenvolvimento econômico-social.

Agarradas a dogmas do mercado, as redações se alienam da realidade.

Fonte: Observatório da Imprensa

sábado, 19 de janeiro de 2013

Caravanas da Cidadania: há uma pedra no meio do caminho


O ex-presidente Lula anunciou 2013 como o ano da retomada das ruas. E que logo liderará a segunda etapa das Caravanas da Cidadania, que percorreram pela primeira vez o país entre 1993 e 1994. Ativistas como o jornalista Beto Almeida convocam para o mesmo período as Caravanas da Informação Democrática (confira os links no pé do post). Mas a mídia hegemônica já decidiu que vai de tudo fazer para neutralizar os efeitos dessa nova etapa de mobilizações sociais. (R.B, Equipe do EDUCOM)

Do Blog das Frases, na Carta Maior*
Antes que o PT esboçasse o roteiro das caravanas que Lula planeja realizar este ano o dispositivo midiático iniciou a sua.

Reportagens publicadas nos últimos dias pelo 'Estadão' e 'O Globo' revisitaram marcos do governo petista. 

Alguns títulos pinçados desse primeiro arranque :

'Dez anos depois, população pobre do Brasil permanece refém de programas de renda'; 

'Berço’ do Fome Zero não muda com programas sociais'; 

'Em Guaribas, 87% da população vive do Bolsa Família';

'PT tira milhões da pobreza, mas abandona responsabilidade fiscal'

Vai por aí a coisa.

As referências de partida às cidades pobres de Guaribas (PI) e Itinga (MG), recheiam o propósito de alvejar por antecipação os símbolos previsíveis de um roteiro petista.

Ambas estão associadas ao Fome Zero, o primeiro programa lançado por Lula no primeiro ato, do primeiro dia, do seu primeiro governo, em 3 de janeiro de 2003.

Emerge dos textos a ordem unida que deve afinar a desconstrução desse ciclo incômodo.

Na superfície, benevolência: milhões deixaram a pobreza, mas...

Na costura, a lógica desidrata a dinâmica social negando a emergência de qualquer sujeito histórico capaz de afrontar o veredito do fracasso irremediável.

'O modelo é insustentável' , arremata em pedra e cal o sociólogo tucano Bolívar Lamounier, na última linha do texto do O Globo. 

Foi nisso que deu a luta contra a miséria. 

Para todos os efeitos, o Brasil é reduzido a uma fila de seres vegetativos alimentados pela sonda infatigável do populismo. 

O fato de a demanda colecionar 16 trimestres seguidos de expansão, num momento em que o planeta estrebucha em anemia, é um acidente de percurso.

A caravana conservadora tira isso de letra. Literalmente

É só ouvir 'especialistas ' especializados em alvejar o PT. 

No atacado ou no varejo? O cliente é quem manda.

A varredura atinge por extensão o 13 de fevereiro próximo, quando o partido comemora 33 anos de fundação, ademais de acumular munição para 2014 e cumprir a missão imediata: colocar uma pedra no meio do caminho da mobilização de resistência acenada pelos dirigentes .

Não qualquer pedra. 

Mas aquela capaz de suscitar a dúvida: de que adianta Lula afrontar a pauta da criminalização e da desqualificação se a narrativa da nova caravana da cidadania caberá ao monopólio midiático?

Nos anos 90, as redações foram pegas de surpresa pela iniciativa original. Num primeiro momento, cederam à repercussão diante do efeito contagiante por onde comitiva petista passava. 

Organizadas entre 1993 e 1996, as Caravanas da Cidadania percorreriam mais de 40 mil quilômetros. Ao todo, foram seis expedições que vasculharam os quatro cantos do território nacional. 

A primeira, de 24 dias, partiu de Garanhuns, interior pernambucano; finalizou em Vicente de Carvalho (SP).

Reeditou o percurso de um pau de arara que em 1951 levaria Lula, a mãe e irmãos até São Paulo e daí para o litoral, fugindo da seca, da fome e da pobreza.

A imagem de um novo 'cavaleiro da esperança' a escancarar a realidade do país como o seu melhor argumento, rapidamente acendeu o farol vermelho nas redações.

A tolerância inicial cedeu lugar então às cobranças. Duras. Repórteres escalados para cobrir as viagens eram intimados a entregar a encomenda. 
Às favas com fatos, pessoas e paisagens.

O jornalista Ricardo Kotscho acompanhou de perto aquela aventura como assessor de imprensa de Lula. 

Em depoimento à Fundação Perseu Abramo, em 2006, revela detalhes da operação desmonte acionada pelas chefias de redação para sufocar o comício ambulante do líder metalúrgico. Continue lendo

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*crédito da imagem: ABr/arquivo

terça-feira, 9 de agosto de 2011

"Não é verdade que o Brasil gaste muito em políticas sociais"



por Paulo Daniel*

Neste mês de agosto, o blog Além de Economia, em conjunto com o site da revista CartaCapital realiza uma série de entrevistas com economistas respeitados e renomados para que possamos debater e compreender a crise pela qual o mundo está passando em oposição ao crescimento e certo desenvolvimento econômico e social brasileiro.
conciencia negra12 300x215 Não é verdade que o Brasil gaste muito em políticas sociaisPara inaugurar essas entrevistas, convidamos a professora Rosa Maria Marques, economista com pós-doutorado na Faculte de Sciences Economiques da Université Pierre Mendes France de Grenoble, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Marques foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e integrante da Comissão de Orçamento e Finanças do Conselho Nacional de Saúde. É autora de vários livros, sendo o mais recente O Brasil sob a Nova Ordem. Atualmente, está desenvolvendo Estágio Sênior na Universidade de Buenos Aires, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Confira abaixo a entrevista.
Além de Economia/CartaCapital: As políticas públicas como saúde, educação, previdência, transportes, etc. são importantes para elevar o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Entretanto, alguns economistas afirmam que o Estado brasileiro gasta muito com essas políticas e de forma irracional. Qual saída poderia ser adotada para ampliar o acesso a esses serviços públicos sem necessariamente aumentar impostos?
Rosa Maria Marques: Em primeiro lugar, não é verdade que o Estado brasileiro gaste muito em políticas sociais. No caso da saúde, por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde, os países que oferecem um sistema público universal (como é o caso do SUS), tais como Reino Unido, Suécia, Espanha, Itália, Alemanha, França, Canadá e Austrália, destinaram em média, em 2008, 6,7% do PIB. No mesmo ano, o gasto do Brasil, somando as três esferas de governo, foi de 3,24%. O mesmo acontece com a educação e com a previdência.
Agora, o problema de acesso é diferente. Na saúde, é o seu principal problema. Principalmente nas capitais e nas grandes cidades, os usuários enfrentam problemas de acesso para os níveis de média e alta complexidade, mas não necessariamente para a assistência básica. Já nas pequenas cidades, a dificuldade de acesso anterior se soma ao fato de que os equipamentos desses níveis de atenção estão concentrados nas maiores cidades. Este é o principal desafio a ser respondido na área da saúde. Mas, enquanto o SUS continuar a depender em grande parte dos serviços prestados pelo setor privado, é difícil resolver esse problema. Isto porque o setor privado que é conveniado ao SUS atende simultaneamente os planos de saúde e os particulares (com os quais ganha mais) e tende a fazer seus investimentos nos grandes centros do país. Há um outro aspecto que vale a pena ser mencionado: o fato de que parte do gasto das famílias com os planos de saúde e com medicina privada é pago pelo governo federal, mediante o desconto do imposto de renda. De certa forma, o Estado brasileiro garante parte da demanda dos planos de saúde.
O problema de acesso à previdência decorre de como ela foi pensada ou construída: em cima do mercado formal de trabalho. Quem não tiver carteira assinada está, por definição, dela excluída. E a existência de uma informalidade expressiva entre os ocupados sempre foi uma marca de nosso mercado de trabalho. Mesmo que nos últimos anos a informalidade tenha caído, ela continua importante. Assim, para melhorar o acesso, não basta apenas apostar na formalização das relações de trabalho, é preciso se pensar em uma outra forma de organização da previdência, que leve em conta não só o critério meritocrático – de ter um trabalho formal – mas também incorpore o critério fundado na cidadania.
Acabei tratando apenas de duas políticas públicas, pois cada uma delas é bastante complexa. Se fôssemos falar da educação, precisaríamos definir de qual nível estamos falando.
AE/CC: A crise financeira e econômica pela qual a Europa está passando se deve à construção, desde a Segunda Guerra Mundial, do chamado Estado de bem-estar social? Se o Estado brasileiro aumentar os gastos públicos, principalmente os sociais, não estaria trilhando o mesmo caminho?
RMM: Em hipótese nenhuma, respondendo às duas questões. A crise da Europa, e também a dos Estados Unidos, deve-se ao crescimento desenfreado do capital fictício, isto é, daquele que busca ter lucro com a compra e venda de ativos, sem nenhuma relação com a produção. O problema dos países europeus, que ora estão em dificuldade, não foi provocado pelo gasto corrente de seus Estados e sim pelo setor financeiro, principalmente pelos bancos. A questão é que esse setor não aceitou internalizar as perdas da crise de 2008-2009. Não esqueçamos, por exemplo, que o crescimento mais recente do endividamento norte-americano foi devido à “ajuda” que o Estado deu ao setor financeiro.
AE/CC: Recentemente a presidenta Dilma lançou o programa Brasil sem Miséria, cujo objetivo é retirar da pobreza extrema 16 milhões de brasileiros(as) até 2014, é uma medida audaciosa ou tímida?
RMM: Nem audaciosa e nem tímida. Trata-se do prosseguimento do Programa Bolsa Família. Em junho deste ano, o Bolsa Família abrangeu 12.436.167 famílias. Este programa de fato melhorou a vida de seus beneficiários (das famílias pobres e muito pobres), mas não foi associado a outras políticas que alterem as condições da reprodução da pobreza no país.
AE/CC: Como uma estudiosa e especialista em Previdência, pode-se comparar as reformas realizadas na Europa com a brasileira? Há ainda necessidade de se reformar o sistema previdenciário brasileiro?
RMM: Há um aspecto que é comum, isto é, a constante preocupação em aumentar a idade de acesso à aposentadoria. Esta é a pior ironia que pode haver, pois o aumento da expectativa de vida deveria ser bem visto pela sociedade, já que se trata de uma conquista de toda a humanidade. Mas o que acontece é o contrário: viver mais passou a ser visto por alguns como um fardo e um privilégio.
Se alguma mudança deveria ser feita na Previdência brasileira, seria a incorporação de todos os cidadãos em sua cobertura. Para isso seria necessário se pensar em um novo desenho de seu sistema, o que envolveria repensar suas fontes de financiamento, sem abandonar a participação das contribuições sociais.
AE/CC: No que diz respeito ao financiamento público da saúde, quais são os entraves para universalizar o sistema e com qualidade?
RMM: Em parte já respondi a essa questão no início da entrevista, mas faltaria mencionar o fato de que até hoje a participação federal em seu financiamento não foi devida. Trata-se da Emenda Constitucional 29, que está há anos em compasso de espera para ser apreciada no Congresso.
AE/CC: Que papel o programa Bolsa Família tem na conjuntura política e econômica brasileira?
RMM: O Programa Bolsa Família é um programa relativamente barato. Em 2010, seu gasto representou 0,37% do PIB. Contudo, seu impacto é bastante significativo, não só porque diminuiu a pobreza absoluta e relativa (de 2003 a 2008, a população abaixo da linha de pobreza caiu 12% para 4,8%, e na de pobreza, de 26,1% para 14,1%), mas porque tem um efeito multiplicador grande no entorno de onde as famílias beneficiárias vivem. Há cidades onde os recursos desse programa são bastante importantes, quando comparados aos recursos próprios e às transferências constitucionais recebidas por esses municípios.
Em termos políticos, o Bolsa Família – assim como outras ações empreendidas durante o governo Lula – permitiu a construção de uma nova base de apoio, diferente daquela tradicionalmente compreendida pelos movimentos sociais e pelos sindicatos. Em 2008, publiquei na Revista de Economia Política, junto com outros colegas, um estudo que relaciona o Bolsa Família e os resultados das eleições de 2006. Seus resultados são bastante interessantes e instigantes.
AE/CC: Em 2010, a senhora e um conjunto de economistas lançou o livro O Brasil sob a Nova Ordem, pela editora Saraiva. Que nova ordem estamos vivendo?
RMM: Trata-se do fato de, nas últimas décadas, o capitalismo ter sido dominado por aquilo que se costuma chamar de capital financeiro, mas que, para ser mais precisa, seria pelo capital fictício, isto é, pela face mais perversa do capital financeiro. Isso significou que sua lógica de curto prazo foi imposta às empresas industriais e comerciais, deprimindo o investimento, reduzindo os salários na maioria dos países, piorando as condições de trabalho, e promovendo a retirada de direitos sociais, entre outros impactos.
Levando em conta essa lógica, o livro analisa como a adoção das recomendações do chamado Consenso de Washington modificou profundamente a economia, desde sua estrutura produtiva até a política econômica centrada nas metas de inflação, como também alterou o papel do Estado, as políticas públicas, entre outros aspectos.
* Paulo Daniel é economista, mestre em economia política pela PUC-SP, professor de economia e editor do blog Além de Economia.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.

Fonte: Extraído do site Envolverde

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Governo Lula

Frei Betto*
Anunciada a vitória de Lula nas eleições de 2002, publiquei em O GLOBO (28/10/2002) o artigo ‘O amigo Lula’. Encerrei-o com a frase: "Sobrevivente da grande tripulação do povo brasileiro, Lula é, agora, um vitorioso".

Apoiado por ampla maioria da opinião pública brasileira (hoje, 87%), Lula governa o país há oito anos. Surpreendeu a aliados e opositores. Lula é, também agora, um vitorioso – posso parafrasear-me.

Vivi sempre de meu trabalho, como recomenda o apóstolo Paulo. Por breves períodos mantive vínculo empregatício com a iniciativa privada. Recusei nomeações do poder público. Por considerar compatível com minha atividade pastoral, aceitei convite do presidente Lula para integrar, em 2003, sua assessoria especial no gabinete de Mobilização Social do Programa Fome Zero, ao lado de Oded Grajew.

Ali permaneci dois anos. Tive oportunidade de implantar dois programas de ampla capilaridade nacional e ainda vigentes: a Rede de Educação Popular, que atua segundo o método Paulo Freire na formação cidadã de beneficiários do Bolsa Família; e o Escolas Irmãs, que estabelece conexões solidárias entre professores e alunos de instituições de ensino.

Minha tarefa principal consistia em mobilizar a sociedade civil em prol do Fome Zero, sobretudo os Comitês Gestores que, eleitos democraticamente nos municípios, cuidavam do cadastro dos beneficiários e supervisionavam o cumprimento das condicionalidades do programa de erradicação da miséria.

Muitos prefeitos reagiram. Queriam a si o controle do Fome Zero. Temiam o despontar de novas lideranças locais via Comitês Gestores. Exigiam decidir, por razões eleitoreiras óbvias, quem entra e sai do cadastro. Por sua vez, o lobby do latifúndio – cerca de 200 parlamentares do Congresso – pressionava para o Fome Zero não efetivar a reforma agrária, que lhe asseguraria caráter emancipatório e constituía cláusula pétrea do programa do PT.

A Casa Civil deu ouvidos aos insatisfeitos. Tratou de substituir o Fome Zero por um programa de caráter compensatório e, até hoje, sem porta de saída, cujo cadastro é controlado pelos prefeitos: o Bolsa Família. Oded Grajew regressou a São Paulo, o ministro Graziano foi substituído e eu, em dezembro de 2004, pedi demissão. Voltei a ser um feliz ING – Indivíduo Não Governamental.

Às vésperas de encerrar o governo Lula, avalio-o como o mais positivo de nossa história republicana. O Brasil mudou para melhor.

Entre 2001 e 2008, a renda dos 10% mais pobres cresceu seis vezes mais que a dos 10% mais ricos. A dos ricos cresceu 11,2%; a dos pobres, 72%. No entanto, há 25 anos, de acordo com o IPEA, metade da renda total do Brasil permanece em mãos dos 10% mais ricos. E os 50% mais pobres dividem entre si apenas 10% da riqueza nacional.

Sob o governo Lula, os mais pobres mereceram recursos anuais de R$ 30 bilhões; os mais ricos, através do mercado financeiro, foram agraciados, no mesmo período, com mais de R$ 300 bilhões, o que impediu a redução da desigualdade social.

Faltou ao governo diminuir o contraste social por meio da reforma agrária, da multiplicação dos mecanismos de transferência de renda e da redução da carga tributária nas esferas do trabalho e do consumo. E onerar as do capital e da especulação.

Hoje, os programas de transferência de renda do governo representam 20% do total da renda das famílias brasileiras. Em 2008, 18,7 milhões de pessoas viviam com menos de ¼ do salário mínimo. Não fossem as políticas de transferência, seriam hoje 40,5 milhões. Isso significa que o governo Lula tirou da miséria 21,8 milhões de pessoas.

É falácia alardear que, ao promover transferência de renda, o governo "sustenta vagabundos". Isso ocorre quando não pune corruptos, nepotistas, licitações fajutas, malversação de dinheiro público. No entanto, a Polícia Federal prendeu, por corrupção, dois governadores.  

Mais da metade da população do Brasil detém menos de 3% das propriedades rurais. E apenas 46 mil proprietários são donos de metade das terras. Nossa estrutura fundiária é idêntica à do Brasil império! E o empregador rural não é o latifúndio nem o agronegócio, é a agricultura familiar: ocupa apenas 24% das terras e emprega 75% dos trabalhadores rurais.

A inflação manteve-se abaixo de 5%, cerca de 11,7 milhões de empregos formais foram criados e o salário mínimo corresponde, hoje, a mais de US$ 200. Isso permitiu ao consumidor planejar melhor suas compras, facilitado por uma política de créditos consignados e a longo prazo, malgrado as elevadas taxas de juros.

O governo Lula não criminalizou movimentos sociais; buscou o diálogo, ainda que timidamente, com lideranças populares; melhorou as condições dos quilombos; demarcou terras indígenas como Raposa Serra do Sol.

Ao rechaçar a ALCA e zerar as dívidas com o FMI, Lula afirmou o Brasil como país soberano e independente. O que lhe permitiu manter confortável distância da Casa Branca e se aproximar da África, dos países árabes e da Ásia, a ponto de enfraquecer o G8 e fortalecer o G20, do qual participam países em desenvolvimento. Estreitou relações com a África do Sul, a Índia e a China, valorizou a UNASUL e rompeu o "eixo do mal" de Bush ao defender a autodeterminação de Cuba, Venezuela e Irã.

O governo termina sem que, nos oito anos de mandato, tenham sido abertos os arquivos das Forças Armadas sobre os anos de chumbo, nem apoiado iniciativas para entregar à Justiça os responsáveis pelos crimes da ditadura. O país continua sem qualquer reforma estrutural, como a agrária, a política, a tributária etc.

Na educação, o investimento não superou 5% do PIB, quando a Constituição exige ao menos 8%. Embora o acesso ao ensino fundamental tenha se universalizado, o Brasil se compara, no IDH da ONU, ao Zimbábue em matéria de qualidade na educação. Os professores são mal remunerados, as escolas não dispõem de recursos eletrônicos, a evasão escolar é acentuada. Os programas de alfabetização de adultos fracassaram e o MEC se mostrou desastrado na aplicação do ENEM. De positivo, a ampliação das escolas técnicas e das universidades públicas, o sistema de cotas e o ProUni.

O SUS continua deficiente, enquanto o atendimento de saúde é progressivamente privatizado. Hoje, 44 milhões de brasileiros estão inscritos em planos de saúde da iniciativa privada. Mais de 50% dos domicílios do país não possuem saneamento, os alimentos transgênicos são vendidos sem advertência ao consumidor, os direitos das pessoas portadoras de deficiências não são devidamente assegurados.

Governar é a arte do possível. Implica imprevistos e exige improvisos. Lula soube fazê-lo com maestria. Espero que o governo Dilma possa aprimorar os avanços da administração que finda e corrigir-lhe as falhas, sobretudo na disposição de efetuar reformas estruturais e ampliar o rigor na preservação ambiental. Tomara que a presidente consiga superar a deficiência congênita de sua gestão: o matrimônio, por conveniência eleitoral, entre o PT e o PMDB.

PS: O poder não muda ninguém, faz com que as pessoas se revelem.
*escritor e assessor de movimentos sociais

sábado, 28 de novembro de 2009

Curso de Jornalismo Prático: O manual do colunista

do Blog do Sakamoto
Agora que a obrigatoriedade do diploma para exercício da profissão caiu, o Blog do Sakamoto reforça o seu "Curso de Jornalismo Prático". Já em sua terceira aula (a primeira e a segunda, sobre o Disk-Fonte: O Jornalismo Papagaio de Repetição, foram um sucesso), o Curso é elaborado em conjunto com amigos que são grandes repórteres e conhecem como ninguém o universo das redações. Para esta aula, um deles foi certeiro na análise do problema, criando um manual que será de grande utilidade aos recém-formados, mas também àqueles com mais quilometragem que querem “chegar lá”.

Quer virar colunista ou editorialista de jornalão impresso, de um telejornal noturno ou de uma revista semanal de grande circulação? Fácil. Basta seguir esse manual. Para cada tema polêmico da atualidade, há um repertório de cinco argumentos que devem ser repetidos ad nauseum, sem margem para hesitação. Pintou o tema, escolha um dos cinco argumentos abaixo e tasque na sua coluna. Se quiser, use mais de um. Você é a estrela.

Uma dica: para sua coluna parecer diversificada, democrática, procure colocar alguns dos argumentos abaixo na boca de “especialistas”. Veja a lista de nossos especialistas no Disk -Fonte e escolha livremente. Se já estiver na hora do fechamento e ninguém atender, ligue para o Demétrio Magnolli, pois esse está sempre à disposição e discorre sobre qualquer assunto. Ele é fera.

E atenção: não se preocupe se o seu concorrente direto anda usando exatamente esses mesmos argumentos há anos. Não importa também se quase todos esses argumentos já foram aniquilados pelos fatos. O importante, em todos os casos, não é citar fatos. O que conta é dar ênfase no argumento. Se você estiver apresentando um telejornal, faça cara de compenetrado. Se for uma coluna, um editorial, carregue no título.

Além da segurança, da facilidade e da comodidade, há várias outras razões para você usar esse manual: 1) você vai parecer erudito; 2) você vai gastar pouco tempo para fechar a coluna; e 3) seu texto irá repercutir muito bem junto ao dono do(a) jornal/revista/TV que você trabalha.

Ao manual:

Se o assunto é: Cotas nas universidades, ação afirmativa, Estatuto da Igualdade Racial

Seus argumentos devem ser:
“Para a biologia, a raça humana é uma só. Logo, não faz sentido dividir as pessoas por raças”
“A política de cotas é perigosa. Irá criar conflitos que não existem hoje no Brasil”
“É uma ameaça à qualidade do ensino, pois os beneficiários não conseguirão acompanhar as aulas”
“Essas iniciativas representam uma ameaça ao princípio de que todos são iguais perante a lei”
“Cotas são ruins para os próprios negros, pois eles sempre se sentirão discriminados na faculdade”

Se o assunto é: Reforma agrária, MST, agricultura familiar

Seus argumentos devem ser:
“Não faz mais sentido fazer reforma agrária no século 21”
“O agronegócio é muito mais produtivo, eficiente, rentável, moderno e lucrativo”
“O Fernando Henrique já fez a reforma agrária no Brasil”
“Se você distribui lotes, o agricultor pega a terra e a vende para terceiros depois”
“O MST é bandido”

Se o assunto é: Bolsa Família

Seus argumentos devem ser:
“O pobre vai usar o dinheiro para comprar TV, geladeira, sofá e outros artigos de luxo”
“O pobre não terá incentivo para trabalhar. Vai se acostumar na pobreza”
“Não adianta dar o peixe, tem de ensinar a pescar”
“O programa não tem porta de saída” (não tente explicar o que é isso)
“O governo só sabe criar gastos”

Se o assunto é: Mortos e desaparecidos políticos, abertura de arquivos da ditadura, revisão da Lei de Anistia

Seus argumentos devem ser:
“Não é hora de mexer nesse assunto”
“A Anistia foi para todos. Valeu para os militares; valeu para os terroristas”
“Não é hora de mexer nesse assunto”
“A Anistia foi para todos. Valeu para os militares; valeu para os terroristas”
“Não é hora de mexer nesse assunto”

Se o assunto é: Confecom, democratização da comunicação, classificação indicativa

Seus argumentos devem ser:
“Qualquer regulamentação é ruim, o mercado regula”
“É um atentado à liberdade de imprensa”
“Querem acabar com o seu direito de escolha”
“Já tentaram expulsar até o repórter do New York Times, sabia?”
“A classificação indicativa é censura. Os pais é que têm que regular o que seus filhos assistem”

Se o assunto é:
A política econômica

Seus argumentos devem ser:
“O governo deveria aproveitar esse período de vacas gordas para fazer as reformas que o Brasil precisa, cortando custos”
“Os gastos e a contratação de pessoal estão completamente fora de controle”
“O país precisa fazer a lição de casa e cortar postos de trabalho”
“Quem produz sofre muito com o Custo Brasil, é necessário cortar custos e investir em infra-estrutura”
“Só dá certo porque é continuidade do governo FHC”

Se o assunto é:
Trabalho e capital

Seus argumentos devem ser:
“O que os sindicatos não entendem é que, nesta hora, todos têm que dar sua cota de sacrifício”
“Os grevistas não pensam na população, apenas neles mesmos”
“Sem uma reforma trabalhista que desonere o capital, o Brasil está fadado ao fracasso”
“A CLT é uma amarra que impede a economia de crescer”
“É um absurdo os sindicatos terem tanta liberdade”